Olhar de Cinema: Sonhos de Damasco (Emilie Serri)

Por Camila Vieira

A partir de uma viagem de carro encenada com seu pai, Emilie Serri inicia e encerra Sonhos de Damasco. A estrutura circular envolve um percurso a ser feito, com a companhia da figura paternal que pode evocar a ideia de origem. O ponto de partida é a indagação ao pai sobre o que ele se recorda de sua vivência como jovem em Damasco, capital da Síria. Ele é um expatriado no Canadá e mantém o costume de falar árabe, da mesma forma que outros tantos personagens entrevistados ao longo do filme. De início, a imagem idealizada do pai nas filmagens domésticas em que a realizadora aparece criança, ainda em 1986, acabam por ser desmontadas e confrontadas com imagens da Síria em ruínas.

O filme faz uso de diferentes materiais de arquivo: desde vídeos de família a fotografias registradas em preto e branco em diferentes tempos. O procedimento documental recorre a depoimentos tanto de sírios que moram em outros países quanto de seus descendentes  que já assimilaram outras culturas. Um dos entrevistados afirma que todas as suas memórias estão em Montreal, no Canadá, e não mais em Damasco, porque a Síria como ele conhecia está completamente destruída e a guerra acabou por esfacelar as famílias envolvidas. A fala de Mohamad coloca em desequilíbrio toda a tentativa do filme de qualquer busca romantizada pelas origens: “Não há espaços para sonhos. Para nós, tem sido um pesadelo desde que a guerra começou”. 

Alguém apresenta a hipótese de que, no futuro, os países desaparecerão e já não existirão mais fronteiras. Em uma construção que também lança mão do uso da câmera que a realizadora enxerga como única âncora, a materialidade fílmica desmonta qualquer possibilidade de certeza sobre as raízes partilhadas. Sonhos de Damasco costura fragmentos de memórias em uma espécie de corda bamba, na medida em que possui consciência do trauma, mas ao mesmo tempo também deseja esquecer para construir lugares imaginados.

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Olhar de Cinema: Um Céu Tão Nublado (Álvaro F. Pulpeiro)

Por Camila Vieira

Composto por planos noturnos e crepusculares, Um céu tão nublado alterna sequências da paisagem venezuelana, quase sempre em lugares de passagem, como estradas e portos; ambientes onde trabalhadores circulam, em navios cargueiros e porta-aviões ou territórios ocupados por atravessadores de gasolina e câmbio, além de soldados que cercam determinadas regiões do país. A sensação inicial é de terra devastada: uma Venezuela que alimenta o desejo de um plano de integração de nação e, ao mesmo tempo, seus habitantes parecem estar à deriva. 

O azul escuro do céu e do mar no cais contrasta com o fogo expelido das chaminés das fábricas. As travessias de carro pelas rodovias são substituídas pela espera de militares por helicópteros nos navios. As sequências de controle e vigilância na saída das fronteiras são seguidas por outras em que cantores populares pedem carona às margens das estradas. A montagem de Um céu tão nublado procede por acúmulos, oposições, diferenças que complexificam a experiência venezuelana, sem recorrer ao procedimento fácil da explicação didática.

O mesmo acontece com a ambiência sonora do filme, que é marcada por transições em que uma voz over masculina interpela como “filho da pátria” a se sentir órfão. Os noticiários da Rádio Nacional, tratam da reeleição de Nicolás Maduro, a oposição de Juan Guaidó e a interferência diplomática de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, por meio de sanções ao governo venezuelano. O choro insistente de um bebê transportado dentro de um carro é amplificado com o som dos mesmos noticiários ao fundo. Em outra sequência, diversas vozes de atravessadores se superpõem em planos de detalhe com bocas falantes e as mãos cheias de dinheiro. A composição mais impactante do filme apresenta jovens e crianças que enchem barris de gasolina e descarregam dos caminhões. Com vários galões empilhados ao fundo, o rosto de um menino aparece em primeiro plano a olhar para o céu. É a imagem do futuro aprisionada à contundente crise do presente.

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Olhar de Cinema: Conferência (Ivan Tverdovskiy)

Por Camila Vieira

A revivência do trauma em Conferência implica partilhas de silêncios e corpos quase imóveis, filmados em planos estáticos e frontais. A madre Natasha e sua amiga Svetlana são sobreviventes de um atentado que aconteceu em outubro de 2002, no teatro Dubrovka, em Moscou. Enquanto era apresentado um musical, um grupo de chechenos manteve como reféns artistas do espetáculo e pessoas da plateia, com o intuito de mobilizar publicamente o país para exigir a retirada das tropas russas da Chechênia. No filme de Ivan Tverdovskiy, a rememoração de tal evento que marcou a história política da Rússia só é possível por meio da ficção.

Por outro lado, a narrativa ficcional também precisa ser ancorada em lastros do real: a cerimônia de luto organizada por Natasha acontece no próprio ambiente do teatro onde o incidente de fato aconteceu. Entre as cadeiras, são dispostos manequins com três cores que representam quem estava no dia: branco para as vítimas que não sobreviveram ao ataque, preto para os terroristas e azul para os que não compareceram à cerimônia. Em uma longa sequência com personagens que relatam sobre suas lembranças do dia fatídico, o filme desenvolve-se a partir de um trabalho rigoroso de encenação das narrativas por atores e atrizes, que irão interpretar os relatos dos sobreviventes reais ouvidos durante a pesquisa do diretor. Apenas dois jovens – que hoje são atores – foram reféns na época e, na mesma sequência, ambos aparecem e relatam suas próprias experiências. 

O modo como o testemunho se alia ao gesto ficcional ganha outra dimensão dentro do teatro: não só por ser o lugar onde tudo aconteceu, mas sobretudo por se tratar de um espaço cênico. Um microfone passa de mão em mão e alguns planos aproximam-se dos rostos dos personagens. Os relatos são prolongados e incomodam os proprietários atuais do teatro. Natasha insiste que os participantes não abandonem o teatro até encerrar a cerimônia. Ela defende ser importante não ter medo e não esquecer, em memória dos que morreram. “Precisamos encontrar a força dentro de nós para fazer isso. Sentamos e não falamos nada e acontece um desastre atrás do outro. Somos covardes para dizer algo”, afirma Natasha. Mas a personagem alimenta uma contradição dentro de si: apesar de querer falar sobre o que aconteceu, ela não sabe como lidar com sua filha Galya que a culpa por uma decisão drástica que ela precisou tomar para conseguir escapar da morte. Conferência é também um filme de embate entre o que é necessário lembrar e o que se deve esquecer dos traumas históricos.

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Olhar de Cinema: A Calmaria Depois da Tempestade (Mercedes Gaviria)

Por Pedro Tavares

Em certo ponto de A Calmaria Depois da Tempestade a diretora Mercedes Gaviria resume sua proposta como um exercício estático de memória. É interessante notar como esta frase dada pela própria realizadora coloca ao filme um tipo de análise referente às imagens de arquivo e suas funções simbólicas. Está impregnada no filme a questão do uso das imagens, da captação à reutilização como uma forma geral de banalização.

Gaviria utiliza o seu vício em captação de sons, as constantes filmagens caseiras de seu pai e a retomada de seu progenitor ao mundo cinematográfico para dar novos sentidos às imagens particulares de sua família e para registrar o processo de filmagem de um novo filme. Aqui temos dois filmes e com a narração de Gaviria, surge o terceiro. Portanto, fica em xeque a formação de unidade entre eles – ainda que todos coexistam paralelamente sem a necessidade de uma justificativa. Porém, Gaviria resolve uni-los com seu ponto de vista, com depoimentos de e sobre si.

Não leva muito tempo para que esta decisão tome a tela e dilua qualquer possibilidade de impacto, afinal Gaviria a leva para o escopo existencial – paralelamente social –  com o suporte da ternura da memória, como se as rasuras do tempo às levasse a um local de potência orgânica, o que não acontece. A Calmaria Depois da Tempestade, desta maneira, está mais para ser um depoimento manipulador através das imagens indo de encontro à proposta de construção de um bloco de memórias através delas.    

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Olhar de Cinema: Estilhaços (Natalia Garayalde)

Por Camila Vieira

As imagens iniciais de Estilhaços dão a impressão de que seria intocável a felicidade da família de classe média em que a diretora argentina Natalia Garayalde nasceu e cresceu. Aos 10 anos, ela ganhou de presente uma câmera Sony 8 mm do seu pai e passou a filmar seu cotidiano em Rio Tercero, uma cidadezinha de 40 mil habitantes, na província de Córdoba. Registradas nos anos 1990, as imagens domésticas mostram o frescor da vida em um bairro comum, com uma praça, uma escola, uma delegacia, um rio e uma fábrica. Ali residem as memórias dos passeios com o pai médico e a mãe professora de história, as brincadeiras com o irmão mais novo e a festa de ano novo de 1994. Seria o último ano em que a diretora conseguiria dormir sozinha, segundo suas próprias palavras no filme, e tal frase é seguida por um corte: as imagens de felicidade são interrompidas pelo impacto de uma tragédia.

Um plano sequência é filmado dentro de um carro que se desloca pelas ruas em meio a um bombardeio inesperado: pessoas gritam e correm desesperadas, projéteis explodem e estilhaços caem do céu. Enquanto ouvimos o ruído constante de bombas, uma mulher com um bebê nas mãos é resgatada. Após o caos e a desorientação, vem o contexto: em novembro de 1995, a fábrica de munição militar explodiu com 20 mil projéteis, causando a morte de moradores e a destruição de casas e estabelecimentos. O incidente alterou a rotina da comunidade, inclusive da família Garayalde. Autoridades e o próprio presidente Carlos Menem difundiam a versão oficial de que as explosões foram causadas por um acidente e um operário da fábrica é demitido e investigado. No entanto, descobre-se mais à frente que o evento foi proposital para ocultar o contrabando de armas para a Croácia, na Guerra dos Balcãs. O ataque tinha sido planejado para apagar os rastros da operação.

Diante da força e das consequências do incidente, Estilhaços movimenta-se do familiar para o coletivo, do íntimo para o público. Aquela inocência inicial das imagens felizes de classe média é diluída e o que se mostra como imagem são vestígios das casas destroçadas no dia seguinte à explosão, os projéteis ainda ativos que voltam a explodir, os relatos do pai sobre o receio de ser contaminado com fósforo branco. Mesmo que a menina Natalia se alegre por um instante com as aulas suspensas e com suas simulações como repórter a entrevistar moradores sobre a tragédia, a permanência do trauma na comunidade é o que a leva a parar de filmar. Até mesmo a escola começa a dar aulas sobre os riscos dos produtos químicos.

No último movimento do filme, as imagens de arquivo misturam-se às filmagens recentes feitas por Natalia em retorno a Rio Tercero. O que antes era apenas o medo coletivo de contaminação química materializa-se como doença no corpo da irmã: ela morre de câncer e, mais tarde, o pai da cineasta também será acometido pela mesma enfermidade. Mas a realizadora lembra que “as imagens sobrevivem aos corpos”. Se a vida familiar se estilhaçou diante dos fatos brutos que aconteceram, o desfecho busca restituir uma intimidade que sobreviveu como fragmento.

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Olhar de Cinema: Garotas/Museu (Shelly Silver)

Por Camila Vieira

Garotas/Museu, de Shelly Silver, lança mão de um dispositivo para compor o filme: meninas de diferentes idades compartilham suas impressões sobre as obras que elas observam em visita ao Museu de Belas Artes de Leipzig. Os planos são frontais: tanto para as obras quanto para as meninas entrevistadas. A “percepção da arte” que o filme deseja alcançar não passa pelo olhar de mulheres adultas, mas de garotas ainda em processo de amadurecimento e construção de visões de mundo. De imediato, a proposta produz um gesto de inversão: as garotas são convocadas a falar sobre seus olhares para a arte, universo que historicamente sempre colocou mulheres na condição de objetos a serem vistos e contemplados. Dentro de um espaço institucionalizado como o museu, é uma forma de repensar padrões legitimados de compreensão da história da arte.

Na relação de uma obra como “Adão e Eva” (1533), de Lucas Cranach, as entrevistadas questionam o desenho repuxado dos olhos de Eva como característica de uma mulher ardilosa e malévola. “A ninfa da fonte” (1518), do mesmo autor, traz o corpo nu de uma figura mitológica, que é vista pelas garotas como uma mulher sozinha, que pode ter sofrido algo de ruim. Ao olharem para o quadro “Dançarina” (1926), de Paul Kleinschmidt, elas observam que o corpo da mulher aparece objetificado, com quadril e bunda em primeiro plano. No geral, as meninas indagam por qual motivo mulheres jovens são retratadas com o corpo exposto e as mais velhas encobertas. Uma garota do Afeganistão levanta a hipótese sobre como seriam os quadros se as figuras retratadas não tivessem gênero definido.

Da mesma forma que o espaço do museu expõe um amontoado organizado de obras, o filme também vai acumulando não só o que as meninas falam sobre os trabalhos artísticos com suas perspectivas bastante heterogêneas, mas também em que medida elas conseguem se enxergar no lugar das figuras retratadas ou mesmo identificar se um quadro foi criado por um homem ou uma mulher. Não há dúvida de que o debate de gênero está implicado em Garotas/Museu, mas de algum modo o uso de um dispositivo enrijecido parece se esgotar no percurso e o que o filme consegue alcançar ainda limita-se ao repetitivo e superficial – menos pelo que as meninas falam e mais pelo que o filme cria como articulação discursiva. 

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Olhar de Cinema: Zinder (Aïcha Macky)

Por Camila Vieira

Dois homens passeiam pela cidade em uma moto que ostentam uma bandeira branca com suástica. Eles fazem parte da gangue de Hitler, compreendido como “guerreiro invencível” e modelo a ser espelhado em um dos chamados “palais” que dominam o distrito de Kara Kara, em Zinder, no Níger. A imagem escancara contradições em um território marginalizado: leprosos, cegos e pessoas em situação de rua convivem com integrantes dos palais. A precariedade de uma região sem oportunidades para seus moradores alia-se à violência de quem ali pretende sobreviver. Em “Zinder”, de Aïcha Macky, há o cuidado de não explicitar ou tornar redundante os atos de violência em si, mas entender como seus vestígios atravessam os corpos e os discursos de quem faz parte dos “palais”.

Três personagens principais são acompanhados pelo filme: Sinyia Boy, que é líder da gangue de Hitler; Idrissa Salam (Bawo), que é ex-chefe de um palais e atualmente trabalha como mototaxista; e Ramsess, contrabandista de gasolina na fronteira do distrito. A abordagem de Aïcha Macky, que nasceu em Níger, é olhar tanto para o que foi possível ser mostrado do cotidiano dos personagens quanto para o que eles querem falar diante da câmera. É possível pensar que houve diversas formas de negociação para as filmagens, na medida em que a presença da câmera por si só também é uma manifestação de poder.

Em determinado momento do filme, a diretora indaga Sinyia Boy sobre o motivo pelo qual o mesmo faz parte do “palais”. Só podemos escutar a voz de Aïcha que permanece no fora de campo. Ela afirma – não só para ele como para nós espectadores – que ela e Sinyia não tiveram as mesmas oportunidades. Aïcha vem de outra região do Níger e teve acesso aos palais por meio do projeto Search for Common Ground, em que trabalhou como voluntária na instrução de jovens para se opor ao extremismo violento. Sinyia dá uma breve resposta à Aïcha: “educação”. Em outra sequência quase ao final do filme, outro personagem fala: “O desemprego leva à violência e à ladroagem”.

Da gangue de Sinyia Boy, várias cenas apresentam os corpos musculosos dos integrantes, os treinos pesados que eles fazem e as poses para registros fotográficos a serem compartilhados com amigos e famílias. Na conversa com Bawo, a atenção volta-se para as cicatrizes que marcam os corpos e relatos sobre os instrumentos usados nas batalhas entre gangues rivais, desde socos ingleses a pedaços de pau. Com Ramsess, que se afirma meio-homem e meio-mulher, indaga-se sobre as performatividades de gênero na vivência cotidiana dos palais, os assassinatos permanentes de mulheres livres e a prostituição de crianças e adolescentes. Com os três personagens, o que se coloca em primeiro plano é o corpo e suas formas de sobreviver ao entorno. 

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Olhar de Cinema: O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr.)

Por Geo Abreu

Um traço que podemos encarar como característico do cinema produzido nesses anos pandêmicos é a atenção ao material de arquivo como fonte, fato interessante se pensarmos no nível individual a partir da quantidade de imagens produzidas no mundo todos os dias e o dilema que se impõe diante da necessidade de arquivamento e destinação desse material, enquanto num nível coletivo, mais do que nunca é preciso lutar por condições de preservação e memória do cinema brasileiro. E aqui, amigues, cada uma deve encontrar o local de criar uma barricada, trabalhando diligentemente para digitalizar materiais, expor internacionalmente a situação dos principais acervos, criar programas para restaurar, exibir e produzir memória sobre filmes pouco conhecidos e assim por diante. 

Em Sonho do Inútil o cineasta José Marques de Carvalho Jr assume a posição de revisitar a história de um grupo de amigos que alcançou sucesso produzindo vídeos de aventuras domésticas e autoflagelo, mixando os arquivos desse período com imagens produzidas no reencontro com as figuras que compunham o grupo. 

A condução desse trânsito entre passado e presente produz momentos de perturbação no fluxo da narrativa, deixando o espectador a deriva em alguns momentos pois, além de algumas quebras temáticas, há um choque provocado pela construção precária das distinções entre as imagens daqueles personagens nos diferentes momentos em que a narrativa se desenrola, fato que segue até que se firme o bloco do reencontro entre o diretor e seus amigos, que ganham tempo de tela para falar de suas trajetórias enquanto finalmente são postas em relação suas imagens antigas e atuais. Inclusive minha aproximação com o filme se deu pela desconfiança de que aquela história fosse se desdobrar numa pegadinha de falso documentário, algo que só se desfez a partir dos blocos de apresentação do cotidiano atual dos personagens e do tom sóbrio assumido a partir dali.

No final das contas tudo isso me manteve atenta à ação, a espera pelo encontro com um jogo que se mostrou menos opaco do que eu pude supor, sublinhando a importância do audiovisual como ferramenta de encontro, amizade e pesquisa num contexto em que parecem existir roteiros pré-definidos a respeito de quais histórias aqueles rapazes poderiam contar. 

No mais, interessante observar que a reputação criada pelo grupo com seus vídeos engraçados se manteve no tempo, transformando-se em atenção dada aos trabalhos posteriores do diretor, que podem ser acessados no canal do YouTube que leva o nome dele – JmarquescarvalhoJr – e cujos números de visualizações/curtidas fazem pensar sobre outra dinâmica de produção de caminhos para desenvolvimento de uma carreira no cinema brasileiro, que passa tanto por experimentação de formatos, relação direta com a distribuição e a recepção dos filmes. 

Entre a atualidade desse modo de habitar o ecossistema do audiovisual e o tom de saudade de um passado simples de brincadeiras entre amigos, O Sonho do Inútil nos faz pensar em juventude, a vida nos subúrbios das metrópoles brasileiras e na força simbólica de portar uma câmera.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Apenas o Sol (Aramí Ullon)

Por Pedro Tavares

Um conflito simples desequilibra as intenções de Apenas o Sol como potente discurso: é o embate direto entre o formalismo e a frontalidade da mensagem. Talvez não exista um filme que coloque em palavras de maneira tão direta a relação do pentecostalismo e o extermínio da cultura indígena e, obviamente, suas vidas. Por caminhos diversos já o visitamos, seja em pinceladas no tema, filmes-rituais ou até acompanhando missões pastorais por aldeias, mas em Apenas o Sol há o diálogo direto sobre o assunto e com a profundidade necessária.

O que o assola é como Aramí Ullon compõe suas vias. Através de um homem que resgata palavras através de um aparelho de som e fitas magnéticas como forma de dialogar com o passado o filme justifica os encontros com outros personagens e seus depoimentos. O modelo dos talking heads se aproxima muito à forma que Ullon utiliza estes depoimentos: não estão ao acaso ou diluídas neste processo de gravações e recordações e sim estruturadas como capítulos de casos isolados que compõem um mosaico.

O filme ganha mais forças quando consegue brevemente aglutinar testemunhos, casos e canções tradicionais de maneira mais orgânica e sem transformar o formalismo como protagonista do filme e tomando a frontalidade que à priori seria das palavras. A força dessas histórias e assombros seguem funcionais apesar de não mais intactos. O conflito formal é mais forte que a própria intenção em narrar uma história de mutação e que caminha para o desaparecimento através de ideologias além do cunho religioso.

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Olhar de Cinema: Virar Mar (Philipp Hartmann, Danilo Carvalho)

Por Pedro Tavares

Um exercício muito curioso envolvendo uma matéria, dois locais e um padrão. Virar Mar aborda a questão da escassez de água no sertão brasileiro e o excesso no interior da Alemanha. Com isso, Philipp Hartmann e Danilo Carvalho parecem dirigir separadamente suas partes mantendo apenas a estrutura.

São sequências intercaladas, como uma narrativa não-linear e que não dialoga com o que vem antes e tampouco com o que vem depois, o que de certa maneira é o que mais instiga no filme até por um fio de contato com o cinema experimental e estrutural. Aos poucos, porém, o interesse dos realizadores é mais evidente no lado político. É ao exibir o cotidiano de moradores destes locais e como a água tem suas variadas importâncias na rotina que o filme, assim, vira um mosaico de representações.

Seja no fundamento literal, numa encenação novelesca, nas cabeças falantes ou no encontro de um estrangeiro com o local de necessidade oposta ao seu. Virar Mar abandona a potência do dispositivo, do olhar e da contemplação como um grande comentário e opta pelo lado institucional e didático da coisa.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema 2021

O PROTETOR DO IRMÃO por Pedro Tavares

VIRAR MAR por Pedro Tavares

APENAS O SOL por Pedro Tavares

CRIME CULPOSO por Lucas Saturnino

O SONHO DO INÚTIL por Geo Abreu

CAPITÚ E O CAPÍTULO por Rubens Fabricio Anzolin

ZINDER por Camila Vieira

GAROTAS/MUSEU por Camila Vieira

ESTILHAÇOS por Camila Vieira

A CALMARIA DEPOIS DA TEMPESTADE por Pedro Tavares

CONFERÊNCIA por Camila Vieira

UM CÉU TÃO NUBLADO por Camila Vieira

BELOS CARNAVAIS por Geo Abreu (vídeo-ensaio)

SONHOS DE DAMASCO por Camila Vieira

POR TRÁS DA LINHA DE TIJOLOS VERMELHOS por Pedro Tavares

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Olhar de Cinema: O Protetor do Irmão (Ferit Karahan)

Por Pedro Tavares

O Protetor do Irmão parte de um espelhamento constante muito interessante: cada cena, cada gesto e cada plano é um comentário sobre o Estado. É em um colégio interno estadual que seu modus operandi análogo à crueldade e de bordas largas ganha contornos. É na impossibilidade de criar-se o acaso, da relação simples entre crianças – naturalmente levadas, que gostam de brincar e aprontar que o contrapeso tem amplitudes.

Basta um corpo sair de seu funcionamento comum, literalmente falando, para que a estrutura desse estado em proporções menores mostre suas fragilidades. O despreparo completo para lidar com situações não-ordinárias, o jogo de empurra entre os responsáveis e principalmente como a aparente força dada pela autoridade se esvai à medida que o risco para estes “chefes” parece mais latente.

E com este tipo de comparação às medidas e comportamentos tomados o caos se instaura num intenso jogo de empurra que derruba o regime, as posturas se movem para um tipo de contemplação sobre o horror dos próprios gestos e um olhar direto para a câmera entrega todo o horror que uma nação enfrenta muito bem representada por um rosto infantil.

Visto no Olhar de Cinema.

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Gertrud, Gertrud, Gertrud,…

Por Gabriel Linhares Falcão

– Mulher incomum. Quem é você de verdade?

– Sou muitas coisas.

– Quem?

– O orvalho da manhã, caindo das folhas das árvores, nuvens brancas viajando para onde ninguém conhece.

– Quem mais você é?

– Sou a lua, sou o céu.

– E o que mais?

– Sim, sou uma boca. Uma boca buscando outra.

Diálogo entre Earland e Gertrud

O cinema tinha o papel de mostrar o movimento e o que se via, mas não a palavra. Dreyer superou esta atitude, e vocês veem o que isso proporcionou. Compreendemos que a palavra não corta a imagem e que a imagem não precisa ficar sozinha.

Manoel de Oliveira[1]

Este vídeo-ensaio nasceu a partir de uma pequena obsessão. A primeira memória que sempre me vem à mente ao pensar em Gertrud de Carl Theodor Dreyer é a diversidade de dicções utilizadas no chamamento da protagonista. A memória se tornou uma problemática quando, ao falar o nome do filme, precisava pensar para escolher a dicção mais adequada para o lamento dinamarquês. Gertrud, Gertrud, Gertrud …

Primeiramente, buscava ouvir em conjunto cada uma das 61 Gertruds, entretanto, acabei encontrando um novo problema. A falante e corajosa protagonista se apresentou quase muda e imóvel em seu retrato vocal por lamentos majoritariamente masculinos. A expressão incrédula de olhar perdido é predominante nos momentos em que ouve seu próprio nome. Pela variedade de dicções encontramos também a persistência e a repetição. No recorte, a complexidade psicológica das personagens foi reduzida a matéria e forma, destacando a pressurização sofrida por Gertrud, figura motriz agora silenciada.

Cortando a imagem para ouvir as palavras sozinhas, podemos observar a disposição dos tempos, entonações e silêncios das vozes que preenchem com densidade dramática a mise-en-scène de movimentos concentrados e reduzidos, e também, interrogar o que resta e o que se mantém das forças retóricas originais de Gertrud, personagem que não permite a própria evasão diante de investidas de terceiros sobre o passado e que pela fala alicerçada na receptividade e dignidade enfrenta seus anseios e segue seus desejos, engendrando passo a passo uma sabedoria afetuosa, cirúrgica e inconformada.

Agradecimentos à Roberta Pedrosa


[1] Transcrição da apresentação do cineasta Manoel de Oliveira à sessão de Gertrud, realizada por ocasião da comemoração dos 50 anos dos Cahiers du Cinéma em Paris. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 557, maio de 2001, pp. 102-103; traduzido por Calac Nogueira (In: https://estadodaarte.estadao.com.br/foco-elogio-a-gertrud/)

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