Avatar: Franquia frustrada ou antifranquia?

Por Bernardo Moraes Chacur

Na superfície, Avatar (2009) não destoa muito dos blockbusters recentes, treze anos depois do seu lançamento original: seja pela onipresença da intervenção digital, pelo uso de 3D, ou pela duração de mais de duas horas. Sob outros aspectos, no entanto, é um objeto estranho no contexto do cinema de franquias.

Com relação à narrativa em torno do filme, temos de um lado a marca autoral de James Cameron, em oposição aos diretores (geralmente) intercambiáveis empregados pela Disney[1], por exemplo. Ao invés de um cronograma de quatro lançamentos anuais, um perfeccionismo que exigiu quatro anos para a produção do primeiro longa e mais de uma década para a entrega da continuação. Seria fácil exagerar e romantizar indevidamente esses contrastes, mas talvez a única sabotagem possível no capitalismo tardio seja justamente algum grau de ineficiência.

Enquanto o público contemporâneo foi gradualmente condicionado a esperar pelo retorno cíclico do já conhecido, de personagens, histórias e cenários familiares, Avatar entregava novas vistas: a topografia insólita, a fauna e flora cujas características se embaralham, uma multiplicidade de cores e fosforescências, a exploração do 3D. Se há uma cena que encapsula essa profusão, é o momento no qual o herói busca se conectar com uma das feras aladas: depois de transporem uma cachoeira, os Na’vi se concentram em um dos cantos do quadro enquanto um novo panorama se descortina do lado oposto. Há movimento e formas estranhas vindo de todas as direções, acompanhados por oscilações da “câmera”. São imagens que seguem inusitadas, talvez por não terem sido canibalizadas até o momento em continuações, prequelas ou spin-offs. Ou talvez por possuírem algo de único e fugidio e que dificulta que sejam engarrafadas em série.  Os detratores de Avatar costumam menosprezá-lo justamente por essa suposta falta de “pegada cultural”, como se o citacionismo nerd e decoração de festas de aniversário fossem métricas indiscutíveis de valor.

Outra crítica recorrente é apontar os clichês do roteiro escrito por Cameron, mas em 2022 vários desses elementos genéricos parecem menos usuais, à medida que Hollywood se afasta dos tipos de filmes que fabricou por décadas. Mesmo a postura anti-establishment do enredo, que poderia ser lida como tímida ou inconsistente, se revela mais certeira com alguma boa-vontade. 

Uma cratera na memória racial

Logo antes da última briga, o vilão pergunta ao herói:  qual a sensação de trair a própria raça? A palavra poderia estar se referindo tanto à espécie (à raça humana) quanto à sua condição de branco. Os dois sentidos cabem no contexto, aplicados a um protagonista que havia rejeitado tanto o antigo corpo quanto o ideário do Destino Manifesto.

Tudo isso está no primeiro plano do enredo, reiteradamente e sem subterfúgios. Vale lembrar, no entanto, que certo grau de anticolonialismo, pró-ambientalismo e simpatia/condescendência pelos povos originários já circulavam havia décadas pelo cinema de Hollywood. A carga polêmica desses temas já estava tão esvaziada a ponto de render tratamentos como o oscarizado Dança com Lobos (Kevin Costner, 1990) e a animação Pocahontas da Disney (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) – tantas vezes comparados a Avatar em tom de deboche. Nesse tipo de filme, os genocídios costumam ser retratados como uma História confortavelmente distante, sem comunicação ou comparabilidade com os dias atuais. A produção de Cameron, ambientada mais de cem anos no futuro, talvez pudesse ser lida assim, como simples alegoria do passado, um faroeste revisionista sob uma capa de ficção científica.

Mas há elementos extemporâneos que desafiam essa interpretação. Por exemplo, quando o vilão orienta as suas tropas a destruir a árvore que é o centro da vida material/espiritual dos Na’vi, se vangloriando de que assim criarão “uma cratera na memória racial” dos nativos. Se a retórica dos tempos coloniais e neocoloniais ainda cultivava a farsa da Missão Civilizatória, a fala do coronel reflete um raciocínio que não só reconhece a própria crueldade como a instrumentaliza em nome da eficiência, a exemplo da política de Choque e Pavor (Shock and Awe), em voga durante as duas invasões do Iraque e diretamente citada por outro personagem ao longo do filme.

Boa parte dos soldados que recebem essas ordens de extermínio é negra, detalhe tão tétrico quanto apropriado (uma vez que representam 12% da população dos Estados Unidos, mas 21% das forças armadas da ativa[2]) e evidenciado em mais de um contraplano. Tanto o discurso militar quanto a composição étnica desse exército privatizado ancoram Avatar no presente. Tendo como referentes simultâneos a conquista do Oeste e as guerras do século XXI, Cameron situa a invasão de Pandora em uma História contínua de depredação.

Uma vez reconhecida a carga política de Avatar, também é necessário admitir o óbvio e dizer que a maior bilheteria de todos os tempos possui limitações como discurso anticapitalista ou polêmica racial, narrando uma história de salvador branco que se revela mais índigena do que os próprios indígenas. Cameron também perpetua aqui o mito no qual o anticorpo necessário para enfrentar a brutalidade dos invasores brancos é um invasor branco com uma dose extra de valores progressistas.

Ainda assim, há imagens que articulam uma perturbação genuína, como as dos animais em chamas após o ataque à árvore-ancestral, semelhantes às do holocausto ambiental que se intensificaria a partir de 2020 na Amazônia. Sempre se falou sobre o potencial (e perigo) da ficção como doutrinadora ideológica, mas qual a extensão dessa influência, caso ela se exerça? Como as pessoas que viram e reviram Avatar conciliam a clara mensagem pró-ecológica e seus próprios posicionamentos políticos? Mesmo considerando as várias camadas de desinformação e negacionismo envolvidas, podemos imaginar que pelo menos parte desse enorme público foi capaz de processar as ideias propostas pelo filme e mesmo assim reagiu com indiferença, considerando-as impertinentes ou inaplicáveis à realidade.

(Reassisti Avatar em setembro de 2022, em um multiplex de Brasília, em sessão razoavelmente cheia. Poucos dias depois o candidato derrotado à reeleição para presidente receberia quase 52% dos votos no Distrito Federal. Em 2018, esse percentual havia sido de quase 70%.)

Não é raro que cinéfilos de esquerda consumam filmes com graus variados de conservadorismo, cativados pela narrativa, por interesse estético, histórico, pelas neuroses desse discurso, por masoquismo e, ocasionalmente, identificação – relações que também devem se verificar ao longo de todo o espectro político.

Nunca foram modernos

Em Pandora, os Na’vi estão conectados aos animais e vegetais que os cercam – mas isso acontece pela via de um rabo de cavalo que é simultaneamente penteado e cabo USB. Os seus antepassados seguem vivos na grande árvore, mas isso é aferível graças a impulsos elétricos mensurados pela equipe de cientistas. Avatar habita essa contradição: valida outras perspectivas, na contramão do racionalismo clássico, mas para isso, recorre ao lastro desse mesmo racionalismo. Há sobrenatural e saberes ancestrais, mas como territórios a serem conquistados pela ciência.

Há pelo menos duas formas, que não se excluem mutuamente, de interpretar essa postura. A primeira seria ressaltar a inconsistência, alojada sob a boa intenção. A segunda é avaliar o que acontece com essas descobertas científicas no contexto do enredo, desconsideradas e ridicularizadas assim que se tornam inconvenientes para os interesses econômicos em jogo. Há aqui, mais uma vez, um exemplo do saldo geral de Avatar: para cada elemento simplista, outro momento lúcido e onde cada lugar-comum pode ser tornar vívido graças à inspiração visual e narrativa.

Cena pós-créditos: impressões após assistir Avatar: O Caminho da Água (2022)

Vi o segundo filme pouco depois da conclusão do texto. Seguem minhas impressões sobre como ficaram os temas desenvolvidos acima, à luz do novo episódio:

Há um bom número de repetições em Avatar 2: da estrutura, de situações e personagens (do vilão, inclusive). Se parte disso pode ser atribuído a inércia própria das continuações, em pelo menos um caso enxergo mais uma reiteração pertinente do que falta de originalidade: ainda no prólogo, vemos novamente os animais e a mata incendiada, uma imagem cujo horror se renova a cada vez, dentro ou fora do universo ficcional — e que deve ter continuado a assombrar James Cameron.

Com relação à política, desde o primeiro momento não há qualquer ilusão de convivência pacífica: a invasão humana já começa brutal e encontra como resposta imediata atos de terrorismo. Posição bem mais direta do que o típico deixa-disso centrista predominante no cinema/discurso mainstream.

Na trama original, cada ideia “radical” parecia conviver com outra mais conservadora. Essa dinâmica se repete na nova história, mas o polo menos convencional tende a ser  favorecido. Os êxtases da filha adotiva do herói são diagnosticados pelos cientistas como epilepsia, explicação que é desautorizada mais à frente. Jake Sully prioriza a família nuclear em detrimento da tribo e do povo, mas tem algumas de suas convicções postas em cheque ao final da intriga.  

Avatar 2 conecta mais uma vez o capitalismo passado e contemporâneo. A caça aos tulkuns combina séculos de pesca às baleias (especialmente a extração de espermacete) em cenas que detalham um processo tão cruel quanto eficiente de chacinar animais pelo lucro. Não por acaso, a eventual desforra contra os soldados e baleeiros será mostrada de forma igualmente clara e cruenta, com certo prazer vingativo.

Há um peso incomum na ação e na violência em cena, especialmente em comparação com a falta de densidade prevalente nas últimas décadas de cinema de entretenimento. Costuma-se atribuir essa falta de gravidade ao uso de CGI, mas Cameron e equipe demonstram que é possível criar um mundo ficcional convincente com ferramentas digitais. Não me parece coincidência que um tal resultado seja obtido por um diretor capaz de articular, em suas imagens, reflexão e revolta genuínas sobre a realidade que nos cerca.


[1] Ironicamente, uma vez que a Disney absorveu a 20th Century Fox em 2019, Avatar também virou mais um ativo do estúdio.

[2] Dados de 2021 e 2019, respectivamente.

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