Melhores filmes de 2011

As retrospectivas de final de ano nos ajudam a fazer uma leitura geral do circuito cinematográfico no Brasil — tanto para pontuarmos as obras mais interessantes que passaram por aqui quanto para detectarmos os equívocos de distribuição de nosso limitado circuito. Para esta seleção de 10 grandes destaques entre os filmes exibidos no país em 2011, optamos por validar apenas obras que tiveram sua estreia comercial oficial este ano, o que impossibilitou a presença de filmes que participaram da programações de festivais e mostras de cinema e também os que aportaram por aqui direto para as prateleiras das locadoras. A lista está em ordem alfabética.

Além da Vida (Clint Eastwood, 2010) 

Há muito firmado e reconhecido como um autor, Clint Eastwood segue ainda assim com filmes mal vistos ou incompreendidos. Encerradas as suas atividades como intérprete e a trajetória de sua persona cinematográfica de durão com a bela retirada de cena que tivemos em Gran Torino, Clint continua na entrega do que há anos vem fazendo de melhor: dirigir. O Clint cineasta que pega questões importantes pelo mundo para fazer não filmes de teses ou didáticos, mas fábulas humanas com uma sensibilidade e olhar cinematográfico cada vez mais escasso em seu métier: a superação da segregação racial no belo e tão discutido Invictus, e agora esse Hereafter, um filme não sobre os mortos, mas sobre o apego dos vivos a eles (como um dos irmãos preservando em si próprio o antigo chapéu de sua metade que partiu). Bem possível que tenha sido encarado com a expectativa errada, a de filme espírita e sobre o além, quando em realidade o seu maior trunfo é se manter o tempo todo no plano terreno e materialista, com os seus eixos girando mais em torno da vida antes da morte, e da relação dos personagens com ela. Um grande filme sobre encontros, perdas, procuras e reencontros. Sobre a vida. (Vlademir Lazo)

As Canções (Eduardo Coutinho, 2011)

Todo artista tenta se expressar no limite de suas capacidades, sendo que os melhores, vez ou outra, chegam em um ponto tão extremo de seus limites que acabam inventando uma linguagem. O que dizer então de alguém como Eduardo Coutinho, que desafiou paradigmas em Jogo de Cena, depois de anos em estudos variados no documentário nacional, formando a mais diversificada carreira de um cineasta brasileiro? Que levou a um patamar ainda mais radical o dispositivo de construção de uma obra artística em Moscou? O que dizer sobre Eduardo Coutinho, que volta à base de tudo em As Canções, um filme que ao mesmo tempo é síntese e testamento de sua obra tão contundente? As Canções, que simplesmente nos convida a ouvir anônimos cantarolando músicas que são caras às suas trajetórias individuais, montando um painel sentimental sobre a entrega dos seres humanos, é a prova catártica e definitiva de que os grandes artistas são aqueles que, acima de qualquer coisa, sabem que a maturidade pode significar, também, simplicidade. (Thiago Macêdo Correia)

As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

O apanhado geral de uma vida de imagens: da fotografia à nouvelle vague, dos documentários às instalações, da infância a um último filme. Esse é o projeto ambicioso, e ainda assim muito divertido, de Agnès Varda em suas praias. Mais do que um documentário autobiográfico comum, Varda parece pegar emprestado o gesto compulsivo de colecionar dos seus Catadores e tornar-se, assim, ela também uma acumuladora de imagens, de pessoas, de lugares que atravessaram sua trajetória. Varda e suas imagens se indiscernem a ponto de não haver acanhamento para a diretora em se fantasiar como uma enorme batata ou para o seu filme esconder Chris Marker atrás da animação de um grande gato laranja. Em um filme que flerta em muitos momentos com a pieguice e o ridículo, a bricolagem quase caduca desses momentos é um ato de coragem — e puro cinema. (Kênia Freitas)

Caminho Para o Nada (Monte Hellman, 2010) 

Neste retorno de Monte Hellman após 20 anos longe das câmeras, acompanhamos um jogo metalinguístico fascinante em torno de uma equipe de cinema que produz um filme de uma história real, sobre um crime real. Mas não é tão simples assim: há o passado, há o presente e há o futuro do fato, e as três camadas narrativas se diluem umas nas outras até chegarmos a um nível de abstração tão feérico que só nos resta aceitar Caminho Para o Nada como um exercício visceral sobre sua própria encenação. A imagem aqui é recebida não como produto final, mas como um processo das informações ali contidas; uma extensa via a ser percorrida pelo olhar para chegarmos a uma possível veracidade daquilo que é filmado — e que pode não estar na imagem, ou, no caso do cinema, sequer existir. Confrontamos uma verdade particular pertencente a cada uma das cenas; uma verdade que é somente delas, e que na tela, enquanto processo de si mesma, é suficiente para que o filme nos fascine. (Daniel Dalpizzolo)

Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010) 

Ponto culminante não só para a carreira de seu diretor, que há um bom número de anos vem assinando uma sucessão ininterrupta de obras-primas, Cópia Fiel ergue-se como a redefinição de toda uma necessidade dramática para a contemporaneidade. Representar para viver, interpretar para que se chegue ao essencial, temos neste filme uma das operações estéticas mais significativas do presente século, de importância que ultrapassa o interesse cinematográfico para alcançar um domínio comum a toda expressão humana. Na implosão do romance gozado pelo casal de protagonistas, o nascer e o morrer de um impulso narrativo, o abismo entre a realidade e a ficção, tudo aquilo que alimenta o relacionamento de dois amantes, mas também o que motiva o contato entre o homem e a arte. Filme que justifica o cinema. (Fernando Mendonça)

O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011) 

O garoto do título do filme mais recente dos irmãos Dardenne é um corpo arredio, lutando contra um mundo que não lhe acolhe. Na verdade, mesmo quando as coisas passam a aparentemente seguir um caminho de redenção para este personagem, o garoto permanece incontrolável. Não é somente o mundo que não lhe cabe, mas sua essência que não permite que ele ceda ao universo que o rodeia. Ele luta contra a mulher que lhe dá a mão, luta contra a porta de um carro, luta contra a ideia do pai, para posteriormente acatar que a idealização do pai é justamente o que não corresponde à realidade. O corpo que não para de se debater, em determinado momento, se torna imóvel. É então acontece algo que pode ser tido como divino, quando a vida prevalece diante da morte. Para além de um discurso cinematográfico, a conclusão de O Garoto da Bicicleta é uma declaração de amor dos Dardenne à vida, à continuidade e, principalmente, à mudança. Neste filme, um corpo arredio pode encontrar a paz. E isso só pode ser visto como um verdadeiro milagre. (Thiago Macêdo Correia)

Singularidades de uma Rapariga Loura (Manoel de Oliveira, 2009)

A paixão é um sentimento engraçado à medida que se cria consciência de que aquilo que se sente não é exatamente por uma pessoa, mas por uma falsa imagem gerada a partir dela. Com este espírito, temos em Singularidades de uma Rapariga Loura uma obra concisa e eficiente em que o centenário Manoel de Oliveira adapta um conto de Eça de Queirós para tratar justamente da tolice na qual um homem se afunda a partir de uma imagem equivocada criada sobre uma mulher. Ricardo Trêpa observa Catarina Wallenstein emoldurada pela janela e parcialmente tapada por seu leque (e posteriormente pelo véu da cortina) e é esta cena emblemática e bela que sustentará para ele uma mentira que acobertará momentaneamente o pequeno desvio moral da moça. Quando descobrimos onde enfim o filme vai chegar, próximo ao final dos pouco mais de 60 minutos, tudo desaba sobre os ombros — nos de Trêpa e nos nossos. Oliveira prega uma peça tão deliciosa e encantadora que se torna impossível resistir ao filme. (Daniel Dalpizzolo)

Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Apichatpong Weerasethakul, 2010) 

Conhecemos Apichatpong Weerasethakul por filmes que se sustentam em quebras narrativas embasbacantes (como Síndromes e um Século e, especialmente, Mal dos Trópicos), e o que torna Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas ainda mais impressionante é como este aguardado choque surge logo nos primeiros planos e se mantém não na narrativa, mas dentro de cada uma das imagens subsequentes. Situações cotidianas banais dividem espaço organicamente nos planos com elementos sobrenaturais, e na diluição de camadas existenciais, da realidade e do imaginário, o diretor cria um universo exímio em que explora o potencial fantástico das lendas e crenças da Tailândia para filmar um belo conto sobre a morte, com situações que nos conduzem constamentemente ao sublime. Pode parecer de difícil assimilação a quem não está habituado à linguagem de Apichatpong, mas não encontramos em qualquer filme ocidental lançado no Brasil em 2011 um conjunto de cenas tão poderosas. (Daniel Dalpizzolo)

Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011)

Trabalhar Cansa é um filme tecido em uma operação delicada: conjugar na mesma obra uma crítica social e de costumes com uma fábula sobrenatural sobre o mal-estar contemporâneo. Nos perguntamos durante quase todo o filme do que se trata: das relações de trabalho/poder que perpassam as familiares/afetivas? Ou da necessidade de enfrentar o monstro que se esconde dentro de cada um? Alívio podermos sair do filme sem saber, com um final que filmando uma dinâmica de grupo das mais clichês de uma agência de empregos consegue trazer o grito e a libertação mais engasgados. Os diretores, Marco Dutra e Juliana Rojas, nos mostram que filmar as relações sociais no Brasil não é fazer apenas um drama ou uma sátira, mas também um filme de horror. (Kênia Freitas)

Um Lugar Qualquer (Sofia Coppola, 2010)

Assim como seu colega Jim Jarmusch (a quem já homenageou em Encontros e Desencontros), Sofia Coppola gosta de extrair do tédio o desenvolvimento do caráter de suas personagens. Não é um comentário jocoso: Um Lugar Qualquer é bastante exemplar nesse sentido, pois extrai do vazio todo o conjunto de motivações e peculiaridades que movem as personagens e as fazem se relacionar entre si. No caso, um pai e uma filha passam um tempo juntos e vão com isso se conhecendo e se aproximando; nada faz sentido fora desse quadro, e é portanto por esses momentos de interação que pulsa o sentido da obra, ela respira e é fresca e calorosamente humana. Aos poucos vamos compreendendo que o “lugar qualquer” é onde estão nossos sentimentos. (Filipe Chamy)

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De mestres do filme B para a tela pequena

“Eu notei, e tenho notado desde então,
como a
maioria das pessoas não se importam
com coisas
autênticas.
Elas preferem misturas e maquiagem”.

(Jean Renoir)

Num período de pouco mais de seis meses entre o final de 2010 e meados do ano que termina agora, tivemos a chegada no Brasil de três filmes de autores que já foram (relativamente) melhor recebidos por estas bandas. São eles: A Ilha dos Mortos (George A. Romero), The Hole 3D (Joe Dante) e Aterrorizada (John Carpenter), lançados não nos cinemas, mas vindos direto para DVD, ocupando uma fatia menos nobre no mercado (e provavelmente vistos mais por downloads na internet do que por vias comerciais). O que de certa forma não nos surpreende, pois se nos detivermos na lista de filmes que há anos povoam o nosso circuito exibidor, vamos nos deparar não somente com centenas de títulos insignificantes que figuram somente para cumprir a meta de um determinado número de estreias que se julga o suficiente para o circuito, como também, entre os lançamentos de maior repercussão, com produtos híbridos que misturam a linguagem cinematográfica com a publicitária, televisiva, dos videogames e videoclipes, etc. Ou com muita perfumaria, produtos de centenas de milhões de dólares maquiados com efeitos fáceis de superfície, repletos de decoração, de lugar comum, de ornamentos, e não com um trabalho sensível por parte do cineasta sobre o seu material, e menos ainda com mise en scène.

Nesse panorama, já não há mais lugar para Carpenter, Romero e Dante, alijados da preferência de um público amplo que certamente não desconfia que um plano do último filme de Romero (podemos pensar aqui na mulher cavalgando em disparada, ou a imagem final dos zumbis no horizonte) vale mais que carreiras inteiras de cineastas que prezam pelo “bom cinema”. Sexto filme de zumbis de Romero, A Ilha dos Mortos coloca a temática num outro contexto (o do campo nos limites de uma ilha de refugiados), com pitadas de romance gótico literário do século XIX misturados com elementos políticos e da tecnologia moderna, retomando o personagem de Alan Sprang, do anterior
Diário dos Mortos, como o líder de um pequeno grupo de soldados perdidos, enchendo seu filme de atores de TV canadenses que ninguém conhece e filmando em scope com as novas câmeras digitais disponíveis. Não que A Ilha dos Mortos e os mais recentes de Carpenter e Dante sejam dotados de absoluta perfeição, ou que não possam ter suas qualidades devidamente questionadas e, além do que, é preciso que se evite que o entusiasmo de assistir a esses filmes de autores tão especiais provoque um deslumbramento que não parta dos filmes em si, mas da simples assinatura do nome deles nos créditos de direção. Mas são todos eles parte de um cinema com maior ou menor grau de selvagerias, um cinema ainda não domesticado, e sempre existindo em torno da necessidade de uma expressão concreta, sem subterfúgios, frontal, direta e sem firulas.

São todos eles filmes B, algo que nos parece tão distante e pelo qual o grande público já não nutre grande interesse. Filmes B já não cabem mais na tela de um cinema com plateias viciadas nos multiplex ou IMAX, e que descartam como trash um outro legítimo representante do filme B que foi Piranha 3D (2010), que a despeito de duas ou três cenas patéticas constituía uma interessantíssima releitura de alguns conceitos do cinema exploitation (como foi Machete, de Roberto Rodriguez), abraçando justamente o que, de acordo com o bom gosto institucionalizado da visão de cinema do público contemporâneo, deveria se evitar por se considerado deficiências de um filme, quando na verdade é a razão de ser em qualquer exploitation. Daí não espanta que a maioria dos blockbusters assimile uma ou outra ideia dos filmes B apenas como ponto de partida para fazer valer a sua grandiloquência, quase sempre preocupados que algo grande esteja por ocorrer ou já acontecendo. Carpenter, Dante e Romero são cineastas que lidam com gêneros, e não com filmes-eventos que sejam por si só grandes acontecimentos. Dessa “despretensão” (que nada mais é que uma pretensão com finalidades distintas) surge uma incompreensão ou indiferença, que leva espectadores a equívocos como o de reduzir o recente trabalho de Carpenter como “telefilme” (o que parece a sina de todo filme B contemporâneo que se preza, o que justifica a existência de uma série como Masters of Horror, lançada há poucos anos). Vendo The Ward em algum momento é possível lembrar de Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi (este sim um filme domesticado que dilui todo um gênero para um público de shopping center que dificilmente perderia seu tempo assistindo a um autêntico filme B [como The Ward]): conceitualmente, ambos parecem versões esticadas de um episódio de série de horror de TV, porém o de Carpenter é superior (e mais bem pensado que o de Raimi), esculpindo visões do inferno no seu passeio ao horror de um hospital psiquiátrico e lidando muito bem com espaços claustrofóbicos típicos de algumas de suas melhores obras (O Enigma de Outro Mundo, Príncipe das Sombras, Fantasmas de Marte, entre outros).

Quando soube que o seu Piranha original, dos anos setenta, estava sendo refilmado em 3-D, o velho Joe Dante decidiu também experimentar com a tecnologia nesse formato (os novos projetos de Dario Argento e do próprio George A. Romero também trilharão esse caminho). The Hole é um raro filme de fantasia contemporâneo verdadeiramente imbuído de um espírito de curiosidade e aventura, desde Dane (Chris Massoglia) espiando a sua nova vizinha (Haley Bennett) na abertura (ou as tentativas de aproximação) até os percalços para resolver os conflitos surgidos com a descoberta do misterioso buraco no porão na casa de subúrbio para onde os protagonistas se mudam. O terror no cotidiano, o perigo que ronda na vizinhança, brinquedos como figuras ameaçadoras, todo o cinema de Joe Dante condensado na história dos dois irmãos que vão ao inferno e retornam para superar seus temores pessoais. Um dos poucos filmes recentes a de fato constituir uma fábula, não com lição, mas um sentido moral: a de que os medos e preocupações que alimentamos nos encarceram em grades que erguemos ao nosso redor. The Hole é a materialização desse pavor, dos fantasmas que residem tão somente em nossas mentes (e de onde se libertam e criam vida), seja o trauma decorrente da ausência — ou ameaça — da figura paterna, ou simplesmente o horror ocasionado pelo desconhecido.

Vale lembrar que os três últimos filmes de Dario Argento, mesmo contando com elencos encabeçados por atores de prestigio entre o público, também tiveram no Brasil, onde foram lançados exclusivamente em DVD, o mesmo destino de A Ilha dos Mortos, The Hole e Aterrorizada. São todos trabalhos de autores que cultivam o cinema fantástico, não o do show de técnica e de efeitos especiais (que são utilizados minimamente, não por insuficiência, mas o necessário para dar conta das intenções dos seus autores). Suas estéticas são as decorrentes dos filmes de baixo orçamento, e tampouco aspiram fazer um filme bem feitinho, ou expor uma suposta excelência do roteiro e das interpretações, como se estas virtudes por si só garantissem um produto de qualidade, quando muitas vezes resultam mesmo é em filmes quadradinhos e não raro esquemáticos, e que por si sós geralmente não levam a lugar nenhum. Tudo é feito em um tom pequeno e discreto, numa oposição ao modelo cada vez mais reinante nos blockbusters. Podem até ser considerados trabalhos de final de carreira, porém mesmo que lhes falte algo para incluí-los entre as grandes obras de seus respectivos cineastas, há muito a se aproveitar nesses filmes.

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George Harrison – Living in the Material World (Martin Scorsese, 2011)

Em paralelo aos seus trabalhos de ficção, Martin Scorsese vem dando continuidade há longo tempo a uma interessante série de documentários, sejam em suas viagens cinematográficas pela Hollywood do passado ou pela Itália, ou em No Direction Home, sobre Bob Dylan, isso para não falarmos no registro que fez de uma das turnês do Rolling Stones que também lançou em filme. Uma atividade que constitui um recorte cultural bastante rico do mundo no pós-guerra, que o diretor ítalo-americano, bom stoniano que é, vale lembrar, dedica agora aos Beatles, mas não centrado em sua parceria mais famosa (a de Lennon-McCartney), e sim na figura também mitificada de outro de seus integrantes, o personagem-título de George Harrison – Living in the Material World.

Felizmente, Scorsese em nenhum momento arrisca se lançar no discurso de Beatle negligenciado ou esquecido, o que não corresponderia a realidade. Em um dos depoimentos do filme, Paul McCartney ressalta que não existia melhor ou pior no conjunto, e que os integrantes formavam os quatro cantos de um quadrado em qual todas as partes eram essenciais. A beatlemania, por sinal, ocupa um grande espaço da Parte 1, numa primorosa reconstituição das origens e trajetória do grupo. Até Harrison, aos poucos, ter sua individualidade se sobressaindo no filme de Scorsese. Poucos anos separam momentos como o que Paul relata que uma das canções que ele compusera numa manhã George a melhorou muito (tocando-a de um jeito diferente do que fora originalmente pensando) e de um outro em que Georgesugeriu riffs de guitarra para “Hey, Jude” que Paul recusou, invocando que a música era dele, e cada um decidia a respeito de suas próprias composições. Todos haviam evoluído espantosamente naquele espaço de poucos anos, e a banda se tornara imensa demais e paradoxalmente pequena para conter as personalidades de seus quatro integrantes.

A evolução de Harrison coincide com a sua descoberta da cultura místico-indiana, que o influenciaram espiritual e artisticamente. Gurus e mantras passam a se tornar recorrentes no documentário (infelizmente Scorsese sequer menciona o conhecido episódio em que um dos lideres espirituais amigos de George teria dado em cima de Mia Farrow, que acompanhava o grupo). Era difícil ceder um espaço mais amplo nas faixas dos discos de uma banda que possuía dois dos melhores compositores de todos os tempos (Paul e John). Num primeiro momento, a influência indiana foi responsável por uma fase esquisita de George, que lançou um irregular disco solo, Wonderwall (cuja existência os fãs do cantor preferem simplesmente ignorar) e compôs as possivelmente piores músicas dos Beatles: “The Inner Light” e “Within’ You Without You” (que está justamente no Sgt. Peppers). Assimilada a influência, como sentido espiritual e melódico, mas incorporada ao estilo ocidental de canções pops nas quais George e os Beatles eram mestres (sem o peso de cítaras e outros instrumentos indianos), o biografado atingiu o seu amadurecimento como compositor que logo chegaria a sua plenitude.

A Parte 2 começa não com a dissolução dos Beatles, mas com o surgimento de “While My Guitar Gently Weeps” (tocada com a participação de Eric Clapton), quando George passa a compor em pé de igualdade próxima da de seus colegas de banda. Com a carreira solo, o documentário confere destaque ao ótimo All Things Must Pass, o disco triplo do compositor lançado em 1970, e ao Concerto de Bangladesh que ele organizou no ano seguinte, porém Scorsese dali em diante prefere se concentrar mais no homem e menos no artista. George substitui as drogas pela meditação (chegando a perder sua esposa para o amigo Eric Clapton), Ravi Shankar e Maharishi se tornam seus parceiros mais próximos, cultiva a paixão pelas pistas de automobilismo, a companhia dos krishnas, além de sua carreira de produtor de cinema (especialmente dos trabalhos da turma do Monty Python), que ocupa um longo segmento perto do final. Mas acima de tudo o misticismo e obsessões espirituais do cantor (que numa entrevista chega a chamar os descrentes de ignorante), numa tentativa de Scorsese de compreender a persona particular de George. Alguns discos poderiam ter sido um pouco abordados (como o de 1979, talvez o melhor dele), porém Scorsese prefere pular logo para o Traveling Wilburys, banda que formou com outras celebridades no final dos anos oitenta (o que infelizmente parece coincidir com a atitude de vários dos ditos fãs de Harrison que não ouvem mais que o All Things Must Pass). Nem mesmo são mencionados no documentário os problemas com a autoria do gospel “My Sweet Lord” (seu maior hit na carreira solo), que lhe custou trinta anos de processo por plágio até relançar a canção numa versão descaracterizada em 2000.

Scorsese prefere um recorte na figura simpática do sujeito que pregava um desapego ao “mundo material”, através de um volumoso material de filmagens caseiras ou de suas turnês. Acaba por impressionar o depoimento de sua viúva relatando a luta de ambos contra um jovem maluco que invadira a residência do casal para assassinar o compositor, e que ressoa a trágica morte de John Lennon mostrada anteriormente (ao som de uma bela canção de George dedicada ao amigo morto). Mesmo tendo sobrevivido ao ataque, George Harrison estava com os dias contados, vítima de um câncer que o liquidaria. O seu desaparecimento em Living in the Material World não nos deprime: levado pela morte é como se ele apenas encontrasse a paz espiritual que tanto procurava, com Scorsese fechando o documentário com um plano que aparecera na abertura: Harrison surgindo do nada por entre as tulipas de um canteiro de flores no campo, flertando com a câmera durante uma filmagem caseira. É como um atestado de que a sua presença estará sempre por perto, ainda que em merecido descanso das agruras e emoções do mundo material.

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Superman II e III: filmes de autor ou de super-heróis?

O box em Blu-Ray recém-lançado no exterior com todos os filmes de Superman motivou uma revisão, se não completa, ao menos com os melhores filmes do personagem. Mas para compreender o valor e a importância dos primeiros títulos da franquia é preciso voltar no tempo e conhecer suas origens no cinema. Seus produtores, os ingleses Alexander e Ilya Salkind (responsáveis, entre outros filmes, por O Processo, de Orson Welles), haviam obtido muito sucesso com a versão do romance clássico de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros, que havia sido concebida inicialmente para ser um épico de 3 horas de duração, sendo depois dividido em duas partes, lançadas separadamente e com um ano de intervalo: Os Três Mosqueteiros e Os Quatro Mosqueteiros — A Vingança de Milady, ambos a cargo da direção de Richard Lester. Um procedimento semelhante ao que Quentin Tarantino faria anos depois com Kill Bill, e que com um verdadeiro frenesi imposto por Lester e a excelência da adaptação, deu origem não a um, mas dois ótimos filmes, custando, entretanto, um processo aos produtores, devido ao elenco ter sido contratado para um filme, e ter participado de dois. Com o êxito, os Salkinds aportaram no cinema americano tendo em mente repetir o sucesso, seguindo a mesma linha de aventura e humor, encontrando nos gibis o personagem do Super-Homem, e encararam o desafio de levá-lo às telas.

Que fique claro que adaptar uma história em quadrinhos naquela época era complemente diferente de fazê-lo hoje em dia: ainda eram os tempos da Nova Hollywood, e o público predominantemente adulto e inteligente, décadas antes da era dos multiplexes. Portanto, a primeira preocupação dos Salkinds foi com a concepção e roteiro da adaptação (atualmente essa parece a última etapa e a menos importante num filme de super-heróis), recorrendo a Mario Puzo, que estava em alta pelo livro e roteiros dos dois O Poderoso Chefão (pelos quais recebeu o Oscar na categoria), para conceber uma história que pudesse ser dividida em dois filmes. Para escrever o roteiro com Puzo, foram contratados alguns dos principais roteiristas da Nova Hollywood, a dupla Robert Benton (que depois se tornaria importante e premiado diretor) e David Newman, responsáveis pelo surgimento da Nova Hollywood ao conceberem Bonnie & Clyde — Uma Rajada de Balas, e que depois escreveriam o western Ninho de Cobras (de Joseph L. Mankiewicz) e homenageariam as comédias screwballs com Essa Pequena é uma Parada (de Peter Bogdanovich). Muito dos primeiros Superman deve bastante a qualidade de seus roteiristas (que inclui ainda Leslie Newman, esposa de David). Com um elenco estelar em mãos (liderado por Marlon Brando e Gene Hackman), a acertada escolha de Christopher Reeve como protagonista, o trabalho de fotografia de Geoffrey Unsworth (de 2001: Uma Odisséia no Espaço), a trilha apoteótica de John Williams (que emula o Assim Falava Zaratustra, de Strauss, não o prólogo, famoso por 2001, mas trechos posteriores), as duas primeiras partes de Superman começaram a ser rodadas simultaneamente, dirigidas por Richard Donner (então considerado uma revelação após A Profecia), para serem lançadas com um ano de intervalo.

Superman — O Filme estourou nas bilheterias como era o esperado, mas depois de Donner ter filmado sessenta por cento do segundo filme, desentendeu-se e foi despedido pelos Salkinds, que chamaram Richard Lester para assumir a direção (Lester já participara da produção do primeiro como supervisor e auxiliar de Donner). Durante muito tempo discutiu-se em fóruns e em tudo quanto é lugar quem seria o verdadeiro realizador de Superman II, mas se haviam dúvidas, elas se dissiparam quando há poucos anos foi lançado um director’s cut com o que seria o corte do Donner pro filme. Lester refilmou quase todas as cenas dirigidas por Donner e completou as filmagens, sobrando de Donner apenas as cenas que filmara com Gene Hackman, que se recusou a continuar no elenco, sendo utilizado um dublê e alguém com voz parecida com a de Hackman para dublá-lo em algumas das cenas em que fosse necessário. Cerca de vinte por cento de cenas filmadas por Donner foram preservadas, só que reeditadas e remixadas por Lester.

Ganhador de uma Palma de Ouro em Cannes por A Bossa da Conquista, na década de sessenta, Richard Lester num primeiro momento pode parecer um tipo improvável num blockbuster, só que ele abraçou a série com todo o empenho. Lester sempre praticou cinema de autor, mas seus filmes na maioria das vezes nunca deixaram de ser comerciais. Os filmes que realizou com os Beatles, Os Reis do Iê-Iê-Iê e Help, foram revolucionários pelo ritmo frenético, pela montagem inventiva e alucinada, por retirarem os Beatles de um pedestal e apresentá-los mais de carne e osso, brincando com a imagem dos integrantes do quarteto, trazendo-os para mais próximo de nós. Ambos foram referência e inspiração para os filmes de estreia de realizadores como Francis Ford Coppola, William Friedkin e Bob Rafelson, que surgiriam pouco depois. Os filmes com os Beatles possuem um toque de aventura, mas também são dotados de um humor físico (Buster Keaton é um dos heróis confessos de Lester) e irreverente, gags ininterruptas, dentro de um conjunto vertiginoso. Muitos desses elementos foram transportados para os dois Mosqueteiros que dirigiu, nos quais tira o pó que poderia sair das páginas emboloradas dos livros de Alexandre Dumas, aliando um notável sentido de aventura com humor que não raro beira o pastelão.

Diante de Superman II e III, Lester também não recuou e imprimiu a sua assinatura e estilo não muito diferente de como se estivesse dirigindo um dos filmes dos Beatles. Fica a questão: seriam então filmes de autor ou de super-heróis? A resposta: os dois. Muitos cineastas autorais, ao assumirem produções milionárias, não raro se descaracterizam e se deixam levar por concessões ao mercado. Ou então se veem sem liberdade para tocar o projeto como gostariam. Não foi o que ocorreu com Lester, que trabalhou com tranquila liberdade nos seus Superman, e impôs sua visão de cinema neles, mais ou menos como tantos autores que investiram sua marca e sensibilidades pessoais nos mais diversos gêneros e filmes de grande público (western, terror, suspense, comédia, etc.).

Eis que Superman II é esta coisa rara: um filme de super-herói tanto quando uma obra autoral, e idolatrado tanto pelos fãs do personagem como pelos admiradores do cineasta (entre os quais há um consenso de que o filme é a obra-prima final de sua carreira). Embora seja em parte uma extensão do primeiro filme (que já possuía bastante humor e aventura), Superman II sofre menos sem o gigantismo e a necessidade de mostrar e explicar as origens do personagem, podendo ir direto ao ponto, como se o primeiro fosse somente um longo prólogo para este. E mais importante: sem uma contemplação mitológica que havia no trabalho de Donner (que se pode dizer, era um equivalente anos setenta a filmes épicos mais antigos como Ben-Hur), Lester uma vez mais retira seu herói do pedestal, de um excesso de seriedade e reverência que por vezes pesava no filme original.

Após um breve resumo dos fatos do filme anterior (com Lester refilmando os trechos com os três vilões de Krypton e os de Susanna York como a mãe do Super-Herói), o longa começa em plena ação com o Super-Homem tirando uma bomba da Torre Eiffel, e ao jogá-la para o espaço, a sua explosão provoca a libertação do general Zod (Terence Stamp) e seus comparsas, os vilões que haviam sido expulsos de Krypton e presos em outra dimensão.  O filme passa a se desenvolver em três eixos através da montagem em paralelo: a vinda e posterior dominação dos vilões sobre a Terra, a fuga de Lex Luthor (Hackman) da prisão, e a relação de Clark Kent (Reeve) e Louis Lane (Margott Kidder) na redação do Planeta Diário e depois nas Cataratas do Niágara, aonde vão para cobrir uma matéria. Lester vai construindo seu filme mesclando tensão, aventura e humor, como nas tiradas sempre cheias de irresistível sarcasmo do personagem de Hackman e o ajudante atrapalhado vivido por Ned Beatty. Há cenas cômicas exageradas que antecipam o pastelão de Superman III, como a em que Clark Kent é atropelado por um táxi e a dianteira do carro é amassada enquanto o personagem cruza calmamente a rua (ou no final, com o estrago provocado por Clark em um bar). Já as sequências passadas na redação do jornal, com toda a velocidade da construção impecável dos diálogos, lembram as clássicas comédias screwballs dos anos 30, remetendo à parcerias de Howard Hawks e Cary Grant, como Jejum de Amor, com as faíscas que surgem da interação entre Clark e Lane, e seus colegas e ambiente de trabalho.

É um filme de síntese na franquia de Superman, entre a aventura recheada de ação da primeira parte, e o humor exagerado da terceira. Ambas as tendências estão presentes em equilíbrio em Superman II, com os maiores vilões que o herói enfrentaria em toda a série, os rebeldes de Krypton que possuem os seus mesmos poderes. Lex Luthor é um criminoso sem força física ou sobre-humana, dotado apenas de seu intelecto e capacidade de manipulação. Já a dominação de Zod e sua turma na Terra é gradual e absoluta, como a de qualquer ficção apocalíptica em torno de invasores vindos de um planeta distante causando terror e destruição, ganhando uma vitalidade de espetáculo físico, e incluindo visões de guerra e de conflito num microscomo que é só um passo a uma dimensão maior. Cenas como a calamidade provocada pelo vilões soprando ventos de ar contra a multidão na espetacular luta noturna em Metrópolis que ocupa a meia hora final do filme são ao mesmo tempo engraçadas e desesperadoras. Brincalhão como de costume, Lester tripudia com imagens tradicionais como as das faces do Monte Rushmore sendo destroçadas e reconstruídas com as dos rostos dos vilões, ou a ocupação e quebra das paredes e portas da Casa Branca. De memória só consigo lembrar de outro filme (Fuga de Nova York, de John Carpenter, realizado um ano depois) em que uma figura sempre respeitável e imaculada no cinema como o presidente norte-americano tenha sido submetida a humilhações e flagelações com os impropérios que ouve ou o fato de ter que se ajoelhar a um inimigo invasor como em Superman II.

Oposto a isso tudo, a ausência de Super-Homem, numa história de perdas e de renúncias, com um personagem dividido entre a dificuldade (e impossibilidade) de se encaixar numa espécie que não é sua, ao tentar manter um romance com Louis Laine, e o senso de dever de salvar a humanidade. Peter Tonguette, no seu excelente artigo sobre Richard Lester para a Senses of Cinema, chama Superman II de um improvável trabalho de síntese dos elementos que compõem sua obra e de talvez o mais explicitamente romântico dos filmes de Lester, constituindo-se o ápice de uma tendência que normalmente permanecia submersa, porém surgindo claramente em alguns de seus filmes: Petúlia (possivelmente o melhor trabalho do diretor) era um melancólico estudo de encontros, crises conjugais e relacionamentos inusitados em torno de um casal de amantes (interpretados por George C. Scott e Julie Christie) em meio à revolução de costumes, enquanto que Robin e Marian ousava imaginar um romance crepuscular entre um envelhecido Robin Hood e sua amada (Sean Connery e Audrey Hepbun) em mais um trabalho de desmistificação de um herói tradicional em sua filmografia. Tonguette diz que quando o amor irrompe nos filmes de Lester, é sempre dentro de circunstâncias adversas, afetadas pela realidade do mundo exterior, conferindo uma dimensão trágica à visão romântica do diretor. “A cena final de Clark beijando Louis para que ela apague da memória o caso que teve com ele enquanto Super-Homem é dolorosa em seu sentido de perda”, completa.

Mesmo assim, Superman II é diversão incessante, permanecendo ainda hoje como o melhor e mais divertido filme de super-heróis já produzidos. Um dos aspectos mais impressionantes é sua noção de ritmo, assim como seu roteiro quase impecável onde cada cena cumpre uma função específica e brilhante dentro da estrutura do filme. Existe ainda hoje um ideal que sempre dominou a crítica, que tende a associar a qualidade artística ao que seriam “os grandes temas” (herança da literatura), “as grandes imagens” (o peso da pintura) ou os textos redondos e solos de interpretação super-elaborados (herança do teatro). Uma vontade, pois, quase elitista, de arte “inteligente”, e que desconhece que o cinema é de natureza tão particular cuja essência envolve formas, ritmos, harmonias e desarmonias visuais, podendo se manifestar plenamente em filmes B, de gênero ou até num blockbuster, por que não? Certos filmes sofrerão eternamente os mesmos preconceitos. Eles Vivem, por exemplo, dificilmente é reconhecido como a intensa obra política que Carpenter ousou fazer. Assim como alguns de Paul Verhoeven, ou Planeta dos Macacos de Tim Burton. Não são filmes de grife. São aparentemente vagabundos, e necessitam de uma compreensão e entendimento maior do que está por trás de suas imagens violentas (ou bem-humoradas, quando for o caso). O mesmo com Superman II e III de Richard Lester.

Não é difícil gostar de Superman II. Longe de ser fácil, porém, é encarar o terceiro filme sem um misto de espanto e perplexidade, que normalmente se transforma em frustração e aborrecimento em fãs habituados às abordagens mais tradicionais com o personagem. Mas é só estar disposto a uma compreensão um pouco mais ampla da função das ideias concebidas por Lester e seus roteiristas (e é incrível como o diretor consegue executá-las), num entendimento de que não é preciso pensar os elementos em torno das histórias de super-heróis como se fossem processos estanques e pragmáticos, para reconhecer que há todo um projeto e noção de cinema existente em Superman III. Para começar, basta observar a extraordinária e longa sequência durante os créditos de abertura envolvendo diversos personagens (incluindo as primeiras aparições de Clark Kent e Super-Homem) em torno de desastres no tráfego que é digna do cinema de Jacques Tati. O filme todo se constitui de uma série de invenções cômicas por trás da moldura de um filme de aventura como devem ser os da franquia do personagem, que já em seu terceiro capítulo não possuía mais quem pudesse enfrentar se não ele próprio.

Não haveria sentido em repetir todo um esquema e procedimentos que os dois primeiros filmes esgotaram por completo. Superman III vai além e um de seus grandes trunfos é justamente brincar com a imagem fantasiosa que temos dos super-heróis. Robert Vaughn encarna o criminoso multimilionário da vez, e Richard Pryor (comediante popular na TV americana da época, mas veneno de bilheteria no cinema) o seu ajudante atrapalhado, um gênio da informática que antecipa muito dos hackers que viriam com o avanço dos computadores. Os vilões descobrem um tipo de Kryptonita que, em vez de enfraquecer Super-Homem, o torna “humano”, permanecendo com os mesmos poderes, mas com os bons sentimentos substituídos pela ganância, luxúria, desprezo e indiferença. A situação é tratada com humor, mas causa um curto na visão de qualquer espectador: o maior herói do mundo comete travessuras como desentortar a famosa torre de Pisa, acaba com toda a solenidade existente na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos ao apagar a chama da tocha olímpica diante de um vasto público, se permite se dar aos prazeres da carne com uma ajudante do vilão (que brinca com o estereótipo da loira burra e gostosa lendo e discutindo Kant) ou beber e treinar tiro ao alvo com amendoim e destruir as garrafas do dono do bar. Não é o caso, como fazem os detratores ou mesmo eventuais fãs de Superman III, de reduzir o filme a uma piada (o que seria um desfavor ao filme e ao seu cineasta); trata-se de mais um processo de desconstrução icônica de um mito da cultura pop contemporânea numa aventura satírica como Lester (iconoclasta por excelência) já fizera nos seus filmes com os Beatles. Superman III vai se tornando progressivamente o filme mais insano do diretor desde Help, que também exarcebava essa tendência ao colocar os fab four nas situações mais malucas e inusitadas (especialmente as que envolviam Ringo Starr), destruindo com a imagem imaculada que possuíam aos olhos do público, terminando Superman III por encerrar um ciclo de vinte anos de ótimos filmes do seu realizador.

Por sinal, Lester não deixa de incluir uma música dos Beatles em Superman III, o que pode ser encarado como uma citação bastante direta ao seu trabalho. A canção toca no baile da reunião da classe em que Clark Kent comparece em sua visita de retorno a Smallville (fazendo a ponte com o que é mostrado no primeiro filme), reencontrando Lana Lang (Annette O’Toole), personagem importante dos quadrinhos e do universo do super-herói, que substitui Louis Laine como interesse romântico de Kent (Margot Kidder só faz uma ponta, o que é coerente com os rumos da série, visto que o ciclo da relação de sua personagem com o protagonista também se fechara no final do segundo filme). Superman III possui também outros belos momentos como os estragos provocados pelo computador programado por Richard Pryor (o que inclui um nonsense inacreditável envolvendo um sinal de trânsito). Ou o duelo entre Clark Kent e Superman, sem dúvida uma das melhores cenas de luta de toda a série. No clímax, Lester escancara a relação da indústria com os super-heróis: eles são apenas instrumentos de um jogo de videogame (a própria Atari, uma das principais responsáveis pela popularização dos games, foi contratada para criar animações do Super-Homem para o filme, enquanto o vilão comanda os ataques ao herói como se estivesse num jogo), sendo que no filme inteiro o cineasta investe parcialmente em desestabilizar esta lógica, ousando vestir o uniforme do personagem para satirizá-lo de dentro do seu sistema de produção.

Superman III é o filme maldito da franquia, e o canto do cisne do talento de Lester. Como Popeye, de Robert Altman, nunca foi um filme benquisto por ser uma comédia que subverte completamente a noção dos filmes de super-heróis. A má-recepção de ambos os filmes e os fracassos de bilheterias de outras obras transgressoras ou críticas de grandes diretores daquele período, como O Portal do Paraíso, O Fundo do Coração e O Rei da Comédia, foi um duro golpe no cinema de autor em Hollywood — além de que filmes com super-heróis desde então nunca mais seriam os mesmos. Quanto a Richard Lester, ficou queimado na indústria cinematográfica, e praticamente não pôde mais dirigir, tendo que se contentar com uma terceira parte de Os Mosqueteiros (O Retorno do Mosqueteiro, que foi uma decepção total). O seu velho amigo Paul McCartney o chamou para o que até agora é o seu último trabalho no cinema, o documentário Get Back, feito há exatos vinte anos. Um desperdício.

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Aurora (F. W. Murnau, 1927)

Aurora representou não apenas a chegada de Friedrich Wilhelm Murnau em Hollywood como o resultado do acúmulo de experiências técnicas e visuais do diretor (e do cinema alemão em geral) na arte muda dos anos 20, com suas perspectivas tortuosas, atmosfera carregada, personagens atormentados e fotografias em fortíssimo preto-e-branco cheias de sombras e de nuances. Murnau vinha de uma sequência de obras-primas e experimentos como Nosferatu, a primeira grande contribuição dele para o cinema (e que ainda hoje permanece, para este que vos escreve, como o melhor filme de terror do cinema), com seu visual aterrador cheio de sombras e cenários góticos, e uma poesia trágica envolvendo os personagens, cuja caracterização de Max Schereck ainda é insuperável em se tratando de figuras de vampiros. Ou A Última Gargalhada,  sobre a glória e a vaidade de um porteiro orgulhoso de seu uniforme bastante vistoso, e sua posterior decadência. Um dos maiores triunfos do cinema mudo, quase sem letreiros explicativos, por recorrer a uma das mais intensas movimentações de câmera e um uso muito bem elaborado do foco, da luz e da montagem inventiva e com a maciça interpretação do ator Emil Jannings, cuja atuação respondia melhor do que qualquer eventual legenda. Os filmes seguintes de Murnau, Tartufo e Fausto, confirmaram a grandeza de seu talento e comprovaram que a Alemanha estava pequena demais para ele, sobretudo por Fausto, com sua espantosa sinfonia técnica e uns efeitos (Fausto e Satã desaparecendo nos ares por cima da cidade, o circulo de fogo) de cair o queixo.

Depois de Fausto, Murnau abandonou a Alemanha e partiu para a América. Os Estados Unidos, atentos ao florescimento do cinema germânico, importaram um grande número de realizadores, atores e técnicos alemães. Murnau não poderia ter começado melhor em Hollywood, aceitando um convite do executivo e chefe de estúdio William Fox, que, expandido sua cadeia de exibição de vinte para mais de mil salas, sonhava com uma obra-prima que distinguisse o estúdio que fundara com o seu nome acima de todas as demais produtoras. Foi quando o alemão dirigiu pela primeira vez em solo americano (com rara e total liberdade de criação) o mais célebre de todos os seus filmes: Aurora. O filme era uma adaptação, feita pelo roteirista Carl Mayer (também um dos mais importantes do expressionismo alemão), de um romance de Hermann Sudermann, que se transformou nas mãos de Murnau numa história de amor e redenção das mais fortes. Um fazendeiro simplório (George O’Brien) envolve-se com uma linda mulher da cidade (Margareth Livingston), uma entre os turistas que visitam à pequena vila de veraneio próximo ao campo. Ela passa a representar tudo o que ele nunca possuiu na vida: agitação urbana, mundana e frívola, em contraponto à sua existência monótona, caseira e rudimentar na casa de campo em que vivia com sua esposa (Janet Gaynor). Uma das grandes sequências é logo no começo, no pântano, com a moça da cidade, onde o marido compartilha de uma intimidade cuja lembrança guiará os seus desejos posteriores, e à qual nunca conseguirá retornar. É uma sequência etérea, quase idílica, os corpos e os movimentos dos atores modelam a luz e a geometria do quadro (como em todo o restante do filme de Murnau). O pântano ali é o purgatório do personagem masculino, dividido entre o céu (a paz que lhe é conhecida ao lado da esposa) e o inferno (a incerteza de um futuro imprevisível com a amante) na Terra. É importante lembrar que o inicio do século XX (em que transcorre a história) marcou o surgimento da era moderna com a crescente migração das pessoas do mundo rural para as cidades, o fascínio pelos frutos da revolução industrial e o inicio da revolução tecnológica, cinema, poluição, barulho, teatro de vaudeville, etc. Era um novo mundo surgindo, em substituição a um mundo antigo condenado a se tornar cada vez mais obsoleto. E esse modo de vida que estava por se perder era representado no filme pela rotina do fazendeiro no campo, ao lado de sua fiel esposa, de feições e modos também humildes, a companheira de tantos anos que se lhe revela sem atrativos, seus hábitos inúteis, sua bondade como sinônimo de fraqueza.

O que era para ser apenas uma relação fortuita e passageira entre o marido e a amante se transforma num desejo de paixão mais duradoura de ambas as partes. O deslumbramento do amor (ou do que acreditavam ser amor), os desejos carnais, o prazer de estar um com o outro fazem com que os amantes não enxerguem as diferenças que há em suas vidas e a impossibilidade de juntá-las. Eles não pertencem ao mesmo mundo, e a vontade de unir um mundo com o outro é um erro dos mais excêntricos. Os dois decidem fugir, sendo preciso, para isso, assassinar, acabar com a esposa do fazendeiro. Já na cena de abertura, no pântano, quando os dois se encontram para tramar o homicídio, o protagonista atravessa o lamaçal entre névoas e brumas decidido a assassinar a esposa, como quem sai do plano real para ingressar num mundo difuso, numa das cenas que também é um dos tantos exemplos da extraordinária maestria dos movimentos de câmera do filme. Alias, durante o filme inteiro as imagens nos dão a impressão de que tudo nos é mostrado com uma câmera meio que flutuante, diria que quase sobrenatural. que sublima a relação dos personagens com o espaço e o ambiente que os envolvem. Um outro grande momento é quando o homem beija e mergulha em caricias com a vamp da cidade, enquanto a cena é intercalada com imagens da esposa chorando ao lado do filho.

Cabe ao desenrolar dos acontecimentos devolverem ao protagonista as noções de vida real que havia perdido. Ao se afastar da amante para voltar a sua esposa para matá-la, ao reencontrá-la, ele adquiri de súbito uma tomada de consciência, um sentimento de pena pela mulher à qual ele julgava não amar mais. A possibilidade de perder sua companheira faz com que ele reflita sobre abrir mão da solidez de sua existência para embarcar numa experiência que, no final das contas, poderia ser das mais efêmeras. Não vale a pena sacrificar a mulher com quem sempre viveu, e mais ainda, a vida que lhe era conhecida, na incerteza de reescrever o seu destino. Não se trata de mostrar o campo como um paraíso perdido, ou encará-lo como oposição à metrópole, como se àquele fosse bom, e esta pérfida e cruel: são camadas que se justapõem, que passam a fazer parte e se impregnando um e outro na existência de cada um dos personagens, como a noite e o dia, mas importando que no meio dos quais irrompe algo que se chama aurora. Esse meio entre dois mundos e espaços é o que contamina o filme de Murnau.

Sendo levado mais pelo que planejara do que propriamente pelo que desejava, o marido busca assassinar a esposa, mas se descobre incapaz do ato. A mulher indignada, reconhecendo no homem a sua frente não o antigo marido mas um estranho, quer sair ela dali e decide ir até a cidade. Desejando reconquista-la, e completamente arrependido pelo que tramara, ele a acompanha. A viagem de bonde que leva o casal do campo para a cidade é outro arroubo técnico fabuloso, com o uso de fusões e sobreposições para descrever as mudanças das paisagens exteriores, e nos permitem enxergar a cidade com os olhos do casal, tudo nos parecendo tão grande e caleidoscópico como o era para eles. As preocupações de Murnau com as qualidades formais fizeram com que ele alcançasse resultados muito próximos da perfeição. O restante do filme é sobre a tentativa do marido em se reconciliar em definitivo com a esposa, e mais do que isso, reencontrar sua identidade perdida, o homem que deixara de ser por causa dos devaneios e ilusões de uma paixão fugaz e inconsequente. É quando Aurora nos faz pensar como um equivalente adulto e naturalista de alguns conceitos de contos infantis em que personagens saem de seu mundo velho e conhecido para uma outra dimensão muito maior do que poderiam imaginar, para então redescobrir o amor pelo lugar (e pessoas) de onde surgiram.

François Truffaut dizia que esse é o filme mais belo do mundo e que ninguém poderia pensar em ser cineasta sem assisti-lo antes. Murnau pretendeu fazer desse filme uma espécie de canção, daí o subtítulo original de “A Song Of Two Humans”. À propósito, feito nos últimos suspiros do cinema mudo, Aurora utiliza um sistema de sonorização chamado Movietone, no qual o som era gravado diretamente no negativo. Com isso, o filme não precisava ter acompanhamento musical ao vivo. Aurora estreou semanas antes do primeiro filme falado, O Cantor de Jazz (que utilizava o processo Vitaphone, onde o som era gravado em enormes discos de cera), mas se reparamos na cena em que os protagonistas estão obstruindo a rua ao se beijarem, além de escutar efeitos sonoros de praxe, você poderá escutar, o que poderá ser considerado umas das primeiras palavras faladas no cinema (“Get out of There ou Get out of Way”).

Depois de Aurora, Murnau não teve mais a mesma carta branca nos estúdios e teve que ceder às pressões comerciais e realizar duas obras comerciais que lhe foram impostas: Four Devils e City Girl, este último retomando muito do que vemos em Aurora. Para fugir de Hollywood, Murnau partiu para o Taiti com o grande documentarista Robert Flaherty (Nanook, Man of Aran) para produzir e realizar Tabu. Os dois acabariam se desentendendo depois de três dias de filmagens, e sozinho Murnau fez a sua obra-prima derradeira. Isso porque três dias antes da premiére do filme, ele morreu em um desastre de automóvel. Na época se falou em uma maldição do sacerdote do Taiti, contrariado com certas cenas. Murnau tinha apenas quarenta e dois anos. Morria consagrado como o maior cineasta do seu tempo, ao lado de Charles Chaplin e Sergei Eisenstein.

Filmes citados

A Última Gargalhada [Der Letzte Mann; Alemanha, 1924], de F.W. Murnau. 77 min.

Aurora [Sunrise: A Song of Two Humans; EUA, 1927], de F.W. Murnau. 95 min.

City Girl [idem; EUA, 1930], de F.W. Murnau. 77 min.

Fausto [Faust – Eine Deutsche Volkssage; Alemanha, 1926], de F.W. Murnau. 116 min.

Nosferatu [Nosferatu, eine Symphonie des Grauens; Alemanha, 1922], de F.W. Murnau. 94 min.

O Cantor de Jazz [The Jazz Singer; EUA, 1927], de Alan Crosland. 88 min.

Os 4 Diabos [4 Devils; EUA, 1928], de F.W. Murnau. 100 min (versão sonorizada) | 97 min (versão muda).

Tabu [idem; EUA, 1931], de F.W. Murnau. 84 min.

Tartufo [idem; Alemanha, 1925], de F.W. Murnau. 74 min.

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Do You Like Hitchcock: A influência de Hitchcock na obra de Dario Argento

Em mais de um momento já tentaram tachar o italiano Dario Argento de “novo Hitchcock” ou ao menos de um de seus sucessores cinematográficos. A afirmação não diz muito porque o diretor se insere mesmo é dentro de uma longa tradição do cinema de horror italiano (e por tabela, europeu) que passou a se desenvolver com força a partir de meados dos anos 50. O interessante é observar como Dario Argento trabalha toda uma herança deixada pelo legado da obra de Hitchcock depois que ela foi reavaliada pela crítica (o próprio Argento foi crítico no jornal Paese Sera) e assimilada por diferentes realizadores em diversos filmes subsequentes. Parte da obra de Argento estaria ao lado da de Brian De Palma como as que mais fundo refizeram algumas das obsessões do cineasta inglês, partindo de materiais que por vezes eram grandes pastiches dos filmes de Hitchcock, além dos jogos de perspectiva e simulações, e manipulação do olhar e dos elementos de suas tramas para mexer com os nervos do espectador e construir thrillers nos quais possam se deleitar com as estruturas da técnica e linguagem cinematográficas. O próprio Argento desde os seus primeiros filmes cultiva um gosto pelo suspense mais acentuado que o de outros mestres do terror italiano de sua época. De certa maneira, alguns de seus títulos (e outros de De Palma) lidam em relação ao suspense hitchcockiano algo próximo do que os westerns de Sergio Leone (lembrar que Argento foi co-roteirista de Era uma Vez no Oeste) fizeram com o faroeste clássico norte-americano, levando essas respectivas influências a níveis extremos, como que irrompendo um cinema que devia antes ser reprimido ou apenas insinuado, e amplificando o choque e a violência.

Mas é no Antonioni de Blow-Up – Depois Daquele Beijo que Argento deve, em parte, mais tributo. Os primeiros filmes dele nos anos setenta já evidenciam essa referência fundamental. Entretanto, não é preciso se esforçar muito para recordar que Blow-Up foi a mais importante assimilação do cinema europeu de algumas questões hitchcockianas derivadas nas especulações sobre as aparências e na busca e reconstrução da imagem a partir de uma premissa de suspense. O que influenciaria nas pesquisas formais dos três primeiros trabalhos de Argento (O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza), cujas variações seriam aperfeiçoadas até a depuração absoluta que resulta em Prelúdio Para Matar, a obra-prima do italiano, e um dos tantos filmes inspirados diretamente em Blow-Up (como A Conversação e Um Tiro na Noite). Por tabela, todos partem do legado deixado por Alfred Hitchcock. Outro marco do suspense (e terror) europeu que também encontra correlato com a obra de Hitchcock (e antecipa um bocado os filmes de Argento) é A Tortura do Medo, com toda a sua obsessão pela imagem, o caráter doentio, as mortes em série, a figura do psicopata, o voyeurismo.

Já em Hitchcock, o cinema de horror de fato se mostra visível em seus primeiros filmes nos anos sessenta, Psicose e Os Pássaros. Desapontado pelas repercussões relativamente mornas de alguns de seus filmes mais ambiciosos (os imediatamente anteriores O Homem Errado e Um Corpo Que Cai), o diretor compreendeu que o público àquela altura clamava por espetáculos de horror mais explícitos. Com um orçamento modesto e parte de sua equipe de televisão (não parece coincidência que todo mestre do suspense/terror contemporâneo como o próprio Argento ou John Carpenter terminem cedo ou tarde por rodarem seus trabalhos na televisão, onde pode existir mais liberdade para lidar com algo próximo do que seria o verdadeiro filme B e mais enxuto e livre das amarras do cinemão atual), Hitchcock criou nos estúdios da Universal um modelo como Psicose (bem como o horror apocalíptico de Os Pássaros) que seria incontornável para o gênero pelas décadas seguintes. Os já mencionados títulos que compõem a chamada trilogia dos animais de Argento compartilham de algumas das obsessões do cinema de horror de Hitchcock, como a presença constante de animais como figuras ameaçadoras ou como centros de um mistério (os pássaros empalhados que decoram o ambiente mórbido em que vive Norman Bates em Psicose; os predadores em Os Pássaros).

Alusões ao mestre do suspense podem ser encontradas ao largo da filmografia de Argento, porém elas apenas se escancaram na homenagem brilhante que é Do You Like Hitchcock? (título internacional de Ti Piace Hitchcock?), um de seus trabalhos mais recentes. Do You Like Hitchcock? é um thriller paranóico e um filme cinéfilo como nenhum outro do mestre italiano. Seu personagem é um estudante de cinema, seu quarto é repleto de cartazes clássicos e mais de uma cena importante do filme se passa na videolocadora do bairro em que mora. Argento mistura idéias e recria cenas dos filmes de Hitchcock numa quantidade ainda maior que Brian De Palma tenha feito em qualquer um de seus trabalhos inspirados no diretor inglês. Do You Like Hitchcock? é a versão bem particular de Dario Argento para Janela Indiscreta conjugado com elementos de outros títulos clássicos de Hitchcock. Giulio, o protagonista, gosta de bisbilhotar fazendo seu olhar penetrar, por meio de um indiscreto binóculo, nas janelas do prédio em frente, onde numa dessas janelas enxerga uma bela garota que nunca tinha visto antes. Ela percebe que está sendo observada, mas pouco se importa. Argento se deleita nas composições e cruzamentos entre a arquitetura de cada espaço e a geografia local, sobretudo nos dois prédios vizinhos e nas visitas a locadora, onde Giulio se esbarra com a moça, chamada Sacha, que dialoga com uma outra garota, loira, sobre Pacto Sinistro, que na Itália é chamado de “Delitto per Delitto”.

Quando a mãe de Sacha é morta (numa cena de assassinato cuja preparação e consumo é filmada e decupada de maneira espetacular), Giulio não resiste em investigar por conta própria o crime não solucionado pela polícia. É quando as referências aos filmes de Hitchcock vão se tornando cada vez mais abundantes: as sequências em que Giulio trafega pelas ruas perseguindo alguma das personagens femininas (que remetem a Um Corpo Que Cai), a cortina do banheiro (Psicose) e um desfalque na empresa em que trabalha uma das personagens (Psicose e Marnie),  Disque M Para Matar perto do final, ou quando o protagonista levado pelo jogo de aparências das imagens com que se depara em sua busca ligando os pontos da trama chega a conclusões derivadas da premissa da troca de favores de Pacto Sinistro. Alucinação, prova, impressão?  O que faz o personagem central é interpretar, de uma janela a outra, as aparências que lhe oferecem à visão, e ao longo do filme, numa intrincada relação homem-mulher equacionada em termos de ação e suspense,  provar para a sua namorada que as suas suspeitas sobre as duas garotas procedem, ou seja, que ele interpretou corretamente as cenas que observou nos eventos que ocorrem no prédio em frente e em suas jornadas investigando e vigiando as moças (as duas garotas não deixam de ser um equivalente feminino das duplas de homossexuais que ocupam o centro dos crimes de Festim Diabólico e Pacto Sinistro). Sacha começa como pura fantasia masculina para se converter como a projeção do mal pela instância de culpa e crime, expondo-se a um desnudamento moral completo. Idéias tiradas de outros filmes de Hitchcock vão se alastrando no de Argento, mas a composição é original: ele sempre encontra formas de usá-las de maneira bem particular dentro de seu refinamento estilístico e sofisticação estética e visual combinados com níveis de delicioso entretenimento. Vale mencionar também que a ótima trilha é composta pelo veterano Pino Donaggio, ex-colaborador de Brian De Palma em alguns de seus filmes mais hitchcockianos, e cujos acordes por vezes emulam os de Bernard Herrmann (o compositor clássico dos filmes de Hitchcock).

Do You Like Hitchcock? é uma grande brincadeira em cima da obra de Alfred Hitchcock empreendida com toda a seriedade e domínio narrativo do diretor italiano, que desde o começo de sua carreira foi capaz de trilhar seu cinema sem sentir a sombra da influência de mestres como Hitchcock que tanto marcaram a formação de seu estilo. Mas tampouco Dario Argento se furtou à herança deixada pelo vasto repertório de imagens que o realizador inglês nos legou e que o tornaram possivelmente o cineasta mais citado, estudado, analisado e imitado de todos os tempos.

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As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

Por Vlademir Lazo

As Praias de Agnès começa enunciando uma autópsia. Ao escolher falar de si mesma, Agnès Varda resume seu mais recente (e, segundo ela, último) filme da seguinte maneira: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Mas se abrissem a mim, encontrariam praias.” A realizadora francesa normalmente filmou ao longo de sua carreira sobre os outros, os que a intrigaram, motivaram, ou lhe apaixonaram, quase sempre documentando vidas comuns em filmes de ficção (ou em documentários como Os Catadores e Eu). Dessa vez, do alto de seus 80 anos, preferiu falar também de si mesma, montando um ensaio sobre sua vida (e mais que isso, um painel de mundo desde sua infância e juventude) e obra. As praias de Agnès Varda.

É o caleidoscópio de diversas épocas, ou como a série de espelhos estendidos ao livre na praia logo no início do filme. Uma sucessão de viagens por uma máquina do tempo através de praias remotas ou próximas: as origens de Agnès na Bélgica, o período numa comunidade de pescadores, a adolescência no Mediterrâneo (seu habitat depois que a família se retirou de Bruxelas durante a Segunda Guerra), a saída da casa dos pais, o trabalho como fotógrafa, o começo no cinema e na Nouvelle Vague e os encontros com outros realizadores, os percursos pelo mundo, o engajamento às lutas feministas e o matrimônio com Jacques Demy. Porém, mais do que compartilhar dados e informações particulares, As Praias de Agnès nos convida a contemplar os fragmentos que formam os retalhos de vida das personalidades em cena, colando memórias pessoais, intimas e coletivas, fazendo um mosaico plural e individual ao invés de uma autobiografia. Uma autópsia de seu mundo e sua existência.

Há que se ressaltar que em toda essa entrega não existe o menor traço de narcisismo ou auto-indulgência por parte da realizadora, por mais que no final saiamos do filme com a impressão de que sua existência foi notável. Um trabalho escrito sobre a trajetória especifica da cineasta que tivesse unicamente como fonte As Praias de Agnès não teria mais que um parágrafo ou um punhado de linhas. Pois em seu filme, Varda se interessa menos por páginas de seu passado que por imagens, sempre o imaginário como um sentido de beleza ou estilo, um olhar para fazer cinema. Um olho, uma câmera, uma imagem, como é proferido em dado momento perto do final de As Praias de Agnès.  Em Os Catadores e Eu, onde já aderira à tecnologia digital, Varda se autointitulou como “catadora de imagens”, à procura de pessoas e personagens, ao mesmo tempo em que filma o seu próprio envelhecimento ─ o que mencionaria em Dois Anos Depois, onde também recorda as lembranças das filmagens de Jacquot de Nantes, o trabalho que fez em homenagem ao marido Jacques Demy, que, já doente, escrevera suas memórias de infância e juventude e pedira que ela as filmasse (em As Praias de Agnès a cineasta fala de como alguns acontecimentos da infância de Demy podiam ser claramente vistos em cenas de filmes dele). São esses os núcleos emocionais da maioria dos trabalhos mais recentes de Varda (dedicada a restaurar e preservar a filmografia do marido e realizar documentários sobre as obras dele) e de pelo menos quase toda a metade final de As Praias de Agnès.

O casal se conhecera no Festival Internacional de Curta-Metragem de Tours, em 1958, onde ambos apresentavam alguns de seus primeiros trabalhos, e permaneceram juntos até o falecimento de Demy em 1990. As Praias de Agnès em parte é um diário de viagens pelo tempo e a memória de Agnès Varda por antes, durante e depois de sua convivência com o marido. Muitos outros filmes de memórias ou cineautobiografias ganhariam muito (em termos de amplitude e extensão de fatos e informações) se tivessem saído em livros, porém As Praias de Agnès não poderia existir se não como cinema. Sejam as praias, as fotografias, recriações de lembranças antigas ou a sua própria casa que muito serviu de locações para filmes seus e do marido, são todos esses espaços privilegiados para os seus emaranhados de jogos e poesia pura, e que pode ter como síntese, a construção de uma espécie de instalação onde uma casa tem as paredes feitas de filme. É quando Agnès Varda diz se sentir em casa.

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O Profeta da Fome (Mauricio Capovilla, 1970)

Clássico do Cinema Marginal brasileiro realizado por Mauricio Capovilla no final da década de sessenta, O Profeta da Fome também costuma ser apontado como um dos últimos representantes do Cinema Novo. Essas disparidades quanto ao seu posicionamento no quadro do cinema nacional da época refletem o quanto o filme é rico e amplo de referências cinematográficas (e até literárias, como se verá mais adiante). É também possivelmente o melhor dos filmes (junto com O Abismo, de Rogério Sganzerla) em que José Mojica Morins atuou sem dirigir. Por sinal, a obra de Mojica como diretor também parece ter influenciado Capovilla na realização dessa película, ao ponto da persona cinematográfica de Mojica ser fundamental para a concepção do seu filme (na mesma época, Capovilla faria uma participação como um dos jornalistas no fictício debate sobre drogas ilegais num programa de TV em O Ritual dos Sádicos, obra máxima de Mojica Marins). Em O Profeta da Fome, Mojica tem a voz dublada por Paulo Cesar Pereio.

Para nos transportar ao universo da história, Capovilla optou por uma estrutura bastante rígida, claramente dividida em três partes (que se desdobram em um prólogo e dez capítulos). Tudo começa de modo sombrio, escuro e tortuoso em um circo ambulante de condições bem precárias, no qual a principal atração é o aventureiro e faquir Alikhan interpretado pelo Mojica. A cena de abertura é antológica, sem diálogos, com a luta do faquir e o domador de um falso leão pela posse de um pedaço de pão (o domador é interpretado por Mauricio do Valle, o Antônio das Mortes dos filmes de Glauber Rocha). As imagens são como uma apresentação da atmosfera lúgubre do filme, com um aceno quase impressionista, que carrega num clima pesado de filme de terror. Mas essa primeira parte de O Profeta da Fome não é um filme de terror, mas um drama com elementos de horror, decadência e miséria, que nos remete diretamente a uma atmosfera muito próxima do clássico Noites de Circo, de Ingmar Bergman. Alikhan é obrigado pelo dono do circo a se superar a cada apresentação: engole giletes, pregos e cacos de vidro. É enterrado vivo e é coagido a comer carne humana diante da platéia. A reação do público nunca é a esperada pelo dono do circo, pois o espetáculo não atrai mais o encantamento das plateias modernas. Essa tragicomédia circense não escapa do desfecho trágico anunciado: as tensões acumuladas desencadeiam um violento conflito que culmina num incêndio que destrói o circo, quando Alikhan se recusa a ir até o fim no número no qual comeria uma pessoa, o que desperta a revolta do público.

Os únicos que escapam da tragédia são o faquir, sua esposa e Lion Tarner, o domador, perdidos na imensidão da mata. A sorte os faz encontrarem um violeiro cego, que os acompanha na travessia da floresta. A partir daí começa as constantes mudanças de ambiente no filme, e particularmente essa segunda parte do filme lembra muito Deus e o Diabo na Terra do Sol. Depois que surge o violeiro cego, este passa a contar através dos versos de cordel acompanhado de sua viola o trajeto dos protagonistas em seu périplo na floresta. Infelizmente, os versos são meios toscos (sem a mesma riqueza poética e capacidade de síntese das canções de Deus e o Diabo, por exemplo), mas o tratamento de imagens compensa essa deficiência: a fome, o desespero e as incertezas provocam um conflito entre Lion Tarner e Alikhan, que oferece um olho em troca de pão, e que só escapa da morte pela providencial intervenção de sua esposa, que aniquila o domador pelas costas. Finalmente, o casal chega à cidade mais próxima. O recurso para driblar a fome não tarda: Alikhan deixa se crucificar pela esposa, para despertar comoção e o interesse do povoado, que passa a enxergá-lo como um ser provido de poder divino. Uma espécie de santo. Mais uma vez O Profeta da Fome remete a Deus e o Diabo, com suas fortes denúncias sobre o misticismo no Nordeste. Por sinal, uma das inspirações confessas de Capovilla para a idéia do seu filme é o manifesto A Estética da Fome, assinado por Glauber.

A popularidade que Alikhan alcança desperta a preocupação da Igreja e das autoridades locais, e a policia desmonta a farsa encarcerando o faquir na prisão. Na cadeia, Alikhan descobre um novo poder: o de suportar a fome. O terceiro ato do filme é com o protagonista e sua esposa chegando até a cidade grande, onde Alikhan se dedica a bater o recorde mundial de horas inteiras sem comer. Uma óbvia referência a O Artista da Fome, de Franz Kafka. Uma espécie de industrialização da fome, de sua desgraça transformada em espetáculo, em atração popular. O circo moderno. O filme deixa de ser um retrato da miséria nacional, incapaz de ser superada pela imaginação ou fantasia, abandonando o realismo para abraçar o absurdo até as últimas consequências. A obra também deixa um pouco de lado o protagonista abrindo o filme em outras direções, com uma espécie de documentário sobre o capitalismo selvagem no mundo, com citações diversas, como as dos Beatles, futebol, o homem na Lua, etc. O filme passa do regional para o universal, sem abandonar sua essência tupiniquim.

O filme de Capovilla gira em torno da dicotomia pão e circo, como uma espécie de antevisão dos realitys-shows de TV trinta anos antes de eles existirem. Por outro lado, é incrível como o filme se apropria da figura de Mojica ao ponto de torná-lo indissociável da obra. O sangue humano, a crueza expressiva, a ridicularização das crenças místico-religiosas da população dialogam com a filmografia do mestre do terror brasileiro. Da mesma forma, não seria exagero supor que O Profeta da Fome tenha influenciado uma das obras que Mojica dirigiria logo em seguida, Finnis Homis – O Fim do Homem, com o qual guarda fortes semelhanças e que é um de seus melhores trabalhos (mas inferior ao filme de Capovilla). O Profeta da Fome representou o Brasil no Festival de Berlim em 1970, mas quase sempre permaneceu por aqui como um filme invisível.

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Belair (Noa Bressane e Bruno Safadi, 2009)

O primeiro plano de Belair (anterior aos créditos de abertura) refaz o que é tido como a primeira imagem cinematográfica realizada no Brasil, da entrada da Baía de Guanabara (algo como o equivalente no cinema brasileiro ao que a chegada do trem na estação filmado pelos irmãos Lumière representa à história do cinema mundial), mas igualmente traz em si um sentido imediato cuja significação expõe muito do que o documentário abordará: um barco ao mar, avançando implacável em meio a águas calmas ou nebulosas sem que possamos enxergar nada que o circunda. Ainda que uma das declarações de um dos diretores-fundadores da produtora (que dá título ao documentário) ouvidas mais adiante afirme que a intenção do projeto seria a de fazer filmes baratos que fossem muito vistos e se pagassem sozinhos, muito do charme dos filmes que dali resultaram e que na época quase ninguém conheceu vem dessa condição de barco à deriva, como tesouros cinematográficos ou segredos muito bem guardados escondidos em garrafas jogadas ao mar.

O documentário dirigido pela dupla de realizadores Noa Bressane e Bruno Safadi é composto em grande parte por fragmentos dos sete filmes míticos que foram feitos no curto período de quatro meses da existência da Belair em 1970, o que pode parecer um recurso fácil de simplesmente editar cenas filmadas por gênios precoces (e à época — ou ainda hoje — incompreendidos) como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane e lucrar em cima do material alheio e das suas próprias boas intenções. Nada poderia estar tão distante do verdadeiro: embora mais da metade do documentário seja formado por trechos dos filmes homenageados/estudados, esses breves segmentos não fariam tanto sentido vistos assim isoladamentes se não fosse a narrativa bem costurada por Safadi e Noa Bressane e as mãos de cada um deles em torno da estrutura que escolheram para o filme.

O trabalho de realização e montagem (que inclui ainda imagens de arquivos, de outros documentários, ou filmadas para a própria ocasião) dá sentido e organicidade ao filme como um todo, e documentário e filmes abordados passam a se explicar mutuamente num diálogo forjado pelo encontro de sensibilidades especificas e próximas e distantes uma da outra em termos de período histórico e circunstâncias de momento: as dos realizadores dos filmes de 1970 e as do documentário que estamos acompanhando. Nada mais que uma velha lição sempre dita e repetida através dos tempos: mais importante do que ler ou saber sobre um filme (ou vários, como no caso aqui) é realmente experiênciá-lo e vê-lo, o que em Belair é proporcionado pela exibição de longos fragmentos, incluindo a apresentação integral de extensos planos-sequências dos filmes originais.

Júlio Bressane, o remanescente vivo dos diretores-produtores da Belair (visto que Rogério faleceu em 2004, todavia presente em depoimentos recuperados via arquivos antigos), não surge em cena para ser reverenciado ou receber ainda em vida uma justa homenagem pelos serviços prestados como cineasta, o foco aqui é somente a Belair, e por tabela, o Brasil e o próprio cinema. Favorecidos pelos relativos êxitos de bilheteria dos primeiros filmes que dirigiram (especialmente os dois primeiros de Sganzerla, sucessos populares na época), o encontro de ambos os diretores numa edição do Festival de Brasília propiciou a união na qual tirariam quase do nada os elementos para um cinema barato e precário mas repleto de invenção, formado por: A Família do Barulho, Barão Olavo, o Horrível e Cuidado, Madame, os três dirigidos por Julio Bressane; e Copacabana, Mon Amour, Carnaval de Lama e Sem Essa, Aranha (houve ainda um pequeno documentário chamado A Miss e o Dinossauro), filmados por Rogério.

Vistos como terroristas pelo restante da produção cinematográfica oficial da época (e pela censura do país em pleno regime militar), Rogério e Júlio de fato não deixavam de encarnar as figuras de guerrilheiros com câmeras nos ombros e idéias perigosas e subversivas na cabeça. Seus personagens forçam vômitos, berram contra o mundo, despejam sangue pela boca. Importante ressaltar o espírito de equipe em torno do pequeno grupo que colaboravam em conjunto em cada um dos filmes, no qual ainda pertenciam, entre outros, as musas Helena Ignez e Maria Gladys, e o assistente Elyseu Visconti, que um ano depois dirigiria o clássico marginal Os Monstros de Babaloo, aproveitando parte do elenco e muito do estilo dos filmes da Belair.

O fim prematuro da produtora se deu pouco depois do seu surgimento, com os negativos de Sem Essa, Aranha sendo levados clandestinamente para a França, onde seriam revelados e o filme montado. Belair, a produtora, foi uma espécie de manifesto (e radicalização) da cartilha de intenções e visões que guiaram os pensamentos cinematográficos tanto de Rogério Sganzerla quanto de Júlio Bressane ao longo de suas carreiras. Belair, o documentário de Bruno Safadi e Noa Bressane, por outro lado, não deixa de ser também um interesse complemento do genial O Signo do Caos, o último filme e testamento de Sganzerla, no sentido de ilustrar a dificuldade (ou impossibilidade) de se fazer um certo tipo de cinema no Brasil, ou de nossa cinematografia ao longo dos tempos geralmente, via de regra, se caracterizar como uma trajetória (e oportunidades) interrompida, seja com Welles filmando seu projeto inacabado no Rio de Janeiro em 1942 (tema central de O Signo do Caos e de quase toda a fase final da carreira de Sganzerla) ou com a Belair em 1970.

Filmes citados

A Família do Barulho [idem; Brasil, 1970], de Júlio Bressane. 75 min.

Barão Olavo, o Horrível [idem; Brasil, 1970], de Júlio Bressane. 72 min.

Belair [idem; Brasil, 2009], de Noa Bressane e Bruno Safadi. 80 min.

Carnaval de Lama [idem; Brasil, 1975], de Rogério Sganzerla. 80 min.

Copacabana, Mon Amour [idem; Brasil, 1970], de Rogério Sganzerla. 85 min.

Cuidado, Madame [idem; Brasil, 1970], de Júlio Bressane. 70 min.

O Signo do Caos [idem; Brasil, 2005], de Rogério Sganzerla. 80 min.

Os Monstros de Babaloo [idem; Brasil, 1971], de Elyseu Visconti. 100 min.

Sem Essa, Aranha [idem; Brasil, 1970], de Rogério Sganzerla. 102 min.

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Max Ophüls: Perfil

Por Vlademir Lazo

O mais cosmopolita dos cineastas. Com uma obra que no plano da realização extrapolou fronteiras, filmando entre o velho e o novo mundo, não seria exagero afirmar que todo cinéfilo que se preze deve algo, mesmo que indiretamente (e ainda que não saiba), a Ophüls. Vendo alguns dos trabalhos de Max Ophüls é possível descobrir, por exemplo, de onde Stanley Kubrick (ainda que completamente diferente em questão de temperamento) tirou muito dos procedimentos estéticos e movimentos de câmera (o que inclui elaborados travelings e planos-sequências) que tanto fizeram com que muitos de nós se apaixonassem pela sétima arte. Era também um dos diretores de cabeceira de quase todo o grupo que formava a Nouvelle Vague: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Demy, Rivette, etc. A câmera de Ophüls parecia ser capaz de operar milagres, atravessar salões, véus, janelas e grades, subir escadas e reconfigurar e misturar os pontos-de-vista dos personagens de cena para cena, e no interior de cada plano, não raro nos colocando mais próximos das pessoas e objetos no quadro. “A câmera existe para criar uma nova arte e mostrar, acima de tudo, o que não pode ser visto em outro lugar: nem no teatro, nem na vida, caso contrário, eu não teria nenhuma necessidade dela. Fazer fotografia não me interessa; isso deixo para o fotógrafo”, é a citação do próprio Ophüls com que Tag Gallagher começa o seu artigo sobre o cineasta. Gallagher observa que o que distingue os filmes de Ophüls dos de outros diretores voyeuristas é que em Ophüls o ponto-de-vista, inevitavelmente moral, na medida em que pesa o valor de um indivíduo, do sofrimento de um indivíduo (e da existência deste), esse ponto-de-vista pertence sobretudo aos personagens, que estão efetuando um percurso e uma busca particular, e são os sujeitos, e ao mesmo tempo os objetos. Daí não fazer sentido a fama de cineasta decorativo com que foi tratado durante muito tempo; em Ophüls é que se encontra um exemplo dos mais pertinentes em que se pode aplicar a velha sentença de que a forma é o conteúdo (ou ao menos que em sua obra ambos se encontram intimamente ligados), muito longe de tantos realizadores vazios nos quais uma decoração habilidosa serve unicamente para encobrir a ausência de significados.

Nascido em Saarbrücken, Alemanha, em 6 de maio de 1902, e registrado como Maximillian Oppenheimer, começou como ator e diretor de teatro e operetas, levando espetáculos a cidades como Stuttgart, Dortmund, Wuppertal, Viena, Frankfurt, Breslau e Berlim. Em 1927, seu filho Marcel Ophüls nasceu em Frankfurt. Como pseudônimo de Max Ophüls, foi contratado em 30 pela UFA (Universum Film AG), a rede de estúdios cinematográficos mais importante do cinema alemão — onde surgiram realizadores de renome como Fritz Lang e Friedrich Wilhelm Murnau —, começando como assistente de Anatole Litvak, diretor de origem russa que também faria carreira internacional (com longa passagem em Hollywood). Dirigiu Dann schon lieber Lebertran (1931), curta-metragem com argumento e roteiro co-escrito por Emeric Pressburger (futuro colaborador de Michael Powell na Inglaterra), e seu primeiro longa, Die verliebte Firma (1931). O reconhecimento veio com o sucesso de Liebelei (1933), adaptação de Arthur Schnitzler, o primeiro de seus trabalhos com grande parte do estilo do que se conhece por filme de Max Ophüls, só que com a ascensão de Terceiro Reich ao poder e devido a sua ascendência judaica, fugiu do país no dia seguinte ao incêndio do Palácio de Reichstag (que assinalou o estabelecimento do nazismo), emigrando para a França, onde começou filmando um remake de Liebelei (Une histoire d’amour [1933]) e o hoje perdido On a volé un homme (1934).

A carreira de Ophüls desde os seus primeiros filmes vai delineando o cineasta que aprendemos a admirar por seus filmes mais famosos na maturidade, mesmo as suas comédias nos surpreendem com uma ironia que em seus filmes mais sérios será expandida, como a critica ferina aos parentes do magnata falecido em Lachende Erben (1933) ou a clássica comédias de fantasmas La tendre ennemie (1936), já na França. Ou A Comédia do Dinheiro (1936), que filmou na Holanda, sobre um pobre e honesto funcionário de banco que perde por acidente uma enorme quantia em dinheiro, passando a ser visto como escroque e desonrado, e recebendo vantagens com a má-fama indesejada. Mas é com os melodramas que Ophüls impõe sua assinatura, com uma dobradinha de filmes que antecipam quase toda a carreira posterior do cineasta: o já mencionado Liebelei e A Senhora de Todos (1934), rodado na Itália, onde começa a se afirmar como um autor de mulheres (como Kenji Mizoguchi), não propriamente de filmes femininos, mas tendo como centros figuras cuja condição de mulher se mostra um predicado infernal, levando a destruição alheia ou a própria desagregação.

No longa de estréia de Ophüls, Die verliebte Firma, uma aspirante a atriz precisa resistir às investidas de toda equipe de trabalho, sem abrir mão do seu sonho ao estrelato. Em Divine (1935) — com roteiro de autoria da escritora francesa Colette — uma garota ingênua sai do campo sonhando em ser uma cantora de sucesso em Paris, caindo em um teatro decadente onde é forçada a participar de espetáculos eróticos e conviver com os vícios dos colegas. Em alguns desses primeiros filmes de Ophüls, o amor triunfa sobre as vicissitudes e ilusões femininas, só que depois não mais. Em Divine e Sem Amanhã (1939), as protagonistas são obrigadas a exibir seus corpos e escancarar a própria carne em público. Não muito distante do universo de Yoshiwara (1937), cujo título é o nome de um bairro periférico que se torna o antro de meretrício destinado a receber os militares ocidentais após a abertura dos portos no Japão. O romance trágico entre o tenente russo e a gueixa japonesa tem pelo menos um grande momento, o da ópera, que remete a uma sequência inesquecível de Carta de uma Desconhecida (1948), a do casal numa viagem imaginária de trem. O filme desse período mais próximo de Carta, porém, é Werther (1938), que aproveita o personagem clássico de Goethe para curiosamente ocupar o lugar dedicado às figuras femininas na obra de Ophüls.

Em 1939 estoura a Segunda Guerra com a expansão nazista pela Europa. Ophüls filmaria ainda mais um trabalho na França, De Mayerling a Sarajevo (1940), se voltando ao episódio que culminou no estouro da Primeira Guerra. Não se trata de uma cinebiografia ou filme histórico, os personagens reais que desfilam na tela são impregnados pelo universo do diretor, enquadrando-se sobretudo nos propósitos de Ophüls de mais uma vez contar um romance marcado por obstáculos e pela tragédia. A História irrompe mesmo no final, quando De Mayerling a Sarajevo se confirma como uma obra-prima de contestação à guerra (e de clamor contra o avanço do nazismo), além de sua sequência final fechar uma era e adentrar no século XX e na barbárie que seria a ocorrência das duas grandes guerras. Com a iminente invasão das tropas de Hitler em terras francesas, Ophüls mais uma vez teria de se mudar, dessa vez para Hollywood, em companhia de outros cineastas franceses também exilados, como René Clair e Jean Renoir. Ao contrário desses, Ophüls não conseguiu trabalho tão cedo na América. Ninguém parecia animado a financiar os projetos de um diretor que julgavam tão anticomercial. Um dos produtores com quem mais teve dificuldades de lidar foi com o magnata Howard Hughes, chefão na RKO nesse período, que (na tradução de Sergio Augusto dum texto de Pauline Kael) teria chamado o cineasta de “paspalho”. Hughes o contratou em 1946 para dirigir Vendetta, adaptação de um romance de Prosper Mérimée, incentivado por Preston Sturges, que escreveu o roteiro e, amigo e admirador de Ophüls, tentava ajudá-loem Hollywood. Porém, logo no começo das filmagens o produtor demitiu e o substituiu pelo próprio Sturges na função de realizador (Sturges mais tarde também seria despedido por Hughes, que arrastaria a produção por quatro anos, contratando e despedindo diretores e roteiristas, até que o então montador Don Siegel tentou dar um sentido e organicidade à obra ao montá-la). O filme foi um fracasso de critica e bilheteria, não fazendo parte da filmografia de Ophüls.

Sua sorte começou a mudar quando foi contratado por Douglas Fairbanks Jr. (filho do astro do cinema mudo), que o chamou para dirigir O Exilado (1947), um veículo pessoal para o ator escrito e produzido por ele próprio, mas que Ophüls transforma em uma obra típica de sua autoria, com seus movimentos de câmera sofisticados e uma relação amorosa sem final feliz que ecoa muitos dos outros filmes do diretor. Foi o suficiente para Max Ophüls retomar a carreira e voltar a rodar um trabalho atrás do outro. Daí veio seu filme provavelmente mais popular, Carta de uma Desconhecida, que reside acima de qualquer outro filme de amor louco, o mais pregnante de todos os que Ophüls dirigiu. Com história baseada em romance de Stefan Zweig, pode enganosamente parecer superada pela mudança dos tempos, mas seu efeito é justamente o de dar forma a uma critica devastadora ao mito do romantismo obcecado, à ideia idealizada e ingênua de uns (especialmente artistas) em desencontro com a indiferença de outros que enxergam o sexo oposto como um objeto transitório. Desse choque resulta uma tragédia sombria, um duelo entre vivos e fantasmas, além de um triunfo em termos de estilo e expressão cinematográfica (inacreditável que Carta de uma Desconhecida geralmente esteja ausente das listas de melhores filmes americanos de todos os tempos). Seguiram-se mais dois grandes filmes assinados pelo cineasta em Hollywood: Coração Prisioneiro (1949) e Na Teia do Destino (1949), a contribuição de Ophüls à escola dos film noirs, embora ambos se inclinem bastante ao melodrama, especialmente o primeiro, onde aproveitou para caricaturizar o seu antigo produtor Howard Hughes. Nos filmes dessa fase preferiu ser creditado como Max Opuls, para evitar que a verdadeira família Ophüls (da nobreza germânica) o processasse pela apropriação do sobrenome. Quando tomaram conhecimento, os Ophüls não somente permitiram como se sentiram lisonjeados por o cineasta adotar o nome da família.

Com a carreira recuperada, pôde retornar a França e continuar dirigindo. Estava no auge. Já não mais dirigia filmes menores ou que passassem longe de serem obras-primas. A Ronda (1950) é uma sátira implacável aos jogos amorosos e à frivolidade em torno das conquistas sexuais, também adaptado de Schnitzler (o mesmo de Liebelei), numa estrutura episódica que domina os filmes do diretor nessa fase, mas sempre apresentada de forma genial, com um elemento ligando todos os personagens: o ringmaster que intervém na narrativa sempre na hora da cópula em A Ronda, os brincos passando de mão em mão e sustentando um mundo de opulência, de posse e exposição social em Desejos Proibidos (1953) ou o picadeiro em Lola Montès (1955). Já O Prazer (1952) reúne histórias de Guy de Maupassant em segmentos distintos, sem se conectarem, mas com muitas das obsessões temáticas e refinamento estético do diretor. Em 1954 voltou a trabalhar na Alemanha, em programas na rádio da cidade de Baden-Baden. Na volta à França, dedicou todos os seus esforços no que provavelmente seja a sua obra-prima, custando-lhe a própria vida: Lola Montès, mais caro filme francês até então e único em cores que Ophüls dirigiu (dos melhores tratamentos da cor no cinema), levando às últimas consequências a exuberância visual e as femmes fatales do seu cinema, aqui simbolicamente reduzidas a condição de atração especial de um espetáculo circense. Enormemente avançado para o seu tempo, tido como pornográfico, escandalizou os produtores e provocou protestos nas platéias em suas primeiras exibições, sendo necessária a intervenção da polícia. Os distribuidores, preocupados com a carreira comercial do filme, remontaram à revelia do cineasta uma versão bem menor, suprimindo-lhe quase todas as cenas do circo, que representavam a parte mais contundente da obra, e destruindo a narrativa não-linear, entrecortada por flashbacks. Um dos maiores crimes cometidos contra uma obra de arte, comparável apenas ao ocorrido com Ouro e Maldição (1924), de Stroheim, e The Magnificent Ambersons (1942), de Orson Welles.

Uma carta aberta foi redigida pelos mais importantes diretores franceses, sob os apelos do então crítico François Truffaut, protestando contra os problemas que Ophüls vinha sofrendo para lançar esse seu último filme. Ophüls lutou por quase dois anos pelo corte original, até morrer em Hamburgo, em 25 de março de 1957 — por problemas cardíacos —, um mês depois da exibição da nova montagem de Lola Montès, retalhada, tornando o filme disponível durante muito tempo apenas numa versão esdrúxula (há alguns anos, uma cópia restaurada de Lola Montès permitiu que apreciássemos o filme de maneira mais próxima das intenções do diretor para com o seu canto de cisne). Tinha apenas 54 anos, e preparava Os Amantes de Montparnasse, que Jacques Becker assumiu e dedicou a Ophüls. Sua reputação apenas cresceu ao longo do tempo, sobretudo a partir da geração da Nouvelle Vague: nos anos 60, Jacques Demy dedicou à sua memória o seu longa de estréia e Roger Vadim refilmou A Ronda. Seu filho, Marcel Ophüls, tornou-se diretor de documentários importantes e elogiados.

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A Senhora de Todos (Max Ophüls, 1934)

Por Vlademir Lazo

Max Ophüls foi por excelência um diretor de carreira multinacional. Cidadão do mundo, de filmografia errática e em constante deslocamento, impressiona que tenha mantido ao longo de sua obra notável coesão e qualidade. Ainda que seja mais lembrado por sua fase na América no final dos anos 40, e por seu retorno à França na década seguinte, o diretor franco-alemão (parece-nos mais justo defini-lo assim) já mandava muito bem em seus primeiros filmes rodados na Europa no começo dos anos 30. Chama a atenção ao ver alguns dos trabalhos realizados desse período descobrir que Ophüls também era um realizador de comédias, entre as quais a divertida Lachende Erben ou a clássica La tendre ennemie. Entre esses dois títulos, porém, já provaria ser mestre absoluto no melodrama, com a obra-prima Liebelei e este A Senhora de Todos, filmado na Itália (melhor filme produzido por estas bandas antes do advento do neo-realismo?), após o diretor (judeu de nascimento) se retirar do seu país de origem com a ascensão do nazismo na Alemanha.

É um tanto difícil (para não dizer impossível) não pensar em Lola Montès diante de A Senhora de Todos. Este é um dos seus melhores trabalhos de juventude, o outro o ápice de sua maturidade artística. Não seria justo chamar Senhora de esboço para Lola Montès, mas sem dúvida o último título assinado pelo cineasta retoma elementos que já se encontram no filme de 1934: a mulher passando de mão em mão entre pretendentes e namorados, levando uns à ruína (moral e econômica), e perdendo reputação à medida que cresce em lenda e popularidade. As próprias estruturas de ambos os filmes procedem do recurso de voltar ao tempo para contar por flashbacks as trajetórias de suas respectivas heroínas: em Lola, reduzida à atração no picadeiro de um circo em que sua história será desfilada; em Senhora, à beira da morte numa mesa de cirurgia, após uma tentativa de suicídio, quando como num sonho vertiginoso repassa em sua mente amores frustrados (e instantes significativos de sua existência), desde o professor que abandona seu posto na escola que Gaby frequenta e da qual ela é expulsa quando adolescente, e os primeiros bailes e cigarros que experimenta em companhia masculina.

Trata-se de um dos tantos perfis femininos traçados pela câmera de Ophüls ao longo de sua filmografia, quase sempre em torno de “um monstro sanguinário com olhos de anjo” (como afirma o mestre de cerimônias interpretado por Peter Ustinov acerca da personagem de Lola), definição esta que se pode aplicar a muitas das mulheres que povoam o universo de Ophüls. Em A Senhora de Todos, a estrela de cinema Gaby Doriot (Isa Miranda) é até bem-comportada se comparada a Lola Montès, caricaturizada e reduzida à condição de puta emblemática de um período e continente (o europeu). Entre a verdade e a lenda, imprime-se a lenda (é o conceito que norteia a obra de John Ford em outro contexto especifico), mas tanto num quanto noutro filme se torna evidente que uma das intenções de Ophüls é nos mostrar o muito de publicidade que existe por trás de cada uma de ambas as lendas, das pechas pelas quais as duas personagens-títulos de seus respectivos filmes são vistas. Elas que são vendidas e suas existências expostas dessa maneira, distorcendo-se os acontecimentos para que se possa adequá-los para que outros lucrem com ambas: se Gaby Doriot se torna “A Mulher de Todos” é porque se sacrifica em prol da fantasia que alimentam em torno de si e que ela ajudou a construir, passando então a ser designada dessa maneira nos programas de rádio que recontam (e refazem) pormenores de sua vida, na canção que lhe é dedicada, no volume publicado com suas memórias, no próprio cinema. O mundo do espetáculo como palco de uma grande farsa, de verdades e mentiras, sonhos e ilusões ao longo dos oitenta e cinco minutos de projeção do filme.

No primeiro longa de Max Ophüls, Die verliebte Firma, dirigido três anos antes, o cineasta já escancara essa obsessão por figuras femininas numa história passada dentro do próprio meio cinematográfico, quando todos da equipe técnica das filmagens de uma opereta estão mais interessados em seduzir sexualmente a jovem estreante — que prometem transformar em estrela — do que realmente propensos em ajudá-la. De mulher livre Gaby se torna objeto de fetiche e refém encarcerada pelas grades construídas pelo mito alimentado em torno dela, convertendo-se em vítima e ao mesmo tempo algoz das relações com seus pretendentes e interesses românticos ao longo do filme. A principio, sua presença aparentemente frágil remete à pureza e inocência de Joan Fontaine em Carta de uma Desconhecida, podendo-se dizer que Gaby Doriot é como se, num exercício de imaginação, a heroína de Carta de uma Desconhecida ocupasse o corpo e estivesse no mundo de Lola Montès, antecipando ambos os filmes.

Impossível falar nos grandes filmes de Ophüls sem se referir aos seus travelings e movimentos de câmera sofisticados ao extremo, o que é quase um lugar-comum absolutamente necessário sempre que se discorre acerca do cineasta. Da luz ao reenquadramento, A Senhora de Todos já contém muito dessas experimentações, desde as suas primeiras sequências, o que inclui um movimento que acompanha a valsa do casal na passagem do salão à biblioteca. Ou as sombras enlouquecedoras na parede da esposa de cadeira de rodas se dirigindo pelo corredor claustrofóbico até a escada depois de chamar pelo marido que se consome de desejo por Gaby. A esta, ao final só restarão os filmes e cartazes espalhados por todos os lados.

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Coração Prisioneiro (Max Ophüls, 1949)

Lançados em 1949, Coração Prisioneiro e Na Teia do Destino representam o réquiem de Ophüls na América. E também uma das mais impressionantes dobradinhas do noir no cinema americano, após a carreira do diretor ter sido recuperada depois de quase uma década boicotado pelo famoso milionário Howard Hughes, seu chefe na RKO. Em certo sentido, Caught é a vingança pessoal de Ophüls contra Hughes, caricaturizado no personagem de Robert Ryan (em provavelmente uma de suas três ou quatro melhores atuações), que incorpora algumas das nuances, neuroses, arrogância e charme do excêntrico milionário. Num procedimento parecido com o que Orson Welles faria em relação à Hearst em Cidadão Kane, com Ophüls e seu roteirista Arthur Laurents baseando-se em histórias a respeito do magnata e em outras contadas por uma de suas garotas, com o pretexto de estarem adaptando o romance Wild Calendar, de Libby Block, que o cineasta fora encarregado de filmar.

Coração Prisioneiro, entretanto, é um melodrama (de alto nível, que conste), com tinturas noir, o que é auxiliado pela fotografia de Lee Garmes (colaborador de Josef von Sternberg em sua melhor fase) e pelo barroquismo ostensivo de suas imagens (é talvez o mais barroco trabalho do diretor, junto com A Ronda), com a minuciosa disposição de objetos e elementos em cena — como portas gigantescas e escadarias vertiginosas — no castelo-prisão do casal Smith Ohlrig (Robert Ryan) e Leonora Eames (Barbara Bel Geddes). É uma atualização cruel do conto de Cinderela, em torno da moça pobre vinda do outro lado do país até Los Angeles, no pós-guerra, segunda metade da década de 1940.

As mulheres na filmografia de Ophüls se dividem no dilema de entregarem ou não suas vidas nas mãos de terceiros (Die verliebte Firma, A Senhora de Todos, Divine, Sem Amanhã, Carta de uma Desconhecida, Lola Montès), não raro como fantoches em cena e mercadoria ou brinquedo dos homens. O personagem de Robert Ryan se casa menos para ir pra cama com a mulher que lhe negou sexo do que para contrariar seu psiquiatra, com quem discute longamente numa das melhores cenas do filme, em um duelo verbal que explica muito sobre o personagem. Já o casal é formado por figuras dispostas a provar que todos os outros estão errados sobre eles, o que os leva a decisões de que se arrependerão mais tarde ou com que não saberão lidar.

Saber que Leonora poderia continuar existindo sem o luxo proporcionado pelo seu dinheiro é um tapa na cara de Smith, incapaz de compreender que não precisaria de método nenhum mais manipulativo para ter a mulher à mão. É uma história de amor às avessas: ela quer construir; ele, destruir a relação, mas sem perder o controle sobre a esposa. Mais para lobo do que príncipe encantado. Os transtornos decorrentes da impossibilidade de um lar feliz após o matrimônio que antecipa as frustrações com as fantasias sociais e familiares dos filmes de Douglas Sirk na década seguinte. Do álbum de retrato nos créditos de abertura no começo até a fuga das garras do milionário louco.

Filme e personagem feminina somente respiram no ar fétido e apertado do apartamento em que Leonorase isola em exílio voluntário, e em sua vida dupla no trabalho como secretária de dois médicos que dividem um consultório, um dos quais interpretado pelo grande James Mason, em sua estréia em Hollywood (ele também estaria em Na Teia do Destino, igualmente como a perdição e salvação da protagonista feminina). Dividida em dois mundos que não poderiam ser mais opostos, entre a bonomia do patrão que lhe emprega em seu consultório e a malvadeza do marido que a humilha. O pesadelo conjugal em Ophüls é tamanho que parece não ter fim a não ser que um dos personagens deixe o outro sucumbir no final por não lhe estender a mão.

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A Nova Hollywood em 25 filmes

Por Daniel Dalpizzolo e Vlademir Lazo

Mapear um período tão rico da cinematografia norte-americana como o da Nova Hollywood foi uma tarefa prazerosa, mas que ao mesmo tempo nos exigiu um bocado de rigor e prospecção nas escolhas. Primeiramente pensamos numa lista bem compacta com vinte títulos, que percebemos que seria insuficiente, sendo decidido em seguida pelo acréscimo de cinco outros filmes. Ainda que muitos de nossos favoritos tenham ficado de fora, a relação a seguir é um consenso a que chegamos dentro de nossas preferências particulares, das discussões no momento de incluir e cortar filmes e cineastas, até formarmos esse top composto por um título por diretor.

Na Mira da Morte [Targets,1968], de Peter Bogdanovich

Bogdanovich é um dos mais cinéfilos entre os cineastas americanos, colocando muito de seus estudos nesse primeiro longa que acontece entre a passagem da decadência dos grandes estúdios para a consolidação da Nova Hollywood. Roger Corman, Karloff, Samuel Fuller (co-autor do roteiro, não creditado), filmes B e de baixos orçamentos em geral, tudo passado a limpo em um jogo de espelhos entre o monstro da ficção e o da realidade, com o do cotidiano superando o da imaginação. Houve outros bons filmes nesse período de transição, mas Targets ocupa melhor a posição de marco inaugural de uma era em substituição a uma outra que não existe mais. (Vlademir)

Meu Ódio Será Sua Herança [The Wild Bunch, 1969], de Sam Peckinpah

A ópera da violência de Sam Peckinpah encontra seu expoente máximo no final deste explosivo e radical western, quando os quatro amigos caminham rumo à morte em um plano de uma dureza frontal absurda — e que antecipa um tiroteio brilhantemente encenado, um daqueles momentos de antologia entre tantos na obra do Tio Sam. Um filme que, complementado pelo crepuscular Pat Garret & Billy the Kid, também de Peckinpah, lacra definitvamente este gênero construído sobre códigos de conduta e moral não mais aplicáveis ao mundo, porém que se mantêm com todo seu delicioso anacronismo em uma página muito especial da história do cinema. (Daniel)

Cada um Vive Como Quer [Five Easy Pieces, 1970], de Bob Rafelson

A péssima tradução nacional do título pode causar certa confusão no primeiro contato com esta obra amarga e pessimista. É um dos mais desiludidos filmes norte-americanos do período, com um Jack Nicholson melancólico e agressivo tendo que lidar com tudo aquilo que gostaria de anular de sua vida — incluindo aí suas próprias ações diante dos problemas dos quais foge. O plano-sequência em que toca piano enquanto a câmera de Rafelson viaja pelas memórias na parede, o encontro com o pai sobre a montanha e o final são momentos antológicos. (Daniel)

Corrida sem Fim [Two-Lane Blacktop, 1971], de Monte Hellman

A exemplo de Cada um Vive Como Quer, a obra-prima de Monte Hellman também é um road movie de uma desesperança sufocante. Um filme que parte de uma viagem pelas autoestradas americanas e vai perdendo sua parca linha narrativa até chegar ao completo abstratismo, absorvido pela própria questão existencial trabalhada através de seus jovens personagens que, descrentes no futuro, resignam-se a condições miseráveis de sobrevivência, dando a si um valor equivalente ao das peças dos carros que pilotam, mecanizando completamente as relações entre eles e consigo mesmos. (Daniel)

O Estranho Que Nós Amamos [The Beguiled, 1971], de Don Siegel

Siegel e Eastwood são mais lembrados pelos filmes de ação do período, porém o ponto alto de suas parcerias foi com esse melodrama gótico cuja seriedade e sentido dramático antecipa um bocado da obra de Eastwood como diretor. Uma disputa pelo poder e confronto entre os sexos, com um único indivíduo em um duelo massacrante contra uma maioria esmagadora de mulheres. Um thriller psicológico com perversões, mutilações, incesto e lesbianismo. (Vlademir)

Operação França [The French Connection, 1971], de William Friedkin

Se os velhos heróis do western foram mortos por Peckinpah, em Operação França William Friedkin faz nascer um novo conceito de herói, influenciado pela violência urbana cada vez mais descontrolada das grandes metrópoles. A câmera não o poupa de nada: envolvimento com prostitutas, pilantragem, extorsão, até chegar ao ponto máximo em que combate o crime da forma mais simbolicamente suja possível: matando um homem com um tiro pelas costas. É o filme policial indo de encontro direto à deturpação de valores e à degradação social do momento, e que se vale da coragem de seu autor para promover uma importante revolução de conceitos no cinema comercial do gênero. (Daniel)

Cidade das Ilusões [Fat City, 1972], de John Huston

Já veterano como cineasta, John Huston sempre prezou por uma filmografia irregular, mas quando acertava era capaz de cometer filmes inesquecíveis como esse Fat City, cujo material vai de encontro com a obsessão do diretor com a noção de eterna derrota (temática que domina a sua obra, pelo menos nos seus melhores filmes), e com uma força que não muitos filmes celebrados do período possuem. (Vlademir)

Dillinger [idem, 1973], de John Millius

John Millius foi um influente personagem da geração Nova Hollywood, colaborando com roteiros e produções de outros autores e também dirigindo alguns filmes — Dillinger sendo o melhor deles. Uma revisão de um mito do filme de gângster do período clássico hollywoodiano sob a ótica dos padrões estéticos e morais do novo momento vivido pelo cinema norte-americano, personificado na figura do sempre genial Warren Oates. Fica ainda melhor se visto numa dupla-sessão com Inimigos Públicos de Michael Mann, especialmente pela dualidade de olhares sobre o personagem existente entre eles. (Daniel)

Terra de Ninguém [Badlands, 1973], de Terrence Malick

O mesmo argumento pode ter ser encontrado em outros filmes, mas não existindo em suspenso e se movendo sempre como uma travessia onírica em meio a matanças e perseguições. A ambição de Malick depois cresceria desmedidamente filme a filme, porém o seu cinema talvez nunca tenha sido tão eficaz quanto na sua estreia (já com grandes preocupações pictóricas). (Vlademir)

A Conversação [The Conversation, 1974], de Francis Ford Coppola

Francis Ford Coppola era um dos cineastas do período mais esforçados em tentar reproduzir o cinema europeu em Hollywood. Suas incursões viscontianas são sempre mais lembradas, mas talvez seu melhor filme seja este suspense nos moldes de Antonioni — uma das tantas releituras de Blow Up existentes no cinema. Gene Hackmann paranoico enlouquecendo e destruindo o próprio apartamento para tentar encontrar uma escuta é, como em Corrida sem Fim e no próprio Blow Up, um terceiro ato que transcende as questões de trama para levar o cinema onde realmente interessa: na gênese das sensações. (Daniel)

Nasce um Monstro [It’s Alive, 1974], de Larry Cohen

Larry Cohen releu nosso mundo moderno para tratar no cinema de diversos aspectos sociais contundentes através de filmes fantásticos de baixo orçamento, projeto que iniciou com esta alegoria de horror sobre um bebê contaminado pela poluição industrial durante a gravidez que nasce, como o próprio título nacional já antecipa, sob forma de um ser mutante, matando os médicos durante o parto e fugindo do hospital para causar o terror pela cidade. (Daniel)

Renegados até a Última Rajada [Thieves Like Us, 1974], de Robert Altman

Da série de revisões de gêneros a qual Altman se dedicou por longo tempo pode-se preferir McCabe & Mrs. Miller ou O Perigoso Adeus, mas dentre o melhor período de sua carreira não se deve esquecer de Thieves Like Us, uma visão negativa e desglamourizada de um microuniverso específico e isolado (o do gangsterismo), mas desprovido do tom cínico e maldoso com que muitos trabalhos posteriores do diretor se caracterizariam. (Vlademir)

Crime e Paixão [Hustle, 1975], de Robert Aldrich

Por trás de uma típica história policial de rotina, todo um projeto de cinema que escancara uma sociedade corroída, onde a cada momento se descortina uma faceta bem escrota do mundo, em que todos (bons e maus) formam parte de uma escória imunda e sem salvação. The Grissom Gang talvez seja o melhor trabalho de Aldrich nesse período, porém Hustle representa como nenhum outro a cartilha das intenções do diretor. Burt Reynolds em seu grande papel no cinema. (Vlademir)

Assalto à 13ª DP [Assault on Precinct 13, 1976], de John Carpenter

Talvez o filme de John Carpenter que mais se assemelhe ao conceito geral da turma da Nova Hollywood e de seu cinema predominantemente urbano. Uma atualização de Onde Começa o Inferno, western do mestre Howard Hawks, cineasta base para o cinema de Carpenter, sobre um pequeno grupo de policiais que precisam defender uma delegacia da invasão de um bando infinitamente maior de arruaceiros. Um legítimo filme policial do período com uma tensão e violência que pulsam da tela. (Daniel)

Josey Wales — O Fora da Lei [The Outlaw Josey Wales, 1976], de Clint Eastwood

Eastwood já maduro como diretor, no mais pictórico e impressionista dos seus filmes, carregado de imagens sombrias. Não fica muito atrás de Os Imperdoáveis, com seu projeto de vingança se convertendo ao final num comovente libelo pacifista, e com a perda da inocência de uma América em frangalhos cujos retalhos passariam a ser a tônica dos projetos mais relevantes de sua filmografia. (Vlademir)

A Morte de um Bookmaker Chinês [The Killing of a Chinese Bookie, 1976], de John Cassavetes

Um ensaio sobre a decadência em um filme de invenção que desmembra o gênero policial através do cinema único de John Cassavetes. Embora seja menos lembrado que outros filmaços deste mestre do cinema independente, A Morte de um Bookmaker Chinês é talvez o filme em que ele melhor pinta a selva urbana e seus cantos mais obscuros. O centro de tudo é o personagem de Ben Gazarra, dono de um clube noturno afundado em dívidas de jogo que precisa realizar um serviço ingrato para safar seu pescoço, e que nos conquista por reunir todos os seus esforços em uma luta desmedida pela defesa de seus sonhos. (Daniel)

Taxi Driver [idem, 1976], de Martin Scorsese

De Niro e Scorsese trataram de interpretar e dar forma às neuroses que o roteirista Paul Schrader concebeu num período de depressão, resultando num dos filmes mais populares dos anos setenta. Seus autores definem o protagonista como uma figura do Velho Testamento, determinado a limpar a sujeira e escória das ruas, indo e voltando insone pela cidade com seu carro simbolizando um caixão ambulante. (Vlademir)

Trágica Obsessão [Obsession, 1976], de Brian De Palma

O melhor filme de Brian de Palma nos anos 70 é esta obra-prima de extrema profundidade dramática que promove uma releitura de Vertigo, do mestre Alfred Hitchcock, com uma impecável inversão de elementos. A partir de um jogo de espelhos com o cinema De Palma constrói uma obra de arte de pulsão própria, com um perfeito domínio de encenação e de narração. Como de habitual em De Palma é um filme capaz de nos levar por caminhos estéticos jamais percorridos com tamanha força. (Daniel)

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa [Annie Hall, 1977], de Woody Allen

Um filme que lembra a Nouvelle Vague francesa, pela desconstrução narrativa/estética que promove e, mais modestamente, por suas sacadas visuais. É uma obra-prima deliciosa de Woody Allen. Annie Hall surge em blocos como que reproduzindo fluxos de memória para falar a ­respeito dos bons e maus momentos de um relacionamento a dois — sempre mesclados pela sensibilidade e senso de humor aguçados do diretor/roteirista. É também uma eficiente ponte entre a comédia física de seus trabalhos iniciais e seu período de maior amadurecimento dramático e artístico. (Daniel)

A Outra Face da Violência [Rolling Thunder, 1977], de John Flynn

O lado B de Taxi Driver, e também escrito por Schrader (roteirista mais importante da Nova Hollywood?), é uma espécie de negativo do filme de Scorsese, ainda mais violento e brutal (e sem o conforto que a presença de um astro como Robert De Niro traz a maior parte do público). Méritos principalmente para Flynn, que depois continua uma interessante e subterrânea carreira no cinema americano. (Vlademir)

O Despertar dos Mortos [Dawn of the Dead, 1978], de George Romero

O mundo vivendo o apocalipse, zumbis circulando pelas ruas à caça de carne humana e Romero colocando seus personagens para se refugiarem dentro de um shopping center. Uma plotline digna de um gênio em um dos melhores filmes de horror de todos os tempos, com um número inigualável de cenas e ideias brilhantes sendo trabalhadas em uma narrativa alucinante, através da qual Romero equilibra com perfeição suas observações sociais e as intenções básicas de um filme do gênero: entreter, chocar e sugar o espectador para dentro de sua própria atmosfera. (Daniel)

Fedora [idem, 1978], de Billy Wilder

O filme mais anti-Nova Hollywood da lista, mas existindo muito por causa dela (e um dos melhores de sua época), não tanto como um rancor de Wilder, é somente para a sua geração o que Crepúsculo dos Deuses representara para os antigos ídolos do cinema mudo, numa versão ainda mais desvairada daquele argumento. Um filme totalmente anacrônico, ao mesmo tempo a representação de um funeral: o do cinema clássico americano. O testamento do seu diretor. (Vlademir)

O Assassino da Furadeira [The Driller Killer, 1979], de Abel Ferrara

O ítalo-americano Abel Ferrara pode não ter feito parte da Nova Hollywood, mas seu longa de estreia se encaixa perfeitamente na lista como uma potente e punk visão de cinema das ruas e dos guetos propagada pela geração. É uma releitura hardcore de Taxi Driver através de um ponto de vista ainda mais visceral, com um protagonista que pelas circunstâncias em que vive acaba fazendo parte da escória tão criticada por Travis — se lá Travis usa da violência para tentar “limpar” a sujeira das ruas, aqui ela existe pra sujar mesmo. “Este filme deve ser tocado alto” diz o letreiro inicial, perfeita síntese desse ruidoso filme B que pinta a violência como uma decadente válvula de escape da própria merda. (Daniel)

O Show Deve Continuar [All That Jazz, 1979], de Bob Fosse

O musical era um gênero considerado ultrapassado e um tanto água-com-açúcar no começo da Nova Hollywood. Coube ao antigo coreógrafo Bob Fosse resgatar a dignidade artística do gênero, acrescentando matizes mais ricas nos que dirigiu, como em Cabaret e nessa sua autobiografia quase absoluta, em que dialoga com o Anjo da Morte enquanto contempla o abismo e sua própria autodestruição. (Vlademir)

O Portal do Paraíso [Heaven’s Gate, 1980], de Michael Cimino

Um filme-monstro, ao mesmo tempo abençoado e maldito. Faroeste esplendoroso, a meio caminho entre Peckinpah e Visconti, entre Pat Garret e O Leopardo. O filme de arte europeu e a revisão do western americano. Seu fracasso coincide com o surgimento dos blockbusters, de uma mudança na mentalidade do público e de uma virada de jogo nas regras da indústria. Uma obra-prima absoluta que encerra toda uma era. (Vlademir)

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Além da Vida (Clint Eastwood, 2010)

A morte circunda o cinema de Clint Eastwood. Ela ronda como uma assombração os personagens de muitos dos trabalhos que dirigiu, desde os seus melhores westerns (Josey Wales e Os Imperdoáveis), passando por Honkytonk Man, Um Mundo Perfeito, As Pontes de Madison, Sobre Meninos e Lobos, Menina de Ouro, A Troca, Cartas de Iwo Jima e Gran Torino, entre outros. Não é de estranhar que tenha feito dela o assunto desse seu mais recente longa, Além da Vida, agora com o filme circundando o tema (e não o contrário, como nos exemplos citados acima).

Pena ele ter sido encarado com a expectativa errada: a de filme espírita e sobre o além. Não que não trate dessas questões, mas se conservando o tempo todo no plano terreno, com os seus eixos girando mais em torno da vida antes da morte, e da relação dos personagens com ela. Um filme, sobretudo, de encontros, perdas, procuras e reencontros. Em alguns aspectos não tão diferente, à sua maneira, em relação (e em como lida com o tema) a um filme como Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, que por sua vez desenvolve-se como um filme de fantasia, enquanto Além da Vida permanece no real, bem mais pé-no-chão.

Mas quem chegou mais perto de um paralelo certeiro com o filme de Clint foi o crítico Sérgio Alpendre, ao invocar a obra-prima de Alain Resnais Medos Privados em Lugares Públicos, com a sua junção de histórias paralelas ocorrendo de maneira natural, em torno das dificuldades (ou impossibilidade) de laços permanentes entre as pessoas. Clint o faz com a grande elegância e sensibilidade que lhe são habituais, e dessa vez não faltou quem o apontasse como num meio caminho entre o filme europeu e o hollywoodiano.

Além da Vida não é um filme de respostas, mas de incertezas e de mistério diante de um fenômeno. Que outro filme “espírita” (aqui as aspas fazem todo o sentido) apresentaria uma série de charlatões e embusteiros mediúnicos como os que um dos protagonistas (o garoto) encontra pelo caminho? Mesmo os próprios personagens que vivenciam os flashes mostrados de algum além possível são obrigados a reconhecer a probabilidade de essas visões fugazes serem fruto de uma alucinação provocada por traumatismos decorrentes dos acidentes que sofreram em algum momento da vida. As tais sessões de “comunicação” realizadas a contragosto pelo personagem de Matt Damon nos são transmitidas unicamente por seus relatos, não por visualizações coloridas e exageradas do que ele pudesse estar enxergando. É tudo sóbrio, direto, sem firulas ou rebuscamentos.

Os três personagens centrais de Além da Vida manifestam insatisfações variadas com suas vidas, independente se vítimas ou não, todos são parte de um grande acaso que é a humanidade, que entre outras coisas faz com que um dos garotos escape de um desastre no metrô, ou antes ainda, seja o irmão e não ele quem sofra as consequências de um acidente tão perto da casa onde moram. Na América, George (Matt Damon) é um condenado a relações fadadas a não se consumar, e com potencial, mas sem vocação, para se tornar o guia espiritual incentivado por seu irmão Billy (Jay Mohr). Seu dom mediúnico não é uma benção, mas uma maldição, é o que George tenta lhe explicar, tendo, consequentemente, sofrido com isso desde muito tempo, por praticamente não poder tocar em quem lhe interessa, sem consequências desagradáveis (o que resulta nas cenas de Damon com a personagem de Bryce Dallas Howard, talvez as mais belas do cinema americano nos últimos dois ou três anos).

O filme, na verdade, começa com o famoso e trágico tsunami de 2004, no qual Marie (Cécile de France), uma apresentadora francesa de férias com o namorado em uma praia no Japão, sobrevive após uma experiência de quase-morte. Uma menção especial à cena do tsunami, com mais eficácia e autenticidade que qualquer outra sequência de desastre no cinema contemporâneo. Quanto a Marie, após o breve período entre vida e morte, passa a enxergar e se interessar de maneira diferente pelas coisas terrenas, como se nascesse de novo — o que em momento algum é mostrado como algo edificante, apenas como parte de uma rede de ações e transformações que perpassam ao longo do filme.

O vértice do triângulo de histórias é em torno dos pequenos gêmeos ingleses Marcus e Jason (vividos por Frankie e George McLaren), que cuidam da mãe problemática e desempregada até a inevitável separação. Não é um filme sobre os mortos, mas sobre o apego dos vivos por aqueles, como Marcus preservando em si próprio o antigo chapéu de sua metade que partiu. Os filmes de Clint quase sempre são sobre algum determinado acerto de contas, de seus personagens consigo mesmos (e suas consciências) e frente aos outros, e de um processo de conciliação (ou reconciliação), e Além da Vida não poderia ser diferente. Um filme notável em sua busca bem particular para dar corpo a um encontro: o de duas solidões que se procuram.

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