“Se você puder achar uma encruzilhada, qualquer encruzilhada, esta encruzilhada. Se você puder fazer uma escavação arqueológica nessa encruzilhada, você encontrará fragmentos, tecno-fósseis. E se você puder colocar esses elementos, esses fragmentos juntos, você encontrará um código. Desvende esse código e você terá as chaves para o seu futuro. Você tem uma pista e é a frase: Mothership connection (conexão nave-mãe)” – O Último Anjo da História (Akomfrah, 1996)
Pela elaboração de uma realidade sinuosa e com o procedimento narrativo de agouro, I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943) é um presságio que induz a revelação de um mistério que, embora pressentido, quando revelado não deixa de transtornar a nós, espectadoras, e ao próprio filme. É importante, entretanto, também agourar o que será dito nesse texto: para além dos questionamentos que concernem o modo como os personagens negros foram construídos no longa metragem, interessa aqui marcar a noção de encruzilhada e de como isso reverbera como proposição estética e formal para a construção narrativa, com o exercício de encontrar algo que possa ser pressentido e capturado. Em St. Sebastian, ilha onde a narrativa se desenvolve, o sobrenatural pertence ao cotidiano. No entanto, acessamos a ilha através do olhar estrangeiro e desconfiado de Betsy, uma enfermeira que viaja até o Caribe para trabalhar como cuidadora de Jessica, uma mulher catatônica, largada à passividade, a quem as “más línguas” chamam de zumbi. Betsy se insere em Fort Holland, no contexto de uma família branca rica que é atormentada pela tragédia que acometeu Jéssica, uma calamidade sem explicação aparente.
Adentrando os portões de Fort Holland, somos apresentados a uma imagem peculiar: Ti-Misery. Um calcês de um navio negreiro que imita um homem negro morto a flechadas é o irrigador e parte da decoração do jardim da família abastada e, ao mesmo tempo, é posicionado como uma alerta. Um lembrete de que é necessário não esquecer dessa imagem e, talvez, de que seja preciso olhá-la mais de perto. Ti-Misery é uma encruzilhada. Nela, interseções coabitam com desvios. Na primeira noite de Betsy em Fort Holland, um choro contido a desprende de seu sono profundo, choro que depois descobrimos ser de Alma, uma funcionária da casa que mantém a tradição ancestral de chorar e prestar luto ao nascimento de uma criança negra e de ficar feliz aos funerais, algo que é explicado no filme como uma herança do período da escravidão. É curioso, no entanto, marcar que as lágrimas de Alma são veladas, e quem de fato parece chorar é o calcês na função de irrigador de jardim. Esse signo cultural, ao mesmo tempo em que é colocado como uma alegoria da história e experiência negra em St. Sebastian, também é uma metáfora do falseamento que existe dos portões de Fort Holland para dentro. Lá, tudo é performance. Assim, essa potência do cruzo, de duas interpretações conflitantes, uma exagerada em signos políticos e a outra esvaziada nesse sentido, fundamentam o lugar de Ti-Misery como uma encruzilhada, um campo de possibilidades onde opções se entroncam e se contaminam.
No longa de Tourneur, fica explícito que os tambores dos rituais vodu são o novo código, a macumba, a qual os brancos dizem querer distância. Eles estão protegidos pelos seus portões até que Betsy, em um delírio de paixão pelo homem que a contratou, mesmo contrariada pela matriarca Holland – que descredibiliza os rituais, no entanto, admite se aproveitar da crença da população para passar conhecimentos básicos de saúde -, tem a ideia de levar Jéssica para o ritual, na esperança de que ela se recupere e, assim, faça o homem de sua vida feliz outra vez. No caminho até o local onde acontecem os rituais, somos apresentados a outra personagem, tão decorativa quanto o calcês: Carrefour. No vodu, o espírito Carrefour controla a encruzilhada. Todavia, apesar da importância do espírito para o ritual, ele, assim como Jéssica, também está entregue à passividade em sua condição de zumbi, que segundo as terminologias do vodu haitiano, é uma pessoa que teria retornado dos mortos, através de feitiçaria para servir como escravo de alguém que o adquira através de pagamento a um feiticeiro ou a este mesmo.
Fica evidente a posição de Carrefour como uma rasura entre a vida e a morte. No entanto, com a sua apatia patológica, não transparece guardar os saberes das encruzilhadas, as operações de Exu. Saberes de ginga, de síncope, das mandingas. Carrefour explicita a arte de Tourneur de não criar cisão a partir do tema central, que dá nome à obra. Os zumbis e suas imbricações são, conscientemente, esvaziadas de sentido e servem, em certa medida, como uma distração para o verdadeiro mal existente em St. Sebastian. Apesar de Betsy se assustar com ambos os zumbis, o medo provém das operações de imagens que historicamente ocuparam uma partilha implícita de modos de representação. Carrefour nada faz. Todavia, Betsy se amedronta com a sua presença, como se a existência de Carrefour fosse o suficiente para colocar a vida dela em perigo. As encruzilhadas construídas no filme possuem uma superficialidade inerente a sua própria existência na mise en scène. Tourneur utiliza de um caminho historicamente demarcado, como a violência das imagens por exemplo, para traçar um percurso paralelo de mistério, transversal acima do primeiro.
A matriarca Holland, que em dado momento propaga a ideia de que o vodu é uma fachada na ilha, mais a frente na narrativa admite acreditar na prática ritual e confessa ter, ela mesma, lançado uma maldição sobre Jéssica, sua nora, por que ela era motivo de discórdia entre seus filhos. O estado catatônico da personagem zumbi, apesar de ter sido justificado, permanece, entretanto, em suspenso. Tourneur encontra os códigos, mas escolhe não fazer o movimento de desvendá-los para o espectador. Pelo contrário. Ao final do filme uma narrativa de que o ritual vodu quer o corpo de Jessica é construída. Por uma montagem clássica de plano e contraplano, Tourneur entrega todas as pistas de que Jessica está caminhando por ordem do vodu. Porém, subverte os procedimentos da decupagem clássica à medida em que constrói outra narrativa paralela de um dos irmãos Holland pegando uma das flechas do corpo estático do calcês e tirando o pouco de vida que ainda existia no corpo de Jéssica. Essa ação é replicada na montagem do ritual vodu com uma boneca. Ao recriar a cena em ambos os caminhos da encruzilhada, Tourneur cria uma polissemia visual e exclui qualquer possibilidade de uma verdade interpretativa. Cria, assim, um código outro a ser desvendado. Como espectadores, não sabemos se foi o vodu que tirou a vida da menina zumbi ou se foi o ego da família mais antiga de St. Sebastian, um efeito de cruzo. Quando a tela preta faz sua aparição e dá lugar aos créditos finais, sabemos que houve uma transgressão dos parâmetros da moral pela encruzilhada. Encante e desencante seguem seu movimento contínuo, esperando transgredir para outra coisa.
TEXTO ESCRITO COM DIVERSAS INTERPELAÇÕES DO WHATSAPP.
Proxy Reverso (2014) de Guilherme Peters e Roberto Winter
Em entrevista a Andrea Soto Calderón recentemente publicada em O Trabalho das Imagens (ed. Chão da Feira), Jacques Rancière afirma que a imagem vai além da forma visual: falamos de uma estrutura do mundo e de nossa construção deste mundo comum. É a imagem que se encarna na essência através dos símbolos. E quando esta imagem é interpelada por outra imagem, por um outro mundo? E quando esta imagem vem a partir de um novo estímulo? Quais valores e condições tiramos dela?
A pedagogia da imagem é outra. Enquanto você, leitor, se debruça à nova edição da Multiplot!, é bem provável que sua aba vizinha tenha chamado atenção para um novo e-mail, para uma nova mensagem ou notificação. O seu olho e sua linha de raciocínio seguem para um outro degrau e quando você voltar, não estará mais no mesmo lugar. Assistir a um filme pode ter semelhante efeito quando interpelado por mensagens de aplicativos.
Mas este é um caminho a se pensar acerca dos difusos efeitos da imagem – há diversos sentidos e caminhos para elas quando são encontradas, reutilizadas, recriadas. O trabalho de realizadores como Harun Farocki, Chloé Galibert Laine, Rob Savage, Jacky Connolly, Cao Fei, Kevin B. Lee, Phil Solomon e, claro, Jean-Luc Godard, entre tantos outros, partem da ideia de uma nova configuração da imagem. Um novo sentido e novos mecanismos para elas através do uso de outras naturezas como videogames, desktop e imagens encontradas, seja para recriar algo a partir do que é encontrado, seja para usá-lo como simples influência.
É uma mudança dos termos pedagógicos da imagem e, com isso, do cinema. Nesta edição da Multiplot! investigaremos a posição da câmera (ou sua ausência) nos filmes forenses e sua grande influência na sociedade, os desktop movies que partem essencialmente do falseado do narrador tanto para criar filmes-carta como filmes de gênero, nos filmes feitos a partir imagens com outros fins como o videogame – seriam os filmes feitos a partir de games foundfootage? – entre tantas outras possibilidades, incluindo o arquivo como um meio alternativo de diálogo para interpelações, como uma espécie de performance do autor ao dar um novo sentido a esta imagem – a citar, sempre, o Atlas Mnemosyne de Warburg.
Certamente não é um tópico urgente, necessário, ou qualquer coisa que o valha. Pois é simples, eles estão inseridos e calcados no agora, mesmo que sua base seja um evento ou imagem do passado. Esta é uma edição dedicada aos termos, pedagogias da construção da imagem do agora à sua diluição, esta que Jean-Luc Nancy coloca como “a imagem presente atrás de cada coisa e como a dissolução, tem também, por trás dela, esse sonho pesado de morte do qual viriam os sonhos”.
“«How clearly I have seen my condition, yet how childishly I have acted», says Goethe’s sorrowful young Werther. «How clearly I still see it, and yet show no sign of improvement». […] Note that here, as elsewhere, seeing clearly seems to take Werther, and us, no further.” (Maggie Nelson, Bluets)
I.
Em primeira ou última instância, a questão da representação se refere à pedagogia do fazer as coisas visíveis. Consideremos o debate acerca do realismo: Brecht argumenta que a simples reprodução da realidade não nos diria nada sobre a realidade em si — por exemplo, fotografias das instalações de empresas como a Krupp (armamentos) e a AEG (equipamentos elétricos) quase nada revelariam quanto ao caráter dessas instituições (ele está aludindo ao papel da indústria na remilitarização alemã), de forma que a verdadeira realidade teria resvalado para o plano do funcional. Pois estendamos a mesma suspeição aos avatares virtuais através dos quais hoje performamos a exposição de uma identidade — a realidade também não é apreendida só por via daquilo que foi articulado visando à comunicação interpessoal. Se Brecht abordava a reificação das relações humanas, desde que a virtualização de si assumiu entre nós a condição de processo ritual de subjetivação — a ponto de ser secundário o grau de consciência nisso —, a reificação das identidades passou a estar em causa de maneira análoga: o perfil digital por meio do qual alguém se manifesta exteriormente enquanto pessoa não é indicativo inequívoco de realidade — que se encontra, em sua essência, incrustada no plano subjacente do psicossocial.
Em Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob (episódio especial da série Euphoria, de 2021), acompanhamos uma sessão de terapia da personagem Jules (a atriz Hunter Schafer, que a interpreta, também coescreveu o capítulo). Ela se pergunta: será que não teria passado a vida toda construindo seu corpo, sua personalidade e sua alma em torno do que achava ser desejável pelo sexo masculino? A psicóloga rebate: “Você acredita mesmo que a sua existência, física e emocionalmente, é tão reativa assim? Que não estou vendo e falando com a Jules? Mas com um avatar que ela criou como reação ao mundo?”. Eu estou aqui, Jules responde — entretanto, “o que você está vendo são as milhões de camadas que fui apanhando e retendo ao longo da vida, tomando tudo de outras pessoas, e constatar isso é aterrorizante”. Ela, mulher trans, confessa sua angústia: tinha feito tanto esforço a fim de “conquistar a feminilidade” (até assim incorporar a imagem que desejava transmitir) para sentir que afinal foi a feminilidade a conquistá-la. Jules fala da sensação extenuante que o escrutínio incessante dos olhares femininos lhe provoca — e do modo como isso a induz igualmente a pautar sua feminilidade pela antecipação da apreciação alheia.
O reflexo pessoal de se ir autocondicionando em função da percepção dos outros talvez não seja necessariamente instintivo — e decerto não é com a centralidade psicodinâmica da atualidade. Para uma pedagogia das imagens propícia à era da sociabilidade virtual, a repercussão psicossocial motivada pela massificação delas precisa ser enquadrada como componente primordial de suas condições tanto de produção quanto de recepção. O sujeito da contemporaneidade midiática já não trabalha a própria concepção do eu tendo na sua experiência intransmissível do mundo um referencial preponderante; pois, de forma sem precedentes, ficou digitalmente exposto à mesma versão pública da imagem de si à qual os outros encontram no horizonte de interação interpessoal. Quer dizer, toda imaginação identitária passou a ser norteada pela autoconsciência (dos efeitos e da instância).
Voltando à Euphoria, Jules propõe uma diferença entre olhar e enxergar alguém — o primeiro concerniria às superfícies relacionais; o segundo à capacidade de discernir “a pessoa debaixo de milhões de camadas que não são minhas”. A apreensão da realidade a depender assim, pois, da percepção do invisível nas frestas do excesso informacional. O que, além de tudo, da parte dela conta principalmente como discurso sobre o amor — se dando em face da estilização maneirista dos tropos de transgressão adolescente na qual a série é baseada. A fim de produzir impacto no espectador, a intensificação dos padrões desponta entre as opções dramatúrgicas; bem como para as estratégias de performance. E daí põe-se a questão: sendo a narratividade extraída do comportamento, seria inevitável então que o comportamento desandasse a imitar a narratividade conforme as demandas dela? — mais que gestores da própria marca, maneiristas de nós mesmos?
II.
No tocante à disjunção medular entre performance virtual e presença física, poucos filmes são tão fascinantes em seu registro quanto Searching Eva (Pia Hellenthal, 2019), pois seus desafios formais acabam por ficar expostos em função da iniciativa labiríntica que é confeccionar o retrato de alguém a partir dos termos de sua autoexposição. Nesse caso, para perfilar a vida de Adam (que à época das filmagens utilizava o nome de Eva) — escritor, blogueiro, trabalhador sexual, imigrante, anarquista, adicto, “millennial” etc. entre outras categorizações listáveis com o intuito de cristalizar uma identidade. A face do oversharing raiz, mais confessional e caótico do que autopromocional ou santarrão, refletindo um tempo transicional e o desenlace dos últimos 60 anos de cultura jovem na Europa, a meio da altivez digital e da ternura vislumbrável no convívio pessoal. Apesar de despudorado ao extremo, Adam continuará — encarando a câmera — esfíngico. Sua nudez é negociada, calculada, impulsiva. Cada pose confrontativa em sua corporalidade à partida pode nada significar, mas a identidade online é assimilada de maneira holística e por isso a dissociação semântica entre físico e virtual não se dá de bandeja.
Hellenthal entrelaça seus mecanismos de expressão junto aos de Adam, mesclando estruturalmente os tableaux idealizados com preciosismo e os relatos confessionais extraídos do blogue de Adam, declamados em voice-over, além de perguntas feitas por anônimos em seu Tumblr, na tela exibidas em forma de texto branco sobre fundo preto (um apanhado de mensagens agressivas, confissões espontâneas, curiosidade obsessiva e ressentimento difuso; enfim, a experiência da internet). As imagens de Hellenthal vão alternando entre tableaux de conceito amaneirado e passagens emulando documentários observacionais. Que cenas cotidianas sejam tão manufaturadas quanto as estilizadas não é propriamente a questão. Se bem sabemos que a presença da câmera impõe condições à praticabilidade de qualquer forma de registro que queira postular ao “naturalismo”, dada a massificação brutal das câmeras na sociedade contemporânea, talvez já seja o caso de também estender essa suspeição — aos modos de agir de forma mais ampla.
Adam afirma o desejo de recusar a identificação com uma identidade permanente. Até porque, no seu ponto de vista, “qualquer pessoa pode fingir ser quem quiser”. Enquanto um leitor pede mais selfies, outro digita “eu acho que você não é uma pessoa real e isso está me deixando muito nervoso”. O teor das mensagens enviadas anonimamente pelos seguidores varia entre o patológico, o shitposting e o relacionamento parassocial — “as if their gaze was my responsibility…” é o que resta a Adam, sobranceiro, retrucar. “Faça as coisas sem precisar vincular qualquer significado a elas”, sentencia em resposta a um pedido de conselho. Mas pessoas vincularão significados — por exemplo, a imagens e a atitudes que possam não os ter a princípio (e assim seremos traídos por nós mesmos). A cara que apresentas sempre vai diferir da que os outros assimilam — estímulo disfórico. O filmetermina buscando se aproximar do lado das leitoras de Adam: escutamos quatro vozes sussurrantes fazendo confidências — sobre como ler um estranho na internet pode acalentar, como ler um estranho na internet pode ajudar a construir autoestima, como ler um estranho na internet pode dar forças no processo de autoconhecimento, como ler um estranho na internet pode nos levar a amar esse estranho.
III.
Já no assombroso We’re All Going to the World’s Fair (Jane Schoenbrun, 2021) — essa obra de arte realmente extraordinária —, enfatiza-se a transcorporalidade da experiência à qual é dada vazão pelo regime de virtualização do “eu”, e a subsequente transformação do efeito de ocupar uma tela em agente subjetivador por excelência. A fenomenal Anna Cobb exprime com seu semblante a intensidade emotiva digna de uma Maria Falconetti cujo martírio a ser dimensionado dramaticamente se resume ao tédio e à solidão de nada ter para se escorar fora a banalidade das distrações acessíveis num quarto desamparado. O rosto pulsativo irrompe como tribuna poética à melancolia libidinal; sendo despertado através da mediação do dispositivo, que impele a personagem à performar, e, em função disso, confere a perspectiva de habitar uma realidade propriamente vivível. Fora da tela, testemunhamos a versão cotidiana da presença de Casey (Cobb) se manifestar em forma de corpo prostrado no plano material — “vai-te embora”, é como se ouvíssemos o vento murmurar; “tranca-te aqui dentro”, é a contraparte de gravitação à volta do monitor.
Schoenbrun faz da luz das telas incidindo por cima do olhar de Casey um motivo visual recorrente. Entre projeções e reflexos, a personagem recebe o brilho enquanto ritual de introspecção. We’re All Going to the World’s Fair é um filme sobre civilização — e, se há distintas formas de realizá-los, nesse caso o é pelo enfoque em hábitos e ferramentas. Fundamental então que a conclusão não seja centrada no ponto de vista da garota e sim no do homem mais velho com quem ela interage na internet e que gradualmente passa a orientar a estruturação narrativa. “Continue fazendo vídeos”, ele suplica feito viciado. O horror no âmago de We’re All Going to the World’s Fair se desenrola com duplo caráter: está na dinâmica do fastio existencial e também no fato de que tudo o que a personagem vai colocando para fora de modo a mitigá-lo fica à mercê da distorção alheia — exposta às mais repugnantes expectativas ou compulsões dos outros, tão inevitáveis quanto não-requisitadas. Vemos surgir repetidas vezes o ícone da espera ao próximo vídeo carregar, esse símbolo do cúmulo dos tempos-mortos. Mas os ciclos logo se reiniciam de maneira autômata; as playlists devem continuar. Tudo que começa como atividade termina como forma autoconsciente de teatro — inclusive o ato de existir.
J.C Rousseau nunca está sozinho, seus termos de cinema não permitem. Em um regimento particular de criação, invariavelmente composto pelo realizador, um tripé, sua câmera e um gravador, forma-se a aliança de enfrentamento do acaso que perpassa quatro décadas de imposição fílmica. Enquanto sua linha sonora segue a lógica da exploração do tempo ulterior à gravação das imagens, seus enquadramentos se apegam ao presente do registro, o tempo impossível onde o agora é perpétuo caso produza encontros, formas e direções que satisfaçam o desejo por signos concretizados e brechas narrativas estipulantes. Ou seja, ao decorrer do tempo da bobina de filme que se concentra em imprimir um único plano do mundo (que só será cortado pelo fim da linha da película), dentro das preciosas limitações do espaço e dado o ponto de exploração irremediável do tripé, deve acontecer algo de cinético que, picotado ou não pela póstuma montagem do registro, esteja perfeitamente encenado.
Seria injusto e até desanimador pensar esse cinema como sendo um trabalho de empirismo, até porque não se trata de botar nada à prova de um mesmo método, mas também não podemos deixar de notar que em seus filmes há uma série de experimentos em andamento que caminham para resultados que, mesmo misteriosos, soam conclusivos. O que está acontecendo em filmes como Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre (1983) e o que acontece durante os 10 anos de filmagem de seu projeto mais extenso e complexo, La vallée close (1995) é uma conjuração de limites que, postos ao enfrentamento do registro (a bobina de filme que corre dentro da câmera), em um libertador processo autoritário de gravação, ordenam os elementos diante da lente para que suas particularidades se expressem como um cinema pronto, esteja a câmera enfrentando objetos tácteis (janelas, mapas, cadernos, lâmpadas, portas e espelhos) ou aleatórios (passantes, ruas, mares, árvores, nuvens).
Diferente de outros cineastas que colecionam registros, como Mekas ou Sonbert, ele não está interessado em uma certa espontaneidade presente nas gravações que perduram pela passagem de tempo. Pelo contrário, seu tempo é controlado pela sua encenação, e deles não se espera nada de espontâneo, e sim um cumprimento do que os seus limites impostos na imagem prometem. Em seu primeiro curta, Venise n’existe pas (1984), de 11 minutos, gravado com uma Super8 em um quartinho de hotel em Veneza, é possível desmontar um pouco de sua lógica misteriosa de expressão através de uma atenta revisão de suas poucas sequências.
É enfadonha a tarefa de transcrever um filme num texto, mas nesse caso não há escapatória. Venise n’existe pas pode ser visto como organizado em três partes. O primeiro enquadramento apresenta a janela do quarto, uma fixação recorrente do realizador devido às suas funções múltiplas: é tanto um objeto táctil que serve às encenações (ela abre, fecha, reluz e reflete), quanto um meio de controle da encenação do aleatório (o controle da luz do sol, como se fosse um enorme diafragma, além dos claros limites das bordas da janela que enquadram dentro do enquadramento, que fecham o aleatório da paisagem exposta dentro de uma especificidade irremediável, o que não poderia estar mais próximo das intenções do cineasta). Dessa janela, que reflete um pouco de luz em alguns móveis mas não o bastante para que foquemos no quarto, vemos um enorme barco que vai cruzando águas venezianas. Um barquinho menor cruza rapidamente a paisagem atrás desse barco maior. O som de seu motor vai dando lugar a uma canção em italiano que ressoa pelo espaço (ela vem do barco?) e que vai indo embora à medida que o barco vai sumindo pelo canto direito da janela. A tela fica preta por um instante, é o primeiro corte. Sem a música, ouvimos um trecho de áudio que parece gravado no meio de uma praça, onde som de carros e burburinhos de conversa se confundem. Ouvimos uma buzina. Ainda vemos o mesmo mar, do mesmo plano, e a música anterior retorna. De repente, um barco vem entrando pelo canto direito (seria o mesmo barco?), como se chamado pela canção repetida, e depois, pelo canto esquerdo, um barco menor também vem chegando. No momento em que parece que vão se chocar, a bobina de filme acaba, com a tela bege anunciando seu fim. A imagem retorna, e ainda estamos na mesma janela, com o mesmo enquadramento, só que com menos iluminação. As bordas do quadro, antes percebidas pelos poucos reflexos de luz, agora estão em um breu completo. Portanto, as bordas do quadro se tornam exclusivas da janela, tornando o enquadramento necessariamente vertical.
O que segue é a visão da água por esse quadro vertical que vai escurecendo aos poucos, picotando progressivamente a visão rumo ao entardecer. Vários barcos surgem na estreita paisagem, aparecem sem adentrar os lados, simplesmente se materializam na água, deixando claro que não estamos vendo o tempo escorrido, e sim retalhado. Esses barcos somem e aparecem da tela com certa rapidez, sempre aparecem no meio do caminho e desparecem antes que possam sair por um dos cantos da janela. O tempo não é mais o mesmo, mas o som se repete. Ouvimos a mesma canção (como se o barco do primeiro plano ainda ressoasse, ou deixando claro que o som não vinha mesmo daquele barco) e depois os mesmos burburinhos e os mesmos carros. Parece um loop de suspensão do tempo, onde todo o tempo é o agora, o passado não ecoa, ele se faz inteiramente presente no tempo como se nada realmente deixasse aquela permanência da câmera. A paisagem vai escurecendo até que os barcos se tornam apenas pontos de luz em uma escuridão imensurável. Quem está saindo do lugar primeiro: os barcos ou a janela?
Um filme acaba, entramos na tela bege e depois chegamos a um novo enquadramento. Agora vemos a janela fechada (é a mesma janela do primeiro enquadramento, mas a vista está parcialmente coberta por uma cortina). Com a luz clara vinda da janela e o distanciamento promovido pelo quadro, podemos ver um espelho, um armário, além da cortina, todos refletindo uma iluminação azul que dá uma continuidade torta e inventiva para a água do mar. O cineasta adentra o quadro pelo canto direito, de costas para a câmera, e caminha até o espelho. Seu rosto está distante e turvo, sua expressão não nos diz nada, ele é mais um objeto táctil (talvez seu corpo em tela seja o elemento mais controlado de todos, mais do que suas janelas ou seus móveis, seu corpo é um objeto de cena que o cineasta pode controlar totalmente a presença e as inflexões). Ele deixa de olhar para o espelho, adentra brevemente o quadro da janela deixando sua silhueta em contraluz, e sai pelo mesmo lado que entrou. O som é o mesmo que percorreu os diversos tempos do enquadramento anterior, a canção italiana do barco fantasma seguida pelos sons urbanos. Agora, acontecerá algo realmente chocante, um contraplano!
O contraplano mostra o resto do quarto: uma porta fechada ao lado de uma cama arrumada, modulados pelo domínio da luz azulada que vem da conhecida janela. O cineasta adentra o plano, novamente, pelo canto direito, e senta na cama. Ouvimos mais uma vez o mesmo som de carros e burburinhos. Toca a buzina. Nesse momento, ele interage com o som pela primeira vez, virando o rosto no momento em que a buzina toca. Agora está olhando para a janela, com o rosto iluminado, culpa dessa buzina perene que prova que o único tempo existente é o tempo do registro e, desde que esse registro soe, o tempo presente em que ocorreu nunca deixa de materializar-se. Ele deixa de olhar para a janela e deita na cama por alguns segundos. A canção italiana do barco volta a tocar. Ele levanta e retornamos ao enquadramento anterior. Ele caminha até a janela e abre a cortina com rapidez, mas assim que ela deixa de encobrir parte da janela, a bobina de filme acaba. Não ouvimos o som dessa cortina abrindo. Vamos para a tela bege e depois para a tela preta.
Em seu último pedaço, o filme se concentra em um único plano que abre desfocado. É uma imagem indecifrável e estática, uma paisagem borrada de cores e formas. Agora quem produz o som é o próprio cineasta. Ouvimos ele discar um telefone e desligá-lo antes que alguém atenda, seguido por um cântico que parece fazer com a boca fechada, uma série de assobios e a repetição da mesma negativa. “Non, non, non…”. Surge o som da cortina abrindo junto com o ato de focar a imagem, como se a janela da lente finalmente permitisse que a visão borrada se revelasse.
Agora vemos perfeitamente uma pintura de Veneza, dessas típicas de quarto de hotel, que retrata a paisagem mais turística possível (a ponte de Rialto) com uma estranha profundidade de campo e de texturas quase fotográficas. Pintada no topo, está algo que pode ser tanto a lua quanto o sol. A sombra do cineasta passa pela imagem, que volta a desfocar-se, contraindo todas as consequências da iluminação em que está submetida. Seu reflexo passa mais uma vez pela pintura, mudando mais uma vez a iluminação sobre ela e voltando a deixar a imagem focada. Ouvimos um som ambíguo, algo como uma avenida ou uma estrada, um som que não parece pertencer a nenhum dos elementos anteriores e que não pertence a nenhum dos outros sons que haviam estado em loop nos momentos anteriores do curta. Uma sombra se projeta sobre a imagem, umas luzes se formam sobre sua superfície, mas a pintura está permanentemente focada. Esse local de passagem que é o quarto de hotel, tão comum aos filmes do cineasta, é propulsor de criação por ser essa permanência breve e limitada, nada pessoal, que por si só já prepara toda uma série de limitações que são custosas ao seu modo de registro. Do táctil ao aleatório, o movimento se conecta pela imposição da câmera contra o tempo, pela força do breve e do limitado em se tornar perpétuo, como se o momentâneo fosse a única forma possível de presenciar o firmamento cinematográfico. Depois de encararmos a pintura de Veneza por mais uns segundos, a bobina se encerra, voltamos pra tela bege e então pra tela preta. Silêncio. Aparece escrito: “Venise n’existe pas”. Não é um título, é uma conclusão. O filme acaba.
A morte por suspeita de inanição da desertora norte-coreana de 42 anos Han Sung-ok e de seu filho de 6 anos de idade em Seul configurou um tipo de tragédia evitável que assume a forma de questões grandes demais e dolorosas demais para serem respondidas com prontidão. Uma das poucas informações sobre a identidade e o passado de Han Sung-ok (fornecida por quem pôde ter algum nível de contato com ela) é a de que ela havia deixado a Coreia do Norte em busca de melhores condições de vida. Mãe e filho só foram descobertos cerca de 2 meses após virem a óbito, pela pessoa responsável pela leitura do hidrômetro de onde moravam. O caso perturbador ocorrido em 2019 desencadeou uma série de questionamentos sobre a natureza solitária da morte por desassistência: “por que ela nunca disse que passava por dificuldades?”, “se ao menos ela tivesse pedido”, uma vendedora nas proximidades declararia. O fato é que, para além de questões culturais, quando penso na história Han Sung-ok, o que mais me aterroriza é a naturalização de um individualismo tão entranhado nas dinâmicas do neoliberalismo que uma crise gerada pela falta de recursos básicos passa despercebida num cenário onde o senso de comunidade há muito foi esquecido. E não digo isso apontando somente para os vizinhos de Han Sung-ok. Não é difícil constatar que se trata de uma postura tragicamente universal. A dúvida que fica é: quando e como foi que deixamos isso acontecer?
A primeira vez que vi algo a respeito de Arcadia de Paul Wright foi no blog de um estudioso de Mark Fisher que partia da premissa de que o conceito de “Comunismo Ácido”, desenvolvido inicialmente por Fisher no livro em que estaria trabalhando antes de sua morte em 2017, se relacionava diretamente com a obra de Wright. Arcadia foi um projeto encomendado pelos produtores John Archer e Adrian Cooper, tendo como proposta a realização de um longa-metragem utilizando imagens de arquivo do British Film Institute de modo que pudesse se operar uma reflexão sobre o passado rural dos britânicos e sua relação com a terra. Wright, que até então só possuía experiência com o cinema de ficção, vai conceber um “folk horror” que pulsa através de 100 anos de história em imagens para narrar as curvas e desvios tomados numa trajetória que tem início nas comunidades rurais, nas comunas, nas celebrações e ritos pagãos guiados pelas estações e colheitas, passando pelo deslocamento massivo da população para as cidades e pelas organizações sindicais, greves, festivais de música psicodélica, shows de punk e raves. Nesse sentido, é possível traçar uma relação entre o Comunismo Ácido de Mark Fisher, que vai mirar na contracultura das décadas de 1960 e 1970 para especular sobre a possibilidade de “um mundo que poderia ser livre” através da convergência “da consciência de classe, a conscientização socialista-feminista e psicodélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista” e o ruído provocado pelas redes relacionais que se estabelecem, ainda que temporariamente, no transe musical dos festivais trazidos em Arcadia e tidos ali como uma forma de restabelecer um instinto de coletividade perdido em algum ponto entre a instituição da propriedade privada e a exploração do trabalho.
A Arcádia, esse lugar mítico que aponta simultaneamente para os aspectos nostálgicos e utópicos de uma convivência harmoniosa entre homem e natureza, vai ser reimaginado como uma face obscura de um tempo pregresso. Na superfície, o horror do filme de Wright reside nas imagens que acessam um temor pelo desconhecido, na associação do incomum e do estranhamento ao ameaçador. Máscaras e vestes ritualísticas que simulam entidades animistas e outras criaturas, o frenesi da dança e da música (conduzido pela trilha de Adrian Utley do Portishead e Will Gregory do Goldfrapp), o encantamento, o fogo, a terra e a comunhão são elementos que, aproximados e articulados na montagem, capturam o espectro de um primitivismo assustador (pois distante, selvagem, logo, incontrolável), mas se resguardam ainda intocados por terrores maiores, que vão percorrer uma outra camada do longa, como o êxodo urbano e o esquecimento das raízes, o campo gradativamente se tornando um local reservado ao lazer de uma classe privilegiada, de casas de veraneios, jogos entre famílias abastadas – como a caça à raposa – e de um circuito exploratório dos trabalhadores braçais. Pensando para além dos recortes geográficos, históricos e culturais, a análise da sociedade britânica engendrada em Arcadia escoa para um âmbito mais amplo, de forma que minha pergunta inicial é retomada aqui enquanto uma das premissas dessa horrorificação: há um movimento contínuo de afastamento e negação da comunidade que cada vez mais nos lança a um futuro sombrio, aterrador?
“Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.”
A Trama, em O Fazedor, Jorge Luis Borges
O espectador no apocalipse.
Entre 2005 e 2009, o cineasta Phil Solomon construiu suas obras a partir de imagens realizadas nos jogos GTA: San Andreas e GTA IV, como parte de uma homenagem ao amigo Mark LaPore, cineasta experimental morto em 2005, após realizar com Solomon o primeiro dos filmes dessa série. Crossroad (2005), Rehearsals for Retirement (2007) e Last Days in a Lonely Place (2007) foram rodados dentro de San Andreas; Empire (2008) e Still Raining, Still Dreaming (2009) foram rodados no GTA IV. Os dois últimos, um remake longa-metragem do filme homônimo de Andy Warhol de 1964, e um curta de apocalipse como os três primeiros, são rodados em Liberty City, a versão de Nova York criada pela Rockstar, e não serão cobertos nesse texto pela distância geográfica (e por fins de coesão); me concentrarei nos filmes rodados no estado de San Andreas.
De início, há possibilidade de se questionar sobre as escolhas de “isolar” as imagens do jogo de contexto, no processo de alquimia de Solomon: GTA: San Andreas é um jogo tão divertido e carismático como tenaz e extremamente violento nas suas representações, uma obra que causa desconforto e discussão justamente pela especificidade de suas demonstrações de violência policial e do racismo estrutural impresso nas ruas dessa Los Angeles imaginária – e muito por isso ainda é a melhor representação audiovisual das tensões dos riots de 1992 pós-Rodney King, da cultura do gangsta rap como resistência, e como biografia não-autorizada (e bastante ficcionalizada) dos integrantes do grupo NWA. Solomon, por outro lado, toma a via do abstrato, do apocalipse motivado por um movimento quase incompreensível da natureza, dos fenômenos de destruição acontecendo ao redor sem que se trace explicações possíveis. Desconstruir contextos e ressignificar sentidos é quase um movimento inevitável das imagens encontradas e das modificações do material de origem delas (e Rehearsals for Retirement usa muitos mods e cheat codes para produzir imagens); o que importa é que se há “responsabilidade” no retrato da destruição, há em ambos. Ambos tratam de violência e ambos tratam do fim do mundo, ambos de forma política e ambos de forma experimental.
Em Crossroad, o primeiro dos filmes, nosso setting é na presença de um lugar abstrato, composto apenas pelo pedaço de terra, pela casa que mal acessamos, pelas árvores ao redor, e o buquê flutuante que faz companhia para o protagonista solitário. À beira do abismo, uma nuvem cinza infinita, carregando a chuva que não cessa, com relâmpagos ao fundo que sinalizam que o resto do mundo sucumbiu àquelas adversidades. Em um momento, um avião ocasionalmente passa, como se Solomon e LaPore sugerissem que existe uma luta humana (ou virtual) diante das tormentas eternas; notícias do apocalipse que não acessamos, digamos assim. O porto seguro de CJ, o protagonista de GTA: San Andreas e de Crossroad, é um local não-caracterizado, minimalista, cuja geografia abstrata não detalha um assentamento exatamente, mas sim um palco; a câmera aterrissou em uma simulação de realidade onde a ameaça está toda lá fora.
Há de se desconfiar dessa realidade, como há de se desconfiar de todas as realidades nos filmes de Solomon desde, pelo menos, What’s Out Tonight is Lost (1983), onde a textura radical de interferência na película transforma a impressão do real em uma animação destituída do plano físico naturalista, enveredando pelos céus tomados por riscos, paisagens de sonhos e também dos pesadelos. Em Crossroad a dúvida diante da realidade é diferente, com Solomon e LaPore evidenciando as diferenças físicas desse mundo comentado para o nosso suposto mundo; então a câmera atravessa o buquê, atravessa as árvores no longo loop da caminhada de CJ, interfere na materialidade dos objetos. Nesse extenso travelling, os diretores acompanham um corpo que não conhece limites físicos como os conhecemos – um tempo infinito que existe só dentro da unidade do plano. Partem do mais simples bug das texturas complexas e além do código comum de GTA: San Andreas para comentar a abstração desses símbolos colocados ali para emular o mundo com o qual estamos familiarizados no extra-tela.
Pela materialidade quebrada dos objetos, percebemos a curta extensão de terra desse porto seguro nas alturas. O movimento do código virtual começa a encontrar estabilidade no caos, no tédio demonstrado pelo gestual de CJ frente à tormenta à sua frente. Do alto de sua terra, existe um homem em ação reduzida. A realidade depende demais da materialidade, sem ela o corpo cansa e logo recorre ao repouso. Mesmo diante do fim do mundo, é preciso descer de alguma forma à cidade.
É nessa descida onde começa Rehearsals for Retirement, o segundo filme da série machinima de Solomon. A câmera passeia solenemente pela névoa da paisagem, no loop da programação do jogo, acompanhando a chuva torrencial. Nosso testemunho e do protagonista já começa na localização difusa de Los Santos, deteriorada pela realidade desfeita. Partir da névoa e da chuva constante para os desastres naturais interferindo nas criações humanas, na cidade: o fogo consumindo a matéria, sendo arrefecido pela água, para começar a queimar novamente. A Solomon interessam esses processos naturais porque é deles que extrai as texturas do apocalipse, como se a jornada desses elementos fora de controle fosse o pêndulo para a realidade se manter.
É um passo especialmente obtuso pensando na filmografia de Solomon porque, apesar das intervenções abstratas na superfície da imagem, uma das muitas heranças obtidas de Stan Brakhage, seu amigo e também por vezes mentor, é sobretudo um mundo dolorosamente concreto que o cineasta filma. E na virtualidade de Rehearsals for Retirement, Solomon acha um mundo cuja escala é grande o suficiente para que sua câmera possa voar, sendo ainda muito próxima de nossa realidade, para então tecer seu comentário sobre a textura física do luto, pela perda de seu amigo LaPore, e também simbólico, pela despedida ao mundo moderno do qual estamos diante.
Nessa narrativa as imagens misteriosas desencadeiam num uníssono como um feitiço, quase contemplando o mal sem explicações, dos aviões explodindo sozinhos no céu, do homem que testemunha aquilo impassível, do ruído da chuva e da neblina que a tudo toma. Vemos um carro preso ao trilho do trem, no túnel carregado de fumaça, exemplo claro do que no extracampo tanto interessa a Solomon; o túnel em questão é afastado da área urbana de Los Santos, no trilho do trem que liga o centro da cidade às áreas mais rurais. É um caminho de fuga que o estacionou ali? Quem o abandonou? Para onde foi o motorista daquele fim de mundo?
A câmera que voa, como uma alma pelos lugares que passa, em certo momento estoura a mesma cerca de madeira que vemos no térreo da montanha do primeiro plano do filme. Diferente de Crossroad, aqui Solomon experimenta a presença que se choca com a materialidade, que entra em contato com ela deixando consequências, sem a textura invisível que fazia o corpo do primeiro filme atravessar árvores. Não é sobre uma alma fora do nosso plano, um fantasma digital; a dor em Rehearsals for Retirement é de tentar reunir desesperadamente um corpo para sobreviver às texturas em colisão que tentam o atravessar.
Na realidade à beira do abismo, as imagens surreais se enfileiram, todas de objetos que tentam negociar alguma escapatória da fúria dos elementos. Um carro que se afoga, um buquê que vela algo que não vemos, a bicicleta flutuando com o avião ao fundo. A física foi exposta em suas mentiras e o fluxo do homem digital é de testemunho do ambiente destrutivo, impossibilitado de qualquer revide, retirado do controle que um jogador poderia ter em alguma jornada narrativa mais trivial (e voltaremos a isso mais à frente). Solomon acessa os signos das águas e do fogo para criar uma sinfonia particular de cidade, como o movimento da chuva de Regen (1929, Joris Ivens e Mannus Franken) sob a sombra à espreita, o fim próximo diante do consumo total pelo fogo. Se em Regen a água era assimilada pela cidade de Amsterdã, cuja arquitetura foi desenhada para conter de alguma forma as torrentes, aqui a água incontrolável luta contra o fogo interminável para se tornar refúgio apenas ao final – talvez Los Santos, diferente de Amsterdã, tenha sido desenhada para acabar.
O homem digital que uma vez foi CJ agora observa os pássaros na superfície do mar, na fuga de tudo o que as pessoas construíram, no poder de voar que cessou diante da calmaria da matéria. A destruição aconteceu além das nossas capacidades, mal tivemos chance como atuantes naquele apocalipse; nosso único poder concreto é o da observação, do espectador. Estaríamos passivos diante da cidade?
A mesma questão e a mesma destruição acontece em Last Days in a Lonely Place, o curta seguinte de Solomon, que dessa vez parece funcionar como uma história anterior aos dois: estamos na cidade ainda em decadência, prestes a ruir, mas ainda contendo signos e paisagens suficientes para nos relacionar com uma normalidade. A opção pelo preto-e-branco da fotografia, dessa vez mais enclausuradora e elegíaca, já antecipa todo o fim que iremos testemunhar; não que isso impeça Solomon de articular seu apocalipse sob meandros mais insidiosos, menos diretos. O que há são pistas, como em Rehearsals for Retirement, e é através da topografia de Los Santos que podemos entender um pouco melhor os sinais do apocalipse. Solomon indica mais deliberadamente a sua aproximação cinematográfica entre a Los Santos do jogo com a Los Angeles real; melhor, não a Los Angeles real, mas a Los Angeles imaginada tantas vezes no cinema. E para isso recorre a uma imagem em particular: um cinema abandonado.
O Legal Cinema, a sala retratada, é localizada em Vinewood Boulevard, no distrito de Market. No jogo, é um cinema de centro de cidade, no coração comercial de Los Santos. Não há qualquer reação pública expressiva a esse cinema vazio; ninguém passa na frente dele, não há letreiro indicando qual filme está em cartaz, ninguém parece ocupar a sala que exibe o filme. Quando um carro explode na frente do cinema, nada acontece; na área rural de Los Santos, quase que como consequência, a sala de uma casa começa a pegar fogo. Por essas sugestões desconexas entremeadas a essa imagem recorrente das chamas, sempre mediada pela presença ameaçadora de pessoas à distância, Solomon parece se aproximar da reflexão sobre os fantasmas que objetos e lugares guardam de traumas passados também trabalhado por David Lynch na terceira temporada de Twin Peaks – para citarmos outro realizador que filmou um país com traumas passados.
Repete-se também as imagens de abandono elegíaco, com o vazio urbano preenchido pela atmosfera surrealista: um carro está parado com uma pessoa na floresta, um homem está petrificado sozinho no seu quarto, outro alguém aguarda algo na chuva, uma pessoa diante do mar testemunha os trovões e raios sem reação; a obsessão com os anos 50, um marco sociocultural da suposta civilização que os Estados Unidos construíram para si, através da arquitetura e através do cinema. É quase natural que a imagem que abre o filme seja na réplica do observatório Griffith, não por acaso comentado por Solomon com os ecos de James Dean questionando a hora do apocalipse em Juventude Transviada (1955, Nicholas Ray). Porque Los Santos aqui é a Los Angeles falsa do cinema, a cidade como palco dos filmes que por ali foram rodados. A memória daquele lugar se confunde com o imaginário de cinema, como um conjunto de memórias do que foi aquela cidade antes do fim. E não há conjunto de hábitos enraizados em um lugar revisitado sob o código dos fantasmas e dos filmes, desses rastros imprecisos de memória, que obedeça a alguma ordem sustentável de tempo presente.
No clímax do filme, Solomon compõe um mini-filme estrutural com a imagem da câmera fotográfica virtual testemunhando o Sol em colapso, a bomba atômica do amanhecer. A mesma pan se repete incessantemente, repetindo o gesto de destruição consecutivas vezes ao ponto da anestesia – um apocalipse programado e modificável, artificial. De alguma forma soa mais desolador, justamente porque o movimento de retorcer texturas virtuais termina irresoluto, abandonando os lugares e personagens que retratou por frestas. O incêndio foi apagado no Legal Cinema e nada mudou.
A calmaria nesse epílogo, na modulação dramática de Solomon, faz parte de um movimento de entrega. Há a vitória da natureza, há também a vitória do mistério intransponível. Escorraçados pela realidade, personagens se fragmentam; alguém sente sua solidão sob as sombras do quarto vazio, alguém se resigna com a realidade ao observar a indiferença do mar. Novamente: estamos passivos diante do movimento anônimo da cidade?
O jogador no apocalipse.
Solomon pergunta isso com imagens que representam, supostamente, o oposto ao que se espera de um videogame como GTA: San Andreas. Ao andar por Ganton, ou dirigir por Vinewood, ou mesmo voar pela área rural de Red County – onde Solomon filma um dos trechos finais, no aeroporto poeirento de lá -, existe a sensação de liberdade e de tempo próprios, no controle total do jogador. Mas pensemos no modo história – o verdadeiro diferencial que torna o jogo tão influente e tão agressivo como comentário para as transformações de Los Angeles em 1992 diante da brutalidade policial, das guerras de gangue e do racismo explícito expressado na gentrificação da cidade. Ao longo de 30-35 horas, somos transportados àquele mundo, executando as missões que guiam a história sob nosso tempo e vontade, mas planejada sob obstáculos que exigem a completude dela para que se aproveite a extensão do jogo por completa: San Fierro e Las Venturas, as cidades vizinhas a Los Santos, só surgem conforme o modo campanha avança, áreas da cidade são modificadas conforme a história progride, locais são desbloqueados à medida que missões são realizadas. Pensando dessa forma, a tal “liberdade” dos videogames, mesmo dos jogos sandbox, é apenas um leque maior de atividades e do flanar no mundo proposto pelo jogo; não caracteriza de fato uma liberdade total para se criar o que bem entender, mas sim uma liberdade negociada com o total controle criativo e narrativo dos designers do jogo.
Teoricamente, a distância das imagens de Crossroad, Rehearsals for Retirement, Last Days in a Lonely Place e GTA: San Andreas se apoia no argumento da “atividade” dos jogadores da Rockstar diante da “passividade” dos espectadores de Solomon. Mas tendo em mente que ainda estamos, enquanto jogadores, desvelando uma realidade programada – e, mais importante, linear, porque liberdade está diretamente associada à tempo -, essa distância se configura de fato como algo coerente?
É onde entra a teoria de Jacques Rancière em seu ensaio O Espectador Emancipado, de 2008. O filósofo francês não adentra nos signos dos videogames (ao menos não aqui), mas cria toda uma ideia dessa dissociação entre passividade e atividade do espectador a partir de teorias teatrais. Rancière exemplifica duas vertentes ideológicas do teatro, a do teatro épico de Brecht em se propor “a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas.” [1], e a do teatro da crueldade de Antonin Artaud, em propor que o espectador “deve ser desapossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral.” [2]. Brecht dialoga com o espectador sob os termos da dialética franca, do ator que comenta direta ou indiretamente seu personagem através de sua impressão, e do espectador que é convidado ao debate político do texto e da encenação sem que para isso seja posto sob o véu da imersão narrativa, da (suposta) ilusão. Já Artaud pensa nessa mágica da encenação, de um espectador que assimila experiências sensoriais sem a princípio racionalizar essas impressões. Com isso, é construído o argumento de que o espectador de Brecht é mais “ativo”, pelo seu convite à reflexão das obras, enquanto o de Artaud é mais “passivo”, pela ideia da escuta que não atravessa a quarta parede do palco.
A questão para Rancière é menos de como essas teorias são válidas ou não, até porque ambas foram aplicadas magistralmente por cada um dos diretores/dramaturgos, e mesmo a interpolação entre ambas é possível em qualquer ramo das artes: da mesma forma que Michael Snow parte do cinema de paisagem que data dos Lumière para o aliar à sensorialidade pictórica das fusões e da montagem focada no cinema estrutural em Wavelength (1967), ou as pinturas entre 1910 e 1920 de Giorgio de Chirico, que pôde partir do impressionismo francês e das paisagens holandesas para chegar ao “surrealismo” de sua obra – entre aspas, porque nem mesmo entre os surrealistas ele fôra classificado após se afastar da sua fase metafísica. Não é sobre as obras que Rancière fala sobre, e sim sobre o papel de quem as recebe. E a questão central é do porquê dessa estranha dicotomia entre espectador e letargia, ou “por que assimilar escuta e passividade (…)?” [3]
Para Rancière, tanto no teatro épico quanto no teatro da crueldade isso coloca espectadores e atores em direto confronto estrutural, porque é dessa forma que desqualifica-se o espectador porque ele não faz nada, enquanto os atores em cena ou os trabalhadores lá fora põem seus corpos em ação”. [4] No cinema isso funciona de forma razoavelmente similar, uma vez que também existe o véu da quarta parede – imaginária no teatro, palpável na tela de cinema – e também existe a falta de controle do tempo na recepção daquelas imagens. No cinema e no teatro, estamos reféns do tempo de seus criadores. Já nos videogames, quem recebe as imagens não é o “espectador”, e sim o “jogador”. Ao jogador é entregue o controle, as possibilidades de renovar os caminhos da narrativa, de ponderar e decidir como serão aproveitadas as opções programadas nos jogos, o tempo no qual a obra será jogada; em síntese, ao jogador é dada a escolha.
E isso é tratado de forma ferrenha por uma parte do público de games. Obras como Thirty Flights of Loving (2012, Blendo Games), e os mistérios criados pelo diretor David Cage, Heavy Rain (2010, Quantic Dream) e Detroit: Become Human (2018, Quantic Dream), entre tantas outras, desafiam o controle do jogador, o omite da ação em prol de decisões morais, ou dedica foco maior em narrativa em detrimento de uma jogabilidade mais clássica; é só procurar em fóruns, nos comentários da Steam ou algo similar, para vê-los sendo classificados pejorativamente como “filmes interativos”, ou nem mesmo isso. Há também os jogos focados em uma história que é traduzida diretamente na jogabilidade, mais “clássicos”, mas que através dos caminhos narrativos tomam decisões emocionais que despertam a sensação de “traição” no jogador. Tomemos dois desses jogos como exemplos, Bioshock (2007, Irrational Games), um shooter de ficção-científica especulativa em primeira pessoa, e Spec Ops: The Line (2012, Yager), um shooter de guerra em terceira pessoa.
Bioshock começa com Jack, um protagonista sem memória que sobrevive a um desastre aéreo caindo no mar, e que busca refúgio em um misterioso farol no meio das águas. Lá descobre a cidade de Rapture, uma utopia subaquática moldada em volta do suposto livre pensamento e do espírito de ação, ideias promovidas pela literatura reacionária da escritora Ayn Rand. Ao longo do jogo, percebemos que aquela cidade uma vez próspera e ultratecnológica virou um apocalipse, com os habitantes tornados zumbis e ambientes destruídos por uma guerra civil. Nessa atmosfera de survival horror, uma voz nos guia para entender o que motivou o fim da cidade. Seguindo esses objetivos, vamos logo percebendo que a presença do protagonista ali é programada: sua (e portanto nossa) jornada é matar Andrew Ryan, o idealizador da cidade, que através de sua covardia em se blindar diante da ideologia de ação humana é assassinado por nós sem reagir, porque reagir seria interferir na escolha do jogador. Nossa ação é orquestrada por Fontaine, um político que confrontou Ryan e usou o povo, através da religião que antes era proibida na cidade, para questionar a utopia do magnata. Nossa queda na ilha era parte do plano para matar o rival de Fontaine, e o protagonista sofre uma lavagem cerebral para realizar tudo o que Fontaine manda. Claro que eventualmente o final do jogo é voltado na vingança contra o vilão que nos ludibriou, mas isso não tira um decisivo fator de Bioshock: enquanto jogadores, fomos enganados por 12 horas de narrativa.
Durante toda a história, faz parte da trajetória do protagonista que controlamos que ele funcione como um “vilão” não-declarado do jogo, que ele execute sua missão sem saber que a está realizando; com essa ferramenta controversa, o diretor Ken Levine busca uma reflexão sobre a suposta elucidação que as escolhas pregadas por Ayn Rand falam, e que não levam em conta a sociedade como um lugar de equidade e alguma justiça sociopolítica. Levine questiona o excepcionalismo nojento da escritora confrontando suas idéias na forma de Rapture, a cidade-fantasma destinada aos grandes feitos da humanidade mas que esconde terrível desigualdade social nas suas raízes; “escolha” não é um conceito que se aplica a todos nessa utopia. E com essa discussão, Bioshock fala sobre a própria ideia de escolha nos jogos: caso fôssemos avisados de antemão, talvez não houvesse narrativa alguma. Sofremos um direcionamento míope para melhor imersão na própria jornada emocional de Jack. Enquanto força trabalhadora, enquanto “operário”, a Jack não é dado o direito da escolha. E como jogadores percebemos que “jogar” não é sinônimo de “atividade”, ou de “escolha”; estamos no terreno pré-programado, imaginado, pelas escolhas das mentes da Irrational Games.
Isso é diretamente exemplificado também em um segmento de Spec Ops: The Line, brilhante adaptação de Coração das Trevas, que cito brevemente. Jogamos como Martin Walker, um soldado que, junto a dois outros fuzileiros, deve cruzar uma Dubai destruída por tempestades de areia para resgatar o capitão John Konrad, que ficou supostamente preso numa missão de resgate. Um dos soldados companheiros de Walker questiona sobre o uso de uma bomba fosforescente, uma arma química que derrete a pele dos afetados por ela. Ele diz que Walker “viu o efeito que essa bomba causa”, e que não deve usar. Walker então responde que “não tem escolha”, ao que o soldado replica que “sempre há escolha”. É quando o protagonista arremata: “não, não há”. E após essa cena o jogador é obrigado a jogar uma arma biológica terrível sobre seus inimigos, para mais tarde descobrir que matou dezenas de inocentes no ataque, em uma cutscene muito impactante e controversa.
Esse metacomentário de Walker, que diz com todas as letras que “não há escolha”, nos força a pensar, como em Bioshock, na essência de escolha atribuída a esses jogos. Nossa “impotência” diante dos eventos que tomam forma à nossa frente desvela explicitamente essa falsa ideia de controle do jogador. A questão é, como cito em Rancière anteriormente: essa “falta” de escolha significa passividade? Não estamos aproveitando uma experiência imersiva e sensorial baseada no nosso olhar e nossa reflexão? Essa distância, esse “controle”, é mesmo necessário para se ter uma relação frutífera com uma obra? Cabe aqui pensar então que é possível, também, a “emancipação” do jogador. Seguir um caminho determinado não nos impede de ter uma opinião sobre, de construir ligações com os signos ali apresentados. A emancipação do espectador proposta por Rancière passa por outro lugar, já que “começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir.” [5] Atribuir uma qualidade ao fato do jogador, diferente do espectador, ter esse “controle” que já se provou em muitos casos imaginário, é negar que a recepção de obras cinematográficas tem preceitos tão ativos quanto.
Nos filmes de Phil Solomon existe menos liberdade de fruição e interpretação, menos atividade de quem assiste e joga, do que em games como os Far Cry mais recentes ou Ghost Recon: Wildlands, jogos repetitivos e cujos objetivos de ação se restringem às mesmas missões ano após ano? Existe mais ação e atividade mesmo em um ótimo jogo como The Last of Us (2013, Naughty Dog), uma aventura linear cujos mecanismos narrativos são bastante definidos e pré-programados, cujo desenvolvimento de personagens se assemelha tanto a vários exemplos no cinema clássico-narrativo americano? O mesmo vale para o oposto: não existem menos interpretações, reflexões e ganchos emocionais em Bioshock como existem em Rehearsals for Retirement, e presumir isso seria trair o fato de que “o que está em ação é sempre a mesma inteligência, uma inteligência que traduz signos em outros signos” [6], que Rancière aponta no ensaio.
Essa ideia da liberdade do jogador diante dos games, sejam eles em mundo aberto ou não, soa diretamente como a falsa liberdade do espectador chamado à ação no teatro apontada por Rancière. A noção dicotômica permanece falha, e como o francês aponta, “caberia hoje reexaminar esses princípios, ou melhor, a rede de pressupostos (…): equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade (…); oposições entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação.” [7]
Do espectador não é tirado o controle que um jogador teria; somos chamados a um novo tipo de fruição, tão complexa quanto a de alguém jogando, na atividade de um espectador buscando ligações sensoriais entre os planos, para que então possamos compor nosso “próprio poema com os elementos do poema que tem(os) diante de si.” [8]
A dialética das imagens propostas por todas essas obras, de duas artes aparentemente distintas, funciona sob a mediação do artista que realiza sua obra e que também escuta, de certa forma, o espectador/jogador, através das questões e reflexões dos espectadores, e da fruição interativa e interpretativa dos jogadores. Rancière levanta o quanto essa distância não deveria ser inquisidora, sob alturas distintas de argumentação, e sim uma troca comunicativa cujas transformações virão de ambos os lados, já que “a distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação.” [9] O escritor diz que “a distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto.” [10], e como tal, os jogadores precisam ir do ponto A, que conhecem, ao ponto B, que os designers do game conhecem; não existe hierarquia pejorativa, existe diálogo e dialética, e é dessa fricção que se gera conhecimento.
Em GTA: San Andreas, podemos vasculhar a densa e vasta topografia daquelas três cidades, supostamente com a liberdade da não-linearidade, da escolha; decisões de game designers que entendem que o jogo de aparência que envolve “liberdade” é uma convocação à exploração curiosa de um espectador/jogador precisamente limitado aos desejos e regras dos criadores da obra, mas sempre se reconhecendo como tal, sem ilusões; um jogador emancipado como o espectador de Rancière. Quando estamos diante dos filmes de Solomon, não é diferente: espectadores expostos a signos enigmáticos, abstratos, cujas imagens inspiram memórias e reflexões próprias que forçam o espectador a lidar com um objeto tão oblíquo e capaz de despertar reações emocionais tão diversas, através de seu desenho de som focado em noise e ambient como um fluxo constante, ou com a torrente de imagens cataclísmicas geradas por códigos virtuais e a inteligência do quadro e do corte do cineasta. Não existe relação de qualidade entre o espectador de Solomon e o jogador da Rockstar; ambos estão em diálogo constante e fluido. Como aponta o filósofo francês, “é nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador. (…) Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa situação normal.” [11]
Quando se tira totalmente o controle das mãos do jogador, o suposto poder de decisão delimitado pela Rockstar, Phil Solomon escancara dois tecidos muito densos da realidade, mas que nunca soam contraditórios: estamos passivos na experiência cinematográfica de algo que nasceu na “atividade”, e ao mesmo tempo estamos conscientes como espectadores de podermos articular interpretações distanciadas que não teríamos caso estivéssemos sob a teia da imersão em terceira pessoa do agir no jogo; é demonstrado que somos capazes de produzir aquelas imagens porque estamos num mundo de recursos de ação familiares aos olhos, e simultaneamente nos é destituído o véu da missão, nos sobrando apenas o fluxo espiralado de confronto de uma natureza fora do (aí sim) nosso controle. No caos urbano de Los Santos, seja na versão oficial da Rockstar ou no mod cinematográfico concebido pelo tempo de Solomon, estar jogando ou assistindo são convites igualmente atraentes a quem está do outro lado da tela repensar o fluxo contínuo e anestésico do que significa agir.
Referências:
[1] – O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, pág. 10
A narrativa precisa ter caráter (…), indicar o propósito moral (…). É por isso que argumentos matemáticos não possuem caráter, uma vez que também lhes falta propósito moral (…).1
Aristóteles, A Arte da Retórica.
Se forjássemos (…) máquinas de contar histórias (…), que funcionassem sozinhas, (…), elas funcionariam absolutamente como o Sr. Flaubert. Sentiríamos nessas máquinas tanta vida, alma, entranhas humanas, quanto no homem de mármore que escreveu Madame Bovary com uma pluma de pedra, como uma faca de selvagens.
Barbey d’Aurevilly, Le Pays, 6 de outubro de 1857
A originalidade da fotografia com relação à pintura reside (…) em sua objetividade essencial. Tanto que o grupo de lentes que constitui o olho fotográfico substituindo o olho humano se chama precisamente “a objetiva”. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação, nada se interpõe além de outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem intervenção criadora do homem, segundo um determinismo rigoroso.3
André Bazin, ‘Ontologia da Imagem Fotográfica’ em O Que é o Cinema?
A arma autoguiada da Segunda Guerra Mundial deu cabo de dois conceitos fundamentais da modernidade – o da causalidade e o da subjetividade. – e iniciou a atualidade como era dos sistemas técnicos. (…). Quer sejam digitais ou analógicos, os sistemas técnicos são sempre autônomos.4
Friedrich Kittler, ‘Unconditional Surrender’, em A Verdade do Mundo Técnico.
O registro impassível da realidade é historicamente associado à matemática, às máquinas e – como no caso de Flaubert – ao obsceno. Desde, pelo menos, Aristóteles, a falta de comentário, a ausência de um juízo claramente articulado, costumam ser interpretadas como lacunas retóricas e morais. Há pouco mais de cem anos, a fotografia e o cinema – pretensamente livres de subjetividade – vieram complicar essa discussão. Nas últimas décadas, sistemas automáticos passaram a afetar quase todos os aspectos de nossas vidas, tornando questões sobre neutralidade e despersonalização incontornáveis e cada vez menos claras. Qual é o caráter de uma decisão automatizada? Como decodificar discursos sem narração manifesta? E, em contrapartida, até que ponto devemos nos deixar convencer pelas intenções alegadas pelas interfaces e narradores em primeiro plano?
O Auge do Humano
Em O Auge do Humano (El Auge del Humano, Eduardo Williams, 2016) temos um estilo aparentemente neutro retratando um mundo supostamente impessoal. Caso ideal, portanto, para a discussão desses temas. Antes, no entanto, um breve histórico.
Retórica – limpando a barra do narrador
No segundo livro da Retórica, encontramos duas proposições: “o objetivo da retórica é formar um juízo” e “devemos atentar não apenas para que o discurso seja demonstrativo e persuasivo, mas também que o discursante demonstre possuir certas disposições (…)”. Sob essa ótica, o discurso não deve apenas descrever objetos ou situações, mas também estabelecer e resguardar a posição moral do próprio orador com relação ao que está sendo abordado.
Vale lembrar que, em suas primeiras décadas, era difundida a crença de que os que os filmes apenas registravam, sem comentar, as cenas que capturavam (um cinema de mostração, como dizem alguns estudiosos do período). Não por acaso, a nova mídia foi taxada muitas vezes como imoral. Poucos anos depois, a transição para o modo narrativo foi essencial para garantir a aceitabilidade social e viabilidade econômica das indústrias cinematográficas: contar uma história permitia propor uma moral da história (e de mundo).
O arco narrativo passou a funcionar como álibi: todas as ambiguidades e dissonâncias morais deveriam ser sanadas impreterivelmente até o final de cada trama. Mas isso nem sempre era o suficiente. Reagindo à acusação de que os filmes de gângster romantizariam o crime e os criminosos, Scarface (Howard Hawks, 1932) tenta abrandar seu conteúdo anárquico e “formar juízo” por meio de um texto introdutório, cuja condenação ao modo de vida de seus personagens é reforçada pelo subtítulo “Vergonha de uma Nação”. Podemos questionar o grau de consistência (ou sinceridade) desse alegado respeito aos bons costumes, mas o texto que abre Scarface integra uma longa tradição.
Texto introdutório de Scarface – A Vergonha de uma Nação. Criticando a indiferença do governo etc. etc.
Flaubert no banco dos réus
Em 1857, pouco depois da primeira publicação de Madame Bovary, Flaubert foi processado por ultraje à moral pública. O desconforto causado pelo romance costuma ser associado a uma descrição impassível de atos imorais, atenuando a voz do narrador em favor da perspectiva dos personagens. Nas discussões da época, o estilo do autor chegou a ser descrito como “fotograficamente exato”, comparando-o a uma tecnologia de produção de imagens considerada neutra e, portanto, amoral. O processo, contudo, foi decidido em favor do réu. Antoine Sénard, o advogado de defesa, contestou as acusações da promotoria afirmando que “o desenlace em favor da moralidade se encontra em cada linha do livro” (justificativa provavelmente tão suspeita quanto o texto que abre Scarface). De qualquer forma, a absolvição contribui para uma verdadeira jurisprudência interpretativa: o “caráter” da narração (para retomar o termo aristotélico) poderia estar subentendido e não precisa ser imputado exclusivamente à clareza enunciativa do narrador, dependendo igualmente do processo de leitura e recepção. Ironicamente, a primeira adaptação hollywoodiana do livro (dirigida por Vincente Minnelli em 1949) começa com uma versão dramatizada desse julgamento, enxertando assim a justificação moral que faltava à obra original, manobra necessária em tempos de Código Hays.
James Mason como Gustave Flaubert no início do Madame Bovary de 1949
O humano
É difícil atribuir intenções e juízos a O Auge do Humano. O filme (per)segue grupos de jovens em três países distintos (Argentina, Moçambique e Filipinas), em saltos espaciais sem motivação aparente. Em uma sinopse rasteira, poderíamos dizer que o fio condutor da ‘trama’ é a existência millenial em tempos da onipresença da tecnologia, mas essa sinopse é desautorizada por uma análise atenta. Várias das situações apresentadas envolvem falhas tecnológicas: falta de luz, celulares quebrados ou descarregados, internet inacessível – um colapso intermitente e sem explicação, que sugere um estado pós ou pré-apocalíptico. Na cena inicial, um rapaz emerge do escuro em sua casa de subúrbio, abrindo a porta para a rua alagada, talvez pós-diluviana (ou pós-colapso climático).
O Auge do Humano
Durante o primeiro segmento, esse mesmo personagem procura demoradamente por um local com acesso à Rede, mas quando finalmente o encontra, não parece precisar dela – dentro de um quarto fechado, em que rapazes nus ou seminus se exibem por dinheiro na frente de uma sexcam. O garoto que acompanhamos até então é o único a permanecer vestido e não participativo, sem parecer extrair, tampouco, estímulo erótico da cena em volta. A dinâmica se repete durante o segmento filipino, quando uma jovem procura um cybercafé no meio da selva, interpelando todas as pessoas com quem cruza pelo caminho, obtendo indicações que esquece ou desconsidera imediatamente depois, repetindo a mesma pergunta para os próximos passantes.
O Auge do Humano
Se O Auge do Humano é “sobre tecnologia”, como explicar que a maior parte de suas cenas envolva perambulações pelo espaço físico – periferias urbanas, mas também selvas e florestas? Como explicar a cena em que um grupo, sem motivo aparente, se reúne para conversar em um oco de árvore? Se é um filme sobre millenials, como explicar a sequência em que a câmera penetra em um formigueiro em Moçambique, espiona por cerca de cinco minutos a vida das formigas e cuja saída nos leva às Filipinas? Deveríamos recorrer a metáforas, os jovens como formigas, a internet como o formigueiro?
Seria o filme uma crítica à dependência tecnológica das novas gerações, sua passividade e falta de pudor? Ou deveríamos nos concentrar em uma leitura socioeconômica, considerando o estado de subemprego de boa parte dos personagens, mais bem recompensados se exibindo pela internet? A maneira como as cenas das sexcams são filmadas pode trazer um pouco de luz à discussão. Durante a primeira, na Argentina, temos um plano-sequência de cinco minutos e nenhum movimento de câmera, sem corte ou afastamento do olhar nos momentos em que os atos se tornam mais explícitos. Se o filme é um discurso moralista, porque não temos qualquer elipse, uma vez apontada a presença do ato condenado? Se, por outro lado, trata-se de um millenialexploitation, como interpretar a falta de ênfase e sensacionalismo?
O Auge do Humano
Já na segunda, os rapazes de Moçambique são espiados a partir de uma tela de computador na Argentina, que exibe várias janelas: a sexcam à esquerda e um artigo sobre corpos e anticorpos à direita. O artigo explicaria, por acaso, o sentido e o juízo da obra? É uma chave hermética ou uma pista falsa?
Ambas as cenas nos remetem a ‘A Mensagem Fotográfica’, artigo publicado por Roland Barthes em 1961. A cena argentina, a impassível, faz mais do que se abster do juízo: muito antes, parece chamar atenção para a própria abstenção de juízo, uma vez que “não há cena filmada cuja objetividade não seja em última análise lida como o próprio signo da objetividade”. Não estamos, provavelmente, diante de uma omissão ou ignorância retórica, mas de uma bem-articulada “resistência ao investimento de valores”. Aproveitando a definição barthesiana: “quando se quer ser “neutro, objetivo”, a gente se esforça por copiar minuciosamente o real, como se a analogia fosse um fator de resistência ao investimento de valores”.
Mas retomando dois termos usados por Barthes na passagem citada, se O Auge do Humano é “neutro” e anuncia a própria neutralidade, dificilmente poderia ser classificado como “objetivo”, considerando os seus já apontados elementos de obscuridade e non-sense. O que nos leva de volta à segunda sexcam, em Moçambique, inicialmente visualizada na Argentina e que serve de transição entre o primeiro e o segundo segmentos.
O Auge do Humano
Como já mencionamos, a janela que enquadra a performance dos garotos está à esquerda de outro navegador, em que consta um artigo sobre biologia. Barthes, ainda em ‘A Mensagem Fotográfica’, comenta sobre como as legendas são utilizadas para restringir o campo semântico de uma fotografia, desempenhando funções de explicitação e especificação. E, acrescenta, também podem produzir ou criar “um significado inteiramente novo e que é de algum modo projetado retroativamente na imagem”. Para além da projeção retroativa, há tentativas de contenção preventivas, como na já aludida abertura de Scarface ou em um dos primeiros intertítulos de O Nascimento de uma Nação (Griffith, 1915), cuja apologética ecoa questões levantadas por Aristóteles e durante o julgamento de Flaubert: a narração e o narrador devem se posicionar com relação à imoralidade que “retratam” ou arriscarem-se à acusação de cumplicidade.
‘Nascimento de uma nação’, intertítulo, fazendo exigências.
Não há, evidentemente, uma equivalência entre essas três práticas – legendas em fotografias, textos introdutórios em filmes e uma janela de navegador integrada ao mundo diegético – mas há um paralelo entre as situações: a inflexão – ou expectativa de inflexão – da imagem pela palavra escrita, especialmente como antídoto contra a dubiedade ou o vácuo de sentido. Mas no caso do Auge do Humano, encontramos, mais uma vez, ruído ao invés de esclarecimento: condicionados pelas convenções narrativas, esperamos que a imagem-texto exibida (o artigo sobre os anticorpos) contenha alguma relevância para a trama, hipótese que não é confirmada pelo restante do filme.
Temos, portanto, uma primeira cena cuja neutralidade estilística ostenta a própria neutralidade retórica e uma segunda cena que destaca um elemento comumente semântico (o texto contíguo à imagem, o texto na imagem), utilizado de forma assignificativa. Todo esse preâmbulo serve de advertência para a parte final deste texto: O Auge do Humano é um filme resistente à atribuição de sentidos, mas ainda assim iremos utilizá-lo – arbitrariamente – como contraponto a algumas proposições do teórico da mídia Friedrich Kittler, reunidas na coleção A verdade do mundo técnico.
A verdade…?
Escrevendo em 1997, Kittler defendia que a análise dos sistemas de poder era inseparável da investigação sobre a lógica dos sistemas técnicos – uma interpenetração entre tecnologia e formas de organização humana:
Em primeiro lugar, deveríamos tentar conceber o poder não mais como função da chamada sociedade, mas construir a sociologia a partir das arquiteturas do chip. À primeira vista, parece lógico analisar os níveis de privilégio de um microprocessador como verdade daquelas burocracias que incentivaram seu desenvolvimento e realizaram sua aplicação em massa. Existem razões pelas quais a distinção entre supervisor level e user level na Motorola, e entre protected mode e real mode na Intel, ocorreu nos anos em que os Estados Unidos começaram a construir um sistema impermeável de duas classes. (…); num império cuja população só vê o resto do mundo na tela do televisor, pensar em algo como política se torna um privilégio governamental. (Kittler, 2017, p. 363)
Essa configuração teria se instaurado desde (pelo menos) a Segunda Guerra Mundial, com o início do processo que “substituiu tubos, indutores e capacitores por placas de circuito impresso” (p. 349). As mudanças introduzidas extrapolaram em muito o simples upgrade de armas e equipamentos. Tecnologias de telecomunicações, burocracias estatais e corporativas, prioridades de pesquisa científica e o Estado de Vigilância – todos remeteriam diretamente ao período. Mas Kittler propõe uma inversão da causalidade esperada: foi a revolução técnica que serviu às necessidades do conflito ou, pelo contrário, a Guerra e o seu desenlace foram condicionados pelo desenvolvimento irrefreável da Técnica? Findo o combate, a evolução tecnológica prosseguiu imperturbada, apesar da eventual troca de supervisores e usos (envolvendo a transferência de um enorme contingente de cientistas alemães para os poderes Aliados). As pesquisas nazistas de desenvolvimento de foguetes permitiram o nosso atual sistema de satélites, enquanto os esforços de contra-inteligência britânicos criaram os primeiros computadores (lembremos da citação de Aristóteles que abriu esse artigo: “argumentos matemáticos não possuem caráter, como também lhes falta propósito moral”). A convergência de ambos viabilizou tanto a Internet quanto a NSA:
Seus satélites de espionagem interceptam a telefonia, a telegrafia e a telecomunicação por micro-ondas, ou seja, o correio de todas as regiões da Terra, seus computadores decodificam eventuais máquinas de codificação intercaladas, scrambler etc., arquivam automaticamente a mensagem e detectam automaticamente palavras-chaves suspeitas. O resultado disso é que 0,1% de todas as telecomunicações do planeta é absorvido pela inteligência artificial da NSA. Ninguém sabe o que acontece com isso. (…) (Kittler, 2017, p. 328)
De forma não literal, O Auge do Humano ilustra a ubiquidade quase invisível desse olhar eletrônico e especialmente a sua inescrutabilidade. Há uma tentação inicial de vincular as imagens do filme ao exibicionismo e aos registros do cotidiano postados no Youtube, Instagram ou Tiktok, mas na maior parte do tempo, os personagens ignoram que estão sendo filmados (às vezes o pressentindo: “Não sei se tu consegues ouvir”, diz um dos moçambicanos em plena savana, “sinto que alguma coisa está a espiar-nos”). Williams trabalha com uma combinação de movimento e rigidez: imagem estática quando os personagens estão em ambientes fechados, móvel enquanto perambulam. O distanciamento entre câmera e atores introduz uma perturbação, quase os deixando escapar, apenas para recaptura-los logo depois. Mesmo uma interpretação voyeurística parece inadequada: nas cenas de sexcam, os garotos interagem com métricas virtuais: os dólares acumulados e a quantidade de usuários on-line, que varia de acordo com uma lógica obscura. Sequências terminam antes da ação tornar-se inteligível, como se obedecendo a um desapaixonado critério de amostragem – dois personagens planejam entrar sorrateiramente em um estabelecimento (loja?), mas não descobrimos nem as razões nem o resultado da tentativa. Há, portanto, uma causa adicional de ansiedade: nada indica que a inteligência que nos vigia seja reconhecivelmente humana.
O Auge do Humano
Essa inacessibilidade é a marca do “ideal criptográfico” e das “funções de mão única” (p. 357), a barreira de cognoscibilidade interposta entre usuários e código. Se concordarmos com Kittler, suas ramificações não se resumem à vigilância, pautando igualmente a nossa organização socioeconômica. Pelo menos dois personagens perdem o emprego ao longo do filme, mas não há patrões à vista em O Auge do Humano – a única interação entre as partes ocorre via telefone celular. A última cena do filme se passa no ambiente asséptico de uma fábrica de tablets nas Filipinas e a única voz ouvida provém de um aparelho de checagem, validando o trabalho do grupo de funcionários. Aqui, os computadores não somente “assumem sua própria reprodução” (p. 303), como também supervisionam os trabalhadores da linha de montagem. Podemos interpretar Kittler literalmente e acreditar em um já instalado domínio das máquinas ou apontar interesses totalmente humanos por trás dessa forma de organização do capitalismo tardio. Ou, ainda, pressupor qualquer combinação entre esses dois pontos de vista. De uma maneira ou de outra, os sistemas técnicos se tornaram parte inescapável de nossa realidade e são – recorrendo uma última vez à terminologia aristotélica – ou amorais ou silenciosos quanto a seus verdadeiros juízos e disposições.
O Auge do Humano
A retórica, a literatura, as teorias do cinema e da mídia já lidam há muito com essas perguntas: o que constitui a neutralidade na narrativa e na ação? Como se estabelece um posicionamento e juízo diante do mundo? Como podemos acessar níveis de significado inescrutáveis, talvez ausentes? Essas questões não se limitam à esfera dos equipamentos, mídias e instituições, mas concerne igualmente ao polo oposto – nossa existência enquanto leitores, espectadores e consumidores de tecnologia, como sugerido pela passagem (e imagem) a seguir:
Numa era que há muito se despediu dos fantasmas do criador ou do autor, mas, por bons motivos financeiros continua a defender o direito autoral como efeito histórico desses fantasmas, o ardil se tornou uma fonte lucrativa. Os súditos da Microsoft não caíram do céu: como todos os seus precursores histórico-midiáticos – os leitores de livros, os frequentadores de cinema, etc. –, eles foram produzidos. O único problema é como essa submissão pode ser ocultada dos sujeitos para então dar início à sua conquista mundial. (Kittler, 2017, p. 358).
Mais um intertítulo de Nascimento de uma Nação. Produzindo súditos/consumidores
Agradeço ao Pablo Gonçalo por ter me apresentado ao Kittler e à Juliana Fausto que me deu valiosos toques há uns anos, quando escrevi uma primeira versão deste texto. Agradecimentos especiais a quem quer que tenha tido paciência para ler esse artigo inteiro.
Referências e fontes:
ARISTÓTELES. The Art of Rethoric. Tradução de Hugh Lawson-Tancred.Londres: Penguin Books, 1991. Tradução nossa para o português. O trecho específico foi extraído da página 253.
BAZIN, André. Qu’est-ce le cinema? Paris: Éditions du Cerf. 2011.
KITTLER, Friedrich. A Verdade do Mundo Técnico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.
Os trechos sobre o julgamento de Flaubert retirados de:
JAUSS, Hans Robert, Toward an Aestethic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982
Sobre os comentários sobre as primeiras décadas de cinema e transição para o modo narrativo: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração E Domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
Os desktop movies se popularizaram nos anos 2010 junto com a internet. Já as ferramentas de captura de tela estão disponíveis desde 1960, surgiram junto com os primeiros computadores. Os screenshots são fotografias instantâneas de tela. Mas entraram para o cotidiano como prints. Pedimos prints o tempo todo e não paramos de printar.
Os prints são imagens bidimensionais que quase sempre trazem em si elementos do app em que foram capturadas: abas, janelas, barras, botões. Possuem, como toda imagem, uma capacidade narrativa que independe da resolução, nitidez e do contexto original. Ao mesmo tempo, são fragmentos das vidas que vivemos on-line, imagens de imagens que se acumulam vertiginosamente nos dispositivos que acessam as redes. Fotos e vídeos aleatórios, conversas, lembretes, recibos, memes, figurinhas de WhatsApp, etc, etc, etc.
Mas são as capturas dos movimentos que acontecem nas telas que permitem o surgimento de filmes que se passam inteiramente no ecrã – os desktop movies. Ao invés de se parecerem com o que foi, se parecem ao que está sendo. Janelas de janelas que se combinam uma atrás da outra, uma sobre a outra, uma ao lado da outra. Imagens heterogêneas que se acumulam, se repetem, se reproduzem, se multiplicam, se excedem, se chocam e constituem sentidos diversos. Elementos divergentes que se combinam em uma sequência de disparates que já não produz qualquer estranhamento, porque assim também se convivem imagens e textos cotidianamente nas telas dos computadores pessoais.
A estética cotidiana dos excessos e da heterogeneidade pode ser exagerada. Em Grosse Fatigue (2013), de Camille Henrot, esqueletos de peixes, aves empalhadas e arquivistas do Museu Smithsonian Nacional de História Natural se misturam a vídeos de cientistas no youtube, janelas do google, imagens de livros e tentam reconstituir a história do universo pela sobreabundância e pela confusão, com um ritmo frenético e uma voz em off que guia o espectador no meio do caos. Em Noah (2013), de Patrick Cedeberg, o fim de relacionamento abusivo se dá entre conversas de skype, invasão de facebook, sites de pornografia e troca de músicas. Em Proxy Reverso (2014), de Guilherme Peters e Roberto Winter, dois jovens tentam encontrar documentos que possam provar que as eleições presidenciais do Brasil em 2014 foram fraudadas, enquanto fofocam no Skype, trocam vídeos do youtube, discutem teorias da conspiração e baixam filmes piratas. Em todos esses filmes muitas coisas acontecem enquanto a narrativa avança e as distrações são parte essencial do ecossistema de imagens.
Vivemos uma parte enorme das nossas vidas conectados. Os desktopmovies se ocupam desses acontecimentos que são mediados pelas telas e o fato de que ainda que tentássemos fugir, não haveria para onde. O mundo off-line incorporou as telas, as imagens, a estética e a lógica das redes, desejando parecer com o mundo on-line e já parecendo.
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# O recurso da captura de tela funciona como uma câmera que fotografa para dentro de si, mas nada revela sobre si mesma. # # A superfície e a profundidade se encontram numa tela só. # # # de deep, só web.
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Ainda que o cinema experimental tenha incorporado os bastidores há décadas – [Funeral de Rosas (1969), de Toshio Matsumoto], [Cabra Marcado para Morrer(1984), de Eduardo Coutinho] –, nem sempre a parafernalha estava em cena. Esse recurso lembrava ao espectador absolutamente imerso na projeção, de repente, que ele estava diante de uma imagem. Nos filmes ficcionais, era também uma maneira de tensionar os limites entre os elementos ficcionais e documentais que construíam a narrativa.
Já nos desktop movies, a parafernalha deixa de ser hard e se revela soft(ware), é a própria estética digital. A mesa de trabalho, aplicativo, google, maps, chrome, e-mail, whatsapp, facebook, twitter, zoom, meets, avisos, pop ups, abas, youtube, pastas, hd, e, sobretudo, o m0u$e. O mouse conduz o espectador em meio a narrativa, é a manifestação do personagem e às vezes do narrador. O mouse abre programas, seleciona links, destaca textos. E mesmo quando não vemos indícios de tela, suas especificidades estéticas nos lembram que ela continua ali. Por isso, o dispositivo é parte essencial e incontornável destas narrativas.
Se por um lado o espectador não esquece a tela, pode esquecer daquilo que separa seu íntimo desktop, do que nele se vê: um filme. (Por isso, me assusto repetidas vezes ao ver clicks em minha tela que não são meus). Nesse momento, de total correspondência, não nos projetamos no personagem ou no narrador, nos confundimos completamente com ele.
Talvez por isso Chloé Galibert-Laîné não disfarçou sua alegria ao lançar seu filme Forensickness em meio à pandemia. Muitas pessoas assistiriam o filme em seus computadores pessoais, uma tela, em quase tudo idêntica àquela em que o filme foi rodado.
De forma que o dispositivo de visualização, poderia se parecer exatamente ao dispositivo de captura.
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O original e o apropriado quando vistos em uma mesma mesa de trabalho parecem por vezes idênticos. É difícil encontrar algum elemento capaz de diferenciar as imagens filmadas por Kevin B. Lee para o Transformers: the Premake, daquelas que os – outros – fãns de Transformers capturaram com seus próprios celulares e postaram no Youtube. Em tudo coincidem: ponto de vista, qualidade, estética, amadorismo. Ainda assim, Lee decide marcar uma – suposta – diferença entre original e apropriado – mostrando a pasta “My footage”, em que guarda os vídeos que ele mesmo gravou, antes de “dar o play”. Afirmando nesse gesto, a indistinção entre umas e outras.
Camille Henrot, em Grosse Fatigue, adota uma estratégia diferente. Captura suas próprias imagens a partir do arquivo do Smithsonian Museum e trabalha para reduzir as diferenças entre as imagens que ela produz e aquelas que usou da internet. Tenta aproximar a imagem autoral da apropriada, se aproveitando da capacidade dos desktops igualarem uma à outra. As imagens capturadas em alta resolução, brilhantes, sedutoras, fascinantes, são dissolvidas no desktop, no excesso, no acúmulo, na velocidade e na proximidade com as imagens apropriadas, descarregadas, sem nitidez ou resolução. (Ou pelo menos assim pareciam na cópia pirata do filme).
[…] é sobre circulação em enxame, dispersão digital, temporalidades fracturadas e flexíveis.
Hito Steyerl
3st3tic@ p@nd3333mic@
No auge do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, a vida passou a se parecer com um desktop movie. Muito do que acontecia, acontecia na tela. (Nunca as mortes, nem as contaminações). Mesmo a população que não teve direito a quarentena, mudou sua relação com as redes e os dispositivos de acesso a elas. Aulas, cursos, palestra, festas, textos, notícias, imagens, pornografia, conversas aleatórias e aplicativos diversos dividiam o mesmo espaço e ocupavam muito tempo. Ainda que os primeiros filmes de captura de tela sejam muito anteriores à pandemia, nesse período sua estética se difundiu através dos recorrentes compartilhamentos de telas.
Mais de dois anos depois, a pandemia não acabou e a vida segue híbrida. Uma série de eventos se mantém on-line e on-line devem continuar. De repente, nos damos conta que o mundo como existia antes, já não existe mais. Assim como aconteceu com outras tecnologias, não dominamos as telas, ao contrário, elas sim é que nos dominaram. Apesar de um cansaço difuso do excesso de conexão e telas, não temos escolhas. Paradoxalmente (ou obviamente) em meio a essa exaustão, os filmes de captura de tela avançam rumo ao mainstream. Talvez um indicativo de que não vemos escapatória para o convívio full time com as telas e as redes, talvez apenas indício de que algumas histórias não podem prescindir destes dispositivos como parte da narrativa.
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Esse texto recupera questões levantadas por Anselm Jappe, Jacques Aumont, Jacques Rancière, Hito Steyerl, Kevin B. Lee, Vilém Flusser e Dora Longa Bahia. Os filmes e vídeos que mencionei estão linkados no próprio texto. Agradeço a Multiplot! pelo convite, a Bruno Ferreira e a Taiani Mendes pelos comentários e sugestões. Se quiser saber mais, recomendo as seguintes leituras: AUMONT, Jaques… et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Editora Vozes: Petrópolis: 1999. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. STEYERL, Hito. Em defesa das imagens pobres. Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes. Universidade do Porto, s/a.Disponível em: https://alix.fba.up.pt/em-defesa-das-imagens-pobres acesso em: 13 set. 2021. ______. Capítulo 11: A internet está morta?In: Hito Steyerl: Três capítulos de Arte “Duty Free”: Arte na Era da Guerra Civil Planetária. Tradução: Carolina Eiras Pinto. ARS, ano 18, n. 3, p. 291 a 308, 2018.
Segundo Walter Benjamin, o flâneur é aquele que exerce a percepção distraída, ou seja, quem percebe o mundo sem tomar o tempo necessário para olhá-lo. Por sua vez, o oposto dessa atitude seria a contemplação – por sua vez, a dedicação da percepção dos sentidos no tempo. Discutido pelo autor em 1935, a aplicabilidade inicial do flâneur se referia a quem se perdia pelas ruas, passando o olho por carros, pedestres e prédios, mas sem se fixar em nenhum deles. O flâneur está sempre em movimento e reconfigurando suas percepções, conforme apreende novas imagens. Contudo, com a passagem do tempo e a transformação dos meios tecnológicos, as formas do olhar também mudaram. Nos anos 60, já se começava a dizer que o flâneur não estava mais nas ruas, mas sim nos sofás, se tornando o “zapeador de televisão”. Atualmente, fala-se no flâneur digital, aquele que navega no espaço virtual dos celulares e computadores, interagindo com suas redes de informações infinitas.
Como o flâneur é alguém que absorve naturalmente diversas imagens sob a percepção distraída, Benjamin defende que ele pode adquirir novos hábitos de maneira inconsciente. Por isso, o autor acredita que o Cinema pode ser a arte ideal para moldar novos costumes, uma vez que seus espectadores estão distraídos com o filme em si. Em resumo, essa é a ideia apresentada por “Flânerie 2.0”, curta ensaístico da pesquisadora e diretora francesa Chloé Galibert-Laîné. Ao versar sobre o flâneur digital, Chloé já adiantava um tema fundamental de sua filmografia, que perpassa pelo formato de desktop movie.
Uma peculiaridade do espaço cybernético é a sua própria contradição interna. Por um lado, nunca se teve tantas informações (imagens, vídeos, textos, dados…) à disposição do usuário. Por outro lado, esse acúmulo significa uma própria negação da percepção, já que o ritmo com que as informações chegam é sempre maior do que a velocidade que o ser humano consegue absorver. Ou seja, com a necessidade de dividir a atenção entre as diversas sobreposições que se dão no campo do olhar, olha-se tudo, mas nada se enxerga. Consciente dessa contradição do cyberespaço, Chloé realiza em seus filmes uma espécie de curto-circuito informacional: nunca há apenas uma informação em tela, mas excessivos elementos que vão interagindo simultaneamente. Abas de internet são postas lado a lado, um vídeo aparece ao lado de um texto ou de outro vídeo, uma narração surge em cima de um texto, e desse jeito continuam os diversos choques. O enquadramento do plano é totalmente saturado, impossibilitando a distinção entre o que é informação principal e secundária. Captando fragmentos do todo, o espectador de um desktop movie é engolido pelo próprio sistema, à medida que percebe informações sem conseguir se fixar em nenhuma delas – tal como um flâneur.
Se não há como a percepção humana resistir contra o ritmo imposto pela máquina, Chloé mostra saber hackear as regras do jogo e faz da limitação humana a força de seus filmes, seguindo o fluxo das ondas informacionais e mantendo o movimento. Ao assumir a característica de uma flâneur, o próprio ato de vagar pelos espaços digitais se torna mais importante do que o destino de suas investigações. Conforme Bergson e sua ideia sobre o Novo, a essência de uma coisa sempre aparece no curso de seu desenvolvimento. E assim se dão as buscas de Chloé: passeando entre diferentes abas, surfando entre links, se permitindo errar no caminho, curtindo o labirinto que é a internet, e até caindo em digressões que pouco têm a ver com sua pesquisa inicial. Talvez seja por isso que o tema conspiratório seja tão caro à sua filmografia, já que o próprio impulso investigativo é uma forma de brincar com essa ideia de se manter em movimento, seguindo pistas e se perdendo por elas, criando novas direções sem saber o destino, e cada vez mais entrando numa espiral sem fim. Como mostra Forensickness, a internet é um convite à paranoia; o usuário que nunca se deixou ser contagiado por uma pulsão conspiratória, que atire a primeira pedra.
Por mais que no cinema “narrativo” o espectador normalmente seja conduzido a criar uma identificação com a/o protagonista, o desktop movie acaba por evidenciar ainda mais diretamente essa confusão entre ambos. Ao compartilhar seu processo de pesquisa com transparência, ao invés de eclipsá-los, Chloé não se coloca numa posição de vantagem em relação a quem vê seu filme, mas faz com que se sinta em um processo de aprendizado conjunto, gerando um sentimento de recompensa e confiança mútua. São nessas variáveis que o cinema de Chloé Galibert-Laîné se mostra uma verdadeira pedagogia da imagem.
Com uma estrutura baseada em uma relação tríplice, encontra-se sempre em seu Cinema um padrão de três camadas. Há uma imagem pré-existente, a da investigação de Chloé sobre ela e a interpretação do espectador, que é tanto sobre a imagem quanto sobre a investigação. Filiando o espectador ao seu olhar em um primeiro momento, a realizadora faz questão de gerar uma quebra posterior, botando em dúvida sua própria figura enquanto narradora confiável e ativando uma paranoia naquele que assiste. Se aparentemente isso contradiz a ideia de “pedagogia” no Cinema de Chloé, na verdade, essa sua atitude só reforça como ela busca ensinar o seu “aluno” a desconfiar daquilo que ele recebe, exigindo que se saia de um estado passivo para uma percepção ativa.
Em Watching the Pain of Others, que analisa as imagens do filme Pain of Others (de Penny Lane), a diretora inicialmente leva o público em uma direção, se perdendo no seu flânerie, apenas para romper com ele no meio. Inserindo uma informação que reconfigura tudo que fora apresentado até aqui, ela se evidencia como manipuladora e criadora de uma narrativa. Essa enganação é o suficiente para ativar o espectador, que se sente duplamente traído (por Penny e por Chloé), passando a questionar todas as imagens que está vendo. O que importa não é descobrir qual é a opinião final da diretora sobre o tema que permanece em aberto, mas sim que as imagens e suas narrativas sejam postas em dúvida. Similar procedimento é realizado em Forensickness: tendo como base o filme Watching the Detectives, Chloé questiona a hiperanálise das imagens na era digital, que chega ao nível mínimo dos pixels e rapidamente vira uma paranoia coletiva. Ao mesmo tempo, em uma aparente contradição, o que a própria faz é hiperanalisar Watching the Detectives com Forensickness. Com muito bom humor, ela mesma reconhece ter caído no estado paranoico do filme.
Diante dos dois exemplos, chega-se a duas conclusões. Primeiro, que Chloé percebe uma ideia de viralidade no cyberepspaço, o que acontece quando ela adquire a paranoia de Forensickness e quando ela acha que está com a doença discutida em Watching the Pain of Others. Segundo, que ela cria um método para sua pedagogia, consistindo em mimetizar com autoconsciência aquilo que ela busca criticar – inclusive estando disposta a sacrificar sua credibilidade com o espectador para plantar dúvidas nele, por entender que a contradição ativa a percepção de processos antes escondidos. A cada clique que abre uma nova página, uma porta se abre para um mundo desconhecido a ser explorado, uma possibilidade de anular e reconfigurar todo o espaço anterior com suas informações. Assim, seus filmes se tornam uma investigação do que significa a própria atitude de investigar, uma autofagia metalinguística, evidenciando as características do desktop movie ao mostrar seus próprios processos.
Nesse sentido, é possível enxergar a influência do cineasta alemão Harun Farocki para a formação de Chloé, uma vez que revelar os meandros dos processos também sempre teve um papel central em suas obras. Por exemplo, ao mostrar as etapas dos bastidores de um ensaio pornográfico (Ein Bild, 1983) e um publicitário (Stilleben, 1997), o alemão faz o espectador refletir sobre a natureza farsesca das fotos que ele costuma consumir no dia-a-dia sem consciência dos seus processos. Tal como Farocki, Chloé também joga luz em cadeias produtivas invisíveis. Em Watching The Pain of Others e outros de seus filmes, ela mostra no programa de edição, por meio de blocos coloridos, como Pain of Others divide seu tempo entre as três protagonistas. Já em Forensickness, ela imprime três quadros da película do filme e bota um debaixo do outro, descobrindo que há uma continuidade das linhas que os cruzam. Ao refazer o caminho inverso de pegar um filme-produto e voltar para as etapas fragmentadas de sua cadeia produtiva, Chloé revela estruturas de montagem antes escondidas.
Tanto em Farocki como em Chloé, há uma herança de Bertold Brecht e seu teatro político. Busca-se o engajamento do público, que deve tomar parte do processo analítico das imagens, adquirindo uma atuação despertada. Há aqui uma aproximação que também passa pela ideia exibicionista do Cinema de Atrações, termo cunhado pelo historiador Tom Gunning para falar de parte do Primeiro Cinema que rompia o mundo ficcional ao solicitar a atenção do espectador. Sendo o poder único do Cinema a capacidade de “fazer as imagens serem vistas” (Fernand Léger), Chloé e Farocki fazem do invisível algo visível, o que significa uma “experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar um sentido ao que, à primeira vista, parece um caos de forma sem significação” (Paul Virilio).
Falecido em 2014, Farocki teve sua carreira marcada pela investigação do avanço tecnológico e as suas formas de representação, atravessando a história vista por fotografias tiradas de aviões de reconhecimento, imagens televisivas e amadoras, câmeras de segurança, simuladores virtuais e videogames. Logo, um caminho natural que o cineasta poderia ter seguido, caso ainda estivesse vivo, seria o da exploração do cyberespaço através do desktop movie. Sem jamais saber como seria esse futuro hipotético, hoje é possível olhar para o presente e enxergar Chloé Galibert-Laîné como um dos nomes mais promissores na continuidade ao legado farockiano, uma precursora no enfrentamento crítico dessa nova tecnologia que deve ser desbravada e colocada sob interrogatório.
Aqui o objeto é simplesmente isolado, qualificado, extraído do ambiente, projetado em um novo mundo; o pedaço de real não tomado para ser confrontado com as partes manuais da obra, ele é tomado “para ser tomado” e não adquire essa virtude, essa eficácia singular senão pelo fato de ser destacado do resto. [1]
Michel Leiris
Por Pedro Tavares
Resumido como um retrato íntimo de duas vacas, o documentário de Andrea Arnold produzido pela BBC traz dois caminhos conflituosos acerca do objeto e o espectro que o circunda. O isolamento claro e simples em um curral e como Arnold o descontextualiza. Este destaque/isolamento segue a norma de Leiris, de um destaque para a convenção e com ela os fantasmas do senso de falseamento tomam a tela.
Primeiro em uma escada voyeurística numa espécie de câmera-olho (um pouco longe da versão vertoviana e próxima da literalidade) por muitas vezes grudadas ou muito próximas aos animais. E em segundo, conforme o registro de uma rotina óbvia de tratamentos e funções primeiras relacionadas à produção de leite, o filme de Arnold distorce os objetivos dos animais filmados. Como Michel Leiris diz acerca do objeto escolhido, “do fato de ser destacado do resto” traz “eficácia singular do objeto fabricado”. O corpo-tema segue tanto pela ideia de uma eficácia singular (a do destaque) quanto a de um objeto fabricado. A manobra de Arnold que não se dá pela proximidade da câmera e sim pela montagem, é como nos aproximamos destes animais durante o registro rotineiro.
E neste caminhar de repetições de tarefas que o falseado é corroborado como um filme de observação, de distanciamento, de destacamento. Rupturas simplórias sobre o valor dos gestos de seus cuidadores, das ações mais simplórias quanto as mais tenácias sobre a “função” do objeto, ao menos em tela. Quando Serge Margel comenta as palavras de Leiris sobre o isolamento do objeto, ele diz: “Isso já é a descontextualização ou deslocamento do objeto, que perde seu valor de uso, que se separa de seu produtor, de seu lugar de origem, de sua função primeira, para não ser por ele mesmo”.[2]
No caso do filme de Andrea Arnold, conforme se isola estas duas vacas do restante pelas bordas da imagem ou no registro atividades que necessitam apenas de seu cuidador e o animal – como o cuidado com as patas ou até mesmo um parto – mais deslocados eles estão no sentido de seu valor e mais inseridas no contexto afetuoso, seja pelo esgarçamento da narrativa com ações repetidas que o filme ganha ares de uma proto-narrativa, de uma personagem estabelecida a criar uma representação clara para quem a assiste.
Porém, há um escape em Cow: se o filme se desenhara por toda sua duração como uma questão sobre o objeto, seu deslocamento, seu valor e transformara tudo em fantasmagoria, deste mesmo falseado cria-se a subversão. Destrói-se o afeto rapidamente numa ação fria e que traz o fantasma do sentido benjaminiano[3] mais para perto. A vaca, que recebe o nome de Luma, deixa de ser Luma, mãe de um bezerro, produtora de leite e transforma-se no que Arnold filmara por todo o filme. Um objeto assombrado, que se destaca do resto para a produção capitalista e também para a moldura da imagem. Luma é uma tag de identificação presa ao corpo e, antes de tudo, um fantasma.
[1] Artes e ofícios de Marcel Duchamp, 1992.p. 131-132.
[2] Arqueologias do fantasma (técnica, cinema, etnografia, arquivo), 2013.
[3] O conceito de fantasmagoria surge no século XIX, como resultado das mudanças fundamentais nos modos de produção e no modelo econômico.
The day Carmen Miranda died They put a photograph in the magazine Her dead mouth with red lipstick smiled And people cried, I was about ten But today, but today, but today, I don’t know why I feel a little more blue than then
Pintando o céu do Aterro do Flamengo com tons de rosa e amarelo, um feixe de luz passeia em busca de pouso. Em meio a arquitetura moderna tardia, um círculo de concreto que mais parece um olho chama atenção: do centro do olhar brota um enorme coqueiro, como a coroa de um abacaxi perdida no espaço.
Carmen Miranda finalmente encontraria ali um lugar para descansar. Seus despojos, devidamente imantados de energia caótica, ocupariam um lugar naquele estranho mausoléu ao ar livre, onde os fantasmas eram livres para brincar.
Luisa Marques e Darks Miranda, dupla de cineastas e performers, se ocupam do encontro entre projetos modernistas brasileiros em Maldição Tropical, curta que opera o cruzamento entre a ambiciosa construção do Aterro do Flamengo e a chegada – sempre apoteótica – da memória de Carmen Miranda ao lugar.
Construído sob os escombros de dois morros, Castelo e Santo Antônio, responsáveis pelo aterramento da região em que o complexo foi erguido, o Aterro apresenta assim uma dose de desespero e fantasmas próprios: as histórias soterradas em sua construção ainda pairam por lá, pesando a beleza do lugar mais até do que as construções em concreto que a compõem.
Misterioso e lânguido, o espaço é composto por uma intrigante mistura de vegetação exuberante, como os abricós de macaco e palmeiras gigantes que, vivos em meio a paisagem urbana e hoje antiquada do centro do Rio de Janeiro ganham um aspecto extrínseco e antinatural.
A partir de aproximações produzidas pelo encontro com materiais de arquivo e imagens de Banana is my Business, documentário de Helena Solberg, as diretoras conectam espaço e personagem como duas pontas soltas de projetos modernizantes e passadistas de Brasil.
Impressionantemente conectada a esses aspectos de pouca naturalidade e exteriodade que o parque apresenta, também a Pequena Notável, cantora portuguesa que assumiu o Brasil como seu e que acabou aprisionada por essa personagem coroada de frutas e balangandãs paira sob aquele espaço até finalmente escolher um lugar para se fixar.
Assim, o Museu de Carmem Miranda, com seu olho-palmeira, mais do que serve ao propósito de conjugar mais esta camada de informações ao complexo do parque onde estruturas mudas e geométricas ajudam a acumular versões mal acabadas da história desse ex-país do futuro.
Apesar de todo concreto e verde usado na construção do Aterro, Luisa Miranda trabalha a cor do céu em tons e mesclas entre rosa e amarelo, desconectando o horizonte azul e adaptando espaço aquele fantasma já bastante distante da figura original a que se refere. Bailando ao redor do museu, a performer executa movimentos suaves e divertidos singularizada apenas por uma coroa-abacaxi que imediatamente nos conecta aquela espécie de Barbie Carmem que ganha vida ao sair de uma caixa do museu.
Jogando com memórias que evocam a história do país mas também do cinema – Uma Noite no Rio, Banana is my Business – e atualizando o fantasma dessa figura icônica em relação ao maior parque urbano do mundo à beira mar, Luisa Marques talvez tenha produzido aproximações de materiais distintos de igual grandeza, explicitando a natureza de parque de diversões fantasmas daquele espaço lindo e hipnótico.
Ao apresentar o cadáver e a máscara mortuária de Carmen Miranda, o filme também liberta a mulher por trás daquelas roupas e saltos da prisão de imagem fadada a replicação. Alegre e melancólico, o fantasma de Carmen se diverte livre pelo Aterro, equilibrando sua pequena coroa em decomposição, em companhia de espectros os mais variados, principalmente o fantasma sempre atualizado de Brasil-mundo.
Pelo dito aqui pode não parecer, mas essa é uma das mais belas homenagens a essa figura icônica de bananas e abacaxis tropicais. Um salve à filha da Chiquita Bacana, que nunca entra em cana porque é família demais. Puxou a vovó, não cai em armadilha. E distribui banana para os animais 🍌
Quando me deparei pela primeira vez com filmes de vanguarda no início dos anos 60, os trabalhos que achei mais interessantes foram aqueles que estavam desenvolvendo uma linguagem única para o cinema, uma linguagem em que o próprio filme se tornou o lugar da experiência e, ao mesmo tempo, era uma evocação de algo significativamente humano. Comecei a perceber que momentos de revelação ou vivacidade me vieram da maneira como um cineasta usava o próprio filme. Mudanças de luz de um plano para o outro, por exemplo, podiam ser muito viscerais e eficientes, comecei a observar que havia uma concordância entre o filme e nosso metabolismo humano, e a ver que esta concordância era um terreno fértil para a expressão, uma base para explorar uma linguagem intrínseca ao filme. Na verdade, as propriedades físicas do filme pareciam tão sintonizadas com nosso metabolismo que comecei a pensar no filme como uma metáfora, um modelo direto e íntimo, para nosso ser. E senti, na medida em que pude mergulhar nesse modelo e tê-lo nos representando de forma direta e profunda, que o próprio filme tinha o potencial de ser transformador, de ser uma evocação do espírito, e de se tornar uma forma de devoção.
Convidado a falar das afinidades que podem ser traçadas entre cinema e religião, o cineasta experimental Nathaniel Dorsky trata em seu livro Devotional Cinema de um fator que acredita estar diretamente ligado à crença e à devoção: a capacidade do cinema de provocar respostas físicas no espectador, de se relacionar tão intimamente com nossa fisiologia que estabelecemos um vínculo devocional com alguns filmes. Dorsky ilustra isso no começo do livro relatando uma memória marcante da infância, uma experiência pós-sessão na qual, aos 9 anos de idade, depois de passar quase a tarde toda na matinê, sairia do cinema num estado entorpecido, observando o mundo que se apresentava como que constituído de cores, texturas, luzes e sons insólitos, alienantes. No caminho de volta para casa, a rua lhe pareceu um lugar estranho, e por um momento seu próprio lar também.
Todos nós, de certa forma, e em maior ou menor grau, já sentimos esse entorpecimento. As luzes se acendem e os rostos na sala se tornam confusos, lá fora a claridade injeta a retina com uma realidade ainda distante. Francesco Casetti, em seus estudos sobre o terror que o primeiro cinema provocou nas plateias pouco acostumadas (chamado apropriadamente de “cinefobia”), vai trazer exemplos de indivíduos que diante do evento cinematográfico foram tomados por uma comoção sobrenatural:
Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você apenas soubesse como é estranho estar lá. É um mundo sem som, sem cor. Tudo ali – a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar – é mergulhado em cinza monótono […] Não é vida, mas sua sombra. Não é movimento, mas um espectro sem som. (Maxim Gorki)
Uma cabeça de repente aparece na tela e o drama, agora cara a cara, parece dirigir-se a mim pessoalmente e transborda com uma intensidade extraordinária. Eu estou hipnotizado. (Jean Epstein)
Esse tipo de testemunho me faz pensar nas minhas próprias experiências de arrebatamento, para além do choro mais ou menos contido ou dos pelos do braço arrepiados numa cena que seria revista inúmeras vezes mais tarde tentando reproduzir essas sensações. Um episódio específico talvez tenha me marcado de forma incomum: meu corpo retesado na cadeira desconfortável sendo tomado por uma descarga de medo e maravilhamento, um calafrio na espinha seguido pelo coração agitado e o sangue gelado, a certeza de que minhas pupilas se dilataram tentando absorver toda a luminosidade emitida da tela naquele instante. É difícil descrever o que se passa nessas horas, porque assumir o poder que a imagem em movimento tem sobre você é também um relato de aparições e de mundos transfigurados. E é disso que se trata essa exposição: uma história de amor e de fantasma.
Raúl Ruiz falava de um cinema com a capacidade“de nos deixar viajar até os limites da criação através da simples justaposição de um pequeno número de imagens trêmulas”. Segundo o diretor chileno,“neste impressionismo radical, o nunca visto estaria ao nosso alcance. O cinema se tornaria o instrumento perfeito para a revelação dos mundos possíveis que coexistem bem ao lado dos nossos”. Parte desejo parte projeção, acredito que esse aspecto revelatório do qual falava Ruiz pode manifestar um tipo de presença fantástica/fantasmagórica que por muito tempo esteve confinada aos domínios das habilidades mediúnicas e dons extrassensoriais. A fotografia e mais tarde o cinema não só trouxeram outros mundos – invisíveis – à tona, mas nos tornaram capazes de replicá-los e reproduzi-los, um tipo de registro partilhável que de certa forma democratizou o ato de ver e acreditar no extraordinário.
Minha história de assombração não é minha, é uma livre adaptação de Kenji Mizoguchi e do roteirista – e seu colaborador de longa data – Yoshikata Yoda de dois contos diferentes tirados de uma compilação de fantasia escrita por Ueda Akinari, Ugetsu monogatari – Contos da lua vaga por aqui. Mesclando temas que remetem à avareza e cobiça masculinas (considerando também a inclusão mais branda na lista de referências do conto “Condecorado”, de Guy de Maupassant) em oposição à benevolência e parcimônia de suas personagens femininas, Contos da lua vaga (1953), dirigido por Mizoguchi, narra a trajetória de dois aldeões de Nakanogo, na província de Omi, durante um período de guerra civil no Japão do séc. XVI, e as circunstâncias que envolvem a dissolução de seus respectivos universos familiares.
Genjuro, casado com Miyagi e pai do menino Genichi, é um ceramista habilidoso que aproveita a escassez de suprimentos ocasionada pela guerra para vender suas peças de cerâmica na aldeia vizinha. Tobei, por sua vez, é casado com Ohama, irmã de Genjuro, e sonha em um dia tornar-se samurai. Certa noite, Nakanogo é invadida pelo exército de Oda Nobunaga, forçando os camponeses a fugirem. Genjuro consegue salvar a última fornada de suas peças, e, juntamente com Tobei, decide atravessar o lago Biwa com suas esposas e filho, na tentativa de levar a mercadoria para ser vendida em outro lugar. No meio do caminho, eles são avisados de que piratas e saqueadores estariam por ali. Miyagi e Genichi saltam do barco e voltam, ficando acordado que, após conseguir arrecadar dinheiro o suficiente, Genjuro retornaria para a família.
Na cidade, os dois homens rapidamente alcançam certa notoriedade. Com os ganhos, Tobei adquire uma espada e armadura, tornando-se samurai, mas negligencia Ohama, que é estuprada por membros do exército e acaba se tornando meretriz. Genjuro é abordado por uma jovem da nobreza, Wakasa, e sua acompanhante idosa, em busca de peças de cerâmica para seu palácio. O ceramista vai até a residência e descobre que ambas foram as únicas sobreviventes de um massacre. Seduzido pelos modos ostensivos com os quais é constantemente tratado, Genjuro se aproxima de Wakasa e, após um período vivendo juntos, ele é avisado por um sacerdote de que na verdade tanto a jovem quanto sua serva se tratam de espíritos amaldiçoados.
Um ritual de exorcismo é realizado, e os dois fantasmas, assim como o palácio, desaparecem na manhã seguinte. Genjuro retorna para casa e encontra mulher e filho o esperando. Ele é tratado com cuidado e afeto, adormece e, quando desperta, descobre pelos outros aldeões que sua esposa havia sido morta há certo tempo tentando proteger de um soldado seu único alimento. Por fim, vemos Tobei e Ohama juntos, de volta à vida simples. Genichi corre até a sepultura da mãe com uma tigela de arroz num gesto honroso, e ouvimos a voz etérea do espírito de Miyagi. Um movimento de grua faz a câmera ascender aos céus.
As leituras de Contos da lua vaga passeiam pela propaganda anti-guerra, pelos efeitos destrutivos da ganância encarnada na figura masculina e da bondade misericordiosa e reparadora das personagens femininas. O crítico Robin Wood viu ali uma situação na qual as mulheres, apesar de estarem sujeitas sacrificialmente a um mundo de sofrimento provocado pela dominação patriarcal, “causam uma impressão tão forte na vulnerabilidade de sua situação social que nunca as esquecemos, mesmo quando elas estão ausentes por longos períodos de tempo de tela” . Para além das oposições de gênero e entre o material (a multiplicação dos ganhos, os objetos de cerâmica que assumem o estatuto de arte refinada ao serem adquiridos por uma nobre, o desejo de ascensão de classe) e o espiritual, o filme de Mizoguchi também lida com o amor como essa força transcendental capaz de curar feridas e conjurar espíritos. Tobei encontra com Ohama na casa de meretrício, mas está disposto a abandonar uma ideia de “honra”, enquanto samurai e enquanto marido, para ter de volta a vida pacata que viviam. Wakasa, por sua vez, não consegue partir para o além-vida porque nunca pôde experienciar o amor de um homem. Por fim, Miyagi, a esposa que olha pelo filho e pelo marido uma última vez antes de evanescer definitivamente.
Já o amor que transborda na devoção da qual Dorsky fala, para mim vai se manifestar numa cena cujos efeitos físicos já foram mencionados aqui. Mais ou menos na metade do filme, após receber a proposta de casamento de Wakasa, sem ainda saber tratar-se de um fantasma, Genjuro participa de uma espécie de celebração na qual a jovem dança em movimentos lânguidos inspirados no teatro Nô, e canta uma canção envolta por uma aura incomum. A voz suave fala da efemeridade das mais belas sedas diante das juras de amor eterno, é doce e cálida. Entretanto, pouco a pouco, novos instrumentos, extradiegéticos, podem ser percebidos e um ritmo assíncrono se apodera do ambiente. Wakasa demonstra temor e o que acontece em seguida é uma das sequências mais aterrorizantes e belas que já pude experienciar numa sala de cinema.
Uma voz masculina irrompe num canto gutural e nesse momento toda a mise-en-scène é feita refém do tom lúgubre que recai ali como uma sombra aniquiladora. Wakasa recua lentamente, acompanhada pela câmera, as luzes diminuem de forma que ela passa a ser engolida pela escuridão. Uma panorâmica vai revelar a antiga máscara de samurai de seu pai, um daimyo – senhor feudal – morto na invasão do exército, e cuja presença assombrada agora é materializada no seu canto e na imagem bestial da máscara. Wakasa se refugia nos braços do amado com horror, e explica que essa é a voz de seu falecido pai, enquanto sua serva exclama com admiração que ele parece estar contente:
“Por causa de Nobunaga Oda, aquele detestável Nobunaga Oda, a casa de Kutsuki foi dizimada. Os únicos sobreviventes foram Lady Wakasa e eu, sua criada, mas o espírito do falecido mestre permanece no palácio, e canta assim toda vez que minha dama dança. Não é uma voz esplêndida?”
A cena toda dura menos de cinco minutos, mas é incontornável. Parte do horror vem do fato de que até agora os fantasmas (Lady Wakasa e as criadas) se apresentaram como seres mundanos, que podem ser tocados e sentidos, nos mantendo alheios à sua existência, mas nesse ponto do filme somos surpreendidos com a possibilidade do oculto se revelar sem ser anunciado, com certa violência até. Dizem que o medo é um mecanismo de defesa, mas aqui ele funciona como um chamamento das coisas extraordinárias que podem habitar os limites do real e da imagem. A imagem, por sua vez, quando assombrosa e perfurante, acredito que pode impregnar, possuir um receptor. Eu jamais consegui me desvencilhar do espanto sentido nesse instante: relembro os detalhes como se tivesse o poder de invocá-los e eles tivessem poder sobre mim. Ver rostos na janela de uma casa abandonada, divindades na infiltração da parede ou um ente querido que já partiu na mancha de uma fotografia faz parte dos encadeamentos poderosos aos quais submetemos a visão e a crença. Os fantasmas de Mizoguchi não são só assustadores, estão aqui presentes agora reassegurando minha fé e meu amor pelo cinema:
Pascal Bonitzer costumava defender que o sucesso do cinema estava relacionado àquilo que, em essência, ele era capaz de reproduzir: o movimento e a vida. Ou seja, todo e qualquer procedimento que surgisse depois do registro original significaria uma alternância ou uma mancha diante do momento áureo e verdadeiro da captura. No fundo, a questão que realmente estava em jogo era nada mais nada menos que uma espécie de disputa entre realidade e mentira frente ao que se convenciona chamar de acontecimento. Isto é, se chamava-se o cinema de uma arte primeira voltada às atrações, era justamente porque a ele se devia a capacidade do aparato técnico da câmera em registrar o que de mais espantoso guardava o mundo. (Efeito esse, aliás, que passado um século da invenção cinematográfica, perdura até hoje: independente de códigos ou razões mecânicas, pouca coisa em cinema supera a sensação do espanto — de Mèliés a Ford ou Shyamalan, toda a aparição registrada com louvor será sempre uma hecatombe).
No entanto, retornando ao dilema de Bonitzer, é possível ponderar que as diferenças da superfície-vídeo e da “superfície-grão”, a “imagem verdadeira”, chamemos assim, sejam muito menos relevantes do que uma revelação que reside no princípio de seu próprio raciocínio: antes de mais nada, a câmera, o ecrã, é a fonte primeira da captura da realidade. À sua própria luz nada escapa, e tudo que emerge diante do registro (aquele que não é adulterado ou modificado, claramente) pode ser lido como verdade. No fundo, a experiência cinematográfica é sobre isto: estar diante de uma janela intransponível, de um feitiço inalcançável.
Considero por bem relembrar tudo isso antes de começar a discorrer sobre o cinema de Ricardo Alves Jr. para que esteja claro que toda e qualquer presença analisada em seus filmes é resultado de um conjunto de fatores humanos que corriqueiramente são carregados até o limite da captura dos planos. O que significa dizer, em essência, que aquilo que existe, aparece, saltando diante dos olhos. E isto se dá não graças a uma trucagem posterior ao procedimento, mas sobretudo devido ao desejo de investigação conferido pelo plano frente aos rostos e corpos de sujeitos tão severamente enigmáticos. Sujeitos estes que, frente à câmera, são incapazes de repelir, transbordando através de faces, marcas e feições uma gama de sensações que dizem respeito ao indefinido.
Em palavras mais simples: de Material Bruto (2006) até Elon Não Acredita Na Morte (2016) o que se estabelece na obra do cineasta diz respeito a um jogo de fantasmas, de corpos que são capazes de estarem diante do ecrã mesmo parecendo não estar. Dentre estes personagens, pode-se rememorar o convidado que nunca chega à mesa de refeições de Convite Para Jantar com Camarada Stalin (2009), passando pelos corpos inertes e calados de Permanências (2010) e chegando aos personagens de Elon — seja do próprio Elon Rabin de Tremor (2014), que assim como o cavalo do filme persegue espaços vazios e escuros a procura do nada, até o próprio Rômulo Braga, na versão mais longa da narrativa, que crê estar atrás da esposa quando na verdade caça incessantemente o espectro de um corpo já morto.
No fim das contas, o que existe de mais reluzente na obra de Ricardo é uma capacidade bastante singular de estar a capturar a presença humana, tanto a do corpo quanto a do espírito, oferecendo ao espectador uma operação que privilegia o enigma, o não-visto que acaba por se revelar na concepção fotográfica de seus filmes. Neste contexto, duas obras de sua filmografia mostram-se essenciais na interpretação destes paradigmas: Material Bruto, seu primeiro filme, e Permanências, média-metragem realizado em 2010. Em ambos os casos, o contexto do filme se relaciona diretamente com o local cujas obras transcorrem: centros habitacionais de Belo Horizonte, locais simbolicamente abandonados ao léu pelos órgãos públicos da cidade e que estimulam o embate entre corpos deixados para trás e espaços em ruínas, prevendo assim um ambiente fértil para que haja uma trepidação da realidade. Em suma, o que este par de filmes dá conta de demonstrar é que a vida humana nestes espaços costuma orbitar um outro regime de tempo e de sensibilidades. Como se os sujeitos passassem a fazer também parte das pedras, das paredes e do tempo de uma localidade em específico, permitindo a estes corpos que sejam eles também uma espécie de habitação.
O primeiro detalhe resultante deste contexto que pode ser observado através do cinema de Ricardo Alves diz respeito ao trato com a pele, além da atenção que a câmera obtém quando procura capturar os rostos. Tanto em Material Bruto quanto em Permanências, o tempo transcorre de modo lento, a fazer com que essas marcas da vida (cicatrizes, rugas e olhos constantemente marejados — que, aliás, dizem muito também sobre onde estes filmes se passam e sobre quem são estes sujeitos), adquiram outras conotações através da dilatação dos planos.
Em Material Bruto, cada bloco do filme é dedicado ao esforço do realizador em aproximar-se cada vez mais do potencial de delírio destas habitações: há o personagem de Elon Rabin (o mesmo de Tremor e Elon Não Acredita na Morte) que durantes longos minutos performa uma espécie de surto diante de câmera, como se estivesse a estar possuído. Logo após, temos a presença de uma moça, que sentada em uma cadeira centraliza toda a ação de seus braços como se fosse guiada por uma força oculta, que não provém diretamente da concepção daquele corpo. Ao filmá-los, Ricardo é capaz de revelar um enigma importante: as imagens que forja não se revelam pelo que contém necessariamente de visível, mas sobretudo pelo que emulam e sugerem ao espectador. Não são imagens dadas, denotadas de certeza. São todas imagens oferecidas, operadas para que a presença ou a aparição se faça presente no campo da imaginação. Para que o espectro (o invisível dos espaços) possa também ter um lugar na janela da transparência que é o cinema.
Permanências é também uma obra que opera neste mesmo espírito, mas que diferentemente da catarse física oferecida por Material Bruto (essa presença invisível que possui os corpos e faz com que se choquem), privilegia a extensão do silêncio através da contemplação espacial das habitações. Num sentido mais amplo, permanecer diz respeito não apenas aos corpos que lá estão como também a cada movimento (lembremos de Bonitzer e do que falava sobre a essência do cinema) que a vida humana opera nestes recintos. Acima de qualquer outro, há um longo plano em Permanências que considero mais marcante que os demais: o de um homem mais velho a fumar um cigarro enquanto encara as lentes de Ricardo. Como disse, jamais será factível dizer que há ali uma presença ilustre, a tal imagem fantasma, mas o que o cinema revela a quem o assiste (ao homem e ao filme) é a certeza de que algo pulsa naquela presença, algo de carne, osso e matéria. Algo que se constrói através do agudo da chuva, da densidade da fumaça e dos olhos bem abertos, mediante espaços ocos e compartilhados, onde o filme procura rastejar — sempre na altura dos sujeitos — em busca da emulação de uma memória, essa lembrança indistinta que não se sabe bem o que é, mas que se sabe que existe.
Por outro lado, esse aspecto do fantasmagórico permanece presente também nas obras com apelo ficcional produzidas pelo realizador. De certo modo, é como se o cinema de Ricardo Alves Jr. funcionasse perante uma lógica da perseguição destes fantasmas dos corpos e dos espaços, que se penduram em uma linha muito tênue entre vida e morte. Tremor e Elon Não Acredita Na Morte são exatamente sobre isso: sobre perseguir o indefinido. Impossível não lembrar que Rômulo Braga percorre toda a cidade de Belo Horizonte andando sempre em círculos, passando por locais de grandes circulações, tentando se agarrar a toda e qualquer materialidade que lhe traga de volta à amada: das portas que chuta e arromba até as paredas nas quais sempre passa a mão, é como se este fosse também um personagem que emergiu da imaterialidade dos, e que reconhece a capacidade animada das coisas em se comunicarem com os sujeitos.
Não deixa de ser curioso, ademais, que Elon seja uma espécie de segurança ou guarda noturno, pois é justamente nessas horas mais escuras que o indefinido faz morada, visto que a imagem já se torna incapaz de registrar com uma definição mais aguçada a verdade. Existe uma cena específica do longa-metragem em que o personagem vai de andar em andar em um prédio vazio à procura de algum sujeito ou de um invasor. Em nossa memória, fica a sensação de um indefinido, como se não fosse impossível que Madalena (Clara Choveaux), sua esposa, estivesse por lá, o assombrando. Em meio à busca, a lanterna de Elon vai jogando luz às paredes abandonadas, e quanto mais o sujeito procura por algo menos é capaz de encontrar uma materialidade concreta daquilo que o atrai. A grande verdade, é que tudo isto não está mais lá, mesmo que esta sensação se faça constantemente presente. Curiosamente, ElonNão Acredita Na Morte é um filme sobre uma mulher que nunca aparece de fato. Aparece seu espelho — no caso, sua irmã gêmea de cabelos louros — e aparece também o seu fantasma, materializado em um belíssimo plano onde Clara Choveaux passa os grãos de café no rosto, como quem tenta provar que é uma superfície verdadeira.
No fim, tudo se descobre como uma grande assombração. Pois tanto Madalena quanto sua irmã nunca estiveram lá verdadeiramente: estava lá, sim, uma presença, um acontecimento, que habitava possivelmente nas tantas sombras que rodeiam este personagem. Se aquilo que existe, aparece, em um sentido mais lógico, então, é factível conjecturar que Madalena talvez sequer tenha existido como um corpo concreto naquela realidade. Pois a imagem de Ricardo não revela nada de legível ou real que não faça também parte do universo da sugestão. Elon não persegue a amada, mas sim a miragem dela, o seu legítimo fantasma. Se é fato que o personagem não acredita na morte, isso se dá justamente por estar muito mais perto do mundo das sombras e dos espíritos do que deste mundo carnal, onde todo e qualquer café que se esfregue no rosto é tão volúvel quanto água. E a única certeza que existe na obra de Ricardo é unicamente aquela de Bonitzer, que perpassa todos esses filmes citados anteriormente: o que o cinema registra, está lá verdadeiramente. Já o que está no extracampo, que faz com que esses olhos, peles, rostos e espaços pareçam tão distantes e distintos, é apenas uma sugestão. Uma tentativa mais clara de aproximar o gesto do cinema a estes corpos e lugares habitados por fantasmas.
O fantasma pode bem ser a imagem que os olhos deixam escorrer pelos dedos, mas que o espírito a ele com tudo se agarra. Sua raiz etimológica está no que se “faz mostrar” ou se “faz ver” (phantázein); enfim, uma aparição (do “aparecer” phaneín). E uma aparição não é uma imagem que se anuncia; é uma imagem que invade. Que desestabiliza, que estremece o local de surgimento. A aparição se impõe do vazio aos nossos olhos, torna-se o centro de toda atenção e, quando se esvai, fica gravada na mente, voltando quando quer, pulsando em vida própria dentro do espírito. O fantasma é a vida da visão assombrando a vida dos que veem.
Naturalmente, no cinema, tudo é fantasma. É imagem que passa na tela e invade o espírito. Podemos recorrer à reprodução da imagem novamente mas, muitas vezes, o gosto está na memória da visão fazer do concreto uma tela às retinas do lembrador. Sem Título #1: Dance of Leitfossil, de Carlos Adriano, é essa experiência feita estrutura fílmica e, por isso, é, ao mesmo tempo, um filme de fantasma, de memória e de cinema.
Adriano abre o curta assumindo o movimento retroativo já com a primeira legenda em fundo preto: “apontamentos para uma autocinebiografia / (em regresso)”. Entra, então, a imagem icônica do sorridente Vassourinha com um indicador levantado em frente à boca, como pedindo silêncio enquanto começa a faixa Desfado, de Ana Moura (o show está começando). Corte para o preto e, junto com os acordes do violão, entram Ginger Rogers e Fred Astaire, dançando na também icônica sequência de dança em Ritmo Louco (George Stevens, 1936). Os movimentos deles combinam perfeitamente com o tempo do fado de Moura.
A escolha por essas duas imagens, em suas texturas rasgadas pelos grãos do tempo sobre papel e celulóide, confere ao filme o tom de colcha retalhada (imagens velhas, reaproveitadas como panos velhos na formação de um novo conjunto). A foto de Vassourinha, por si só, parece uma referência ao mais celebrado filme do diretor, A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998). Um filme em cima da dificuldade de acesso à figura e à história do fenômeno sambista dos anos 1930 e 1940, precocemente morto no auge do sucesso. Ele se mantém por artigos de jornal e documentos legais mal conservados, discos arranhados de sua música: o contato com Vassourinha é necessariamente mediado pela degradação. A imagem usada em Sem Título #1 é cartaz de A voz e o vazio (e o referencial visual à obra mais comumente usado por sites de crítica ou cinéfilos), uma sorte de imagem simbólica associada a Adriano, e que parece adequada para abrir, sob reapropriação e ressignificação, uma série autobiográfica de filmes. A extensa pesquisa para A voz e o vazio foi auxiliada por Bernardo Vorobow, companheiro de décadas do diretor e então já falecido. O acesso a este amado partido, como o filme virá a mostrar, tem um rumo analogamente tortuoso.
Desfado é uma música vibrante e bem-humorada cujo eu-lírico sente tristeza por estar feliz demais para fazer seu fado: “Ai que saudades que eu tenho de ter saudades / saudades de ter alguém que aqui está e não existe / sentir-me triste só por me sentir tão bem / e alegre, sentir-me bem só por eu estar tão triste”. A dança de Ginger e Fred ao som de Moura se estende num longo plano inteiro, e é interrompido pela tela preta no verso: “e lamentasse não ter mais nenhum momento”. É a primeira fratura de um plano até então sem nenhum corte, que consiste no hipnótico dueto corporal da dupla de dançarinos mais celebrada da história do cinema. O plano estava azulado, e agora retorna esverdeado. O procedimento de colorizar o enquadramento inteiro era muito comum no cinema narrativo dos anos 1910. Sem a existência do technicolor ou tempo para colorização à mão, a indústria recorria a um filtro de cor que tonalizava a cena num todo em tentativa de conduzir sensorialidades que condizessem com o tom do enredo.
A imagem será novamente interrompida após o fim do número, com a saída dos dançarinos por uma porta, e um lampejo menos de 1s de Bernardo Vorobow rindo invade a tela em tom esverdeado (como um fragmento perdido da cena de dança que acabara de ser cortada) exatamente no verso “que aqui está e não existe”. Agora a cena do filme de 1936 retorna rosada e contrastada, mais quente e receptiva após a visita de Bernardo, para depois ser interrompida pelo preto e pelo lampejo agora azulado do riso de Vorobow. O posicionamento dos cortes mais significativos da primeira metade do filme (a interrupção de Ginger e Fred, o surgimento de Bernardo), necessariamente quando a música fala de fim e de ausência, prenuncia o encaminhamento da segunda metade do curta.
“Não repetir / Apesar do bis”, diz a legenda entre as metades do filme. Retornar, mas de outra forma sempre, como o rumo caótico da memória. Ginger e Fred retornam agora no tom prateado originário, e seus movimentos não duram mais de 2s antes do corte para o preto. Como a luz da lâmpada marcada na retina quando olhamos demais para ela, o último frame da dança antes do surgimento do escuro se repete em nossos olhos após o corte, tornando Ginger e Fred espectros mentais encantados. Eles não mais são interrompidos, mas invadem eles mesmos a estabilidade do vácuo com sua cadência mágica. O lampejo de Bernardo passa pelo mesmo processo; agora, quando surge, tem a mesma duração que os dos atores dançarinos, e o inclinar de seu riso é quase um movimento de dança (surgindo exatamente em “ai que saudade”, “e não existe”, “que aqui está”). A unidade corrente da música vira a liga das três imagens fragmentadas em pirilampos. É a feliz dança dos mortos, que cintilam porque apagam.
Daí a analogia com o “fóssil de idade” do título: quando mais se passa o tempo, e mais se dissolve a ossada, mais gravada em pedra fica sua forma. No lugar da pedra, o filme grava em psique. A interrupção da imagem é o que a faz durar um tempo a mais no olho e na alma. Sua fragmentação a torna mística: o curto inclinar de Bernardo em riso solto é imagem tatuada e mágica como o flutuar do vestido e dos cabelos de Ginger, dos braços esticados de Fred. Assim como a falta viabiliza o fado de Moura, ela permite a Adriano um lampejo mais longo do amado; o fantasma de Bernardo é a bênção de sua presença. Sem Título #1 é a saudade feita cinema estrutural. E, provavelmente, a mais linda declaração de amor que nós temos.