Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Sibéria

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Por Gabriel Papaléo

“- My soul is within me.
- No, brother. Your soul is outside of you – and you must claim it.”

Como distinguir os círculos do pós-vida religioso da sua jornada, ainda dos vivos, de auto-análise e aceitação do fim? Talvez por ser um homem que passou a vida tratando através da sua obra com o forte iconográfico cristão, mas que há pouco mais de dez anos se converteu ao Budismo, Abel Ferrara tente assimilar signos que convergem dessas ricas organizações de fé numa estrada espiritual de acerto de contas. Sibéria parte do metafísico, do arquétipo (um homem solitário serve álcool no seu bar do fim do mundo), para desencadear momentos e pulsões de anos tão distantes na vida de Clint, seu protagonista, como se fossem todos parte de um fluxo, de um presente que ignora o específico do espaço. É o enfrentamento do simbólico que deflagra o trauma através do isolamento social, como Teshigahara fez em A Mulher da Areia.

A diferença para Teshigahara, e também para Béla Tarr e Agnès Hranitzky em O Cavalo de Turim – filme que também começa com uma voz em off contando uma memória que amaldiçoará o protagonista -, que guarda suas semelhanças na atmosfera de inevitabilidade e na opressiva ausência de deidades, é que a certeza do fim para Ferrara é testemunhar a indiferença do espaço quando fica curioso pelo contato, pelas respostas. Ao passar pelos oásis de memória infantil nas matas e expurgo religioso no deserto, ficam expostas as fraturas do homem que se isolou porque não suportava o peso de repetir seu pai, de alienar seu filho, de omitir sua esposa do processo de vida, até mesmo da aspiração profissional médica que encontra demônios em pacientes perdidos. Isso exige um fluxo de imagem proposto por Ferrara que nem sempre é devolvido pela steadicam do fotógrafo, mas que é disciplinado o suficiente para o rosto de Willem Dafoe (um estrondo, como sempre) devolver a potência do testemunho. É o coração das trevas particular, motivado pelo rebuliço interior, onde a ausência de deuses está ali palpável – e não há nem os ventos do apocalipse para alentarem os olhos desesperados de Dafoe.

O homem parece interessado pela magia do mundo, através do personagem do mágico, através do caminhante misterioso, mas não consegue assimilar o que a magia pode lhe devolver além das memórias. Quando criamos uma memória visual com um lugar, é um campo de concentração, local de morte da Historia, e que mais tarde terá seus espíritos conjurados inconscientemente por jovens ouvindo metal e descontando sua fúria. Os lugares contam segredos que atravessam o corpo sem sentirmos, e de alguma forma a alma de Clint só se conecta com a sensação, com os óculos do menino que faz todos sumirem. A ele resta a dança, como algum lastro de diálogo de sombras.

Como reclamar sua alma no mundo quando tudo passou, tudo ficou para trás, e a culpa suga o seu trânsito a ponto de destruir o pouco que tem no presente? Ferrara constrói aqui um filme que parece não ter ideia das respostas – e é daí que tira sua força.

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