A doutrina dos afetos

Por Chico Torres 

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O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.

Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.

Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.

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Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.

Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.

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Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.

A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.

 

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