Regra 34 (Julia Murat, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

Falar de sexo envolve tantas vezes falar desse lugar nebuloso que é o desejo de ser, ao mesmo tempo, Sujeito (o que produz os significados, o que deseja e que fode) e Objeto (sobre o qual os significados são projetados, o que é desejado e fodido). Se tudo dá certo, essas posições vão se intercambiando numa transa ou romance. Desejamos, sim, a libertação do corpo e da mente, mas também a prisão da idealização alheia. É uma contradição da qual o capitalismo tardio adora se aproveitar, projetando sobre corpos e pulsões a ilusão – muito bem sustentada pela indústria de massa – de satisfação pelo acúmulo de propriedades e amantes. E nos oferece uma solução que lhe é muito oportuna: quanto mais eu (me) vendo, mais eu consigo obter. É uma dinâmica de consumo (atenção à polissemia da palavra: “aquisição”, “gasto”, mas também “destruição”, “desaparecimento”) recíproco de corpos; quantidade sobre qualidade, status sobre intimidade, e por aí vai. O novo Regra 34, de Julia Murat, apesar de atravessado por esse embate, parece se interessar muito pouco por suas nuances.

Simone (Sol Miranda), nossa protagonista, é uma jovem estudante negra de Direito que acabou de passar no concurso de defensoria pública com o suporte financeiro de seu trabalho noturno como camgirl. Ela gosta do trabalho sexual – ponto que não devemos nunca ignorar -, e, após contato com um vídeo em específico, passa a incorporar a aplicação de dor e sofrimento à sua prática sexual. Se a premissa por si só já é forte, é porque trata do cabeludo cruzamento entre muitas coisas: sexo, política, privado, aparato público, significados históricos do corpo, a autoimagem pornográfica, performance, os extremos da carne, entre outras coisas ainda mais. A separação em tópicos me salvará de uma síncope:

  • Como posto acima, Simone gosta do trabalho de camgirl. É importante, assim, saber separar o gosto pela performance sexual e o gosto pelo sexo. Obviamente, o estilo de seu trabalho não é o mesmo do da indústria pornográfica tradicional, uma vez que a autonomia envolvida reduz – ou anula – a chance de abuso hierárquico. Não há a chance de um diretor/produtor/ator pressioná-la ou obrigá-la a submeter-se a cenas violentas; no máximo, há a poda da plataforma. Tratar, entretanto, o gosto pela atividade no Chaturbate em equidade ao gosto por fazer sexo é como dizer que o gosto por atuar é o mesmo gosto por viver. O elemento definitivo entre os dois é esse distanciamento ambíguo que abraça algum artifício no objetivo de capturar o olho do outro e que, muitas vezes, cria um olhar externo de si enquanto se vive. Na performance, um corpo torna-se Objeto para que seja Sujeito uma dança, um canto, uma personagem, um texto (no caso da pornografia de Simone, o fetiche alheio). No início, acreditei ser um ar performático geral algo abordado pelo filme. Os diálogos não muito críveis, moldados numa rigidez que contamina a direção de atores, pareciam tratar esteticamente do peso do artificial projetado também sobre a rotina, do âmbito privado infectado pelas falas comuns roteirizadas, pelos vícios comportamentais (a citação por Lucia de uma frase que refere falsamente a Frida Kahlo; quando Lucia e Coyote dançam sozinhos, em planos individuais, antes de se beijarem e atraírem Simone para um ménage: corpos solitários e ensimesmados que “se apresentam” para se encontrar). Mas, à medida que avança o filme, percebemos recair o foco sobre questões de outra chave, e essas ambiguidades que pareciam estar sendo propostas são abandonadas.
  • O corpo da personagem principal é atravessado pelo antagonismo entre o peso da imaculável/descarnada burocracia legal (expressada, às vezes, pelo posicionamento das pessoas no extremo inferior dos enquadramentos, afogadas pela parede) e a desnuda, penetrável, mutilável pele da vida sexual[1]. O filme aproveita o choque entre esses dois polos pelos cortes bruscos entre as sequências em sala de aula/defensoria e as da intimidade em espaço privado. Mas a complexidade que o cruzamento dessas diferentes existências envolve não parece trazer grandes turbulências ao arco do filme: o mundo privado é um, o laboral/legal é outro. Os dois não se misturam, não se contagiam, não se complicam. Apenas entram em choque por justaposição, como estruturas imanentes de funcionamento. Não existe a chance de Simone abrir uma mensagem ou vídeo safado no trabalho, ou olhar para um colega com malícia no escritório; nem, por exemplo, criar alguma burocracia  involuntariamente nas suas práticas sexuais.[2] Coyote (Lucas Andrade), colega da faculdade de direito, é seu amigo colorido, mas, novamente, isso não afeta sua companhia ou presença em sala de aula. Por isso, Simone é quase barroca, com a diferença que sua dualidade libidinal não vira conflito, é apenas um traço “disruptivo” da personagem. As demais desconstruções estão todas em discussões com chefes de trabalho, professores de direito, colegas da universidade e a amiga Lucia (Lorena Comparato). Um filme sobre a proximidade entre o corpo carnal e o institucional, postos como imunes um ao outro e em cheque apenas verbalmente, nunca por ação ou circunstância de cena. Daí a rigidez dos diálogos, não há acaso abalando sua forma cartesiana de tratar os tantos movimentos da premissa. O funcionamento usual das conversas é o seguinte: Simone acha “x”; Lucia acha “y”; nenhuma dá o braço a torcer; uma das duas vai embora. Essa dinâmica se repete em outros casos de conversa, terminando geralmente em silêncio rancoroso. Mas, entre as amigas, a saída no meio da conversa acontece ao menos três vezes (quando Simone tenta atiçar a raiva de Lucia no beijo, quando discutem sobre a possibilidade de redenção de abusadores na varanda de Lucia, quando Lucia confronta Simone após vê-la deprimida e de corpo marcado). Os conflitos são todos verbais – e binários, à medida que nenhum parece ser suportável para as partes envolvidas a ponto de ser resolvido. Quando as coisas não terminam em saída ressentida, terminam em ebriedade e pegação. Ou seja: em abstenção. As questões sociopolíticas e psicossexuais são tratadas, a rigor, pela linearidade dos diálogos entre personagens sem qualquer maturidade emocional.
  • Eis que o filme escolhe pela irresponsabilidade da protagonista nas suas aventuras pelo BDSM. Entre os conhecedores da prática, é sabido ser o respeito à consensualidade a sua chave central. Ela é o único elemento que separa a aplicação de dor, sofrimento, humilhação e dominância do abuso; que faz com que seja a prática de uma fantasia e não de uma verdadeira violência. O controle precisa ser desejado por quem é controlado, e a confiança entre as duas partes permite esse afloramento. Apenas a firmeza do pacto entre as duas partes garante ao submisso a posição de Sujeito dentro da objetificação voluntária: o respeito ao seu “basta!” (geralmente a famosa “palavra de segurança”), muita conversa para compreensão dos limites, manifestações de carinho no meio ou após a sessão, etc. Se o tom lúdico da prática ficar sequer turvo, pode acontecer o que chamamos de “sub drop”: uma queda hormonal súbita que causa sintomas variados, de insônia e crise depressiva a espirros e tosse. Isso explica o choro copioso de Simone após uma descontrolada sessão de sexo violento com Coyote transmitida online. Existe uma amiga de Simone, Nat (Isabela Mariotto). Ela que lhe manda o vídeo de aplicação de dor, e quem constantemente avisa sobre o cuidado necessário na prática para a autopreservação. A protagonista voluntariamente recusa os conselhos e, por conta disso, entra por livre e espontânea vontade em ciclos de hostilidade sexual sem limite definido, com margem para ser abusiva e abusada. Não se trata do contraditório movimento de encontrar liberação na constrição, ternura no sofrimento, pulsões de vida na dor. O movimento do filme coopta o sexo e a pulsão de morte, estabelecendo uma gradual jornada suicida atravessada pelo consumo do corpo de Simone (virtualmente desde o começo, concretamente com o desfecho). Num filme que mostra ter feito suas pesquisas básicas sobre o BDSM (pois existe uma figura que alerta sobre a prática segura e responsável, e existe uma cena com o “sub drop”), por que – e a quem – interessa que a protagonista renuncie à própria segurança – e, em última instância, a seu lugar de Sujeito nessa jornada – e se ponha no lugar de completa objetificação?
  • Regra 34 é o primeiro vencedor brasileiro do Leopardo de Ouro em 55 anos, desde Terra em Transe, de Glauber Rocha. Numa mesa redonda da ArtRio do ano passado[5] (um evento de arte e mercado assim como Locarno ou Cannes), o historiador de arte Igor Simões pontuou a predominância massiva de obras figurativas de artistas pretos – todas, naturalmente, envolvendo pessoas e arquétipos pretos pintados. A observação não era uma crítica sobre es pintores, mas sobre a rejeição curatorial de uma arte preta abstrata. Aponta não só uma recusa dos seus potenciais de leitura do mundo, do pensamento e da arte como um todo, mas também a predileção para a exposição e venda do corpo negro (se não mais da sua carne, da sua figura pintada ou esculpida). Uma cutucada ao evento, e aos mecanismos da supremacia branca operantes, aqui, na forma de tendência de mercado. Regra 34 fez a fala de Simões ressoar em minha cabeça, à medida que não se aprofunda no ciclo de consumo que atravessa os corpos filmados, mas, mesmo assim, apresenta corpos que desesperadamente querem ser consumidos. Trata-se de um filme que aborda as contradições desse desejo, ou de um que só raspa a superfície disso como subterfúgio do consumo desses corpos?

[1] Curiosamente, por esse amálgama também é atravessada a figura da atriz, Sol Miranda, candidata a deputada federal pelo PSol em 2020 e pelo PSB em 2022.

[2] Impossível não lembrar de “Seguindo Todos Os Protocolos”, de Fábio Leal, um dos grandes refrescos do cinema brasileiro do ano passado. O conflito entre o movimento erótico e a moralidade política é ponto chave do longa e ele é posto com muito êxito num único corte: um jump cut faz a tela do laptop do protagonista Francisco sair do pornô para um informe de 200 mil mortos por COVID-19; a tragédia coletiva embarreirando o tesão no virtual (aponto, novamente, a polissemia de “virtual”: “do meio eletrônico”, mas também “do espaço mental”, “da potência não realizada”). Decerto, em algum momento, o erotismo ganha enfim lugar material no apartamento de Francisco, mas com as idiossincrasias obsessivas decorrentes de seu medo do contágio: tentar transar com um plástico entre ele e o outro cara, necessariamente usando máscara, etc. 

[3] Vale a pena mencionar o excelente texto de Geni Núñez acerca do erotismo no catolicismo, que tem chave na repressão, submissão e controle, e de suas semelhanças e diferenças com a prática BDSM. Disponível em: <instagram.com/p/CmmgVEPPkGF/>.

[4] [SPOILER] Simone, em troca de 20.000 tokens, oferece a um fã do Chaturbate (que afirmou em áudio querer muito vê-la sofrer) ir à sua casa e fazer o que quiser com ela: “A regra é que não tem regras!”. O filme termina num close up da protagonista prestes a abrir a porta sob batidas furiosas. O corte para os créditos se dá nela sorrindo, indicando que está tentada. Retomemos os sentidos de “consumo”: ela foi adquirida, e será potencialmente destruída. A conotação escravista do desfecho é evidente.

[5] Conversas ArtRio: Artista Negro, Galerista Branca. O debate parte de um quadro do pintor cuiabano Gervane de Paula, cujo título dá nome à mesa redonda. Conversa disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k9ZlGXD2Buk>.

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