Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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