OS DEUSES DA CIDADE

por João Paulo Campos

Para mim, cineasta e etnógrafo, praticamente não existe nenhuma fronteira entre o filme documental e o filme de ficção. O cinema, a arte do duplo, é já a passagem do mundo real para o mundo imaginário e a etnografia, a ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é a contínua passagem de um universo conceptual a um outro, uma ginástica acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos.  – Jean Rouch por Enrico Fulchignon.

Abre os olhos e começa a escutar. O mundo está em fricção – e sempre esteve. Os mestres loucos (1955) é um filme que se escuta com os olhos e se olha com os ouvidos. Uma obra que convida o espectador a um engajamento sensorial de corpo inteiro – cabeça, barriga e pés inquietos se articulam diante da coreografia que se desenrola no ecrã. É bem conhecido que Jean Rouch, engenheiro de formação, conheceu a África em 1941 e lá foi responsável por dirigir a construção de estradas e pontes, contribuindo, portanto, para o processo de urbanização num período de transformações radicais das nações africanas. O espaço urbano é, portanto, um dos focos de atenção do cineasta desde antes de sua formação antropológica e cinematográfica. 

Quando iniciou sua pesquisa de doutorado em 1947 em que estudou feitiçaria, sacrifício e possessão entre os Songhay sob orientação de Marcel Griaule, o autor encontrou uma África radicalmente diferente do que havia lido em tratados de Antropologia clássicos. O contexto sociocultural que surpreendeu Rouch era marcado pelo conflito, pelos efeitos da urbanização desordenada e das lutas pela independência. Esses fenômenos encontraram expressões particulares em seus numerosos filmes, de  Au pays des mages noirs (1947) à Petit à petit (1969) e adiante, dos filmes etnográficos “clássicos” aos experimentos de “etno-ficção”. 

Uma coisa deve ser dita de uma vez por todas, os mundos que encontramos nas obras de Rouch, sejam seus experimentos mais radicais ou os filmes considerados – erroneamente – mais cientificistas, acadêmicos ou caretas, são mundos em que o sono e a vigília se imbricam numa coreografia surrealista. As cidades e aldeias que vislumbramos nos filmes de Rouch são, ao fim e ao cabo, espaços surrealistas. 

Como engenheiro cultivou a admiração pela obra de Eiffel – Torre Eiffel e Paris (Le beau navire, 1990) e pontes do Rio Douro no Porto – Portugal (Une poignée de mains amies, 1996). Curiosamente, em sua experiência pregressa na França, o “cineasta-antropólogo” destruiu pontes para evitar o avanço das tropas nazistas num trabalho coletivo de guerrilha urbana contra a tirania. O caminho de Rouch foi, portanto, trilhado pela derrubada de pontes do nazismo para então se engajar na construção de estradas e pontes para a nova África urbana. Para além do trabalho de engenheiro, Rouch construiu também pontes sensíveis entre povos e campos do saber, entre a imaginação e a realidade, entre a ficção e o documentário, entre o sonho e a vigília, sendo um dos pontos originários, como veremos, tanto da antropologia contemporânea quanto de certas tendências do cinema atual.

É esse contexto em transformação que encontramos neste curta-metragem emblemático e não menos polêmico.  A primeira imagem que percebemos após os créditos iniciais é a aparição de uma máquina central para a iconografia da modernidade e modernização mundiais – imagem originária não apenas deste processo social, mas também da mitologia do cinema: um trem em movimento. Mas Rouch não busca aqui mimetizar o train-effect e seus mal-entendidos historiográficos – hoje já solucionados pelos historiadores do primeiro cinema. Vemos o trem atravessar o plano da esquerda para a direita enquanto dois homens aguardam sua travessia. Um corte inverte a posição dos corpos e máquinas. O movimento do trem se encerra da direita para a esquerda numa operação notável de montagem que figura a máquina moderna como uma espécie de cortina de teatro que corre para desvelar o universo espacial e cultural que servirá de palco para um (contra)espetáculo de uma realidade imaginada coletivamente. Uma multidão de homens, mulheres, mercadorias, construções e máquinas toma conta do quadro. A voz de Rouch narrador surge com a desaparição da figura para anunciar o contexto e, sobretudo, o espaço em que estamos. “Accra, a capital da Costa do Ouro”. A apresentação se desdobra num comentário pontual: “é uma verdadeira babilônia negra”. 

De repente nos encontramos num centro urbano povoado por gente apressada que se desloca para todos os lados freneticamente. O típico movimento de uma cidade em ebulição nos é mostrado em curtos planos que configuram uma sequência de vislumbres da cidade. Percebemos mulheres carregando mantimentos em suas cabeças, carregadores empurrando carrinhos repletos de recursos, carros elegantes cruzando as vias, táxis navegam por entre as ruas ensolaradas, caminhões são vistos levando pilhas de mercadorias, enxergamos motocicletas estacionadas à beira da rua, ciclistas atravessam o quadro com cuidado para não serem atropelados, bares e lojas habitam a periferia dos quadros – um caminho possível no (re)fluxo alucinante da urbe. 

Rouch continua a ensaiar seus comentários: o etnógrafo diz que estamos observando uma cidade em que se reúnem imigrantes de todos os lados da África Ocidental. Como todo centro urbano, a cidade produz um efeito magnético que atrai gente de toda sorte vinda da Nigéria, do Níger, do Alto Volta, do Sudão “para viver a grande aventura das cidades africanas”. E continua: “Nestas cidades, o trânsito nunca para, o barulho nunca para”.

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Os mestres loucos se inicia, portanto, por uma sucessão de vistas urbanas de uma nova cidade que o cineasta soube habilmente registrar e comentar para a posteridade, criando uma obra que perturba a imaginação reducionista que sustenta uma noção de África ancestral e parada no tempo (como se a ancestralidade fosse experimentada num tempo “homogêneo e vazio”) ao manifestar um mundo africano em plena transformação – um universo social, econômico, cultural, político e também estético que se apresenta como verdadeira amálgama de tempos, lugares e materiais heterogêneos. A vida, como sabemos, está sempre em movimento – mesmo quando nossos corpos se imobilizam diante do terror da tirania.

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

A estratégia panorâmica continua a ser usada por Rouch – vemos uma série de curtos planos descritivos de uma paisagem desigual que fricciona carros de luxo e trabalhadores pobres. O cineasta descreve uma variação de tipos sociais da comunidade “mais interessante” do local formada por gente dos Zabrama, dos Sonrat e Djerma. São imigrantes vindos da região de Gao e de Nyamey. O que se segue é a descrição de um verdadeiro mosaico do proletariado urbano de Accra, uma vez que estes homens aventurosos se transformaram em estivadores no porto, “Sumuguli” (contrabandistas), “Kaya-kaya”(carregadores e serventes), “Grass boys” (fabricantes de relva inglesa), “Higiène boys” (exterminadores de mosquitos), “Cattle boys” (pastores e negociantes de gado), “Bottle boys” (comerciantes de garrafas de cerveja velhas), “Tin boys” (negociantes de bidões vazios), “Timber boys” (negociantes de madeira para construções), “Gutter boys” (homens da limpeza nas ruas das grandes cidades), “Gold mine boys” (rapazes das minas de ouro). O cortejo de subalternos termina de forma conveniente nos bares dos trabalhadores, chamados “Week-end in California” e “Week-end in Havana”, onde ressoam as músicas Calypso vindas das Índias Ocidentais. Trata-se de uma paisagem produzida pela globalização e expansão da urbanidade e dos modos de vida coloniais na África – veremos que não se trata de uma simples assimilação. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Este preâmbulo apresenta, portanto, o ambiente urbano em que vivem os interlocutores de Jean Rouch. São trabalhadores imigrantes que viveram o conflito entre o campo e a cidade, entre a vida comunitária da aldeia e os choques da cidade do dinheiro e do trabalho subalternizado, da aventura insidiosa do mundo urbano capitalista sob a tutela do patrão. Após a demonstração deste teatro urbano, o narrador nos apresenta as bordas da cidade – onde acontecem os rituais dos Haouka. Do meio de uma fanfarra nas ruas de Accra saltamos para sua periferia. Jean Rouch diz: “Então, perante este barulho, esta fanfarra, os homens vindos das calmas savanas do Norte, têm de refugiar-se nos arredores da cidade. Aí, todos os domingos à noite, entregam-se a cerimônias que ainda conhecemos muito mal”. Neste instante surge uma imagem de contornos barrocos: na escuridão completa do quadro emerge um rosto contraído pela possessão de espíritos. Um foco de luz ilumina parcialmente o semblante de um homem negro em transe. Suas feições apresentam uma expressividade tensa e violenta, um rosto deformado pela evocação “dos novos deuses, os deuses da cidade, os deuses da técnica, os deuses da força: os Haouka”. 

Fotograma de Os mestres loucos (1955)

Deste lampejo na escuridão passamos para o quartel general dos Haouka: o mercado de sal. De acordo com o narrador, os membros da seita se encontram todos os dias depois do trabalho neste local. Trata-se de uma comunidade no seio de uma sociedade urbana que radicaliza a desigualdade entre os ricos e os despossuídos: eles jogam cartas, conversam, fumam, tocam instrumentos, cochilam em meio aos malotes de mercadorias. Os membros do grupo embarcam num carro aos domingos de manhã e saem da cidade. Das amplas estradas de concreto passamos para uma trilha estreita que nos leva para um local secreto, palco de uma performance ritual transformadora. É a casa de Mountyeba, um plantador de cacau de Níger – o padre de todos os Haouka. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

O segundo bloco do filme, que mostra o ritual propriamente dito, começa com a apresentação do espaço, os objetos e a dinâmica performática do ritual pela narração de Rouch. Interessante notar o caráter processual da cerimônia sob investigação. O etnógrafo descreve as etapas do processo na medida em que a performance se desenrola na banda imagética.  A articulação do comentário do narrador aos registros documentários, ao contrário do que pode parecer a princípio, não configura uma explicação da cultura alheia ou espelhamento logocêntrico da realidade num prisma cientificista sem sabor. A voz de Rouch funciona como um comentário ensaístico livre que tensiona as imagens pela descrição atenta aos detalhes dos corpos em interação com o ambiente. É uma voz literária que relata uma experiência de encontro com a alteridade – uma narração que parece descrever um sonho num país estrangeiro. 

Vemos a preparação do espaço e a separação de objetos rituais. Personas e símbolos característicos do universo moderno europeu e norte-americano surgem em cena num gesto de reinvenção intelectual e pragmática dos signos dos colonizadores. O narrador descreve o altar da cerimônia, intitulado “Palácio do Governador”, a “Pedra do Sacrifício” e alguns símbolos importantes, como a estaca “Union Jack” e o “Telegrama-Carta”, que é nada menos que um programa de cinema antigo do filme A marca do Zorro. Estes elementos estrangeiros povoam a emergente cosmologia dos Haouka – uma cosmopolítica africana urbana cuja manifestação ritual ensaia uma espécie de trincheira em que novos deuses se misturam a performances contra-coloniais e anseios por direito à cidade. 

Rouch dá atenção especial às metamorfoses cinéticas dos corpos no espaço. A câmera deambula pelo campo do ritual e observa as modulações corporais dos membros da seita entre movimentos frenéticos, gestos violentos, a espera paciente que antecede as possessões e até o repouso do anfitrião que cochila com a cabeça encostada no sangue que corre nas paredes externas do “Palácio do Governador” enquanto os espíritos Haouka não chegam.

“E a possessão começa”, diz o narrador. Os corpos começam a convulsionar pelos pés e as mãos. A respiração se torna difícil e os olhos dos homens começam a revirar. Rouch costura planos fechados dos membros em transformação e registra a travessia da possessão. Um homem pega uma tocha de fogo para se queimar num gesto de provação – ele não é mais humano e sim um Haouka que não teme o fogo e nem sente dor. Outro personagem surge de um matagal numa caminhada desconcertante. É Gerba, que foi possuído pelo Haouka “Samkaky”, o “condutor da locomotiva”. O espaço central da cerimônia vira o palco de um ritual polifônico de cura do horror e suas doenças, uma coreografia contra o terror colonial que apresenta uma força corpórea que toma conta dos corpos dos espectadores. Como toda boa performance, seja artística ou ritualística, o ritual filmado por Rouch produz uma inervação corporal que é nos é oferecida a sentir – na barriga. Nestas cenas a faceta sensorial do cinema de Jean Rouch se sobressai, e somos impactados pela cinética subversiva e caótica de figuras ondulantes em metamorfose num espaço que mistura o sonho e a vigília. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Um teatro da crueldade emerge das entranhas desses emblemas e aparições de personas dos colonizadores: uma estética das vísceras e coração, diria Antonin Artaud, encontra a câmera ágil de Rouch. O terceiro possuído é o “Capitão Malia”, o “capitão do Mar Vermelho” que realiza uma estranha coreografia de “slow-march” num gesto que mimetiza, comenta Rouch, a marcha das paradas militares do exército britânico. No entanto, não há lentidão alguma na marcha do capitão do exército imaginário. O homem caminha rapidamente e com passos pesados numa movimentação que deforma e subverte a liturgia colonial-militar, desautorizando seu simbolismo de poder e submissão através de uma estética grotesca.

O quarto possuído efetua uma inversão não apenas de posições de poder (colonizador-colonizado), mas também de gênero. Surge a “Madame Lukotoro”, o narrador nos diz que se trata da “mulher do médico”. O homem recebe um vestido enquanto faz gestos caóticos com as mãos e convulsiona seu corpo em transe numa tremedeira louca. Outros Haouka surgem nos corpos possuídos dos trabalhadores: o “Governador” berra insultos em francês, enquanto o “Tenente” pede ajuda do “Caporal de Serviços”, espírito que flana entre os possuídos dando uma assistência simbólica aos necessitados. Vemos essa figura intermediadora passar de um homem a outro numa descompassada performance de serviçal, enquanto a “Locomotiva” atravessa o quadro desordenadamente em suas idas e vindas, bagunçando nossos sentidos e contribuindo para o desenho de uma imagem caótica do mundo colonial. 

De repente, “uma mulher cai no chão”, a única que participa desta encenação ritual. Rouch comenta que ela se chama Magagwa e é uma importante cafetina de Accra. Encontramos ela babando no chão enquanto é possuída por um gênio feminino, a “Madame Salma” – a mulher do Tenente Salmon, um dos oficiais franceses que, nos diz Rouch, foi um dos primeiros a chegar no Níger ainda no século passado. A mulher recebe o vestido e o chapéu colonial e inicia seu papel neste drama caótico: inspecionar a nova estátua do “Governador”. O “Tenente” então quebra um ovo na cabeça do monumento improvisado do “Governador”. “Porquê um ovo?”, pergunta o narrador. Antes de responder por meio das palavras, o filme responde com as imagens. Rouch efetua uma montagem dialética que confronta o gesto ritual na periferia da cidade com registros da cerimônia oficial de abertura da Assembleia Legislativa em Accra. As imagens do “Palácio do Governador” fictício e sua estética grotesca fricciona a liturgia militar-colonial do governo britânico. Diante das imagens do Trooping the Colour, símbolo da soberania britânica, Rouch lança um comentário que desdobra parcialmente o espectro estético e político do ritual dos Haouka: “Se a ordem é diferente num local e noutro, o protoloco é o mesmo”. No instante que a asserção se encerra, voltamos para o teatro dos Haouka em transe. O colonialismo é levado ao delírio pelo ritual cuja força performática é potencializada pela montagem do filme de Rouch.

O mundo colonial e o teatro do maravilhoso que sustenta sua utopia ao mesmo tempo que ofusca o terror que realmente produz são redesenhados sob o signo do horror e do grotesco. Um dos efeitos da mimesis colonial reinventada pelos Haouka e registrada por Jean Rouch é, portanto, a desautorização simbólica das relações de poder e subalternização entre colonizadores e colonizados. A performance do poder e seus signos são escovadas a contrapelo na periferia de Accra. Nesse processo ritual, a mimesis se torna arma de guerra – instrumento de uma resistência cultural que, no entanto, não encerra o que está em jogo tanto no rito quanto no filme em questão.

Repentinamente surgem o “General” e o “Soldado”. O primeiro está exasperado e reclama de tudo, um melindroso. Da mata vêm o “Secretário Geral” e o “Motorista de Caminhão” – todos personagens urbanos do funcionarismo público britânico e francês. Com a chegada do último possuído, o “Commandant Mougou” (o “Comandante Mau”), todos os Haouka estão reunidos. O “Governador” convoca uma “round-table” e junta todos os Haouka na mesa-redonda. É a “Conferência do Cão”. A voz de Rouch nos diz: “é preciso sacrificar o cão, é preciso comê-lo” e será o “Capitão” o responsável pelo sacrifício. Assim que o animal é degolado todos os Haouka se precipitam para beber o sangue e lamber a “Pedra do Sacrifício”. 

Aos gritos e insultos, o “Capitão” interrompe o banquete e convoca uma nova conferência para decidir se o cão será comido cru ou cozido. A assembleia decide cozinhar o cachorro e, assim que a água ferve, os Haouka, “que não temem nem o fogo nem a água a ferver”, mergulham suas mãos diretamente no caldeirão para tirar desesperadamente os bifes de carne do animal. O que se segue é uma disputa pelos melhores pedaços: cabeça e tripas. O caldo do cão é armazenado em garrafas de perfume velhas para seu uso posterior, como foi decidido na reunião.

Ao fim do dia, os Haouka vão-se embora. O narrador nos conta que os táxis e caminhões foram alugados apenas para o período diurno e, se a cerimônia se estendesse pela noite, seria necessário pagar a tarifa noturna. Antes de encerrar o ritual, um contratempo surge. A “locomotiva” não quer ir embora antes de falar com o anfitrião. Rouch mostra a movimentação do homem em transe, que para no meio dos homens numa pose torta e diz para Moukayla, o padre: “a festa deste ano correu muito bem. Para o outro ano, temos de fazer duas festas destas. Nós, Haouka, vamos ficar muito contentes”. E Rouch interpreta a cena na banda sonora dizendo que é desta forma, de cerimônia a cerimônia, que “o ritual fixa-se e estabelece-se”. E assim a “locomotiva” vai embora e a noite cai nos arredores de Accra.

O terceiro bloco do filme se inicia com um movimento vertical de câmera que capta o movimento de um luxuoso carro preto numa rua repleta de gente e automóveis estacionados. A câmera está distante e filma o movimento da rua em plongée – de cima para baixo. Saltamos de volta à cidade grande, palco do dia-a-dia de trabalho dos membros da seita dos Haouka. Neste momento há uma operação notável do filme. Rouch vai até os ambientes de trabalho e pontos de encontro dos Haouka e registra suas atividades no dia seguinte à cerimônia, com especial atenção às mudanças na fisionomia de seus rostos. A montagem confronta a aparição dos corpos em transe durante o ritual com suas atuais e renovadas aparências. As feições grotescas do dia passado se converteram em sorrisos saudáveis que lampejam em meio ao fluxo cotidiano da cidade grande.

 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Essa montagem dialética reforça um conceito que pensa o ritual como um processo transformador que não diz respeito apenas à uma simples reprodução de um passado tradicional no presente. O ritual dos Hauka não pode ser resumido a uma transmissão ou fixação de costumes por meio de uma cerimônia tradicional. Trata-se de um rito de cura do terror colonial que carrega em sua prática uma futuridade que diz respeito tanto à cura de mazelas individuais quanto a uma libertação de amarras coloniais coletivas. Uma mistura de tempos heterogêneos num contexto de conflitos e transformações sociais.

O filme de Rouch revela que o papel da mimesis colonial entre os Hauka é complexo e até mesmo contraditório. A atenção especial que o cineasta dá à ambientação urbana e à caracterização cosmopolita de Accra e seus habitantes é crucial para essa reflexão crítica em torno da obra. Sabemos que a mimesis é uma das principais fontes do poder colonial, atuando na origem da subjetivação do colonizado por meio da educação formal e treinamento militar, por exemplo. No entanto, esta arma de guerra pode também se virar contra os colonizadores. Uma das características fundamentais da mimesis é sua ambiguidade. Os colonizados podem se tornar parecidos com os colonizadores, mas não muito. Aqui se encontra um dos focos da sujeição racista: os colonizados nunca serão iguais aos colonizadores. Há uma lacuna inelutável  no gesto da imitação, um ponto de fuga que pode ser utilizado também para bagunçar toda ordem e sentido da cultura e das relações de poder coloniais. 

Um dos efeitos possíveis da performance ritual dos Haouka é justamente esse uso guerrilheiro dos poderes da imitação, aspecto que foi comentado por uma série de autores mundo afora. Imitação, aqui, não significa simulacro ou falseamento, como um entendimento platônico (ou neo-platônico) do termo nos levaria a pensar. Em sua tradição aristotélica, retomada por autores como Walter Benjamin, a mimesis é pensada como um circuito de aprendizado diante da alteridade do mundo. A imitação produz, portanto, metamorfoses, o que a qualifica como uma força da alteridade. Ao imitar os colonizadores, os Haouka deformam sua imagem através de uma sensibilidade crítica e fervilhante – gesto capaz de desautorizar os signos e práticas do poder colonial. Um dos feitos de Os mestres loucos é criar uma instância expressiva capaz de nos fazer sentir uma imagem pulsante e grotesca do universo colonial performado na periferia de um grande centro urbano da nova África.

Mas resumir o filme – e o ritual – a um gesto de resistência cultural, assim como o escolher o contra-argumento corrente de que os Haouka estariam articulando um passado ancestral de uma África perdida num tempo de crise é tentar dar um ponto final explicativo a um filme que recusa explicações definitivas.

O que encontramos no filme de Rouch é, também, as entranhas de uma nova ordem mundial que foi se estabelecendo no século passado. Se o autor encontrou uma África muito distinta daquela descrita nos manuais de Antropologia em suas viagens a partir dos anos 1940, isso se deve também a profundas transformações globais que afetaram fortemente diferentes centros urbanos pelo mundo. Longe de homogeneizar as diferenças culturais entre as nações, o que chamamos de globalização produziu profundas variações sociais, econômicas, políticas e culturais. Os signos, mercadorias e práticas atravessam oceanos e continentes, mas encontram formas singulares em cada localidade. Como vimos no filme de Rouch, elementos culturais estrangeiros são reinventados de formas surpreendentes no dia a dia das pessoas. A mímesis dos Hauka, assim como o uso de termos estrangeiros para nomear bares, automóveis e classes sociais em Accra e outras regiões urbanas de países pobres, também expressa um desejo coletivo de participar desta modernidade global. Trata-se de uma reivindicação de direitos sociais e políticos que permitam uma espécie de credencial plena nesta sociedade mais ampla que se fortaleceu no pós-guerra e hoje se encontra em crise generalizada. 

O que vemos é, em parte, expressões culturais de um anseio coletivo pelo mundo de sonho das novidades da indústria cultural, têxtil, automotiva etc. Ao fim e ao cabo, os Hauka apresentam um desejo de modernidade que não deixa de ser uma forma de resistência cultural singular, tomando a forma de uma reivindicação por direitos à cidade num contexto de urbanização desenfreada sob o signo das modas e mercadorias das grandes potências mundiais. A mimesis serve tanto como ferramenta para o confronto poético quanto como forma de expressar os anseios por direito à cidade que caracterizam as relações entre centro e periferia nas cidades pós-coloniais.

Já foi amplamente comentado por antropólogas e antropólogos o caráter profético do trabalho de Jean Rouch para a Antropologia, uma vez que o autor antecipou discussões que ganharam corpo apenas nos anos 1980, como a crítica à etnografia clássica e seus efeitos de verdade e o incentivo ao uso de operações etnográficas experimentais como a escrita polifônica e a montagem literária.

De fato, Rouch foi um visionário da antropologia e já neste filme, considerado por muitos um dos mais acadêmicos, caretas e cientificistas do autor, ele empreendeu uma etnografia experimental que fez uso surrealista e por vezes dialético da montagem de fragmentos registrados em campo. No entanto, não encontrei comentários a respeito do caráter premonitório de sua poética documentária e seus ecos no cinema contemporâneo mundial – um contexto marcado por diferentes experimentos em torno da dimensão háptica das imagens cinematográficas. 

Os mestres loucos, assim como outros filmes do autor, criou pontes impossíveis entre a abordagem científico etnográfica dos fenômenos socioculturais e a estética corpóreo-sensorial dos registros da vida urbana, dos mitos e rituais africanos. O filme nos conduz por uma viagem imaginária por paisagens de outrora e alhures, mas sem perder o pé da reflexão intelectual. A reflexividade antropológica é friccionada por uma mise en scène epidérmica que acolhe os corpos dentro e fora do transe, com atenção também ao movimento perpétuo das novas cidades que se apresentavam como um vulcão de carne e pedra sob o sol quente da savana. Trata-se, portanto, de uma insuspeitada síntese entre a geometria e o êxtase, o conhecimento científico e a experiência sensorial de um mundo movediço – em plena transformação. 

Termino com a certeza de que Rouch foi um daqueles narradores que tanto estimularam Walter Benjamin e que, segundo sua leitura do mundo moderno ainda emergente do século XIX, foram se tornando cada vez mais raros nas cidades europeias. Me refiro àquela figura que se desloca no espaço e se afunda no tempo, personagem síntese entre o sábio e o mercador viajante: uma pessoa capaz de intercambiar experiências coletivas em vez de vivências individuais. Jean Rouch foi um verdadeiro aventureiro dos mundos de sonho, um construtor de pontes em busca da constelação do despertar do terror do mundo colonial da tirania, da fome e miséria. Jean Rouch, além de “cineasta-antropólogo”, foi um engenheiro do sensível.

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