CINEMACUMBA – COSMOLOGIAS AFRO-ATLÂNTICAS NO CINEMA – EDITORIAL

por Bernardo Oliveira

O percurso da palavra macumba da virada do século passado aos dias de hoje, e, particularmente, entre as décadas de 30 e 50 do século XX, revela que a disputa em torno de seu sentido foi marcada por encaminhamentos em sua maioria redutores ou negativos. Pode-se dizer que, sem que representasse uma ameaça direta ao poder e à população, a palavra Macumba foi perseguida e combatida até que, por fim, adquiriu uma acepção negativa. Essa história parece estar mudando ou, no mínimo, em permanente reformulação.

Suas múltiplas acepções carregam indícios de que se trata um termo depositário de tensões e negociações que espelham uma ordem social atravessada por relações escravocratas. No plano do sentido, trata-se ainda de um termo carregado de dúvidas e incompreensão. No dicionário, “macumba” pode adquirir a acepção neutra de um “antigo instrumento de percussão de origem africana, espécie de Canzá que consistia num tubo de taquaras com cortes transversais onde se friccionavam duas varetas, e que era outrora usada em terreiros de cultos afro-brasileiros.”

Uma segunda acepção, mais abrangente, afirma a macumba enquanto uma “designação genérica dos cultos afro-brasileiros originários do nagô e que receberam influências de outras religiões africanas (por exemplo, de Angola e do Congo) e, também ameríndias, católicas, espíritas e ocultistas.” Está definição se aproxima mais da forma como a utilizamos nesta apresentação. Também parece estar em conformidade com os argumentos de etnólogos como Roger Bastide, para quem a macumba se constituía como “sinônimo de agrupamento de pessoas num ritual de origem africana; uma transformação do candomblé ou mesmo uma perda dos valores tradicionais ao culto dos orixás.”

Se a primeira definição parece neutra, esta segunda soa ambígua, pois se preocupa primeiramente em expressar a necessidade de conceber o fenômeno a partir de uma perspectiva externa, vinculada aos estudos acadêmicos. Mesmo reconhecendo a força presente das cosmologias afro-transatlânticas na Macumba, esse ponto de vista favorece geralmente a perspectiva segundo a qual os sincretismos teriam distanciado as populações negras do Brasil das práticas de seus ancestrais africanos. Ora representada por um sistema simbólico e material, ora como um processo de esvaziamento ou degeneração de preceitos supostamente mais puros, a Macumba se alastrou mesmo desfavorecida por um jogo de forças no qual sempre esteve fadada a sucumbir ao olhar do cientista, do observador, personagem hipoteticamente neutro e imparcial.

Contudo, a definição que sobressaiu e se alastrou, a que foi politicamente decisiva para a perseguição política da macumba, rito e palavra, foi aquela posta em prática pelo Estado Novo. Conforme escreve Lísias Negrão (APUD Marcos Paulo Amorim):

“Com a Revolução de 30 e especialmente com o advento do Estado Novo, que se pretendia moderno e que, em nome da modernidade, perseguia os ‘arcaísmos’, a repressão contra estas práticas mágicas e cultos sincréticos não só recrudesceu, como tornou-se particularmente dirigida contra os cultos de origem negra: nas portarias dos órgãos públicos responsáveis pela moralidade e segurança públicas, as ‘macumbas’ e os ‘candomblés’ são nominalmente citados como alvos das proibições, ao lado das genéricas práticas de ‘feitiçarias, necromancia, quiromancia e congêneres’. Dá-se início a um intenso combate contra eles, com a apreensão de objetos rituais e prisão de pais e filhos-de-santo e a instalação de inquéritos e processos em que foram enquadrados como réus.”

Em Bantos, Malês e Identidade Negra, Nei Lopes mostra uma outra perspectiva sobre macumba e, particularmente, à Umbanda: como produto cultural dos negros bantos, que cultivam o caráter criador essencialmente sintético e sincrético em relação aos jogos de poder, a macumba sofria discriminação dos negros nobres, nagôs ou “muçurimins”, negros muçulmanos, letrados e cultos que viam nas práticas bantas indícios de uma cultura menor, pois menos africanizada.

Se ampliarmos o horizonte de nossa reflexão, perceberemos que a palavra macumba desperta no Brasil o tipo de reflexão que pode se estender por toda a América: enquanto uma dimensão conectada à reterritorialização do desterritorializado, a macumba é produto de modos de percepção e produção da política e da sensibilidade ancoradas em culturas milenares. Ao sairmos do Brasil e passeando pelo continente, visitando o Haiti, passando por Nova Orleans, encontraremos movimentos semelhantes, práticas de recomposição das religiosidades, das cosmologias, das formas de pensar, da produção conceitual, estética, técnica sob a forma aparentemente genérica da macumba. Entendo a macumba aqui como aquilo que de mais precioso adveio sob a forma de inconsciente coletivo da diáspora: a capacidade de imaginar, de reimaginar, de prolongar, desdobrar e tornar infinitas essas práticas.

No nordeste do Congo, onde se fala variantes do Quicongo, Cumba quer dizer “caminho principal”. E o prefixo “Ma” quer dizer “multiplicação”, “plural”… Macumba, portanto, como “múltiplos caminhos principais” (extraído do Dicionário Quicongo-Francês de K. E. Laman, obrigado a André Capilé). Outra que parece condizente: Zumbi, “Zombie”, também vem do banto, mais especificamente do Quimbundo, e quer dizer “fantasma”, “corpo que vaga”, “vagante”, “espectro”, “alma do outro mundo”. No cinema, o panorama aparece ainda mais amplo. Mal entendido, representação e expressão em Jacques Tourneur, Wes Craven, White Zombie. No cinema, etnólogos e antropólogos como Jean Rouch e o trabalho do SECNEB, de Carlos Brajsblat e Juana Elbein. Uma infinidade de filmes de ficção e documentários brasileiros, que podemos conferir no curso de Ewerton Belico, intitulado “Ebó Ejé”. Nos EUA, Cauleen Smith e o Egungun, o vodu em Nova Orleans no “coração satânico” de Hollywood; no cinema marginal brasileiro, motivo de curiosidade, pesquisa  e abrasileiramento. As vias são muitas e se multiplicam.

A macumba não é o passado, é o futuro. Algo que indica esse caráter permanentemente misturado e fértil das práticas afrorreligiosas. O caráter híbrido da macumba denota um nome genérico e proteiforme de práticas afroreligiosas. Não se resume simplesmente à “macumba carioca” do século XIX. A Macumba é recursiva, está sempre em formação e dribla qualquer identidade estável. Ela é inassimilável por completo. Isto quer dizer que podemos reposicioná-la nessa conversa de muitas maneiras. Macumba são os ritos cosmológicos, individuais e coletivos, em uma diversidade espantosa de práticas e relações. Macumba não se esgota na síntese cristã do Candomblé e da Umbanda, é ao mesmo tempo um termo genérico e particular. Há macumba no Brasil, mas, devido à escravização, o processo é semelhante em países como Colômbia, Equador, Peru, Haiti, EUA. Há macumba por todo o continente africano. O cinema que foi realizado nesses locais arrasta consigo, de alguma forma, o espírito infinito e recursivo da macumba. Às vezes de forma evidente ou velada, caricaturizada ou respeitosa, científica ou fantástica.

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