Macumba Sexual é apenas uma das oito produções creditadas ao diretor Jesús Franco em 1981. Trata-se de um filme de sexo e alucinação filmado por espanhóis nas Ilhas Canárias, ou seja, um filme desavergonhadamente colonial que vai se utilizando de suas contingências para aprofundar a superfície de seus interesses plásticos. Na historinha, a branca Lina Romay está de férias na praia com seu marido quando é atormentada por pesadelos sexuais protagonizados pela Ajita Wilson, uma espécie de dominatrix negra que busca enfeitiçar a menina e trazê-la para seu pequeno reinado de fetiches (no sentido original da palavra). Aquela tediosa vivência aristocrática e solitária é interrompida por esse pesadelo negro, levada por cânticos e tambores a um espaço alternativo ao resort fantasma. O centro do filme é a magnetização do encontro inescapável entre essas duas mulheres que é proporcionado pela macumba.
O que interessa, antes de qualquer coisa, é que seu entendimento de macumba não parece estar sendo utilizado como substituição de outro “perigo negro” que o cinema de terror utiliza mais recorrentemente, como os signos do Vodu ou de um tribalismo genérico. Até porque, com exceção do Macumba Love (1960) do Douglas Foley, é raro que o cinema de gênero reclame essa palavra para construir sua ficção. Talvez pelo orçamento apertado ou por um desejo geral do filme em reduzir todas as suas construções cênicas, a cosmovisão presente em Macumba Sexual é de um estranhamento todo próprio, pouco específico em termos etnográficos ou representativos, livre em sua religião particular que é o sexploitation.
A personagem da Ajita Wilson, chamada Princesa Obongo, media suas amarrações sexuais através de uma pequena estatueta enterrada nas areias do deserto, que por vezes pode servir como um consolo dentro de suas orgias (dotadas de uma carga espiritual intrínseca). Além disso, é pontualmente acompanhada pela bizarra figura de um frango (ou seria uma galinha?) empalhado que exibe um grande pênis em sua estrutura morta, uma das poucas figuras de fato aterrorizantes de todo o filme (junto com o recepcionista de hotel voyeur e demente interpretado, não por acaso, pelo próprio Jesús Franco). Esses dois principais fetiches exibem o desprendimento do filme com a realidade da prática espiritual e esclarecem o projeto em suas genuínas intenções fantásticas.
A aproximação cosmológica com uma macumba verdadeira talvez esteja assentada em sua imaginação cinematográfica. No caso, codificada na radiação estilística do sexploitation, que contamina qualquer fita com um espaçamento vagaroso de cenas, um tempo que se dilata sem o mínimo de preocupação, que se contenta com a visão esgarçada pela contração do exterior e pela expansão do interior…. Ou seja, um cinema do transe (entrecortado pela transa). Há algo de especial nas cenas mais banais, quando a garota branca está passeando pelo cenário paradisíaco, observando o movimento dos barcos e das ondas, andando pelo deserto ao encontro da princesa negra, sempre nesse estado de concentração que se mantém no fluxo do escopo da câmera e que movimenta os quadros em um constante direcionamento de aproximação total com os objetos filmados.
Dentro disso, temos as cenas de sexo. A nudez dos personagens é sempre explícita e frontal, o sexo não. Seja nos primeiros momentos em que Obongo toca o corpo da garota em suas visões oníricas, seja quando estão realmente transando no plano da realidade ativa, há um tipo de suspensão da pornografia que pode até ser característica do gênero erótico, mas que encontra pelo contexto uma semântica que é a da incorporação, do sexo como capacitor do transe total vivido pela branca. Submetida às vontades da princesa negra, esse sexo é filmado com uma aproximação incessante dos corpos, um borrão entre os limites das personagens que abstrai o ato carnal em um fluido de sensações internas. Obongo é quem concentra o poder, é claro, mas a integração com a branca e o nível de desejo que demonstra por ela fazem com que a submissão imposta à garota seja também uma entrega de seu corpo dominante dentro da experiência de incorporação espiritual que o sexo entre elas acaba por realizar.
Mesmo quando a princesa coloca seus dois escravos, que ela guia por coleiras, para participar do sexo, suas presenças são incorporadas como essa amálgama delirante e desestabilizadora que acaba incapacitando a jovem branca de poder ter qualquer contato com a sua percepção de mundo anterior ao aparecimento daquela mulher negra. Esses dois personagens escravos, um homem e uma mulher cuja única função fílmica é a de lamber Obongo, recebem o peso de adornarem a Ajita Wilson em um espaço de cena que é sempre reduzido, são duas figuras em um estado avançado de transe que trazem ao filme alguma recompensa imagética de horror quando tudo pende mais ao delírio do que ao medo. A descrição que a Princesa Obongo faz de si mesma para o marido da branca, pouco antes do final do filme, talvez explique bem a construção cênica do longa: “Eu não sou a realidade. Sou tudo que é proibido e tudo que é vergonhoso, uma mulher negra de sexualidade indefinida, desavergonhada e irresistível”.
A última curva de complicação que o filme oferece é reverter, em uma outra volta conceitual, os espaços ocupados por essas duas mulheres em seu relacionamento espiritual. Após ser penetrada pela estatueta do deserto, a menina branca fica sozinha com a princesa em uma cabana. O comportamento entre as duas sugere algum tipo de estabilização entre a dinâmica de poder imposta pela princesa, mas nada é tão simples assim: enquanto a branca faz sexo oral nela, a negra explica que seu reinado está acabando, que está prestes a morrer e que deve passar o seu título à garota que dominou. No encerramento, a branca recebe o título Obongo. A negra diz: “Eu reinei por mais de 300 anos, agora é a sua vez de reinar. Você é a minha filha de macumba”.
A branca observa ela morrer, seu cadáver petrifica (o único momento do filme em que vemos Ajita Wilson interpretando alguma passividade frente à câmera) e, num susto final, ela se transforma naquela bisonha figura do frango taxidermizado. O filme termina num berro da garota branca, mas fica difícil acreditar que seja um grito de medo, tudo leva a crer que seja uma liberação necessária após a intensa jornada espiritual que veio para acabar com as suas férias nas praias Canárias.
Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos e Ôrí (1989) de Raquel Gerber
por Gustavo Maan
“Oh paz infinita poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América e novamente Europa e África. Angolas, Jagas e os povos de Benin de onde vem minha mãe. Eu sou Atlântica.” — Beatriz Nascimento em Ôrí (1989)
Em um campo sujo, repleto de enxofre, lama e caranguejos, surgiu a massa-terra que formaria o homem. É o material perfeito, já que fornece a maleabilidade ideal para receber a vida: quando seca, se sustenta; se molhada, movimenta. É um equilíbrio entre duas matérias antagônicas — a rigidez da terra e a fluidez da água.
Esse parece ser um bom ponto para começarmos a pensar a macumba. Perigosamente próximo ao mito de criação cristão, estamos na realidade falando aqui do processo de criação do homem Nagô — quando Oxalá, depois de diversos testes, elegeu a lama de Nanã Buruquê como a matéria prima de toda a humanidade. Não nos importa tanto aqui saber qual dessas duas narrativas veio antes, ou qual é a genealogia de cada um desses mitos, mas entender o contexto relacional específico em que as religiosidades afro-brasileiras se encontram no Brasil.
Estar em um terreiro é antes de tudo presenciar contínuos gestos de montagem: plantar em meu corpo outros corpos e viver com isso uma experiência temporal conjugada entre passados e futuros. É viver dentre imagens vivas, que manifestam cada uma delas uma temporalidade singular — a estatueta de Pai Benedito do Congo às mukanguês dos Minkisi. Chegar e topar logo na entrada com um assentamento de Njila ou Exu, construído de interações entre coisas, pessoas e animais, todos congregados por meio da força do Nguzo que cada um desses elementos carregam consigo.
Em um contexto específico, principalmente entre as décadas de 50 e 70, foi muito valorizado dentro das ciências sociais e de um certo debate público essa capacidade de “preservação cultural” dos terreiros de candomblé no Brasil. Esse discurso promovia principalmente terreiros de origem Jeje-Nagô, como o Gantois e o Ilê Opô Afonjá, veiculando uma ideia de tradição que perdura até os dias de hoje.
São esses terreiros, as comunidades que naquela época efetivaram um processo de “reafricanização”, de reconexão com as raízes e revitalização da forma religiosa segundo os fundamentos provindos do continente africano. Como Roger Bastide, grande pesquisador das religiões afro-brasileiras no país, chegou a afirmar uma vez, esse “seria um movimento de purificação do candomblé em relação ao aviltamento da macumba”[1]. Indo por essa linha de pensamento, estariam os terreiros em meio a uma encruzilhada, tensionados entre a preservação de uma cultura original e a perda desta em meio a perigosa interação com outras culturas.
É claro que não estamos falando aqui de uma história pacífica de contato entre diferentes povos, e sim de uma realidade repleta de violências coloniais, que saqueiam e continuam a tentar saquear dos terreiros sua capacidade agregadora. Também é preciso ter em vista que a validação da sua religião a partir de uma ideia de tradicionalidade, ou seja, de um valor cultural construído e preservado ao longo de centenas de anos, também significava receber com menos frequência as visitas das chefaturas de polícia, que exerciam a repressão estatal que perdurou contra as religiões afro-diaspóricas por tantas décadas.
Ao mesmo tempo, seguindo ainda o fio desse raciocínio, seriam outros expoentes religiosos, como os candomblés de Angola, o bate folha e as diversas umbandas pelo país afora, um rebaixamento do legado cultural africano devida sua alta transformação em solo brasileiro. Seriam formas menos preservadas, “sincréticas”, sem um fundamento sólido, que existem em reminiscência depois de serem submetidas ao jugo colonial.
Com justamente a intenção de preservar o legado africano nos candomblés de origem Yorubá, “procurando ultrapassar os encobrimentos gerados por uma política de embranquecimento e sincretismo, de cooptação e comercialização consumista”[2], a antropóloga argentina Juana Elbein dos Santos lança seu filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô – Arte Sacra Negra I. Seu objetivo era propor uma nova forma de enquadramento do candomblé por meio do cinema, principalmente após alguns desconfortos com outros documentários sobre o tema.
Incomodada com a exibição de momentos rituais, Juana acreditava que era necessário superar a ideia de representação direta do transe e demais procedimentos litúrgicos, já que essa operação estaria violentando os integrantes de tais religiões. Isso aconteceria porque o sagrado em um terreiro, segundo a autora, estaria sempre envolto de um certo segredo — segredo esse desvelado pelo olhar profano dos espectadores. Ao mesmo tempo a imagem, e aqui especificamente o cinema, carrega consigo a estima de acolher e veicular o pensamento religioso para fora da comunidade, agindo politicamente para se angariar respeito e reconhecimento dentre a opinião pública. Seria preciso então, para conciliar essas duas premissas, uma maneira indireta de se chegar ao sagrado.
Nem todos os olhos são capazes de enxergar no mar Yemanjá; na divisão do horizonte o encontro do Ayê com o Orun. É essa visualidade que Mito e Metamorfose parece estar tentando criar em nós. O filme passa pelas águas do oceano, pelo nascer e pôr do sol, destrincha penas e escamas para nos explicar o papel cosmológico das divindades femininas presentes no panteão Yorubá, enfocando particularmente a figura das Iyá Mi Oxorongá e das Yabás.
O filme inicia com uma câmera que nos mostra diversos pássaros, todos imponentes, que tem seu movimento continuamente congelado. Paralisadas, as penas se apresentam quase que completamente borradas, nos revelando que o conteúdo verdadeiramente significativo dessa imagem é o fluxo em que ela se encontra. A princípio são pássaros-natureza, constantemente intercalados com planos de paisagens naturais: o mar, a mata e o céu azul. O filme logo de início parece estar tentando criar a possibilidade da conexão — penas e escamas, pássaros, peixes e as águas, as águas e o mundo.
De pássaros-natureza, começamos a vislumbrar a ideia de pássaros-mulheres, quando dos espaços naturais, vemos trançadas as asas das Iyá-Mi o movimento de diversas mulheres negras em uma feira. Essas imagens são constantemente acompanhadas por uma narração em over que transita entre duas vozes: uma masculina, de Ferreira Gullar, extremamente analítica e explicativa; e uma feminina, não identificada, que fica responsável por entoar as conclamações às Iyá-Mi.
Fotogramas retirados do filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos
A montagem é aqui a responsável por aproximar os pássaros da natureza e das mulheres negras, sendo ela, em conjunto com a narração, as grandes veiculadoras do significado. Não temos nenhum depoimento, ou qualquer outro tipo de interpelação à câmera. O filme passeia e organiza aquele mundo sem qualquer resistência que não seja alguns olhares de estranhamento lançados em direção à objetiva.
Esse traço esquemático se torna ainda mais evidente na segunda metade do filme, quando para apresentar as Yabás, a diretora opta por um desmembramento de suas expressões sensoriais: nos mostra primeiro suas roupas, vestidas em manequins vivos que se encontram imóveis sob um fundo completamente preto; depois, em um terreiro, uma das Iaôs da casa simula sua dança fora de contexto ritual, com objetivo meramente ilustrativo enquanto escutamos a música correspondente àquela Orixá.
Fotogramas retirados do filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos
No cinema de Juana Elbein as imagens ocupam um lugar ambíguo e perigoso. Ao mesmo tempo que sua montagem pode possibilitar a visualização das interconexões criadas pelo processo religioso, elas também podem ocupar o papel de profanação da tradição. O risco em usar as imagens é respondido pela autora com uma estrutura de montagem rígida, que apesar de nos proporcionar lampejos belíssimos do pensamento engendrado pelo candomblé, o aprisiona em uma forma ascética. Não podem haver erros interpretativos, a tradição deve ser clara e intocável. É como os planos em que as aves alçam voo — congeladas para nos mostrar o seu movimento.
Há também nessa operação um outro dado relevante. Ao inserir o discurso religioso dentro de uma estrutura tão bem amarrada, a antropóloga acaba por remover dos participantes religiosos seu verdadeiro poder de agência, sendo agora ela a grande organizadora daquele sistema. Ou seja, na pretensão de salvar a tradição de uma possível contaminação, a diretora concentra em suas mãos a capacidade de produzir significações. Não é o corpo em transe que me diz “Yemanjá”, ou “Oxum”, a partir de uma modelagem específica de gestos e sons, mas a montagem do filme que ordena cartesianamente os componentes dessas divindades.
Mesmo assim, acredito que Mito e Metamorfose apresenta um tipo de gesto que abriu portas para novas perspectivas dentro do cinema documentário nacional. Apesar de reticente, Juana estruturou grande parte do dispositivo de seu filme acreditando no potencial conectivo da imagem fílmica. Frente a ausência do testemunho e da vivência direta do terreiro, foi preciso o fortalecimento de um verdadeiro discurso cinematográfico que desse conta de veicular os valores do candomblé. É um movimento de transposição da forma ritual em forma cinematográfica que precisa ser reconhecido. Essas experimentações visuais podem aqui tomar, inclusive, a conotação científica do termo. Juana criou um laboratório, com condições de temperatura e pressão extremamente reguladas, para que sua amostra não fosse contaminada. Realizou pequenas explosões programadas, rapidamente contidas antes que fugissem do controle.
Estabelecendo relações de contiguidade e distanciamento com Mito e Metamorfose temos Ôrí, longa de 1989 dirigido pela também cientista social Raquel Gerber e conduzido pela fala da militante e historiadora Beatriz Nascimento. O documentário, que certamente bebe muito dos caminhos abertos por Juana (que é inclusive personagem do filme em um debate na Quinzena do Negro na USP), parece dobrar a aposta em direção à dialética da imagem.
Logo de início, Ôrí faz questão de nos informar sua localização. Beatriz, que narra em primeira pessoa grande parte do filme, demarca o seu interesse em estar não em uma margem ou outra do Atlântico, mas em seus entremeios. Não é um filme portanto de substância ou de essência, mas de movimento e relação.
Pretendendo falar sobre o movimento negro das décadas de 70 e 80, levantando uma discussão sobre a influência basilar dos africanos na edificação do país, o filme foge de um esquema expositivo e demasiadamente descritivo para construir uma história baseada nos sentidos. Passamos por bailes de soul music, pelos ensaios da Vai-Vai, reuniões fundadoras do MNU, manifestações, saídas de Iaô, e nenhum desses lugares é em momento algum definido enciclopedicamente. O baile, o terreiro, a escola de samba e o movimento político são dispostos como em um sistema. Nenhum ponto se explica sem o outro, tudo só existe a partir da relação.
Nesse sentido, temos uma abordagem que vai em direção contrária a de uma idolatria da pureza. O que importa, justamente, é a capacidade de criar vínculos — esse é o legado da tradição. Muito embebido de outras epistemologias africanas, principalmente aquelas provindas dos povos Bantus de Angola e do Congo, Ôrí celebra a capacidade de sobrevivência, e não de preservação de uma cultura. Essa diferenciação é importante se levarmos em conta que sobreviver é necessariamente se manter vivo, ativo, e consequentemente, em movimento.
Ora, se desde o início somos nós uma profusão de elementos — carregamos em nosso corpo-lama essa ideia — como podemos inserir nesse debate uma ideia de pretensa pureza? A interação entre a terra e a água está longe de ser pura, sendo o que realmente importa desse contato a contaminação mútua estabelecida: um pouco de água na terra, um pouco de terra na água. Quando vejo uma imagem de Santa Bárbara em um terreiro, está ali não a santa católica, nem mesmo Iansã “disfarçada”, mas sim uma amálgama desconcertante entre essas duas figuras. Essa é a macumba. Não a macumba como designação genérica de um culto religioso sincrético, mas ela como uma categoria de pensamento, uma maneira de se posicionar frente ao mundo. É a possibilidade de encarar as coisas como coisas, e nesse sentido preservar sua multiplicidade ontológica.
Em uma cena específica, Ôrí parece operar de forma magistral o que seria um cinemacumba. Estamos na Serra da Barriga e escutamos o historiador Joel Rufino dos Santos proclamar um discurso na inauguração do memorial Zumbi dos Palmares. Esse plano é invadido por uma conclamação à Ogum que dá início a uma fusão em que uma recém feita Iaô do orixá guerreiro, em transe, vem em direção à câmera. No som, escutamos agora a sinestésica trilha sonora composta por Naná Vasconcelos. O bradar do terreiro é o disparador para uma sequência retrospectiva, em que passamos por diversas palmeiras, pelas cenas das manifestações em São Paulo, pelos seminários da Quinzena do Negro, e que culminam em diversos planos dos rostos de figuras específicas como Hamilton Cardoso, Eduardo de Oliveira e Oliveira e Beatriz Nascimento.
Fotogramas retirados do filme Ôrí (1989) de Raquel Gerber
Nesse momento temos a mediação entre uma coletividade política (o movimento negro) e uma subjetividade individual (Beatriz, Eduardo e Hamilton), passada pelos elementos naturais (as folhas de palmeira relacionadas à Ogum) e intermediadas por figuras atemporais que surgem por meio de um discurso histórico (Zumbi) ou pelo transe (Ogum). Não se trata aqui de uma simples concatenação de planos, mas a construção de um pensamento por meio de imagens e sons que é possível graças a um entendimento de que todas essas substâncias só existem em profusão umas às outras. É o vislumbre de uma vida política que necessariamente passa pelos elos que unem a individualidade da coletividade, o presente dos seus passados e futuros.
A montagem opera um verdadeiro transe, ofertando o corpo fílmico como intermediário de uma infinidade de pessoas e discursos. É um movimento contra a fragmentação colonial, que procurou e ainda procura com todas as forças quebrar essas redes de conhecimento que conjugam tempos passados a fim de uma insurgência no presente. Vemos em Ôrí uma aposta radical pela dialeticidade, em que se faz questão de manter a imagem no seu lugar por excelência: em movimento.
O filme não poderia ser encerrado de maneira mais precisa do que com a proclamação de um poema, escrito por Beatriz, e direcionado à Zumbi. Nele vislumbramos a possibilidade arrebatadora de uma história transatlântica, que retira das pessoas o peso esmagador do sujeito individual moderno e as devolve seu lugar no mundo e na história. O exercício de uma metodologia forjada entre oceanos, giras e sambas, acompanhando o mundo em seu movimento sem fim.
Para ti, comandante das armas de Palmares
Filho, irmão, pai de uma nação.
O que nos deste? Uma lenda, uma história ou um destino?
Oh Rei de Angola Jaga! Último guerreiro Palmar
Eu te vi Zumbi, nos passos e nas migrações diversas dos teus descendentes
Te vi adolescente sem cabeça e sem rosto nos livros de história
Eu te vejo mulher em busca do meu eu
Te verei vagando, oh estrela negra!
Oh luz que ainda não rompeu
Eu te tenho no meu coração, na minha palma de mão verde como Palmar
Eu te espero na minha esperança
do tempo que há de vir.
Fotograma retirado do filme Ôrí (1989) de Raquel Gerber
[1] Página 238 de “As religiões africanas no Brasil”. São Paulo, Pioneira. 1978
[2] Trecho retirado da proposta do núcleo cinematográfico do SECNEB, instituição produtora dos filmes de Juana Elbein dos Santos e Carlos Brasjblat. Disponível em: < >
“Without the proper type of music, your program will be more difficult than need be. You know, it is said “music soothers the savage beast”, and what is called man is very anarchy-minded at present.”
Sun Ra, em sua carta de intenção para uma vaga de astronauta na NASA.
As luzes do espaço e o sacolejar da nave quebrada, digna de um filme B de ficção-científica dos anos 50 como O Homem do Planeta X, irrompem o espaço sideral para cair em terras estadunidenses. Dentro, um confuso passageiro; a chegada dele, do Irmão, é pela ilha Ellis, o ponto da chegada na cidade de Nova York utilizado por tantos imigrantes ao longo dos séculos – iconográfico imortalizado tantas vezes no cinema norte-americano, desde Poderoso Chefão parte 2 até A Imigrante de James Gray. O diretor John Sayles já deixa claro desde esse princípio que o seu apreço não é pela sutileza, e sim pelo desconcerto das castas sociais, pelo potencial absurdo disso. Não são poucos os momentos bem-humorados de O Irmão que Veio de Outro Planeta, mas o cineasta prefere registrar esse prólogo sob a tensão do abandono.
O protagonista vivido por Joe Morton, ator magnífico aqui trabalhando com as limitações de um personagem silencioso, já exibe sua abrangente linguagem corporal nesse prólogo: o corpo cansado do Irmão cai na Terra, e manca sem um dos seus pés, mutilado sem maiores explicações. Cambaleando pela metrópole na madrugada, encontra ambientes vazios, soturnos, iluminados apenas pela difusão da noite. Ao se ver num espaço marginalizado, inteiramente vazio e decadente, o Irmão chora sozinho. A cidade é lugar de abandono, e aquele silencioso nascer do dia perdura até os motores começarem a funcionar, até os trabalhadores começarem a ocupá-la. O choque imagético e sonoro proposto por Sayles nessa marcha diurna do trabalho já dá todo o contexto emocional do arco narrativo do Irmão: no coro da cidade, ele precisa se encontrar.
O pé mutilado do Irmão no início do filme, que eventualmente cresce depois, nunca é explicado em texto, mas ao contar ao menininho no museu que fora escravo em seu planeta, tal qual aqueles homens e mulheres retratados nos quadros, subjulgados pelo respectivo presente de cada um em um país de práticas trabalhistas nojentas, se intui que a violência que a sobrevivência cobrou ao Irmão ganha seu limite contra seu próprio corpo. A relação do protagonista com dor é singular, quase de inevitabilidade diante da opressão, e o único antídoto disso é o senso de comunidade que ele encontra ocasionalmente na Terra.
Um muçulmano surge diante do Irmão desorientado pelas ruas para tentar converte-lo, e pouco tempo depois o protagonista vê a figura de Cristo crucificado diante de uma revista policial a um homem negro. Esse sincretismo de signos, que mais a frente ganha contornos perigosos e críticos de representação de imagem, encontra diálogo justamente com o ponto levantado por Bernardo Oliveira no editorial dessa edição: a macumba, em seu uso contemporâneo, é essa reunião de signos e ritos, uma prática agregadora e ao mesmo tempo específica, muito pertinente em dar conta das contradições das crenças religiosas. No Harlem retratado aqui, uma coreana chama a polícia para defender sua loja do suposto roubo do protagonista; o dono do bar, negro, diz que não vai ao restaurante chinês porque só come o que “sabe pronunciar.”; um dos clientes fala das doenças que haitianos passam, etc. Sayles reserva a caricatura e o discurso direto apenas aos brancos, sem tentativas de conciliação, os retratando como os policiais, o par perdido no bairro, o chefe escroto do fliperama, os agentes fascistas extra-dimensionais.
Numa das melhores cenas do filme, um mágico amador fala rápido com o Irmão enquanto apresenta um truque de cartas. No final do truque, ele diz que fará todos os brancos desaparecer do metrô. É quando a estação chega, todos os brancos saem, e ficam apenas os negros, a caminho do Harlem – porque a cidade separa literalmente as classes e as etnias, e no capitalismo comportamento e cultura também são barreiras físicas prontas para ser violentamente assimiladas. É um ótimo momento, bem humorado na sua sátira – como é a cena seguinte, dos dois brancos turistas perdidos no Harlem – porque sublinha essa distância, e faz com que o protagonista entenda melhor a importância do trânsito e do lugar onde se baseia. Em uma das inúmeras cenas no bar, um dos clientes fala das glórias passadas do Harlem, que lá é “o fim da linha.” O lugar onde se cresce e se vive de alguma forma sempre será o acerto de contas de alguém, e quando se sente a verdadeira história de um povo na comunidade, na cultura e nos costumes, fica quase inevitável brigar pela convivência e ocupação daquele espaço que o status quo e a gentrificação tentam engolir.
Lugar de segregação geográfica é também o lugar de oportunidade do Estado de exercer sua máquina de guerra – como quem mora nas favelas do Rio, por exemplo, sabe muito bem. Logo no início do filme, quando o Irmão ainda está encontrando a cidade, ele tenta comer na vendinha da coreana que citei anteriormente, e é logo perseguido por um policial. É aí que Sayles sublinha sua discussão de repetições de iconográficos: imediatamente o Irmão percebe que o policial é representante da violência, com a câmera dando um zoom rápido subjetivo dele percebendo o distintivo; é como se signos da polícia e do fascismo fossem reconhecíveis em qualquer lugar da galáxia, por qualquer ser, dessa dimensão ou não. Tudo passa pela herança de memórias de opressão, e do que é feito para esmagá-la.
É muito oportuno o poder do Irmão de sentir violências passadas guardadas nos objetos que toca, como se acessasse uma memória coletiva de agressividade e racismo manifestada fisicamente, mecanismo de defesa intuitivo como reflexo direto do histórico de opressão, algo nem ao menos simbólico ou metafórico – já que é o mesmíssimo procedimento de desconfiança dos oprimidos diante dos opressores como forma de sobrevivência, apenas sob a via do fantástico para exacerba-lo.
Esse viés fantástico da comunidade que pelos hábitos encara suas dores ancestrais aproxima o filme de Space is the Place, improvisação filmada de Sun Ra pelo diretor John Coney – outra ficção-científica que trata de afrofuturismo para falar da própria época, 10 anos antes. Diferente de Space is the Place, o outro mundo, a outra dimensão, não é a utopia do afrofuturismo; é no entanto a distopia impessoal representada pelos dois caçadores brancos vestidos de preto. Toda a efervescência cultural de projeto político – e portanto estético – de Sun Ra e sua arkestra lidam com as possibilidades visuais de se expressar de alguma forma, diante dessa dimensão fantasma que encontraram na Terra.
O sequestro final de Sun Ra, no final do filme de Coney, junto à fuga posterior, exemplifica esse espectro oposto; a música como alternativa do diálogo, e como alternativa da bomba, igualmente terrorista em nome da revolução. Uma religião riquíssima e complexa abre um portal fantástico, metafísico, para que seu líder e maestro possa conduzi-los ao futuro. Não cabe a esses personagens o exílio; já para o Irmão, a cidade é a saída, e encontrar no final um grupo de exilados, fugidos da opressão como ele, é a via de enfrentamento que coube a esses alienígenas.
Na figura coletiva quase sobrenatural, quase de um oculto religioso, o filme não encara como um dilema propriamente metafísico, mas sim sociocultural – está impresso nos ícones religiosos das ruas, no Cristo acorrentado aproximado do homem negro revistado pela polícia que citei anteriormente. Quando Sayles filma sob a ideia do transe e do fluxo, é ao filmar o Irmão descobrindo os efeitos das drogas na população expatriada do Harlem, satirizando e comentando a caricatura do “vodu” transformado em signo fantástico no cinema americano. A trama do protagonista indo procurar a origem das drogas dali descamba num alto prédio corporativo, revelando ali que quem lucra com o tráfico e a subsequente morte negra é um empresário branco que vê naquilo só um fluxo de caixa; que essa seja a preocupação narrativa de Sayles no terceiro ato sublinha essa visão distorcida dos ritos e ferramentas de comunidade afro-americanas pela elite financeira branca, cuja distância não é apenas em ritos, em cosmogonia, em práticas e relações – mas também de imagem, e de como ela é representada. Não que Sayles comente frontalmente sobre o que representa politicamente um cineasta branco complicar o retrato insuficiente e frequentemente desrespeitoso da diversidade individual e coletiva de religiões de matriz africana no cinema americano, pelo menos não como Lucio Fulci em seu Zombi por exemplo, mas é um comentário a mais no seu interesse pela tapeçaria social da cidade – que irá terminar no Irmão encontrando outros expatriados, para aí ter a possibilidade de fundar o futuro.
E o presente e o futuro dos homens e mulheres negros aqui retratados está situada na conversa dos habitantes do bairro, no senso de comunidade, da História compartilhada e dos costumes diários, da classe trabalhadora que se reconhece e que se imprime nas características geográficas de Nova York para provar que a cidade é feita pelos imigrantes. Não por acaso, em dado momento o homem do fliperama fala que “metade da cidade não tem visto.”
A revelação dos outros imigrantes interplanetários é sugerida através de sinais ao longo do filme, de rimas sonoras e figuras nas paredes, como se existisse um código desconhecido nas ruas. A cidade guarda esses segredos, e qualquer um que vive em uma metrópole como Nova York (ou o Rio) olha para as pichações nas paredes e sabe que essa comunicação é o que faz da cidade o que ela é, esse lugar de expressão que não cessa e não abaixa a cabeça para autoridades higienistas. É um comentário muito direto sobre a política fascista de higienização de Nova York, mas serve como ideia geral para metrópoles que a comunicação do Estado de direita é uma comunicação de exclusão, e que é nas frestas que reside a sobrevivência.
“O Harlem joga o melhor basquete do país”, o letreiro na parede diz no último plano. O Irmão que agora sabe onde está e para onde vai entende que não existe retorno à casa se a casa é dominada pelos opressores. O que há é a cidade, nova morada, do trânsito dos imigrantes que trabalham dia a dia, que construíram o país, e que se organizam para transformar o lugar que lhes é de direito.
A cidade de Savannah, localizada no estado da Geórgia, é um tipo de complexo turístico cujos inúmeros portais disponíveis online oferecem experiências que vão desde caminhadas pelo centro histórico tomado por casas vitorianas com varandas ornamentadas e treliças de madeira, até “tours fantasmas”, que prometem “ser a maneira mais assustadora de experimentar espectros, fantasmas e o ‘hoodoo’ da cidade mais assombrada da América”. A fundação de Savannah resguarda ainda um planejamento urbano meticuloso que desemboca em ruas “perfeitamente lógicas” e simétricas (segundo nos informa uma blogueira viajante “perpetuamente perdida”), e inúmeras praças que, além de pontuarem esse rigor, vão abrigar monumentos históricos e carvalhos cobertos de musgo caindo em cascatas.
Parte desse cenário tipicamente sulista vai ser composta por representantes decadentistas do old money (entusiastas de clubes temáticos e eventos beneficentes)e por uma população negra significativa, descendente de africanos ocidentais/centrais escravizados e trazidos para trabalhar nas plantações costeiras de arroz e de algodão, e de caribenhos – em sua maioria haitianos que participaram do processo de independência das treze colônias como aliados das tropas americanas e francesas. Soma-se a isso a desapropriação de território indígena, uma zona portuária que recebia um fluxo contínuo de navios negreiros, participações ativas na guerra civil, três surtos de febre amarela (o primeiro contabilizando 666 mortos) e casos criminais famosos, como o assassinato do jovem Danny Hansford na propriedade conhecida como “Mercer House” em 1981. Uma trajetória que inevitavelmente vai concentrar alguns dos aspectos mais fulminantes do Southern Gothic.
Danny Hansford tinha 21 anos quando foi encontrado morto com um tiro na cabeça e outro no peito, deixando uma poça de sangue no tapete persa do escritório de Jim Williams. Williams, negociante de artes, preservacionista proeminente e principal responsável pela manutenção do centro histórico de Savannah nas décadas de 1960 e 1970, declararia ter atirado em legítima defesa no próprio empregado após uma discussão acirrada. Nos dias que se seguiram até o julgamento porém, uma série de informações sobre o réu e a vítima vieram à tona, tornando o caso todo mais sinuoso: Hansford sabidamente já havia atuado como traficante e garoto de programa, descrito por quem o conhecia como um indivíduo de humor instável, e mantinha um relacionamento afetivo turbulento com o patrão. Williams foi julgado no total de quatro vezes em quase nove anos, sendo sentenciado à prisão perpétua nos dois primeiros julgamentos, e tendo o terceiro anulado por uma série de incoerências nas investigações. Quando finalmente é absolvido, morre oito meses depois de insuficiência cardíaca em decorrência de uma pneumonia, aos 59 anos e, curiosamente, no mesmo local onde o corpo de Danny Hansford foi encontrado.
O assassinato na mansão Mercer, ou Mercer-Williams como agora é chamada, se torna notório em 1994 com a publicação de Meia-noite no jardim do bem e do mal, um “romance não-ficcional” de John Berendt cuja proximidade com o acusado e o envolvimento com a comunidade (Berendt vai estabelecer residência por cerca de cinco anos em Savannah), vão resultar numa abordagem Capoteana, contaminada pelas excentricidades da cidade e de seus moradores. Em meio a festas, bailes de debutantes, fofocas de socialites e rituais vodu no cemitério (o jardim, propriamente dito) requisitados por figuras influentes, emerge uma gama de personagens incomuns e situações insólitas que faz com que o relato de Berendt assuma uma tonalidade quase supranatural. O vodu haitiano e suas práticas cotidianas convergem para um ponto de destaque na narrativa, no qual questões amorosas, financeiras e, principalmente, as judiciais, são levadas aos “root workers” ou “witch doctors”, feiticeiros e sacerdotes, para serem resolvidas prontamente e por preços módicos. Williams vai buscar as “forças” ou “vibrações”, como chama com um ceticismo dosado o vodum – a energia primordial transculturalizada em “vodu”–, para apoiá-lo no que acreditava se tratar de um embate metafísico entre o bem e o mal. De um lado o promotor, o júri e Danny Hansford no além-vida, e do outro a parceria poderosa com Minerva, “voodoo priestess” e viúva de Dr. Buzzard, conhecida autoridade vodu do condado.
Três anos após o lançamento de Meia-noite no jardim do bem e do mal, Clint Eastwood adapta cinematograficamente a obra de Berendt com John Cusack incorporando palidamente o jornalista/escritor nova-iorquino, Jude Law como Billy Hanson – uma versão mais decorativa de Danny Hansford – e Kevin Spacey, como uma caricatura um tanto quanto predatória de Jim Williams (e um tanto quanto premonitória dos seus escândalos futuros). Uma parte considerável das críticas feitas à época avaliaram o filme de Eastwood como uma tentativa fracassada de manter o ritmo enérgico do livro. “Zumbificado”, “ausente” ou “adormecido” foram atributos usados para descrever John Kelso, o personagem de Cusack que vez ou outra aparece boquiaberto no desenrolar de uma cena decisiva. É quase sintomático que essa seja a percepção de um protagonista aparentemente absorvido pelo fluxo dos acontecimentos pelos quais transita, se nos determos no fato de que, nos momentos em que flerta com a ficção, John Berendt vai se inserir em situações das quais só pôde ter conhecimento posteriormente. O caráter vaporoso do testemunho fabricado como um par de olhos na janela é tanto um elo referencial quanto um elemento que de certa forma contribui para a aura enfeitiçada do filme. Há um equilíbrio entre a presença em suspensão do forasteiro, o “ianque”, que ronda a cidade em busca de uma história (e de um veredito próprio), e a presença arrebatadora de personagens como Minerva e Lady Chablis, a performer negra e transexual feita testemunha-chave no caso. Duas entidades femininas que, à sua maneira, representam um lado mais pantanoso do filme de Eastwood, um desvio do gênero “tribunal” e true-crime para o oculto e o maravilhoso.
Erzulie (ou ainda Ezili, Erzili) é um panteão de divindades (loas) do vodu haitiano em comunicação direta com os domínios do feminino, do amor, da beleza, da sensualidade e da maternidade. Dentre as suas inúmeras manifestações, dois aspectos de Erzulie parecem condensar bem o lugar que Minerva e Lady Chablis ocupam enquanto personalidades que inflamam a diegese respectivamente: Erzulie Dantor “a feroz protetora, a mãe (muitas vezes solteira) sincretizada com a Madona Negra de Czestochowa, que apareceu durante a cerimônia de 1791 em Boïs Cayman que iniciou a Revolução Haitiana” e Erzulie Fréda “a luxuosa mulata que adora perfume, música, flores, doces e risos, mas sempre parte aos prantos”. Interpretada por Irma P. Hall (a quem a wikipedia associa uma abundância de personagens matriarcais) Minerva é o pseudônimo de Valerie Boles, uma root doctor do condado de Beaufort que assumiu a posição do marido, Dr. Eagle (Dr. Buzzard), após sua morte. Como uma mãe zelosa, mas severa, Minerva é a materialização de uma forma de sabedoria ancestral que se sobrepõe às questões mundanas da moral e da lei dos homens – os grandes pivôs de Meia-noite… que assombram tanto o jornalista que decide investigar os fatos para alimentar seu livro e o ego adulado pelo novo amigo milionário, quanto o acusado, que jura perante à lei sua inocência ainda que todos os indícios apontem o contrário. É ela que prenuncia a chegada de John Kelso sentada no banco de uma praça de Savannah, que aconselha Jim Williams a não deixar seu rancor despertar a fúria do jovem amante assassinado: “diga coisas boas sobre ele”. Ela intercede enquanto realiza um feitiço para o bem e outro para mal à meia-noite no “jardim”. É ainda a expressão das raízes gullah – a comunidade étnico-cultural descendente dos escravos estabelecidos na Geórgia e na Carolina do Sul – e das religiões afro-caribenhas que se infiltram e resistem nos terrenos mais inférteis e inesperados como o tribunal.
Já Lady Chablis, interpretando a si mesma, é a manifestação máxima da vivacidade que Erzulie Fréda conclama e da criatividade com a qual os protegidos de Erzulie, entre os quais homossexuais e transexuais – os masisi – “vivem a feminilidade e o desejo”. Em sua primeira aparição no filme, Chablis está de luto por Billy Hanson, que descobrimos ter sido seu amigo e namorado de sua ex-colega de quarto. Chorando, ela pede a Kelso que respeite seu lamento antes de lhe dirigir a palavra, e é somente quando recebe um buquê de flores, após uma sessão de hormonização, que decide cooperar. O que Lady Chablis faz desde então, enquanto aliada do nova-iorquino e de sua parceira romântica (Alison Eastwood, a filha de Clint Eastwood) em sua investigação pessoal, é se tornar um ponto focal em constante movimento no marasmo. Numa das cenas mais memoráveis da obra de Eastwood, Chablis chega sem ser convidada à cerimônia de um baile de debutantes da camada negra dos abastados da cidade e dança a uma versão orquestrada de “La bamba”, deslizando pelo salão com um vestido de brocados que envolve seu corpo esguio como uma pele de serpente. Se existe qualquer vestígio de uma “zumbificação” declarada pela crítica por parte dos protagonistas masculinos, ele se perde na exaltação do deslumbramento de Lady Chablis.
Meia-noite no jardim do bem e do mal por vezes parece se comprometer com a cadência e os maneirismos típicos de alguns filmes do fim dos anos 90. John Cusack desempenha um tipo de galã tomado por seus conflitos internos de descrença e falta de amor-próprio, se envolve num romance secundário enquanto Kevin Spacey e Jude Law se apresentam como adereços de alto valor e gosto duvidoso. Mas existe ainda um fator encoberto, que faz com que toda a ambientação do filme mergulhe nas águas turvas do deep south, esse fator é a conciliação entre o habitual e o encantado que só pode ser oferecida pelas caminhadas noturnas, pelo mormaço que expulsa os idosos diretamente para suas cadeiras de palha no alpendre, pelos feitiços de Minerva e as performances de Lady Chablis e pelas forças misteriosas que cobram a verdade do assassino (afinal a arma não foi disparada em legítima defesa) nos seus momentos finais, num plano de beleza barroca dos rostos da vítima e do réu, recém-absolvido, unidos na morte e no sangue no carpete.
Fontes:
DAYAN, Joan. “Erzulie: a women’s history of Haiti”. Research in African Literatures, v. 25, n. 2, p. 5-31, 1994.
TINSLEY, Omise’eke Natasha. Ezili’s mirrors: Imagining Black queer genders. Duke University Press, 2018.
TINSLEY, Omise’eke Natasha. “Songs for Ezili: Vodou epistemologies of (trans) gender”. Feminist Studies, v. 37, n. 2, p. 417-436, 2011.
“Le moi profond reste le meilleur des masques antirides”,
Marcel Proust
“Não é necessário contemplar nem as coisas, nem as pessoas; é preciso apenas olhar os espelhos, pois os espelhos só nos mostram as máscaras”
Oscar Wilde, Lady Windermere’s fan.
De quantas máscaras necessitamos para forjar uma civilização? De quantos significantes, flutuantes ou fixos? As lúgubres artes maneiristas (este barroco tardio, abarrotado pela mais-valia luxuosa dos signos, centrado sobre a existência fantasmática da Linguagem), que sempre se nutriram de arquétipos, de máscaras e de espelhos, nos ensinaram que sob todos os seus engenhos suntuosos, e talvez para ocultá-la revelando, subjaz a parte maldita da morte, da feitiçaria, da guerra; e o que foi a parte maldita, segundo a pena de um de seus virtuais cultores, Georges Bataille? “(…) de todos os luxos concebíveis, a morte, sob sua forma fatal e inexorável, é certamente a mais cara”; professor no Colégio de Sociologia de França, que segundo Carlo Ginzburg legou à civilização europeia um condensado dialético e patético de arquétipos que talvez melhor do que ninguém soube entender a influência do movimento neo-mitológico do nazismo, de que Dumézil foi o teórico mais impecável, sobre a juventude alemã, a oferta perversa de Origem de que os jovens necessitavam para soerguer uma nova Nação, alimentada pelo caos dos primórdios; no seio da Kultur mais refinada pelo exercício da arte erudita, da eminência das Letas clássicas, etc- do cerne da mais vetusta e nobre civilização surgiu o caos, o terror, a abominação, talvez um uso doente para um excesso de força sem sublimação possível; mas de tudo, para falar da obra-prima Les maitres fous, eu retenho o trecho sobre a parte maldita, e acrescento o do homo sacer (O homem sagrado); o que secretam as eminências pardas da administração, do capital, etc, quando submetidas a um rito in extremis, cujo brasão é o sangue sacrificial?
O que revela, propriamente, dos baixios da produção e do exercício do poder, seus emblemas, suas entranhas e mises en scènes, seus signos heráldicos e representações? Em Os mestres loucos, Rouch escreveu um pré-texto para proteger a sensibilidade um tanto histérica do europeu médio que assistiria o filme em Veneza: as cenas cruéis descritas aqui são antes de tudo o reflexo da violência de nossa civilização: as máscaras autóctones da civilização ocidental são ritualizadas segundo um princípio cinematográfico de vinheta clínica, de campo e contracampo expeditos, de cotejo diacrítico entre a representação oficial (de que Rouch nos oferece um trecho particularmente litúrgico, cerimonial: o batismo de um exército pelo rei) e a oficiosa da pulsão a serviço do sagrado; mas de que sagrado se trata? De um sagrado historicizado pela distribuição de papéis e de funções, de um complexo teatral que deve segundo o espírito o seu constructo antropomórfico e antropofágico à obra-prima mascarada Os negros, de Jean Genet. Muito se falou da natureza coetânea da parte maldita energética com a mais-valia do capital; em Les maitres fous, toda a suntuosidade deste desperdício libidinal está a serviço da cena, agora pública e gregária, do fantasma de um povo. Antropólogo Rouch sempre foi, como nos mostram estas vinhetas precisamente clínicas onde os gestos idiossincráticos de cada função – política, econômica, fantasmática – se expõem numa vitrine de arquétipos incrustados no bronze.
Mas em Les maitres fous Rouch também se torna um estudioso de antropofagia: as realezas, os administradores, as madames e monsieurs autóctones reproduzem retroalimentando (ou consomem ultrapassando, segundo a fórmula hegeliana da suprassunção dialética) o arquétipo ancestral com seu arquétipo tópico, histórico, econômico, segundo seu zeitgeist epocal; o gênio somático, infra-estrutural de Os mestres loucos é sua dimensão clínica, seu relato límpido, sua impassibilidade de diagnóstico na descrição objetiva dos ritos demoníacos (aqui entendido como obra do inconsciente, bem entendido).
O seu gênio espiritual, superestrutural é fazê-lo a serviço de uma antropologia que deve tanto à natureza quanto à História os seus cerimoniais possessos de Trans-História; uma coisa é indispensável à outra, como a dicção e ao dedo em riste autofágico para o Gestus brechtiano, que cita a si mesmo no processo da enunciação. Um tanto como o Brecht das peças paradidáticas , mas também como Pérrault, Artaud e Genet e Bataille, Rouch nos oferece o romanesco do rito, sua conversa infinita (segundo Blanchot) e num mesmo movimento a objetiva segundo um Codex de mapa e de terapia psicanalítica (inútil lembrar da noção de inconsciente coletivo de Jung, é claro) que deve tudo ao teatro da crueldade e ao colégio de sociologia batailliano; nós aprendemos à fórceps com a expedição de registro de caso paradigmático da découpage de Os mestres loucos que o registro do inconsciente deve se debruçar sobre o rito como forma de presentificação do arquétipo de que é depositário; mas também que não há inconsciente sem linguagem, sem teatro e sem cinema, sem uma codificação visível, evidente, supra-vidente do invisível da pulsão; numa alternância que tem muito de revelação e de exorcismo, Rouch nos mostra os mesmos personagens pós-possessão, empenhados no trabalho cotidiano como em uma nova máscara, apenas em aparência transparente à carne como ao papel desempenhado no sistema descrito.
O Logos da voz off, que nos descreve o sentido de cada máscara e seu uso (o uso do fogo, o porque do sacrifício do cachorro, a relevância do papel em particular para a economia da totalidade do constructo mítico) é um Logos que não anula ou ultrapassa, mas se sobrepõe ao Logos do rito descrito em pormenor de vilegiatura; como no episódio Gare du Nord, em que se serve da catarse surrealista de intrusão do acaso num universo consuetudinário documental para revelar o invisível corrosivo dos afetos no homem de todos os dias (e não apenas no monstro elizabetano, por exemplo), o Rouch de Os mestres loucos se serve do registro antropológico para efetivar uma antropofagia espiritual, em que uma cultura devora a outra para revelar seus interditos recíprocos, ou, como está no texto de apresentação, “(…) esta história é o reflexo da violência de nossa civilização”: os mestres loucos se mascaram para tirar a máscara (do ocidente), como a máscara com que agora agem e são acionados pertence às cabeças coroadas do ocidente; um se torna o espelho anfractuoso do outro, a face ignota que, de sobreaviso para com o “escândalo mimético” da dita regressão à animalidade à vista, recusamos a ver no espelho do rito oficial.
Se há violência e mesmo crueldade em Os mestres loucos, não se trata de nos advertir segundo as categorias vistas como opositivas da civilização e da barbárie: o Logos e a legitimidade ritualística, os codex e exceções daquela civilização, no estágio simbólico-sacrificial em que se encontra, são tão lídimos, legítimos e justos quanto os nossos códigos e infrações: a voz off é um logos superposto ao logos do gesto mítico, e não oposto; é relevante afirmar ainda e sempre a soberania da pesquisa antropológica em Rouch (mesmo e sobretudo quando tem como objeto o imemorial, o mítico e o arquetípico, aqui dobrado pela idiossincracia de receber sua ressonância mítica do estado histórico, epocal em que o filme se encontrava quando registrou esta outra História, este mito ou seita secretos aqui revelados à luz de révelateur do cinema), porque no Rouch de Os mestres loucos e Petit à petit, por exemplo, o olhar do ocidente jamais se destaca sobranceiro sobre o objeto antropológico estudado: trata-se sempre de uma alteridade que reencontra o mesmo de uma secreta origem, uma parte de mim não desenvolvida ou extirpada segundo o fórceps da violência dialética secularizada do logos triunfante de luz: a seita dos Hauka, composta por jovens trabalhadores possuídos pelas forças arquetípicas coloniais inglesas, é uma parte de nossa História secreta, e secreta enquanto tal toda a insidiosa parte maldita necessária para semear a colonização, sua violência sempiterna; desconhecer esta violência ou sobrepuja-la com artigos de sublime de atacado só nos vai converter em objetos privilegiados de sua ominosa potência, como o nazismo, aberração nascida e nutrida pelo berço mais refinado da civilização europeia, pôde bem revelar; obra-prima sobre o Segredo de uma civilização e seus arcanos, Os mestres loucos é um filme macumbeiro que se debruça sobre a transfiguração da imanência com os meios da própria imanência, e é daquelas obras que justificam e suscitam, com sua representação de um universo anti-essencialista (o arquétipo historicizado, outro) o que vai ser o programa mais elementarmente revelador da modernidade no cinema, do Godard maoísta à Paris-labiríntica de Rivette, destinação a princípio idiossincrática em matéria de cenário e dispositivo mas que, se estudada com atenção, pode vir a nos descobrir aspectos pouco explorados da genealogia como arte de desvelamento ou atualização do possível que nos espreita desde as origens.
Rituais, segredo, discriminação, comida e comunidade. No geral, são esses os termos que me vêm à cabeça quando penso na palavra macumba. Muitas vezes ligado a enunciados preconceituosos, o termo se confunde com a história dos africanos trazidos ao Brasil à força de uma assimilação violenta. Violência essa que, fundante, segue marcando o país-brasil de forma indelével e poucas vezes é transformada em algo positivo.
Acredito que caiba ao cinema, como plataforma de articulação daquilo que excede o real, apresentar algumas imagens-feitiço, com o propósito de nos aproximar do universo dessas religiosidades mestiças, de traços africanos e também indígenas.
O agnóstico muitas vezes elabora objetos de culto em lugares não-convencionais. A cultura pop e o cinema produzem um vasto cabedal de possibilidades nesse sentido: de musas a autores, e frames como extratos de imagens em movimento que tornam-se objeto de uma adoração tanto diversa quanto aproximada de uma devoção de cunho quase religioso. Muitas vezes também é o léxico do cinema que nos faz relacionar com o desconhecido: paisagens, sotaque e catarses.
Sem a intenção de criar qualquer lista de filmes imperdíveis sobre macumba, esse texto vem convocar algumas produções nacionais em que rituais, deidades e símbolos ligados aos cultos afro-indígenas praticados no Brasil sejam tema ou conduzam a narrativa. Dentre diretores conhecidos, dois nomes se destacam: Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla.
Partindo uma ideia de cinema popular brasileiro, Nelson Pereira e Sganzerla utilizam expedientes diferentes para alcançar talvez o mesmo objetivo: levar às telas filmes cujos temas encontrem pouso entre uma audiência de trabalhadores pobres e migrantes das periferias das grandes cidades brasileiras.
Em O Amuleto de Ogum, Gabriel chega ao Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e acaba esbarrando com o crime organizado da Baixada Fluminense dos anos de 1970. Entre a história da Baixada e a recorrência de migrantes nordestinos que ainda chegam ao Rio de Janeiro todos os dias, a religiosidade do protagonista o transforma no operário perfeito para a função de criminoso profissional.
O Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos
A ideia do bandido de corpo fechado aqui serve a pelo menos dois propósitos: conjugar a narrativa dos marginais míticos da periferia – aqueles que sobrevivem a atentados e tiros e cujas histórias são como ouro para o jornalismo sensacionalista – e a macumba como prática de produção dos corpos.
A fim de proteger o filho da violência que acerta quase sempre corpos negros e periféricos, a mãe de Gabriel o leva ao terreiro para que seu corpo seja preparado e fechado, pondo a própria alma como garantia da proteção do filho. Assim é criada uma deidade propriamente brasileira, o filho de mãe pobre e solteira cujos dribles da morte estão condicionados à fé de sua mãe, transubstanciada através desse ritual, cujo amuleto o rapaz carrega e no qual deposita bravura e a capacidade de se meter em encrencas (às expensas do coração materno). Aqui os filmes de herói e de boneco se encontram com a linguagem da macumba, forjando um herói, brasileiro como poucos, nesse que é um clássico do cinema “BR”.
Em Copacabana, Mon Amour, outra figura periférica, Sônia Silk, se vê perseguida por um fantasma ao mesmo tempo em que precisa descer o morro e se prostituir no calçadão de Copacabana para sustentar a família, ao invés de seguir seu sonho de cantora. Em paralelo, seu irmão, parece estar enlouquecendo amedida que assume a paixão proibida que sente por seu patrão.
Copacabana Mon Amour de Rogério Sganzerla
Duas figuras perturbadíssimas como muitas que transitam entre centro e periferia das grandes cidades brasileiras, marcadas por um adoecimento psíquico que os conduzem a atos impensados, pequenos/grandes crimes, e novamente, às páginas ou telas de notícias populares. Em meio ao tumulto de suas vidas, Sônia e seu irmão encontram o pai de santo Joãozinho da Gomeia e mesmo sua benção já não é capaz de apaziguar os ânimos dos personagens, perdidos entre a sobrevivência e talvez a falta de dedicação ao culto de sua ancestralidade, que talvez lhes restituísse a força que vemos no protagonista de Amuleto de Ogum.
Helena Ignez e sua performance-transe faz muitos dos melhores momentos de Copacabana, Mon Amour e algo do gestual lembra muito os transes filmados em Ritos Populares, Umbanda no Brasil, que apesar de posterior a Copacabana, mostra que tanto o diretor quanto a atriz fizeram suas pesquisas em torno do tema e de como performa-lo. Otoniel Serra e seu personagem possuído de paixão, que oscila entre gritos e pontos de macumba, descendo e subindo o morro, opera num registro mais livre e espontâneo, com uma capa que remete aos parangolés de Hélio Oiticica, com sua pesquisa sobre corpo e samba espelhada aqui numa gira urbana e esquizofrênica que Serra conduz tão bem.
Falando em esquizofrenia, é interessante como estes filmes servem também para desmistificar alguns preconceitos com a macumba, como seu caráter feral e distanciado da ciência: em Jubiabá, o pai de santo interpretado por Grande Otelo geralmente é encontrado em casa em meio a muitos livros, o que nos leva a crer que sua sabedoria venha de uma conjunção entre experiência, leituras e sua missão perante àquela comunidade da periferia de Salvador; em Ritos Populares, o personagem principal também é um homem de idade, que diz ter aprendido tudo que sabe sobre a religião com seus guias astrais, que por sua vez lhe conferiram a missão de escrever sobre a mitologia, os orixás e curiosamente diz acessar esses conhecimentos por via de duas entidades que lhe visitam: um preto velho e um pajé indígena, “de tempos pré-cabralinos”, como diz a certa altura do documentário.
De todos os filmes aqui citados, Bahia de Todos os Exus é aquele de caráter mais científico, próximo a uma pesquisa de campo, com um pesquisador curioso portando microfone e gravador em meio a uma ladeira de Salvador. Em seus 45minutos de duração, o entrevistador visita diversas autoridades no tema, entre cientistas, artistas e pessoas comuns para entender a importância e a natureza mutante da figura de Exu entre os cultos afro a Bahia.
Sem condescendência, o filme apresenta a naturalidade da feitura de um ebó para Exu, com uma galinha sendo decapitada e o sangue sendo espalhado sobre a comida do santo. Suas explicações sobre o Ifá, as diversas formas como Exu se apresenta e aqueles que guardam relações muito particulares com essa entidade de tantos nomes fazem dele um documento tanto textual quanto imagético sobre as relações entre a religiosidade e as camadas populares.
Nas favelas, nas organizações trabalhistas e no terreiro todos os personagens desses filmes-macumba poderiam cruzar suas histórias e desdobrá-las em diversas outras, todas elas com um fundo de brasilidade muito peculiar e violento, como a própria história desse país, rico de tantos personagens e contos míticos populares. Pela valorização dos filmes-macumba e seus desdobramentos possíveis.
Referências:
Bahia de Todos os Exus. Dir.: Tuna Espinheira, 1978.
“Se você puder achar uma encruzilhada, qualquer encruzilhada, esta encruzilhada. Se você puder fazer uma escavação arqueológica nessa encruzilhada, você encontrará fragmentos, tecno-fósseis. E se você puder colocar esses elementos, esses fragmentos juntos, você encontrará um código. Desvende esse código e você terá as chaves para o seu futuro. Você tem uma pista e é a frase: Mothership connection (conexão nave-mãe)” – O Último Anjo da História (Akomfrah, 1996)
Pela elaboração de uma realidade sinuosa e com o procedimento narrativo de agouro, I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943) é um presságio que induz a revelação de um mistério que, embora pressentido, quando revelado não deixa de transtornar a nós, espectadoras, e ao próprio filme. É importante, entretanto, também agourar o que será dito nesse texto: para além dos questionamentos que concernem o modo como os personagens negros foram construídos no longa metragem, interessa aqui marcar a noção de encruzilhada e de como isso reverbera como proposição estética e formal para a construção narrativa, com o exercício de encontrar algo que possa ser pressentido e capturado. Em St. Sebastian, ilha onde a narrativa se desenvolve, o sobrenatural pertence ao cotidiano. No entanto, acessamos a ilha através do olhar estrangeiro e desconfiado de Betsy, uma enfermeira que viaja até o Caribe para trabalhar como cuidadora de Jessica, uma mulher catatônica, largada à passividade, a quem as “más línguas” chamam de zumbi. Betsy se insere em Fort Holland, no contexto de uma família branca rica que é atormentada pela tragédia que acometeu Jéssica, uma calamidade sem explicação aparente.
Adentrando os portões de Fort Holland, somos apresentados a uma imagem peculiar: Ti-Misery. Um calcês de um navio negreiro que imita um homem negro morto a flechadas é o irrigador e parte da decoração do jardim da família abastada e, ao mesmo tempo, é posicionado como uma alerta. Um lembrete de que é necessário não esquecer dessa imagem e, talvez, de que seja preciso olhá-la mais de perto. Ti-Misery é uma encruzilhada. Nela, interseções coabitam com desvios. Na primeira noite de Betsy em Fort Holland, um choro contido a desprende de seu sono profundo, choro que depois descobrimos ser de Alma, uma funcionária da casa que mantém a tradição ancestral de chorar e prestar luto ao nascimento de uma criança negra e de ficar feliz aos funerais, algo que é explicado no filme como uma herança do período da escravidão. É curioso, no entanto, marcar que as lágrimas de Alma são veladas, e quem de fato parece chorar é o calcês na função de irrigador de jardim. Esse signo cultural, ao mesmo tempo em que é colocado como uma alegoria da história e experiência negra em St. Sebastian, também é uma metáfora do falseamento que existe dos portões de Fort Holland para dentro. Lá, tudo é performance. Assim, essa potência do cruzo, de duas interpretações conflitantes, uma exagerada em signos políticos e a outra esvaziada nesse sentido, fundamentam o lugar de Ti-Misery como uma encruzilhada, um campo de possibilidades onde opções se entroncam e se contaminam.
No longa de Tourneur, fica explícito que os tambores dos rituais vodu são o novo código, a macumba, a qual os brancos dizem querer distância. Eles estão protegidos pelos seus portões até que Betsy, em um delírio de paixão pelo homem que a contratou, mesmo contrariada pela matriarca Holland – que descredibiliza os rituais, no entanto, admite se aproveitar da crença da população para passar conhecimentos básicos de saúde -, tem a ideia de levar Jéssica para o ritual, na esperança de que ela se recupere e, assim, faça o homem de sua vida feliz outra vez. No caminho até o local onde acontecem os rituais, somos apresentados a outra personagem, tão decorativa quanto o calcês: Carrefour. No vodu, o espírito Carrefour controla a encruzilhada. Todavia, apesar da importância do espírito para o ritual, ele, assim como Jéssica, também está entregue à passividade em sua condição de zumbi, que segundo as terminologias do vodu haitiano, é uma pessoa que teria retornado dos mortos, através de feitiçaria para servir como escravo de alguém que o adquira através de pagamento a um feiticeiro ou a este mesmo.
Fica evidente a posição de Carrefour como uma rasura entre a vida e a morte. No entanto, com a sua apatia patológica, não transparece guardar os saberes das encruzilhadas, as operações de Exu. Saberes de ginga, de síncope, das mandingas. Carrefour explicita a arte de Tourneur de não criar cisão a partir do tema central, que dá nome à obra. Os zumbis e suas imbricações são, conscientemente, esvaziadas de sentido e servem, em certa medida, como uma distração para o verdadeiro mal existente em St. Sebastian. Apesar de Betsy se assustar com ambos os zumbis, o medo provém das operações de imagens que historicamente ocuparam uma partilha implícita de modos de representação. Carrefour nada faz. Todavia, Betsy se amedronta com a sua presença, como se a existência de Carrefour fosse o suficiente para colocar a vida dela em perigo. As encruzilhadas construídas no filme possuem uma superficialidade inerente a sua própria existência na mise en scène. Tourneur utiliza de um caminho historicamente demarcado, como a violência das imagens por exemplo, para traçar um percurso paralelo de mistério, transversal acima do primeiro.
A matriarca Holland, que em dado momento propaga a ideia de que o vodu é uma fachada na ilha, mais a frente na narrativa admite acreditar na prática ritual e confessa ter, ela mesma, lançado uma maldição sobre Jéssica, sua nora, por que ela era motivo de discórdia entre seus filhos. O estado catatônico da personagem zumbi, apesar de ter sido justificado, permanece, entretanto, em suspenso. Tourneur encontra os códigos, mas escolhe não fazer o movimento de desvendá-los para o espectador. Pelo contrário. Ao final do filme uma narrativa de que o ritual vodu quer o corpo de Jessica é construída. Por uma montagem clássica de plano e contraplano, Tourneur entrega todas as pistas de que Jessica está caminhando por ordem do vodu. Porém, subverte os procedimentos da decupagem clássica à medida em que constrói outra narrativa paralela de um dos irmãos Holland pegando uma das flechas do corpo estático do calcês e tirando o pouco de vida que ainda existia no corpo de Jéssica. Essa ação é replicada na montagem do ritual vodu com uma boneca. Ao recriar a cena em ambos os caminhos da encruzilhada, Tourneur cria uma polissemia visual e exclui qualquer possibilidade de uma verdade interpretativa. Cria, assim, um código outro a ser desvendado. Como espectadores, não sabemos se foi o vodu que tirou a vida da menina zumbi ou se foi o ego da família mais antiga de St. Sebastian, um efeito de cruzo. Quando a tela preta faz sua aparição e dá lugar aos créditos finais, sabemos que houve uma transgressão dos parâmetros da moral pela encruzilhada. Encante e desencante seguem seu movimento contínuo, esperando transgredir para outra coisa.
Reflexões corridas sobre representações do bicho[1]
Por João Lucas Pedrosa
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Diz-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: ‘Nunca mais.’
“O Corvo” (1845), Edgar Allan Poe; trad. Machado de Assis
Em “A Grande Testemunha” (1966), de Robert Bresson, o protagonismo é de Balthazar, um burro que, no decorrer dos anos, é posse de diferentes pessoas. De cara, nos grita que tipo de animal é o burro: é um animal inofensivo, indefeso, de carga. Carga humana que o monta ou carga material em seu lombo. Não é vistoso ou grande como um cavalo, mas sua vida é, ainda, andar pelos outros e com o peso dos outros sob o desprezo alheio. É um animal marginal.
A direção de Bresson é particularmente pungente nesse retrato, sua conhecida estética de despojamento: a técnica de direção de atores envolvia exaurir os atores (que preferia chamar de modelos) para que, de um corpo quase sem expressão, sob rígida contenção cênica e expressiva, uma graça metafísica pudesse se manifestar de uma proposta estética alimentada pela negatividade. Aqui entra a força do burro-modelo. Balthazar passa de mão em mão e tanto sofre como assiste a diversos abusos. Em efeito Kuleshov, vemos plano e contraplano com Balthazar enchendo, como por osmose entre os planos, as esferas negras que usa para enxergar de expressão, de significado. Há um diálogo em particular entre Balthazar e os animais enjaulados no zoológico onde nosso personagem principal carrega palha. Um diálogo não verbal; mas um diálogo, à medida que cada tigre, urso e macaco emite som, e os olhos esbugalhados do elefante da cena, emitem algo muito próximo do desespero – que Balthazar nada pode fazer além de assistir (daí a alcunha de “testemunha” do título brasileiro). As mortes e abusos que acontecem com humanos nos filmes de Bresson são sempre em extracampo: quando o padre que dá título a “Diário de um pároco de aldeia” (1951) morre, nele existem olheiras, mas o corpo não se fere; o suicídio de Mouchette (1967) é um jogar do corpo na água, e o corpo desaparece de nossa visão; a pele de Jeanne D’arc jamais entra em contato com o fogo. A vida some do corpo, mas ele jamais se destrói. Os corpos humanos de Bresson são destituídos de carne, pois são matéria de graça. Porém Balthazar é um corpo que sofre: vemos sua cauda pegar fogo quando um moleque perverso quer divertir-se às suas custas; Balthazar leva um tiro no lugar do mesmo moleque, anos depois, agora um fugitivo cujas cargas levava no lombo. Vemos a ferida em seu corpo indefeso, que lentamente se deita e escolhe esperar a morte entre as ovelhas até o último fade out da fita.
Eis aqui que a divisão res cogitans (substância pensante, o homem) e res extensa (substância que não pensa, o animal e/ou o vegetal) entram em choque: pois a substância pensante não esboça expressão facial/corporal – que em última instância, aparenta emoção -, mas o animal sim. Segundo Susan Sontag, nos filmes de Bresson, os protagonistas tendem a ter projetos mais importantes que a própria vida, pois refletem uma “luta contra o peso, contra a gravidade de si mesmo”[2]. Balthazar acaba por incorporar a mais profunda inocência pois é incapaz de ter projeto; como uma eterna criança que passa pela escravidão e que é, portanto, a vítima por excelência da humanidade.
Perco-me em Balthazar pela inversão muito pungente da ideia de que o animal é inferior ao homem – relativizada, senão totalmente rejeitada pelo filme de Bresson. O animal é mais legível que o homem, e agente despertador de uma compaixão dilacerante. Eis a inversão maior, pois o animal tende a ser o que não compreendemos: ele é movido pelo que compreendemos como instinto (assassino ou de sobrevivência) e, portanto, supostamente muito mais instável e imprevisível que nós, regidos pela consciência e pelas normas sociais. O poema de Edgar Allan Poe que aqui uso de epígrafe é potencialmente a mais irônica representação de choque entre as duas formas de funcionamento: um corvo velho pousa no umbral de uma biblioteca (o símbolo do acúmulo do conhecimento) e gorjeia toda vida uma máxima: “Nunca mais”. Numa lógica mais desprovida de sentimento, é tudo que o animal aprendeu a falar. Mas cá está uma criatura da noite a gorjear o mais contundente limite a um homem de suposto grande saber na mais amaldiçoada hora da noite. O eu-lírico pensa por demais (a auto destrutiva exacerbação de pensamento também é presente em “OCoração Delator”) sobre a frase e a projeta em seus fantasmas pessoais – pois não só de lógica é feito o homem – e afunda-se num horizonte sem fim de melancolia. O corvo aqui, enquanto animal, é como Balthazar, representante de um conceito superlativo: se o burro é a inocência em Bresson, o corvo é a sentença do eterno para Poe. A ave mostra exatamente a máxima deslocada de contexto, gatilhando todos os contextos de finitude que atormentam uma subjetividade pensante. O eu-lírico tenta ler a máxima sob a luz de seus tormentos e se afunda cada vez mais neles, num exercício quase masoquista: ele não vai conseguir tirar nada além de “Nunca mais” do pássaro, sendo ela demônio, profeta, ou apenas uma ave.
A intangibilidade da forma animal acaba trazendo ainda alguns outros significados quando tratamos do conceito de “metamorfose”, o humano cuja forma torna-se animal sem perder a essência. Penso em Seth Brundle, protagonista de “A Mosca” (David Cronenberg, 1984). Cientista, tem o DNA fundido com o de uma mosca num acidente de laboratório, e o filme acompanha o processo desta transformação de homem em mosca. Primeiro, ganha força extrema, instintos sexuais exacerbados; parece ter virado um super humano. Então caem suas pele, dentes, cabelo: é a esta forma grotesca que esses poderes pertencem. Mas ele continua a amar sua namorada mulher e, após, por motivos bem próximos da moral humana (impedir o aborto do feto que fecundou já geneticamente modificado na amada), cometer algumas atrocidades e causar um acidente que dilacera seu corpo, ele puxa sobre a cabeça artrópode o cano da espingarda que a amada segura – seu último gesto de consciência é um pedido de eutanásia. Por volta de 2012, viralizou na internet o vídeo de uma cobra se devorando vorazmente numa loja de animais estadunidense[3]. Cientificamente, a explicação para o bizarro evento é relativamente simples, a cobra passava privações e calor em sua gaiola, condição que intensificava os instintos da sede e da fome, e a levou a tomar como presa a primeira coisa que visse se movendo: a própria cauda. É trágico, entretanto involuntário; a humanidade que marca a diferença entre o gesto da cobra e o de Seth fica sendo o desejo de morrer, a vontade do fim.
Essa condição carrega um outro tipo de agonia na mais celebrada obra kafkiana, “A metamorfose”. Gregor Samsa, um belo dia, acorda como um enorme inseto. Não existe motivo para esta mudança, nem a descrição do processo metamórfico que dá nome ao livro. Como em “O Processo”, não precisamos saber por que crime Josef K. está sendo acusado ou se realmente o cometeu: do que precisamos é que ele tenha que passar por tudo que passa sem nunca saber o porquê. Acontecimentos sem razão são o motor narrativo de Franz Kafka, movido a vertigem de sofrer consequências de causas impalpáveis. A consciência de Gregor, portanto, não mudou absolutamente nada: ele ainda pensa em sair da cama e (Deus sabe como) sustentar a família, mas passa – se não me falha a memória – por volta de um quarto (ou quinto) do livro tentando nada mais que sair de sua cama. Apenas para, sem êxito, tentar explicar à família o que sabe – no caso, apenas que, tanto quanto eles, ele ainda tem consciência – e ter o casco quebrado pela bengala do pai. Aqui, ironicamente, a família é quem age de forma instintiva, pelo medo, que fala mais alto que qualquer tentativa de entender se há ou não resquício de Gregor dentro daquela barata gigante. Gregor aqui acorda oficialmente um monstro, e sofrerá as consequências de ser um. Chegamos num ponto em comum entre Gregor e Balthazar: ambos são socialmente marginais por sua forma física. A Balthazar resta a escravidão; a Gregor, o isolamento e a execução. Diferente de Seth, Gregor é inofensivo. Mas, por seu corpo de barata, vira monstro social.
Invertamos a relação: uma forma de homem com instintos monstruosos. “M – O Vampiro de Dusseldörf” (1931), de Fritz Lang, é inspirado pelas atrocidades cometidas por Peter Kürten em fins da década de 1920. O filme nasce de e responde a um contexto de histeria coletiva: o pré-fascismo que buscava um bode expiatório para a crise alemã pós-Primeira Guerra. Dusseldörf entra em estado de alerta e convulsão social quando um assassino de crianças assola a cidade. Idosos e adultos não podem se comunicar mais com crianças desconhecidas sem sofrerem linchamento – o pavor da monstruosidade é projetada no primeiro homem que aparece, já que o monstro tem o rosto de um pária humano: é o lobo em pele de carneiro. A cidade está parada à noite, e até os contrabandistas pararam atividades por conta dos toques de recolher. A força policial tenta agir de um lado; a criminosa/popular, de outro. Em determinado momento, encontram o assassino com a boca na botija: um civil, em articulação com a máfia local, escreve “M” em giz na mão e bate nas costas do criminoso após um esbarrão falso. “M” de Mörder: assassino (ou de “monstro”). O título original do filme é apenas esta letra, a marca de Caim. O pedófilo anda, sem saber, com ela gravada nas costas. Em determinado momento, olha num espelho de vitrine e se depara com ela, entrando em completo desespero. Seu segredo agora é imagem social ostentada sobre a veste: é visivelmente monstro. Após capturarem-no, os criminosos juntam o povo num porão/estacionamento para uma sorte de julgamento extra-institucional, em que o advogado de defesa do réu é um beberrão – a humanização do monstro, esse atentado contra o senso comum, só poderia vir de uma mente alterada. “M” tem uma crise histérica e desabafa sobre seu descontrole. Ele não sabe o que faz, sente uma vontade incontrolável, um impulso que só se desfaz depois que já cometeu o crime – e aí, então, sente a culpa. A cidade decide eliminá-lo: ele não pode se conter. Mas a defesa diz: ele é doente! “Deve ser tratado, não morto”. O povo rechaça o contra argumento e partem famintos para cima do assassino, mas a polícia chega logo antes de executarem sua vontade. No julgamento, as mães enlutadas quebram a quarta parede: “Isto não vai trazer nossas crianças de volta. Alguém precisa tomar melhor conta de nossas crianças! Todos vocês precisam…”. O justiçamento se esquece das vítimas pelas quais quer justiçar. Já não era mais sobre elas, mas a expiação coletiva da frustração de sistema falido praticando um ódio muito pontual. No filme, é justificado pela calamidade pública; na vida real, uns anos depois, pela eugenia institucionalizada. Quando o instinto assassino se entranha por todo um povo amargo de fracasso, ele será liberado, de forma ou de outra. O bicho é o pedófilo, mas também é todo mundo.
A sociedade contra o bicho, a sociedade composta por bichos. E o animal anti-social? Me refiro aqui não ao animal contra a vida em sociedade, mas o animal contra a instituição sociedade. A hipocrisia do senso comum, das convenções sociais, da bolsa de valores, da pequena burguesia. O sistema racional, do tal ser pensante evoluído, como os poemas góticos e livros expressionistas e filósofos sessentistas já perceberiam, são exatamente como a cobra que morde a própria cauda. O sucesso do projeto da razão envolve sua própria crise, a desconstrução e a crítica da ordem mesma que a constitui. No cinema, esse extremo foi levado à excelência muito provavelmente pelo cinema de invenção brasileiro. O caso de “Mangue-Bangue” (1971), de Neville D’Almeida, chamado não à toa de filme-limite, seu motor é a recusa de quaisquer convenções de representação e narrativização – inclusive a linearidade de um diálogo; a faixa sonora é unicamente instrumental. Do mesmo jeito, rejeita o normal social comum: as pessoas filmadas fumam maconha, picam a veia, enchem a boca de maçã pra falar cuspindo e tiram a roupa sem muitas intenções. Se existe algum sentido nas cenas, é pelo choque, pela ironia do que escolhe rejeitar. A personagem de Paulo Villaça é um investidor da bolsa que começa, no meio do banco, a passar mal e vomitar sem parar; no meio do mal-estar, se chafurda na lama da rua. De vômito e de barro mancha sua roupa social clara, encharca o rosto e o cabelo de sujeira. Ali regurgita o que do social já esteve em seu sistema. Nas últimas aparições em filme, está nu, mexendo no pênis flácido e no cu, cheirando os dedos depois de tocá-los. Explora-se como um bicho, em busca de um autoconhecimento primitivo. O filme conclui com ele cagando no mato, se abaixando para cheirar a bosta, e depois se jogando no rio para se lavar e brincar na água antes de sumir mato adentro.
O animal marginal, enfim, como final feliz.
[1] A reflexão é inspirada, porém não norteada, pelo texto “Dos lecciones sobre el animal y el hombre”, de Gilbert Simondon, assim como por discussões com o cineasta, colega e amigo Felipe Leibold.
[2] SONTAG, Susan. Contra a interpretação de outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 242.
O conceito de “liberdade” que Soy Libre (Laure Portier, 2021) carrega como empréstimo no título do filme não diz respeito a uma complexidade social acadêmica. Daí um primeiro engano, já que Soy Libre não é sobre essa ideia de liberdade como significado, mas como experiência. Laure Portier filmou seu irmão Arnaud desde o início da vida adulta até os dias de hoje, a partir do momento em que notou que alguma espécie de turning point se aproximava na vida do irmão. Quando conhecemos Arnaud, percebemos também que ele não é um sujeito afeito à câmera, não por desacreditar naquilo que as imagens da irmã podem significar, mas sobretudo por não se querer preso a um registro, a uma tipificação barata. “Isso não significa nada”, diz Arnaud em determinado momento, “Olhe o que está ao seu redor”, completa o garoto.
Soy Libre é um jogo de fricções que se encontra entre esses dois extremos, um que se acorrenta à vida real, da natureza, dos músculos, da pixação, e outro que somente se manifesta através da ideia do vídeo, do pensamento cinematográfico. Os motivos pelos quais Laure decide filmar o irmão nunca são ditos exatamente, apesar desse questionamento surgir em tela com certa frequência. Num sentido mais amplo, nem mesmo a cineasta parece dar devida importância a tal provocação, visto que seu objeto principal nunca foi outro senão a captura do tal “espírito livre” do irmão, dessa liberdade que não necessariamente diz respeito a um conceito metafórico mas sobretudo a uma guerra constante que o personagem trava contra o mundo. “Encarar os problemas de frente”, diz Arnaud, é para isso que trabalha.
Entre idas e vindas, vemos esse conflito do personagem para com o mundo se esticar cada vez mais. Arnaud é um sujeito raivoso, inadaptável, um vagante. Sai da cadeia da França em direção à Espanha. Dorme na rua, come com as mãos, furta o supermercado. À noite, sozinho, dormindo na rua, quando tenta atravessar a fronteira, Arnaud conta que não se sente feliz nem triste, sente-se normal. Isto é, para o personagem, o mundo da contracultura representa o banal, esse não-lugar é aquilo que considera sua casa. O grande segredo de Soy Libre está justamente nesse ponto onde Laure Portier e o montador Xavier Sirven entendem a importância da montagem para justificar esse embate de Arnaud contra o modus operandi da vida real. Ou seja, importa menos o que Nano (como é carinhosamente apelidade pela irmã) sente – aquilo que diz frente à câmera, sempre encabulado – do que cada um dos pequenos gestos que o ressignificam. Da raiva descomunal que carrega no corpo até os exercícios de bíceps que faz para acoplar tantos sentimentos em um corpo insatisfeito.
Soy Libre é um exercício de vida, de prender e esticar, de deixar-se levar e prender-se nesse personagem que, no fim das contas, nunca quer de fato ser registrado. Aos poucos, o filme de Portier é capaz de dizer muito sobre o espaço que rodeia estes personagens, sobre as políticas públicas que regeram a vida destes sujeitos, e mais que tudo, sobre como o passado maternal afeta suas vidas até hoje. Sobra, dessa experiência menos teórica e bem mais filantrópica, a companhia deste personagem abstrato, arredio, descontrolado. Até o momento em que Arnaud encontra sua avó, acamada, pela hora da morte. É aí que tudo em Soy Libre descamba de uma experiência marginal para descortinar por fim o segredo de seu personagem. Ante à virilidade de um menino que cresceu sem pais e atrás das grades, há ainda uma vida que se quer ser vivida, que foge de lugar em lugar justamente para tentar lograr um novo renascer a cada dia. Um presente que o fim do filme nos dá de maneira solene, não mais na imagem de Arnaud, mas na voz tranquila do brutamontes que agora descobre que vai ser pai.
I) Alan deve ser o melhor filme brasileiro que assisto desde Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019). Herdeiro da mesma linhagem de impacto de obras como A Cidade É Uma Só? (Adirley Queirós, 2011), A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchôa, 2014) e Na Missão, com Kadu (Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica, 2016). É um cinema incontornável, impossível de sair ileso. Já visto, jamais visto.
II) Alan é um filme de ação direta, que recusa o extracampo. Tudo que existe está disposto para o jogo da câmera, não há atalhos e nem recusas. É um pacto sem retorno, quase cristalino. Resta somente um caminho: avançar.
III) Passam-se doze anos entre a primeira e a última vez em que vemos a imagem de Alan do Rap, protagonista do longa-metragem. Entre idas e vindas, o personagem reconhece a glória e a destruição, o céu e o inferno, e através dele somos capazes de abstrair sobretudo uma sensação de efervescência, de um corpo periférico esticado ao limite. Alan do Rap é uma espécie de personagem oásis, capaz de concentrar em si uma sabedoria simbólica, proveniente das ruas, da vivência do real, cujas falas revelam mais sobre o país em que vive e o contexto em que se insere do que boa parte do material acadêmico seria capaz de tratar.
IV) Acima de tudo, Alan do Rap é um orador. Da mesma estirpe de Lula, de Mano Brown, de Galo de Luta. É um daqueles sujeitos que, quando fala, sai apenas a verdade. A linguagem de Alan não faz curvas. Bem ou mal, ela diz respeito àquilo que vive na pele – e sobretudo, é importante que se diga, ela tem como principal aqueles que são capazes de entender olho-no-olho o que se é dito. Do início ao fim, Alan é sincero para a câmera. Do momento em que pede para encerrar a gravação por conta das dores no pé até o derradeiro final, com os tiros para o céu, o personagem jamais titubeia. Aliás, é por conta da sinceridade de Alan do Rap frente ao seu próprio registro que torna-se possível ao espectador conjugar um pacto com o protagonista. Alan é uma figura que abole a traição, trazendo-nos de volta para o real.
V) Quando falei em ação direta, era pra dizer respeito justamente a energia que o personagem emprega ao filme. No início dos anos 2000, Alan do Rap ficou conhecido por invadir as apresentações de artistas famosos e tomar o microfone para si. Suas apresentações eram curtas, geralmente encabeçadas por um hit popular criado pelo artista. “Favela, favela, favela, só quem vem de lá, sabe o que é sofrer”. Em poucos minutos, Alan do Rap subvertia o ambiente, os batuques, os sons, e tornava-se então o único frontman. Era uma espécie de herói do povo (não à toa que me parece justo compará-lo com os outros oradores acima citados), de corpo que convocava nos gritos de “Eu sou 157, quem fala é Alan do Rap” toda energia de uma massa, como se representasse cada um dos presentes na multidão. Ou seja, catarse plena. Uma explosão que tinha como fundamentação quase uma espécie de ritual messiânico: Alan do Rap saia das plateias, da galera, erguido pelos companheiros, até ser elevado ao palco, onde era capaz de falar por todos eles. Alan era uma espécie de escolhido. De número um.
VI) Há um gesto muito raro proporcionado por Alan do Rap no cinema de Diego e Daniel Lisboa que é o do encontro do real – esse real cinematográfico, que de tão bruto é capaz de capturar um pedaço da vida. Existem os cineastas que procuram o real, que tentam fabricá-lo; e existem aqueles poucos que são capazes de encontrá-lo. Lembro de alguns filmes como Baronesa (Juliana Antunes, 2017) ou Mascarados (Marcela e Henrique Borela, 2020), filmes que, ao meu ver, bem ou mal, tentam provocar esse encontro com o real, produzir esse achado entre sujeito e câmera capazes produzir faíscas transformadas em cinema. E há os filmes, como Alan, que não procuram o real, mas sim encontram-no, quase que despretensiosamente, de tão verdadeiramente arraigados que estão às relações humanas previamente estabelecidas entre quem filma e quem é filmado. Não existe modo certo ou errado de se produzir esses efeitos, mas é sempre justo salientar quando eles parecem se dar de modo natural, isto é, de uma forma tão direta – e, muitas vezes, bruta – que torna-se inviável voltar atrás.
VII) Existe outro gesto, ainda, que reside em Alan e que dá conta de fortalecer esse pacto com a estrutura da vida, que é o fato de Alan do Rap ser um personagem de comportamentos diversos, de altos e baixos constantes. O sujeito que, no início, ficara famoso pelas performances, que inundava a tela com seu conhecimento do mundo, é o mesmo que vem a ser cobrado pelo seu ídolo máximo, Mano Brown, quando tenta enviar a este uma mensagem direto da cadeia. Daí surge uma espécie de discussão semântica que Alan (o filme) captura muito bem, quando o líder do Racionais MC’s escolhe não mandar recados a Alan do Rap pois desaprova sua entrada na criminalidade. Entre aquilo que canta e aquilo que discursa, Brown apresenta uma espécie de discurso sólido que a vulnerabilidade de Alan do Rap talvez fosse incapaz de absorver. Se o líder dos Racionais segue sendo uma espécie de corpo fechado, de código de conduta, Alan do Rap é justamente o contrário, uma espécie de bússola moral, de bem e mal, de céu e inferno, força e fraqueza. Daí a sua magia, daí esse encanto que, de tão puro, sucumbe ao horror.
VII) Chegamos à morte, enfim. Que não à toa é uma espécie de fantasmagoria que se reproduz nos filmes que citei anteriormente (Vizinhança…, Kadu…) – e, aos quais, poderia facilmente acrescentar obras como As Mulheres Pensam (Talita Araújo, 2015), Enquadro (Lincoln Péricles, 2016) e O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr). A verdade é que não há magia alguma na morte. Há sobretudo a certeza do fim, a certeza de que entre todas essas imagens, entre toda a dilatação temporal que se estabelece na vivência desses sujeitos, é chegado um momento em que não é possível para o cinema dar conta desse real. A morte é a consumação de que o real cinematográfico é inatingível, é parco, falho. A morte é a ruína, e o cinema é apenas os seus destroços. No fim das contas, Alan é como o próprio Alan do Rap: é um tiro pro alto, uma bomba, um retrato veloz de um destino incontornável. Uma baliza que estabelece de forma muito justa as agruras de um estado incapaz de sustentar suas próprias mentes, seus próprios corpos e seu próprio sistema. O personagem é o começo, o filme é seu fim. Tela preta. Viva, Alan do Rap.
Acredito no risco. É sempre melhor passear com filmes do que tentar levá-los a algum lugar previamente calculado, independente das consequências. Cinema é coisa que se mexe, arte do deixar-se ir. E, portanto, seria um desserviço ativar certos filmes antes mesmo que eles nos ativem. Acredito no movimento – logo, acredito no cinema. É daí que nasce o título deste texto: passeio com os curtas. Não sobre, não diante, não frente a eles. Com. Em seus riscos e comodidades. Cavalgar pelo labirinto que os filmes abrem.
Outro adendo que considero importante: por que os curtas? Bom, a mim parecem sempre a parte mais fundamental de qualquer festival de cinema. É o espaço mais aberto para os sonhos, ruídos e experimentos. Justamente por ser um formato em que as amarras narrativas muitas vezes não se impõem, ou seja, uma modalidade quase incapaz de oferecer o esgotamento (narrativo, teórico, estético). Enxuga-se o tempo e ressalta-se a forma. Cinema total. Ou algo próximo a isso.
Pois bem, aos filmes.
A intempérie (Daniel Paz Mireles, 2022)
Trata-se sobretudo de uma obra cujo apelo é total. Conhecemos Bélen, personagem principal, logo de cara, e a sua voz é que perseguiremos durante toda a duração. A intempérie funciona ora como metonímia à condição de vida da personagem (com filha pequena, preste a ser despejada de casa) ora como fundamentação visual aquilo que a personagem transmite. A estrutura do filme é similar a de um diário de bordo – enquanto caminha pelos corredores escuros, com velas na mão, praticando seus próprios rituais, Bélen narra o desespero através da voz, no fora de campo.
Mireles pratica um esforço considerável para tentar ajustar esses tempos e espaços deslocados, operando a voz da personagem como um guia desconexo de sensações, dúvidas e sentimentos através dos movimentos de seu corpo. Ao fim do passeio, o que resta é a sensação de que este é muito mais um filme tese do que um filme síntese. Nem a inércia, nem a revolução. Uma revoada sombria incapaz de conjugar qualquer assertividade acerca do delírio que se propõe.
De todos os filmes da sessão Outros Olhares, este talvez seja o mais difícil de se encarar com certa frieza. Explico. É sempre complexo lidar com obras cuja força provém de um campo exterior incontornável. Nesse caso, falamos dos incêndios ocorridos na Cinemateca Brasileira (entre 1957 e 2021, já foram cinco). O movimento de Barrenha me parece, aqui, um bocado comum, que é o de lidar com a memória daquilo que se vai (e que tem-se ido cada dia mais). É uma tragédia que se estabelece antes de tudo no campo histórico, e que só vai tornar-se propriedade estética à medida em que o cineasta emula fotogramas velhos que se esfacelam (queimam, melhor dizer) pouco a pouco.
Os dados informativos sobre o evento de cada um dos incêndios sofridos pelo maior acervo cinematográfico brasileiro, exibidos ao fim da projeção, parecem reiterar esse desejo cronográfico que antecede a aventura formal. Há um momento ímpar no filme, em que surge em tela uma cartela com a seguinte frase: “infelizmente este negativo se perdeu”. A partir dessa quebra, o cineasta fabrica uma espécie de montagem de choque, em que as palavras (sobretudo “infelizmente” e “perdeu”) pululam na tela para que, justapostas, sejam capazes de impulsionar seu significado primeiro: cinema = memória. Coisa que a própria obra, a partir daí, reitera, quando o que entra em cena deixa de ser uma de metalinguagem da destruição (os fotogramas a incendiarem) para tornar-se uma metalinguagem da construção (um documentário, no que parece uma espécie de VHS, sobre o papel formador da cinemateca brasileira). São três tomos distintos, em que cada um deles parece construir um movimento curioso, o de iniciar no caos (nas ruínas do acervo, da forma cinematográfica) até que se encontre uma espécie de redenção.
Ainda que solene, Cinzas digitais parece carecer de alguma amarra formal suficientemente aguçada para dar cabo a tantas tensões e faíscas que as próprias imagens e películas em questão carregam. Isto é, exige-se algum movimento suficientemente brusco (entre os tantos choques trabalhados) para que o filme em si possa suceder-se a pleno, sem depender de qualquer caráter cronológico anterior. Mais do que pavimentar o tabuleiro da História, é preciso saber bagunçá-lo. Cinzas digitais mostra-se um exercício interessante, mesmo que não consigo deixar de pensar no que um cineasta como Carlos Adriano, por exemplo, faria com essa espécie de material.
Garotos Ingleses (Marcus Curvelo, 2022)
Era o filme que mais queria ver nesta edição do Olhar de Cinema. De alguns anos para cá, Marcus Curvelo tornou-se uma das vozes mais distintas do cinema brasileiro. Seus trabalhos parecem fincar uma estaca definitiva naquilo que chamamos de cinema caseiro – um homem, uma câmera, seus amigos e o espaço infindável da criatividade que esse processo mínimo pode oferecer. De Não Estou Aqui (2012) a Qual É A Grandeza? (2022), os self characters de Curvelo foram se transformando, numa elipse de desolação, desilusão e destruição que toma como base as agruras dos jovens vulneráveis do Brasil. Curvelo é um cineasta da estirpe de Keaton e Chaplin. Seu Joder (personagem autobiográfico) toma as bases do fracasso de um verdadeiro Carlitos. Curvelo é um péssimo ator, e isso o transforma ligeiramente no melhor ator possível para encarnar seus personagens, porque é diante deste contexto que a figura esguia do rapaz, meio encabulada frente à câmera, dá vida a uma espécie de pudor do homem comum. Do brasileiro médio, fodido. Vida real como todos nós.
Garotos Ingleses dá continuidade a uma fase que julgo nova em seu cinema, que constantemente vem acompanhada da figura de seu colaborador, Murilo Sampaio. É uma espécie de ressignificação da desgraça que encontra mais que nunca o caminho derradeiro da melancolia. A Destruição do Planeta Live (2021) e Qual É A Grandeza? (2022) são as peças mais desafiadoras de sua filmografia, pois colocam em cheque o pessimismo para atingir uma desilusão mais simbólica, um fim de mundo concreto, cujo formalismo caseiro é capaz de se reinventar ainda mais. Garotos Ingleses faz parte dessa mesma lógica de cinema, que acompanha os últimos filmes do cineasta. No entanto, é como se o discurso do riso pelo choro (tão caro a obra de Curvelo) encontrasse aqui uma resolução mais morosa, em que nem sempre o gesto formal é capaz de dar cabo a inquietações tão curiosas propostas pela obra.
Na trama, os dois rapazes (Sampaio e Curvelo) vão até o cemitério dos Ingleses, na Bahia, tentando descobrir se ambos possuem um “lugar de direito” para morrer entre os “nobres” ancestrais daquela terra. Como sempre, alguns gestos poéticos são levados a cabo (o mais engraçado deles, me parece, ocorre no início do filme, quando cada um dos personagens descreve sua porcentagem de ancestralidade, viajando em um barco à procura do tal local). É nesse sentido que Garotos Ingleses soa um tanto morno dentro de mim, pois ainda que se trate de uma obra acima da média dentro do que o cinema brasileiro produz hoje, não consegue dar plenamente conta de seguir atualizando essa relação fundamental do cinema de Curvelo, que é a sobreposição da invenção formal arraigada a um discurso ácido, doloroso de tão real. Bom filme, ainda que menos catártico que os anteriores.
Mais e Mais Distante (Polen Ly, 2021)
É a peça mais legível da sessão de curtas. Exibido na competição da Berlinale Shorts, o filme de Polen Ly compõem todos os códigos possíveis do cinema de arte contemporâneo. Da busca da ancestralidade aos planos estáticos que perseguem os personagens. Há pouco que se possa dizer sobre Mais e Mais Distante. Um casal de irmãos busca fugir de sua aldeia para encontrar a cidade grande, as possibilidades de trabalho e uma vida mais justa. Antes de partir, é preciso dar adeus aos mortos (seus pais), e visitar mais uma vez o local em que foram enterrados. À medida que o tempo passa, os protagonistas do filme se afastam, se contradizem, se intercalam dentro de um vazio interior composto por crenças particulares. Não há dúvida, desvio ou aventura. Não há o tal passeio que citei anteriormente neste texto. Mais e mais distante segue à risca os códigos de composição cinematográfica contemporâneos, e desemboca no mesmo gesto inerte que seus pares.
Sonata Plástica (Nelson Yeo, 2022)
É o melhor filme da sessão. E um dos melhores filmes do festival. Meio esmaecido frente a obras mais comentadas, Sonata Plástica é um elogio à inventividade. Uma peça de tapeçaria muito bem modulada entre as intrigas do distanciamento social e o reflexo do afastamento familiar. Acompanhamos o dia a dia de três pessoas, uma garota que encontra-se com a namorada em um terraço aberto, um diretor de cinema que conduz um comercial anti-tabagismo e uma mulher que sai para buscar o jantar da família desacostumada a vestir seu salto alto. Entre desvios e dúvidas, Nelson Yeo propõe um cinema da desconexão, em que cada um dos personagens atinge o pico máximo da desilusão, sublimados a uma vida de delírio longe das amarras de casa. Antes do gesto formal agudo, bem demarcado, Yeo propõe-se a pensar as relações pandêmicas através de um remix de corpos. Há dança, há paixão, há desejo e há o vício. No fim, cada um deles se encontra para comungar ao término do dia, revelando ao cabo a máxima de que é nas masmorras do lar que se escondem todos os anseios e segredos.
O passeio acabou, resta agora lidar com o apagar das luzes.
Quero começar esse texto com uma provocação. Afinal, quanto vale um plano? Qual é o limite que se estabelece na arte audiovisual para que um plano possua um valor particular? Isto é, até onde pode ir um plano, o quanto ele é capaz de sustentar tudo aquilo que vem antes ou depois dele? Existem exceções e existem regras, e não caberia aqui citá-las, em meio a um curtíssimo texto de cobertura. Mas é possível lembrar de planos memoráveis na história do cinema (Murnau, Deren, Varda, Ford, Hawks, Ferrara, Sganzerla etc), planos que justificam a existência de certos filmes por, antes de tudo, entenderem que o cinema é uma espécie de suspensão, de susto, de suspiro. Magia sem fórmula, experiência acima de qualquer circunstância. Onde quer que estivessem os planos dos cineastas supracitados, em qualquer obra que fosse, certificavam-se de que eles compunham uma sensação, que, por mais carregada de contextos que fosse, sustentava-se antes de mais nada na tela do cinema, para depois sucumbir ao mundo.
Pergunto quanto vale um plano porque Octopus (Karim Kassen, 2021) me fez debater isso durante bastante tempo, sobretudo por ser um filme que se passa nas ruas destruídas de Beirute, depois da explosão portuária ocorrida em 2020. Durante mais de hora, vêmos retratos da cidade, um deslocamento espacial que busca atingir a todas as camadas: conhecemos a dor dos mais velhos e das crianças dos mais humildes e dos mais abastados, dos operários e dos donos de estabelecimentos. Mediante toda essa geografia da dor produzida por Karim Kassen, não há sequer um plano que não procure um gesto milimétrico de beleza, mesmo frente a tanta destruição. As imagens de Octopus remetem a Hopper, a Monet, à luz do sol do Barroco. Não há nada no filme que não esteja diante de uma perspectiva de abismo, de autoconsciência cristalina do que se encena.
Exatamente por isso, volto a questionar: quanto vale um plano? Quanto vale um plano de Octopus nos dias de hoje? Algumas opiniões sobre o filme dão conta de que há no gesto de Kassen uma espécie de sensibilidade, devido à forma silenciosa que enquadra os espaços, com que se distancia dos sujeitos, com que faz todos parecerem parte de uma mesma destruição. A questão é que, me parece, nenhum dos planos de Octopus é realmente capaz de lidar com a imensidão deste desastre, pois qualquer que seja sua dimensão, ela encontrar-se-á sempre no campo do irrepresentável, do inconcebível. Por isso que não há beleza no filme de Kassen que não provenha de uma espécie de ilusão: não há aproximação com nenhum dos sujeitos, não há nomes ou rostos permanentes, sequer existem palavras. Sobram imagens lúdicas, densamente passageiras, oferecidas por um cineasta que prefere uma odisséia estridente de barulhos a um gesto que minimamente se oferece a estender a mão.
Não imagino que haja uma ou outra maneira correta de se fazer cinema, tampouco de representar o irrepresentável. No entanto, parece inconcebível que Octopus seja um filme de dimensão poética que sequer aproxima-se dos verdadeiros escombros. Pois destrói a realidade da tragédia ao reduzi-la a uma beleza obsessiva, quase cristalina, incapaz de conceder ao plano aquilo que lhe é de direito – e que, não necessariamente, precisa vir harmonioso. Octopus, de tão interessado na beleza da destruição, postula-se a ser indiferente. Pois qualquer grande cineasta compreende que, da mesma forma que o riso nasce do choro, a beleza também nasce da dor. Para fazer cinema é preciso sujar as mãos.
Rewind & Play (Alain Gomis, 2022) é um filme cuja estrutura se materializa à medida em que se desmonta. Uma peça sem avanço: primeiro acontece, para depois desacontecer. Trata-se de um negativo encontrado por Alain Gomis e sua equipe, datado de 1969, onde estava armazenada a gravação de um programa de televisão francesa com o lendário jazzista Thelonious Monk. Rewind & Play, no entanto, não diz respeito à reprodução desta fita, mas sim a um processo contrário, de esfacelar seu conteúdo até que se encontre uma nova forma. Antes de mais nada, este é um filme que se estabelece a partir não apenas do confronto, mas sobretudo da montagem que acarreta no confronto.
Para que se entenda: acompanhado por Nellie Smith, sua fiel esposa, Thelonious Monk chegava à França no final dos anos 1960 para uma tour pelo país. Antes de começar suas apresentações, o músico foi convidado a dar uma entrevista para a televisão francesa, em que pouco a pouco suas respostas eram desvirtuadas pelo apresentador. Durante mais ou menos uma hora, Monk travava uma briga crassa com o jornalista do programa, na tentativa de fugir de toda e qualquer indexação. Ele era perguntado em inglês, respondia com seu sotaque característico, meio afundado dentro de si, e então o entrevistador traduzia as respostas para o francês de forma dissimulada, como quem persegue um script ideal para o público. É como se houvesse duas narrativas em jogo: uma primeira, “oficial”, imposta pelo formato televisivo, de que Monk não fora reconhecido em seus primeiros concertos, tendo passado mais de uma década no limbo do jazz. E uma segunda, verdadeira, que surge do próprio Monk, cujos relatos históricos dão conta de confirmar, de que o pianista fora sumariamente celebrado desde que pisou em solo francês, saindo da Europa estampando a capa das revistas e sem nenhum cachê no bolso.
A partir daí, o que Rewind & Play oferece é um filme de desvios, que em seus melhores momentos encontra outras peças de representação similares a si, como Retrato de Jason (Shirley Clark, 1967) e Meeting the Man: James Baldwin in Paris (Terence Dixon, 1970). Isto é, trata-se de um filme que é incapaz de avançar sem que para isso precise retroceder algumas casas. A cada pergunta feita pelo jornalista, revemos o tape outras três ou quatro vezes, pois aquilo que Monk traz como resposta é sempre desconcertante, seja pelo desinteresse ou pela insatisfação do que é retratado. Nesse campo de batalha, a montagem de Gomis toma forma, articulando a fita até que tudo aquilo que se encontra na imagem transforma-se em filme de terror: o jornalista, em suas vestes claras, repetindo incessantemente os questionamentos, corrigindo sua imagem, seu vocabulário, suas intenções; Monk, com seu chapéu característico, fumando e bebendo sem parar, suando a fio, rindo de nervoso de cada uma das tomadas que eram refeitas.
São casos como o de Rewind & Play – diferentemente dos filmes de Dixon e Clark – em que se é difícil indexar ao cineasta por detrás do filme a responsabilidade da captura, uma vez que nenhuma das tomadas do filme foram gravadas por Gomis. No entanto, parece inegável que o franco-senegalês tenha encontrado uma estrutura-mãe para a trama do filme. Ela baseia-se na ideia de que toda e qualquer formatação televisiva é incapaz de dar conta de Monk, ao contraponto de que é através dessa mesma prisão imagética que seu rival de cena, o apresentador, irá tentar compartimentá-lo.
Eis que resta então uma única saída, que atravessa todas as formatações, e que se revela desde o início, quando Thelonious chega à França sem querer conversar com ninguém que não seja sua própria companheira. Resta apenas que Thelonious Monk encarne o próprio Thelonious Monk, que Thelonious Monk performe o jazz de Thelonious Monk. É então que aos pingos, sob a fumaça dos cigarros, os movimentos bruscos, ágeis e performáticos fazem com que a imagem fuja do confronto e desemboque propriamente na música. Não interessam mais as imagens de guerra do artista, o piano que ficava na cozinha de seu apartamento – pois não cabia em nenhum dos outros quartos, pequenos que eram -, seu reconhecimento distorcido frente ao solo europeu. Restava então apenas e tão somente o próprio Monk, despido de desculpas ou de formatações quaisquer. A música de Thelonious Monk vencia a prisão da imagem. A partir daí, não haveria mais retorno.
A primeira imagem de Poeta (Darezhan Omirbayev, 2022) já é capaz de encontrar uma metonímia plausível para aquilo que busca o filme: sentado em uma pequena mesa, na cozinha de sua casa, Didar escreve os versos iniciais do dia, meditando com a caneta na mão frente ao sol que vagarosamente conquista todas as paredes da morada. Ao seu lado, milimetricamente pendurada, está a foto de um homem a brigar com a natureza. A imagem é indefinida, mas seu conceito concerne um significado mais amplo. Tal qual Didar, o poeta, o sujeito da foto também parece afrontar o mundo, determinado a fazer permanecer na terra as poucas árvores que estão prestes a alçar vôo.
Antes de mais nada, é preciso que se entenda dois procedimentos recorrentes na estilística de Omirbayev, cineasta cazaque ainda pouco conhecido no Brasil. Um primeiro diz respeito a uma herança clara e declarada do realizador para com o cinema de Robert Bresson. Mais que isso, trata-se de uma tentativa de emular em seus atores uma espécie de modelo escultural, cujos movimentos são comprimidos única e exclusivamente a uma naturalidade mínima, quase metódica, privilegiando uma encenação objetiva frente à câmera quase sempre fixa. O outro procedimento fundamental no cinema de Omirbayev – e que, nesse caso, trata-se muito menos de um procedimento em si e muito mais de um conceito mestre que guia suas obras – é um rigor formal absoluto, uma consciência de que muito antes do “o que” contar vem o “como” contar.
É nesse sentido que Poeta, por mais particular que seja em sua temática, não é um filme tão distinto dos outros já feitos por seu realizador. De forma ou outra, Omirbayev sempre foi um cineasta que escolheu pôr em cheque os dilemas da criação, aplicando aos personagens mais novos uma consciência basilar, que antes de mais nada visualiza na arte o ponto final de suas trajetórias. Vem daí os dilemas que atravessam o personagem de Didar em Poeta: eis um escritor bem-sucedido, rodeado por pilhas de livros em casa, mas que pouco a pouco vê o mundo moderno tomar conta de sua erudição aparente. A mãe do protagonista deixa sua casa após ver a neta deixar-se levar pelo videogame, reencontra seu ex-colega da faculdade (segundo ele, o melhor da classe de literatura) e descobre que agora o sujeito toca um café no centro da cidade, fazendo da poesia que um dia regeu sua vida um mero adereço estampado nas paredes do estabelecimento.
Em dado momento, o filme de Omirbayev materializa esse conflito de Didar de forma clara: o escritor recebe a oferta de escrever a biografia dos antepassados de um construtor milionário. Em troca, receberia uma quantia inestimável de dinheiro, capaz de fazer com que Didar pudesse trocar os pares surrados de sapatos por modelos novos, além de poder realizar seu desejo consumista de enfim largar o flaneurie das ruas pela segurança dos carros conversíveis. E é justamente nesse momento que Poeta encontra sua maior força, e o protagonista enfim restabelece sua fé no gesto literário através de mínimas consequências da trama. Omirbayev conta que este filme surgiu como uma anedota, inspirada em um relato de Herman Hesse, lendário escritor germânico, de quando o mesmo fora até o interior da Alemanha para fazer uma leitura destinada à população da cidade e, para sua surpresa, ninguém apareceu para prestigiá-lo. O mesmo se dá com Didar, quando, no centro da trama de Poeta, ele viaja ao interior do Cazaquistão e encontra apenas uma universitária russa, aguardando sua presença. É, no entanto, através desse pequeno gesto narrativo, que Omirbayev alcança o ponto final de seu dilema. Da mesma forma que o sujeito da foto que abre o filme, a menina que estava lá para ouvir Didar possui a força de estancar o mundo. É como se, ali, por um pequeno momento, o homem da foto estivesse vencendo a natureza, como se a poesia estivesse vencendo a tecnologia, como se os poetas estampados na parede do café do amigo de Didar não fossem meros adereços, e, sim, uma memória viva, palpável, madura.
Não há muito o que se possa dizer de Poeta que não passe ao largo dessas questões conceituais, mas sobretudo é importante que se compreenda que a forma mínima e direta com que Darezhan Omirbayev é capaz de encarar o mundo através de lentos e pequenos planos, dão conta de uma estilística bastante particular. Não há nada em Poeta que não seja cristalino. Da narrativa central até a história que cruza o longa, sobre o túmulo do grande poeta cazaque Markhembet. Tudo está ali pois é assim que se pretende. E, conforme a luz que conquista as paredes da casa, o homem da foto que conquista o mundo, a universitária solitária que conquista o resiliência de Didar, Darezhan Omirbayev nos conquista pouco a pouco com seu cinema, até onde ele possa sobreviver.