Mostra de Tiradentes: Subterrânea (Pedro Urano)

subterraneaPor Chico Torres

 

Sou a pedra que caiu do céu
E virou peça de museu
Que ardeu em grande fogaréu
Mas que sobreviveu

(Trecho de Bendegó, canção de Renato Frazão e Cláudia Castelo Branco)

A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho

(Trecho de Pedra de iniciação, canção de Thiago Amud)

 

Subterrânea surge como alegoria para denunciar diversos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro que fazem parte tanto de sua fundação quanto de seu aspecto sociopolítico atual. Todos esses acontecimentos, expostos através de uma série de metáforas, falam, em síntese, sobre o desequilíbrio entre homem e natureza, ou sobre o desequilíbrio do homem consigo mesmo. A obra parte da premissa de uma natureza mineral que, ao ser explorada, enterrada ou destruída por um ideal de progresso, gera a própria ruína humana.

Já de imediato, percebemos um cinema de gênero. Somos levados pelo estudante Leo (Negro Leo) e por sua tia e professora de geologia Stein (Susana Stein) em uma aventura exploratória que procura desvendar os símbolos gravados em pedras encontradas aos arredores da região do extinto Morro do Castelo. Em paralelo a esse aspecto fabulesco, Subterrânea também se desenvolve como documentário, o que reforça seu tom de ironia e denúncia. Todas as buscas de Leo e Stein caem nas mesmas conclusões: o homem é o destruidor de si mesmo porque não consegue se enxergar como parte da própria natureza. Ao destruir, implodir, demolir, o ser humano alimenta o motor que acelera a sua própria destruição, já que esse passado latente, mais cedo ou mais tarde, vem cobrar a dívida.

O filme passeia por diversos temas que exploram a ideia de que essa natureza subterrânea e mineral pode nos indicar um caminho (ou pelo menos entender que o caminho traçado até agora está errado), à medida em que acompanhamos o seu processo de destruição. Vemos como o meteorito de Bendegó “sobreviveu” ao incêndio do Museu Nacional: a sua resistência e presença nos servem como marco simbólico de um apagamento não apenas material, mas de todo um registro cultural e científico que viraram pó. Vemos, ao acompanhar parte do processo da demolição do Morro do Castelo e a lenda do seu tesouro, a história atual do Rio de Janeiro, pela relação entre religião e poder, seja através dos Jesuítas no passado colonial, ou do poder dos neopentecostais no presente capitalista. O fantasma de Lima Barreto parece ser o guia para o verdadeiro caminho por entre esse passado apagado, mas que ainda resiste sob os escombros da história. Esse aspecto fantasmagórico e sombrio se reforça, ainda que de maneira menos significativa em relação ao tema que norteia o filme, com a presença da estudante Clara (Clara Choveaux), personagem que simboliza os casos de suicídio acontecidos na UERJ. Uma denúncia sobre o processo de desmonte das pesquisas nas universidades federais e suas consequências aterradoras.

O arrasamento de tudo como processo de desenvolvimento. Maceió, capital de Alagoas, serve como o exemplo mais atual dessa constatação: a Brasken, empresa de exploração do sal-gema, foi responsável pela destruição de bairros inteiros a partir ano de 2019, desabrigando centenas de famílias de suas casas devido à exploração inadvertida do minério. Nascem cidades fantasmas de ações como essas. É assim que a natureza cobra, revelando que o avanço é também o prenúncio do fim. E, como é citado no início do filme por Leo, uma referência a Eduardo Viveros de Castro, quem paga primeiro com esse aniquilamento são os povos indígenas, os negros, os empobrecidos, todos eles são especialistas em fim de mundo, já que para eles o mundo acaba diversas vezes e sistematicamente. Mas a ruína está para todos que fazem parte desse jogo civilizatório em nome do progresso. E o que resta fazer? Ressuscitar os mortos, recontar a história e entender o caminho que está inscrito nas pedras.

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Mostra de Tiradentes: Ostinato (Paula Gaitán, 2021)

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Por Chico Torres

Em Ostinato, Paula Gaitán persegue o compositor Arrigo Barnabé. Não uma perseguição no sentido de almejar uma investigação total, como acontece em alguns documentários que se debruçam, com uma nostalgia sedutora e vendável, sobre a biografia de artistas, surgindo como heróis da tropicália, da bossa, do samba e por aí vai. Não, Paula persegue Arrigo como aquilo que ele é: um ser no presente, com inquietações, aspirações e dúvidas no presente. Persegue-o também como inspiração estética, buscando no próprio método do compositor as soluções para o filme que se dedica a ele.

E o que Paula captura é um homem fragmentado, ou, como no título de uma reunião de textos de Walter Benjamin sobre Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”. São muitos os Arrigos que surgem: aquele que revolucionou a música popular brasileira ao antrofogizar o dodecafonismo de Schoenberg, o desdobrando em canção, substituindo o serialismo pelo ostinato. Há também aquele que surge como Beethoven, em semelhança física e intelectual: Gaitán filma Arrigo em close, como se quisesse reproduzir em fotografia o retrato mais famoso do autor alemão, pintado em 1820 por Karl Stieler. Logo em seguida, Arrigo cita a Grande Fuga e diz ser a música de Beethoven a expressão do “pensamento puro”. Assim é também a música de Arrigo: exigente, feita para desafiar o cérebro. Por fim, há um Arrigo crítico da contemporaneidade, expondo a decadência do gosto e a falta de comunicação entre autor e público. Um Arrigo confuso, quase nostálgico, um homem de vanguarda perdido em um tempo sem vanguarda.

Todas esses Arrigos que aparecem dispersos ao longo do filme, como que em série dodecafônica sem repetição, surgem novamente em seu final, como em ostinato, nos dando a ideia de organicidade, de completude, tal qual o método composicional de Arrigo Barnabé. Todas as ideias do músico, seus desafios e frustrações, parecem sintetizadas em uma bela citação de um fragmento de Benjamin feita por Arrigo:

E por que? Porque se curvou. Assim, o corpo é justamente o que desperta a dor profunda. E pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambas as coisas precisam do isolamento. Quem alguma vez subiu sozinho a uma montanha, chegou ao topo esgotado, e depois inicia a decida, com passos que abalam todo o seu corpo. Sentiu que o tempo se desagrega, as paredes divisórias no seu interior desabam, e ele caminha por entre o cascalho dos instantes, como num sonho. Por vezes tenta parar e não consegue. Quem sabe que coisa o abala, se os pensamentos ou o caminho difícil. O seu corpo transformou-se num caleidoscópio que a cada passo lhe mostra figuras mutantes da verdade.

Ostinato é sobre esse ser caleidoscópico que busca os fragmentos da verdade através de uma música construída na esfera do pensamento. É também sobre Paula Gaitán, sobre seu cinema agora inspirado na música, nesse esforço incomensurável de encontrar, ainda, novas maneiras de dizer, sugerindo novas maneiras de pensar e sentir.

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Editorial: Os imaginários de cidade

Por Gabriel Papaléo

 

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“Contando” de Jem Cohen

 

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. (…) A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata.”

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

Se talvez não tenha nascido com a cidade, ao menos transformado, retorcido e intoxicado por ela o cinema foi. A relação simbiótica com o movimento é particularidade tanto da cidade quanto do cinema, e a partir dele muitas vezes adentramos esses espaços e seus códigos e mistérios. Para o tema desse trimestre atravessamos filmes que intuem um pensamento de cidade, iconográficos de representação no espaço urbano, os meandros e processos do trânsito de pessoas e máquinas. A ocupação do ambiente como violência ou resistência, e as ramificações desse choque social da presença. Olhares de contexto, panorâmicos, detalhados e íntimos do que colocamos como ideais de espaço de convívio de trabalho e trânsito. O que esse urbano oferece de mitológico, máquinas e humanos em confronto e harmonia, o que a cidade evoca de invisível. De travelogues que funcionam como registro emocional da experiência de vagar pela cidade, a retratos que parecem filmar os fantasmas históricos de cidades cuja carga histórica parece indissociável do presente, passando pelos filmes cujas entranhas ficam pelo chão quente do Rio de Janeiro, ruas de fogo sob as profecias e cataclismas culturais dos delírios febris de fabulação no ambiente urbano.

Variedade de metrópoles de diferentes continentes, e as repetições do que nelas se insere. Variedade também de gêneros e dispositivos representando as diferentes formas de intervenção na cidade, nas formas que somos atravessados por seus signos, pulsões e ações. De filmes que debatem diretamente sobre como representar a cidade, aos filmes cuja paisagem e arquitetura da cidade ajuda a refletir sobre a passagem do tempo nela, suas transformações e os retornos de seus habitantes.

Que todos os fantasmas passados e presentes continuem assombrando as cidades, gravando sob as mais diversas armas sua existência nesses lugares por vezes grandes demais, por vezes pensado por e para quem não vive o dia a dia, mas que só são alçados à fabulação e ao coração dos sonhos e esperanças quando atravessado pelo povo que habita esses centros urbanos no cotidiano.

Boa leitura!

Edição revisada e editada por Camila Vieira.

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Duas noites brancas

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Por Gabriel Papaléo

“Mas pra quê preciso de relações? Eu já conheço toda Petersburgo sem isso; aí está por que me parecia que todos me abandonavam quando toda Petersburgo se levantou e partiu de repente para o campo.”

Dostoiévski, Noites Brancas.

Das muitas imagens e sensações de uma cidade em expansão, das mais marcantes em Noites Brancas são sobre o fluxo migratório de uma cidade e do que isso representa na memória de um habitante jovem dela – e especialmente como um encontro pode despertar uma nova relação com esse lugar. O contexto da São Petersburgo descrito por Dostoiévski no seu breve livro é o de transição dos tempos, das pessoas voltando ao campo para o trabalho à época de 1848, ano de lançamento do livro, ainda no início da carreira do autor. A cidade descrita pelo russo é dos solitários, dos jovens que ficaram para trás, e em Quatro Noites de um Sonhador e Millennium Mambo, Robert Bresson e Hou Hsiao-Hsien atualizam essa sensação para cidades sob diferentes sombras – e cada qual reagindo a seus respectivos tempos.

Noite silenciosa em Paris

“A nossa imagem, como lembrança desse lugar.”

Marku Ribas, na música “Porto Seguro”

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Cineasta que adaptou obras de Dostoiévski em duas outras oportunidades, de forma livre em O Batedor de Carteiras (1959) e de forma direta em Uma Mulher Delicada (1969), Bresson inicia sua investigação do flanar e das intenções incendiárias da juventude aqui em Quatro Noites de um Sonhador. Mas se o cineasta viria a radicalizar no elogio ao arrojo político dos jovens em O Diabo, Provavelmente (1977), aqui, seis anos antes, o seu elogio é ao romantismo de quem entende que vive no presente à sua disposição.

E a Paris de Quatro Noites de um Sonhador é uma cidade para ser tocada pelas mãos, nos corrimãos, maçanetas e bondes, e para ser vivida pelos abraços apaixonados que persistem aos olhares perdidos corriqueiros do trânsito. Explora essas sensações na figura do sonhador do título, que percebe os amores que habitam a cidade pelas trocas fugidias nas ruas, e vê a mulher com quem passou as noites sumir no mesmo balaio das canções urbanas, dos transeuntes, que os uniram, no mesmo fluxo de pessoas a caminhar. Essas são partes fundamentais para Bresson conjurar momentos mágicos de vivência no ambiente propício aos acasos, como nos interlúdios musicais que atravessam as águas em português ou em inglês, e criam essa Paris suspensa pela fantasia mas sempre tão cotidiana e verdadeira, disposta às andanças, não-turística.

É um olhar atento de planos que sempre estão concentrados na ação de deixar Paris viver seus movimentos paralelos, as pessoas entrando no fundo do quadro com tanta frequência, a noite iluminada pelos anos 70 e pelos tons azulados do eastmancolor. A descoberta de Marthe com seu próprio corpo embalada pela mesma voz que mais tarde virá a marcar uma memória de um barco a passar cantando, que sinaliza a vontade do amor que virá em seguida apenas pelas sugestões de toques, pela batida delicada na parede, as luzes que se apagam, e a câmera precisa e focada de Bresson, cineasta mudo das ações e sobretudo romântico; o caminhar pelas ruas e a aspiração de dias de suspensão, dois dos maiores registros que senti com o Noites Brancas.

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Se o campo da Rússia era narrado como o distante retrato do fluxo migratório de São Petersburgo, aqui na França o campo são flores amarelas fortes, seus tons idílicos de memória enquanto Jacques anda pela cidade, como a tradição bucólica dos quadros de Renoir e de quando Van Gogh se dedicava à natureza. Bresson ilustra e sugere através dessa visão mais individualizada, do diálogo com as artes plásticas, mais francesa enfim, uma resposta moderna de cotidiano parisiense dos encontros que passam, mantendo toda a solidão dos anônimos da metrópole sob outro contexto social, e mesmo assim deixando aos amores que acontecem e passam toda a atenção que eles merecem e a eles é concedida – por Dostoievski e as palavras, por Bresson e os gestos.

O protagonista Jacques começa perdido na solidão de sua história. Está feliz na primeira noite porque “hoje foi ao campo”, se distrair dos ruídos urbanos, dos amores perdidos em uma porta de bondinho fechada, do movimento que não cessa. É nesse fluxo anterior ao encontro que Bresson estuda o espaço e organiza os rituais do flanar, do passeio diurno e noturno, do que Jacques enxerga enquanto olhar atento e curioso para o urbano. É uma visão idealizada também da cidade, sob as tintas melancólicas que um idioma como o francês traz, e essa ligação aparece sobretudo na primeira aproximação de amor entre Marthe e seu amor platônico, feita através dos gestos, dos sons e das sombras. O toque no corrimão, como o toque nas portas, como o toque na pele, experimentando o que se pode na cidade ao alcance – inclusive o que não conhecemos.

No encontro breve no confinamento do apartamento, nas possibilidades da terra estrangeira, nas fugas imaginadas de uma Paris infértil àquele olhar entediado de Marthe, essa idealização se desenha na figura do inquilino, do fantasma do passado que assombra o relato contado para Jacques. E quando testemunhamos essa aproximação entre memória e presente se desenhando, Bresson retrata o que o amor tem de palpável, nos toques e gestos, nas andanças e abraços, em compartilhar momentos na noite estrelada e urbana que se mantém em movimento sempre. O amor de Marthe é sobretudo de intimidade e idealização, enquanto o do Jacques por Marthe é do acaso e suas circunstâncias iluminadas.

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Num retrato tão sublime e significativo do passado, o que poderia ser tomado pela névoa ilusória da nostalgia vira uma base emocional para o presente nas mãos e olhos de Bresson, no cuidado sobre com o cotidiano de ocupações através dos gestos. A história de Jacques e Marthe parece tão mais viva e palpável talvez pela forma que esses dois andam em direto diálogo com o coletivo, com a cidade que pulsa; no passado, os encontros de Marthe com o inquilino prometido são sugestivos, sempre à beira das dissonâncias, fugidios e quase místicos. A rica cena musical que compõe a tapeçaria cultural da noite na Paris do presente do filme é muito responsável por essa concretude do presente, que nivela a suposta banalidade das buzinas, dos carros passando, dos transeuntes ao redor do casal, com a magia impressionista dessas músicas que suspendem o tempo e parecem devolver um histórico visível da cidade diante dos olhos.

Na bela cena de Marthe no quarto examinando seu corpo no espelho, ela liga o rádio e ouve “Musseke”, música de Marku Ribas. Essa trilha embala os movimentos graciosos de Isabelle Weingarten, atriz magnânima da qual Bresson sabe guardar um close, e através desses gestos há uma nova curiosidade pela sexualidade, desencadeando ainda no pelo encontro de sombras com o inquilino, feito através de ruídos e sugestões com uma parede de distância entre eles. Mais tarde, de volta ao presente da terceira noite, na cena em que o grupo Batuke aparece tocando e cantando no bateau mouche sob a Pont Neuf, Jacques e Marthe param para ouvir a música que sai dali. É quando a voz agora familiar de Marku Ribas reaparece para cantar “Sou só, na estrada sigo só, levando a espera que era ela/E o meu coração que não traz segredos/Sigo sem medo rumo ao sul.”, trazendo sob a voz brasileira e a língua portuguesa um sentimento que atravessa o olhar dos dois, e talvez inconscientemente manifeste uma aproximação misteriosa entre passado e presente, na mesma voz que desnudou Marthe em seu quarto no dia em que redescobriu os detalhes de seu corpo ser agora a voz que ecoa pela cidade numa “coincidência” que só o trânsito poderia criar. A melancolia e amor do hemisfério sul atravessou a noite francesa como o ruído distante da saudade.

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É por conta desse tipo de sutileza que testemunharam que Marthe lembra a Jacques que agora estão ligados para a vida toda, porque compartilharam um momento de reconhecimento de um no outro por conta da noite da cidade. Ela vive na cidade grande e no meio das multidões, e seu rosto está gravado nas memórias, e Jacques depois percebe que até o nome dela existe nos barcos e nas vitrines de loja que refletem os fantasmas que ali habitam. Como tal fantasma, se pensarmos que na cidade pouco de nós fica gravado e o que nos sobra são as reminiscências com lugares que por vezes nada tem a ver com seu intuito inicial, Marthe pertence à noite e ao acaso, e não abrirá mão de se perder na multidão para se reconectar com quem lhe prometeu o futuro. Jacques percebe que é num sopro que ela vai embora da mesma forma que surgiu, como o vento que Bresson já disse vinte e quatro anos antes que “sopra onde quer”, e o caos de uma rua cheia parece o único palco possível para essa despedida apaixonada.

É nesse encerramento de solidão, mas também de devoção a um dever emocional, que Jacques encontra a confissão final. O movimento anti-nostálgico e sobretudo atencioso às nuances melancólicas da vida que possibilitam um otimismo sonhador, como no livro, se manifesta na serenidade de Jacques em reconhecer que, apesar de ter sido a piada do destino, às andanças pode retornar, ao trabalho dos seus quadros e das paixões muitas pelas ruas, e que será eternamente grato pelos olhos de Marthe que o fizeram procurar novamente por Paris.

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Noite eletrônica em Taipei

“A cidade dos outros / bate à nossa porta.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, “Cidade dos Outros”.

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Partiremos de uma suposição: se Bresson escolhe a distância entre a perspectiva de Jacques e Marthe, em Millennium Mambo é como se Hou Hsiao-Hsien focasse inteiramente no passado da protagonista feminina do livro, e imaginasse todas as turbulências que os amores dela causaram. E aqui o movimento migratório russo vira as lembranças de uma Taipei em transformação. Hou localiza com atenção uma suspensão histórica, um momento de transição sem perspectivas de conclusão no fim do século que chega, na música eletrônica abrindo as portas para o desconhecido cujas elipses são difusas justamente pela forma que registramos o amadurecimento sem certezas. Estamos sob a visão de Vicky, a protagonista, testemunhando sua história; na noite branca de Taipei os sonhadores são os espectadores silenciosos.

A rotina de Vicky, a personagem vivida por Shu Qi, já é iniciada num contexto de efervescência cultural jovem da música eletrônica como um sinal de fluxo ininterrupto dos tempos, das drogas que borram a percepção do tempo e ativam a nostalgia de sua passagem. É sob seu olhar que vemos os dilemas diante o pêndulo da sua entrega aos relacionamentos que a atravessam, e talvez a única vez que enxerguemos a protagonista em total plenitude é no estonteante primeiro plano do filme, quando ela anuncia em off onde estava emocionalmente essa mulher “há dez anos atrás, na virada do milênio”. Millennium Mambo já começa com a voz do futuro porque a percepção do tempo para Hou aqui demanda distância – no presente estão todos à flor da pele.

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Muito por isso é fundamental para Hou que o espaço esteja bem localizado; sua dinâmica de planos inteiros sem corte, com a câmera se movimentando dentro de um mesmo plano, à procura das ações, quase sempre à meia distância, deixa transcorrer na encenação o tempo presente do drama. Seja nas cenas de agitação das boates, seja nas interações domésticas entre Vicky e Hao-hao, o espaço existe como nos filmes silenciosos dos Lumière, revelados por um ponto de vista fixo, que ilustre as nuances entre primeiro plano e fundo do quadro, mas que comporte todo o movimento. O extracampo é intuitivo e Hou prefere o sugerir com o mistério de quem escolhe a posição do olhar e se agarra nela. É através dos acumulados desses espaços, que se repetem e também se comentam, que entenderemos as elipses e o tempo. Mas adentremos primeiro no espaço.

É como o espaço retratado por Kenji Mizoguchi, outro mestre em separar com cautela o que acontece em primeiro plano e o que acontece no fundo do quadro, nos seus filmes voltados às protagonistas femininas pagando o preço emocional da dureza institucionalizada dos homens. A câmera passeia por cômodos e pelos rostos dos personagens, mas sempre num fluxo calmo, no seu próprio tempo, como um observador atento que já sabe do destino daquelas pessoas. No caso de Vicky, pelo off reflexivo vindo do futuro, é como se o olhar fosse o da câmera, que procura nessas memórias o sentido totalizante daquelas experiências – cenas essas escolhidas a dedo para criar um retrato suficiente da personagem em poucos momento; é uma herança também da literatura, como o próprio Dostoiévski e o argentino Jorge Luís Borges – cujo prólogo de História Universal da Infâmia diz justamente sobre seu desejo de falar sob a “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”¹.

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E quais são essas poucas cenas que definem Vicky, e essa transformação íntima de Taipei? O fluxo de dois romances que se interpelam, de duas cidades de épocas diferentes. A partir da liberdade da primeira cena, do fugidio que é o suficiente para ser gravado na jornada pessoal, o já citado pêndulo constante entre o relacionamento abusivo com Hao-Hao e o flerte com Jack – esse um homem mais velho, mais paternalista, mais seguro, uma promessa de solução na tradição, dos rituais, das câmeras de segurança, da calma, do silêncio, dos trens tão filmados por Ozu. O estrangeiro e a tradição taiwanesa sem respostas, a carência de perguntas do presente, e o acaso possibilitador como o que persiste.

A relação de Vicky e Hao-hao, por sua vez, é mediada pelo confinamento – e talvez aí seja a proposta estética mais arriscada do diretor: de organizar uma mudança quase romanesca de Taipei diante dos olhos de Shu Qi, mas quase exclusivamente filmando cenas internas, domésticas, onde as mudanças externas são mais intuídas que mostradas, como a batida da trilha de Lim Giong, que atravessa paredes, tempos, corações e corpos. Mal existe acaso na vida de casal de Vicky e Hao-hao, é a mesma trilha de destruição que não consegue ser evitada pela personagem que busca solitária por equilíbrio emocional diante do desarranjo irresponsável do parceiro. Quando existe o acaso é para propor a mudança, como todo acaso que se preze numa vida urbana, e é o suficiente para fazer Vicky largar seu namorado sem precisar recorrer a fuga imaginária e impossível ao passado que sua mãe e sua cidade natal no interior representam.

É um desejo evidente em Vicky, ainda que nada verbalizado, a vontade de presenciar a vida na cidade. Flui como um rio o corpo da personagem indo de uma festa em outra, seja em boates ou no seu próprio apartamento, os cigarros que se enfileiram, as bebidas que nunca saem da mão, os olhos cansados como numa ressaca constante – tudo isso para de alguma forma se sentir na cidade. É um detalhe bonito demais quando Hou filma a primeira ida de Vicky ao Japão e conhecemos brevemente a velha de Yubari, uma mulher de 80 anos que quer ficar viva mais vinte para ver a cidade se transformando. A sede de mudanças e de se manter testemunha do tempo não é sinal de juventude ou velhice, mas algo que se reimagina de geração em geração, de idade para idade.

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Quando surge a oportunidade de filmar uma imagem dessa mudança, Hou elege os rostos marcados pela neve de Vicky com o amigo no Japão. A neve que cai rapidamente os dissolverá, mas a necessidade de se gravar na cidade não passa pela razão, mas sim pelo gesto. E na estrutura da montagem, que intercala tempos com elipses às vezes desavisadas, desafiadoras, o tempo fragmentado é que exerce o acúmulo de sensações, acompanhado como o fluxo de uma reminiscência, como pequenos registros de uma realidade de mudança cujas permanências são de relações que ajudam a moldar a relação com os espaços que vimos ao longo de cem minutos que agem – da melhor forma possível – como anos a fio.

A fuga pertence ao futuro que não acessamos através da imagem; o intuímos pela voz de Vicky, por sua memória da década futura, propondo uma Taipei esgotada cuja batida uniforme da música eletrônica anestesia como as paisagens de segurança que estão pela janela. O que resta é um movimento não de nostalgia reverente e sacralizadora, mas um aceno com respeito ao passado pelo seu poder de formação; um filme de amadurecimento antes de um filme de amor.

E a imagem desse aceno não poderia ser outra que não a neve, que sobra no fim, a acabar no dia seguinte, mas ainda ali para ser aproveitada com quem lhe faz bem, para lembrar que a natureza está ali em harmonia e que o vento e os pássaros existem para além dos dilemas das pessoas. Ali na serenidade da viela solitária ocorre a noite branca final, de despedida do mágico encontro com alguém, dos cartazes antigos ficando nesse milênio que se esvai, da memória desse cinema rumo ao desconhecido como a neve a derreter com a chegada do Sol.

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Referências:

1 – Jorge Luís Borges, “Prólogo a primeira edição” em História Universal da Infâmia (1935), pag. 9

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O pântano sob Berlim: à volta de Undine

Por Lucas Saturnino

 

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A palavra alemã Landschaft pressupõe uma paisagem cultural. A ideia está embutida no próprio termo. Falar sobre paisagem na Alemanha é falar sobre um lugar moldado por pessoas, e, tendo em vista a história do século passado, nem sempre foi tão fácil falar sobre isso. Mas os campos agrícolas, as florestas e encostas romantizadas, os rios cheios de história que atravessam o país: tudo isso é cultural, em algum nível moldando a cultura e sendo moldado por ela. (Turning: A Swimming Memoir, Jessica J. Lee)

O cinema é um imenso registro de modos de vida, paisagens e paixões fadadas a desaparecer. Assim foi e é a sua história na Berlim palimpséstica. Todo filme berlinense é um testemunho sobre a cidade em movimento perpétuo de inclemente transformação. E isso permeia, norteia e condiciona Berlim enquanto espaço cênico cinematográfico. Nesse contexto, insere-se Undine (2020), do alemão Christian Petzold.

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Embora Undine venha sendo descrito como uma declaração de amor a Berlim, precisamente metade do filme não se passa na cidade — e sim em Nordrhein-Westfalen, onde o bucolismo romântico coexiste com a barragem que reflete a industrialização. A paisagem urbana berlinense possui tanto tempo de tela quanto o vestiário do trabalho da personagem e muito menos do que os minutos debaixo d´água.

Após o monólogo (“Form follows function”) que divide o filme pela metade, corta e assistimos aos amantes percorrendo juntinhos o centro nevrálgico da nova República Federal. Onde antes o Muro cortava a vizinhança, hoje se situam altivos o Palácio do Reichstag (que, após ser restaurado, voltou a sediar o parlamento alemão em 1999), a Chancelaria Federal (inaugurada em 2001) e a Estação Central de Berlim (aberta em 2006). Contudo, o primeiro está fora de quadro e os outros dois fora de foco.

De resto, não se vê praticamente nada da cidade, exceto a visão sobre Alexanderplatz do quarto de Undine — de onde nem se espreita a Fernsehturm dos cartões-postais, mas outra, mais reveladora, perspectiva da capital alemã: apenas o fluxo de trens indo e voltando em conjunto à Galeria Kaufhof, icônica loja de departamentos, templo do comércio, e o hotel Park Inn, o modernoso arranha-céu espelhado. Do outro lado do apartamento, construções históricas como a Marienkirche (igreja) e a Rotes Rathaus (a prefeitura) desaparecem por detrás da cordilheira de edifícios que as ocultam.

Berlim? Petzold esquiva-se de filmá-la. Apesar de residir na cidade há cerca de 40 anos, dentre os seus filmes apenas Undine e Gespenster (Fantasmas, 2005) são ambientados lá. Gespenster, inspirado pelos Irmãos Grimm, foi quase todo rodado nos arredores de Potsdamer Platz — o símbolo da nova Berlim: de terra de ninguém dividida pelo Muro a maior canteiro de obras da Europa a centro comercial e empresarial ultramoderno.

Só que o interesse de Petzold é pelo elusivo e não pelo dado. Em Potsdamer Platz, ele busca superfícies típicas de contos de fadas, transfigurando o parque urbano em floresta até que os lagos artificiais adquiram organicidade. Petzold cria uma contrafábula — sobre traumas, ilusões, frustrações e abandonos — à fabulação topográfica das reformas pós-reunificação. Mais do que uma disputa de narrativas, um choque de (re)encenações. “Você poderia me ressuscitar outra vez?”, pede Undine a Christoph, com carinho.

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Jaimey Fisher[1] observa que as jovens personagens de Gespenster caminham por esse espaço sobrecarregado historicamente sem jamais interagir com os muitos monumentos montados para fins turísticos ou políticos. Alheias à intensa memorialização pública da cidade, os interesses delas são mundanos e imediatos: comida, bens materiais, afetos, oportunidades. A câmera se recusa a registrar a arquitetura ultramoderna da região, mas revela as marcas de tiro da guerra ainda visíveis no edifício neoclássico do Martin-Gropius-Bau, filmado de maneira sempre fragmentária, lateral e passadiça.

A janela do quarto de Undine evoca a do apartamento da personagem de Hannelore Schroth em Unter den Brücken (Por baixo das pontes, Helmut Käutner, 1945/6). No filme, a jovem mulher inicia o relato sobre como quase chegou ao suicídio fazendo alusão à paisagem na janela do seu quarto, de onde só se vê o nada aconchegante paredão lateral do prédio em frente, composto somente por tijolos e um grande anúncio, tampando a vista inteira, com exceção de duas grandes chaminés e o fluxo dos trens ao fundo. O retrato zero hospitaleiro da metrópole industrial. “Sem sinal da primavera”, ela diz.

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Em Undine, onde está Berlim? No mapa e no ethos — na mística local. A cidade é vista através de mapas — as maquetes da exposição apresentada pela personagem, as quais, como ela observa, são todas representações incompletas e tendenciosas. Petzold reduz Berlim à sua dimensão teórica, à sua tangibilidade conceitual.

A maquete central divide as edificações em duas cores, que sinalizam se elas foram construídas antes ou depois de 1990. Dessa maneira, a sua composição bicolor materializa o acúmulo de temporalidades num tempo presente em que elas forçosamente coexistem, representando visualmente o corpo urbano cicatrizado pela história.

Como em Transit (Em Trânsito, 2018), Petzold trabalha um diálogo materialista entre esferas imateriais à semelhança do que Serge Daney definiu como “não-reconciliação”. Daney escreve: “A não-reconciliação não é a união nem o divórcio, nem o corpo pleno nem o pressuposto do esfacelamento, do caos […], mas sua dupla possibilidade. Straub e Huillet partem, no fundo, de um fato simples e irrecusável: o nazismo existiu […] No sistema straubiano, uma moda retrô é simplesmente impossível: tudo está no presente”[2].

O impacto da reunificação na topografia urbana pode ser verificado no documentário Berlin Babylon (Hubertus Siegert, 2001), que retrata o período dos anos 90 no qual a cidade se transformou em um imenso canteiro de obras. No filme, a arquiteta e diretora de obras do Departamento do Senado de Berlim para Desenvolvimento Urbano e Habitação (onde Undine trabalha como guia da exposição oficial do órgão) comenta diante de uma maquete idêntica da cidade — possivelmente a mesma — que “o chanceler [Helmut Kohl, 1982-98] tinha uma nítida fraqueza por símbolos e grandes gestos”.

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Frente a isso, Petzold reage reduzindo essas ideias ao plano do esboço. Tal concepção de cidade reabilitada, consubstanciada e reestruturada permanece uma maquete inorgânica. Os símbolos tão abundantes quanto irrelevantes e os grandes gestos jamais conseguiram ser mais do que intenções branqueadoras do poder aliado ao capital. Tudo ainda é projeto mesmo que já tenha sido pomposamente edificado. Daí a opção por desfocar a Chancelaria e a Estação Central e relegá-las ao segundo plano. Como tensionar as fissuras da história em um lugar que erige monumentos à própria vergonha?

No curta Der Weg, den wir nicht zusammen gehen (O caminho que nós não percorremos juntos, Dominik Graf & Martin Gressmann, 2009), a voz off de Graf disserta sobre imagens de construções abandonadas: “Esses edifícios são corpos que preservam o espírito da Alemanha do pós-Guerra. Eles contam o que os museus […] e os centros reformados das cidades não conseguem nos contar […] Esses corpos de pedra serão demolidos porque nós queremos outros corpos. ‘Nós’. Quem será isso?”.

Eles também nos levam a uma reunião do já mencionado Departamento do Senado de Berlim (então Ocidental) para Desenvolvimento Urbano e Habitação: em pauta, a remoção dos “indivíduos indesejados”, “drogados, mendigos e prostitutas”, dos arredores da Estação Zoo, “zona futuramente significativa”. Nos anos 70 e 80, o Senado já tinha o costume de “remover os vagabundos” da região durante a Berlinale para que os convidados internacionais do evento não presenciassem a pobreza. O objetivo seria, portanto, sacramentar a gentrificação sazonal adotada a cada festival. Na opinião de um dos trabalhadores sociais presentes, a vilania do representante da Deutsche Bahn (a empresa estatal de transportes) seria algo tão clichê que se excederia na caricatura.

Às ruínas dos corpos e lugares sem função no neoliberalismo, sucede-se, por via da imagem do colosso espelhado da Estação Central de Berlim, a imponente arrogância do novo presente que obsoleta tudo à sua volta e não admite rivais. Conforme a Alemanha é tomada por um “programa de eutanásia arquitetônica”, a desatualização não-lucrativa passa a ser punida com pena capital pelo frenesi destrutivo de investidores e tecnocratas.

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Graf & Gressmann atacam a instrumentalização da palavra “emocional” na Alemanha pós-Guerra Fria (cujos termos da reunificação sob a égide da vacuidade programática do neoliberalismo implementada por uma elite falida moralmente em meio à corrupção sistêmica Graf vem criticando desde os anos 90 em sobretudo thrillers policiais, mas também melodramas, realizados majoritariamente para a TV):

Como disse um conhecido arquiteto bávaro? «No lugar do antigo prédio da Agfa, o novo edifício irá oferecer acesso emocional». Sim, «emocional»… Uma palavra de extrema importância na cultura alemã dos últimos 20 anos […] Na política, no cinema, na música, nas finanças e na publicidade. Precisamos sempre cativar as pessoas emocionalmente. Os artistas, os políticos… A arquitetura agora também é emocional […] Mas sempre foi assim, inclusive nos períodos mais nefastos da história alemã […] Sublime, grandiosa, comovente, tocante, excitante, empolgante, sensível. Talvez esse estranho emocionalismo dos arquitetos, dos burocratas e dos políticos seja só a cortina de fumaça por trás da qual a verdadeira história alemã é descartada. Tudo o que sobra é pano de fundo. E Stadtschlossen (“Palácios da cidade”) [vemos imagens da demolição do Palast der Republik, o parlamento da Alemanha Oriental, para dar lugar à reconstrução do Berliner Stadtschloss, a antiga residência da monarquia Hohenzollern, remodelada para acolher o museu Humboldt-Forum, sobre o qual disserta Undine]. Tudo desaparece: os edifícios, o sol, os Reichs alemães, o dos nazistas e o dos stalinistas. Essas cores também desaparecerão. As maravilhosas cores desse material fílmico [a película]. Nenhum outro material fílmico no mundo é capaz de fazer esse muro ter essa aparência”.

Também os filmes do que se rotulou “Escola de Berlim”, tidos como austeros em excesso, sofreram muitas críticas centradas no argumento de que eles negariam ou dificultariam o acesso emocional do espectador. Conquanto refletissem justamente o estado emocional letárgico e desgarrado da burguesia alemã naquele período histórico. Já no fim da era Merkel, os desassossegos subiram de tom e romperam com o realismo: obras como In My Room (Ulrich Köhler, 2018), Ich war zuhause, aber… (Eu Estava em Casa, Mas…, Angela Schanelec, 2019) e Undine afastaram-se ainda mais da estética que outrora os notabilizou.

Ao final de Der traumhafte Weg (O Caminho dos Sonhos, Schanelec, 2016), a Estação Central de Berlim emerge melancolicamente como signo da perda do comum, do espaço público neoliberal hostil à sociabilidade retraindo os indivíduos à neurose dos interiores domésticos, em contraponto à ensolarada Ágora grega da sequência inicial durante as eleições europeias de 1984 e a luta política idealista por uma “nova Europa”.

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A paisagem urbana reflete o espírito do seu tempo e influencia a psique do sujeito. Em 1998, o desemprego na Alemanha atingiu um pico histórico e Stefan Hayn começou a pintar em aquarelas a transitória agressividade dos cartazes publicitários (políticos, comerciais) que colonizavam a paisagem urbana (cognitiva, sensível) de Berlim, prenunciando a ruína do Estado de segurança social, como forma de registrar (processar, compreender) as transformações econômicas, políticas e interpessoais que acometiam o país reunificado à sombra sitiante do neoliberalismo. Assim nascia o poderosíssimo Malerei heute (Pintando hoje, Anja-Christin Remmert & Stefan Hayn, 2005).

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Além de Undine, outro grande filme sobre o amor agourado pela gentrificação é Berlin Chamissoplatz (Rudolf Thome, 1980). Uma jovem estudante de sociologia se apaixona por um arquiteto de meia-idade. Ela integra um coletivo político que luta contra o projeto estatal de renovação urbana, considerado vetor da especulação imobiliária e da elitização higienizadora do bairro. Ele trabalha no Senado de Berlim, envolvido nessas mesmas obras. Como tão bem sintetizado pelo crítico Lukas Foerster, “o filme de Thome indica um lugar impossível entre as utopias contraculturais dos anos 70, que haviam se tornado antiquadas e paranoicas, e o autoisolamento burguês dos anos 80”[3].

“Eu acho que você está personalizando as pressões do sistema”, rebate o arquiteto. Ao contrapor dois personagens tão exemplarmente antagônicos, a proposta de Thome não é personalizar questões estruturais, as quais não partem do sujeito e nem se encerram nele, mas sim dar forma ao modo furtivo como elas se sobrepõem a eles. A estrutura social é tanto o que permite quanto o que obstrui a mobilidade dos indivíduos — por isso, o cinema de Thome desde sempre se dedicou a investigar a estabilidade das estruturas que pudessem viabilizar suas utopias particulares (políticas, românticas, sexuais). E o que os une e os separa é a indiferença que em última instância o progresso reserva-lhes.

Na janela de Berlin Chamissoplatz? Outro paredão, com os tijolos aparentes, sem acabamento. Se a bruteza da paisagem poderia ser deprimente, ela passa a representar uma imagem na contramão da gentrificação, e depois ainda será por cima dessa mesma superfície, banal e simbólica, que o arquiteto escreverá sua declaração de amor.

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Esse “Eu te amo”, entre a simplicidade da mensagem e o peso do quadro no qual ela é inscrita, dialoga com o modo petzoldiano de sobrepor o pessoal no político e vice-versa. A tensão constitutiva do cinema de Petzold se dá entre o arcabouço conceitual altamente elaborado dos projetos e o andamento narrativo melódico e retilíneo que eles apresentam. Seja lá o que mais estiver se desenrolando concomitantemente na forma ou no discurso, em primeiro plano mantém-se a obra de arte dramática — ação, reação e ficção.

Se uns personalizam as pressões do sistema, Petzold as mitifica. Assim Undine consegue se vingar do ex-namorado — redirecionando o alvo do sacrifício ritual — de modo que a camareira de Dreileben: Etwas Besseres als den Tod (Petzold, 2011) não fora capaz. Em ambos, Jacob Matschenz interpreta o (homônimo) imbecil de classe alta que não se importa com o mal que causa aos outros. Ainda que a ambientação na floresta germânica remeta aos contos de fadas, em Dreileben a realidade socioeconômica se impõe ao final.

Já o novo filme se assemelha ao japonês Mermaid Legend (Toshiharu Ikeda, 1984), também uma reação à modernização de uma antiga potência do Eixo, identificando que a única forma de romper com a ordem coercitiva social e com o modus operandi cínico e criminoso do status quo político-econômico é transformando-se no distúrbio solitário que incorporará a saída mitológica do impasse público, apresentando a conta por si só.

O que Undine não conta sobre o Humboldt-Forum — porque os empregadores dela não permitiriam — é que o museu vem sendo alvo de intensos protestos por se propor a ser um centro global de intercâmbio e diversidade cultural, entre outros desígnios superlativos, embora parte do seu acervo, herdado dos antigos Museu Etnológico e Museu de Arte Asiática locais, tenha sido formada em circunstâncias moralmente condenáveis, que representariam a manutenção de pontos de vista e metodologias coloniais.

Acusa-se o museu de apresentar a história de maneira falseada, dissociando o espólio material das expedições científicas europeias pelo mundo do contexto colonial no qual elas estavam inseridas. Portanto, se o Humboldt-Forum pode simbolizar que “o progresso é impossível”, como aludido por Undine, seria mais no sentido da inviabilidade de um simulacro hipócrita, estéril, autocongratulatório e ahistórico de progresso.

II.

Quanto ao ethos local, questão de geografia: o trabalho de Undine fica nas imediações do 1) Muro, i.e., do fantasma do Muro, que representa simultaneamente uma das principais fontes de renda turística da cidade — a personagem faz referência ao mercado da “Ostalgie”, de mimetização nostálgica da Alemanha Oriental, símbolo da comoditização do passado para consumo fetichista, o que se estende à exploração comercial dos traumas do século XX — e a “dor fantasma de uma amputação violenta” — como ela caracteriza o vazio deixado pela demolição do Berliner Stadtschloss na topografia urbana, sentimento de dor e de ausência que é igualado ao término súbito de um relacionamento e à partida de uma paixão, tão consumada quanto inconclusa —, e de 2) boates célebres — outro enorme bastião da economia local, redutos de hedonismo e do transe psicoativo que atraem indivíduos do mundo inteiro, e que, entre outras coisas, são expressão da liberdade sexual e da possibilidade prática dos desejos (hiper)transitórios em comunhão coletiva.

O circuito noturno da cidade floresceu após a queda do Muro, ocupando criativamente as suas ruínas urbanas devido à abundância de espaço abandonado. Cedo ou tarde, porém, todas as revoluções se institucionalizam. De repente, big business. Não à toa, a Amazon Prime ambientou na cena techno berlinense a sua versão dos seriados policiais alemães, Beat (2018), que abre com um monólogo sobre o apelo — já comoditizado — de “viver o momento e nada mais […] sem gastar tempo pensando no que pode vir a acontecer”.

Undine existe em clara oposição a certa fama e “autoimagem” da cidade, pasteurizada, por exemplo, num Fucking Berlin (Florian Gottschick, 2016) — o portfólio perfeito para a paisagem urbana da vida berlinense, apresentando-a em uma sedutora e festiva embalagem pop, sem que jamais percamos os cartões-postais de vista, na medida em que a credibilidade do romance está diretamente relacionada à encenação instagramável da fotogenia.

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Em Fucking Berlin, é recorrente a imagem da protagonista sentada em sua janela, buscando aproximar-se fisicamente da cidade, cuja aparência é mais humanamente tangível do que no quarto de Undine (que dirá do deprimente paredão de Unter den Brücken), sendo, por sinal, justamente isso que a personagem diz fazê-la menos solitária: embora termine o filme sem o namorado e sem a melhor amiga, ela afirma não estar sozinha, estendendo o braço para fora, tentando tocar o ar e a aura da cidade.

Nota: costuma-se referir ao “ar de Berlim” como metonímia para a aura da cidade. E ele também já virou souvenir: no curta Berliner Luft (Riki Kalbe & Barbara Kasper, 1996), descreve-se como um engenheiro obteve sucesso em vender aos turistas latas de leite vazias, envoltas por uma embalagem com gravuras dos grandes ícones locais, sob o pretexto de que elas continham “ar de Berlim” enlatado — e ainda patenteou a invenção.

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“Berlin não é uma cidade, mas um ritmo. Esse ritmo é tão forte que pode te fazer perder o controle. E cada pessoa que você encontra altera o seu beat”, explica a protagonista de Fucking Berlin. “A cidade mais safada do mundo!”, lhe diz a amiga — vide Yung (Gronkowski, 2018), produção da juventude local. Em suma, a ideia de Berlim como festa infinita, sem limites ou tabus, oscilando entre o que há de autêntico e o que há de branding.

Undine, o conto da ninfa que se entrega ao homem sob a condição de que irá matá-lo caso ele a deixe, também mitifica questões que atravessam o belíssimo e indefectivelmente berlinense Der schöne Tag (O belo dia, Thomas Arslan, 2001), que aborda o ímpeto de desistir dos relacionamentos amorosos em face de quaisquer turbulências, dada a aparente facilidade de se encontrar novos parceiros românticos e sexuais na metrópole.

A sereia sabe que os homens a assimilam como superfície na qual podem projetar os seus desejos até o ponto que lhes for conveniente. Christoph a desconcerta elogiando a sua aula sobre um pântano camaleônico e ela julga ter encontrado o último homem inocente. A problemática da projeção unilateral no outro é uma constante na obra de Petzold. Quer motivada por libido, estratagemas ou esperanças. Uns tentam manipular outros, que, por sua vez, manipulam os manipuladores com base nas expectativas deles. A diferença é que Undine talvez seja a sua primeira história de amor correspondido.

Ansiosa por existir além dos prazos transitórios do desejo e da sala de turnos onde os tesouros afetivos estão destinados a se despedaçar, Undine entrega tudo de si na paixão que crê poder enfim libertá-la do ciclo mítico vicioso. Para ela, o relacionamento é como um salto mortal, a sua última chance. Daí a iminência da queda impiedosa que a assombra, da frustração brutal que se pressente após tamanho investimento emocional. Do material ao metafórico, tudo está se quebrando ou à beira de se quebrar. A pressão se torna palpável além do mais porque Petzold só costuma fazer um take a cada plano. É tudo ou nada.

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Undine realça que uma simulação foi fundamental para angariar apoio à reconstrução do Berliner Stadtschloss — uma imagem em trompe l’oeil da fachada do Palácio foi instalada em seu local original, replicando-o em escala real. Em Gespenster, a mãe à procura da filha desaparecida carrega fotos que simulam digitalmente a aparência da menina depois de tantos anos, as quais revelam uma adolescente muito parecida com a jovem que ela diz ser sua filha. A questão é que a mãe não precisa daquelas imagens para crer no que deseja e a jovem também não cogita mudar de ideia ainda que as fotos suscitem dúvidas.

Christoph necessita da gravação subaquática para que os seus colegas acreditem na existência do peixão que ele alega ter visto. Porém, quando o vídeo lhe mostra que Undine não se encontrava debaixo d’água, ele não toma as imagens como fato e mergulha no fundo do rio para procurá-la novamente. No limite, todas as ações vão se resumindo à vontade de crer e interesses pessoais. E é assim que se originam os infortúnios.

Se em Transit Paula Beer representava a promessa de uma ilusão — a imagem da beleza elusiva que, fugazmente capturada pelo olhar, vem intensificar afetivamente as frustrações existenciais e políticas do protagonista —, em Undine ela personifica — interpretando a figura mitológica que também é uma bela mulher — o destino da musa-motor dramático que é descartada após, julga-se, ter cumprido a sua função. À semelhança do seminal Unter de Brücken, cujo ponto de partida é a tentativa de suicídio de uma jovem mulher que se sente usada e desprezada após ter posado nua como modelo para logo em seguida ter sido grosseiramente dispensada pelo pintor que a persuadira.

Se em Transit enquadrava-se Beer a partir dos olhos de Rogowski, em Undine inverte-se a perspectiva: Rogowski só passa a existir quando Beer repara na presença dele, cujo personagem não pode ser visto em quadro no tour que antecede o encontro. No mais, nós acompanhamos a resistência de Undine em obedecer às expectativas narrativas com as quais ela pode não estar em conformidade. Ciente do seu papel mítico, ela alerta ao ex-namorado que terá de matá-lo, mas posteriormente se permite esquecer da obrigação. Apesar de morar em um local obcecado com a ideia de reinvenção, a tragédia de Undine é não ser capaz de transcender a sua função social como criatura fantástica e ficcional.

Ela compartilha o pouco usual sobrenome Wibeau com o protagonista de Die neuen Leiden des jungen W. (Os novos sofrimentos do jovem W., 1972/3), romance e peça de Ulrich Plenzdorf acerca de um jovem rebelde na Alemanha Oriental obcecado com o Werther, de Goethe, a ponto de ir confundindo a sua vida com o livro, utilizando-o como modelo para as suas ações e ferramenta referencial para expressar os seus sentimentos.

À essa altura, diga-se, Petzold está tanto fazendo referência às suas referências quanto se autorreferenciando a referenciá-las. Em Polizeiruf 110: Kreise (2015), policial e suspeito confrontam-se com estratégias fundamentadas em obras de ficção tidas como úteis para a ocasião. Os dois concordam que o terrível sobre os clichês é que eles costumam ter um fundo de verdade. Por fim, uma maquete (da cena do crime, descobrimos) confeccionada pelo assassino confunde-se com o real, revelando outra perspectiva sobre o passado.

Undine parece portar um celular de flip e um Ipod nano para evitar a simples associação entre as suas angústias e as redes sociais na forma em que elas existem hoje. Afinal, a desorientação existencial da jovem subempregada, fragilizada afetivamente, que desesperadamente anseia por laços de intimidade em decorrência da solidão característica da metrópole moderna já era o tema de Unter de Brücken (1945/6).

Em Unter de Brücken, Käutner apresenta a cidade ao público articulando uma montagem de chaminés esfumaçadas e trens em movimento. Como a personagem havia acabado de se mudar para a capital, ela explica que não tinha ninguém com quem conversar. Então, solitária na grande cidade, relegara-se a uma existência espectral, anônima na metrópole e na modernidade. Aos domingos, só lhe restava observar a felicidade dos casais nas praias fluviais de Potsdam, culpando-se pela própria solidão. Tal e qual fantasma.

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— “Berlim é a sua casa?”

— “Não, minha casa não. Eu estou completamente sozinha em Berlim”.

Unter de Brücken também é a história de dois marinheiros — ocupação dos primeiros emissários da modernidade — que desejam sossegar da vida em trânsito. Sem tempo para conhecer melhor as mulheres com quem se envolvem, eles sentem que estancaram num ciclo cada vez mais solitário de deslocamento perpétuo. “Estamos sempre com pressa”, lamentam, o que, na visão deles, impossibilitaria o fortalecimento de vínculos afetivos.

Undine e Christoph também estão sempre com pressa ou sendo apressados. Nunca andam a esmo, somente com propósitos claros. Em cena, só lhes é permitido amar e trabalhar. Sem um terceiro pilar, quando um dos restantes desmorona… Entre eles, opõem-se mais do que o trabalho braçal e o intelectual (contraste outrora muito explorado no cinema da Alemanha Oriental): Christoph ainda dispõe de algum tipo de solidariedade proletária dos colegas, ao passo que Undine já está inserida no mercado laboral da sociedade pós-industrial. Ela é apenas mais uma freelancer desprovida de seguridade social. Por isso, é tão fácil para ela desaparecer da face da terra e para os outros esqueceram-na.

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No documentário Berlin Babylon, pode-se ver os mergulhadores, vestígios de outra era industrial deslocados em uma economia em processo de desindustrialização, trabalhando incógnitos na reforma subaquática da metrópole erguida sobre terreno pantanoso. Para fazer Undine, Petzold afirma ter sido estimulado por uma mescla singular de marxismo e romantismo[4] — a escola literária alemã, uma reação à industrialização do país.

Longe de Berlim, das profundezas desperta o reencantamento do mundo. Debaixo d’água, onde as cadências do tempo e do movimento são distintas do habitual, os amantes encontram um espaço para harmonizarem-se ao ritmo do outro, em comunhão à natureza, conquanto sem renunciarem à mediação tecnológica dos trajes. Como se fosse uma imersão utópica à procura de qualquer coisa de atemporal, imperturbável e primordial. Mas quem extasia-se tão a fundo não retorna à superfície sem abstinência. Dá-se início à eterna obsessão para retornar àquele estado ou replicá-lo.

Além do que, tudo é tão breve. Os novos locatários (“Sorry, my German…”) do antigo apartamento de Undine informam a Christoph que a residência é destinada a aluguéis de curta duração. Não é por acaso que o romance principal é um namoro à distância. São as adversidades afetivas de um local onde os potenciais relacionamentos sofrem com o clima de transitoriedade cultivado pelo fluxo ininterrupto de turistas e novos moradores temporários, que encaram aquela permanência como uma digressão.

Ou como escreveu Jessica J. Lee em Turning: A Swimming Memoir, sobre a experiência terapêutica da autora nadando nos lagos em torno de Berlim:

“«Talvez eu volte». Ele não parecia convencido. «Todo mundo diz isso» […] Todos partem, ele me disse, então você tenta não se apegar […] Eu fiquei me perguntando se os dias que compartilhamos não estavam apenas marcando o tempo passar”.

[1] Fisher, Jaimey. Christian Petzold. University of Illinois Press, 2013, pp. 89-90.

[2] Daney, Serge. A rampa. Cosac Naify, 2007, pp. 99.

[3] https://letterboxd.com/dirtylaundri/film/berlin-chamissoplatz/

[4] https://www.filmcomment.com/blog/the-film-comment-podcast-christian-petzold-on-undine/

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O concreto e o imaginário em “A Última Vez que vi Macau”

Por Anita Gonçalves

Já fazia cerca de 30 anos que João Rui Guerra da Mata não retornava à Macau, onde vivera quando criança. Supostamente, o período mais feliz de sua vida. João Pedro Rodrigues, nascido e criado em Lisboa, só conhecia a cidade dos livros, dos filmes – ênfase para Macau (1952), de Josef von Stenberg, finalizado por Nicholas Ray – e das histórias da infância de Guerra da Mata, seu companheiro e parceiro de trabalho. Em 2011, prenunciado como o marco final de um longo ciclo, os realizadores partem à China e por lá rodam A Última Vez que Vi Macau (2012).

A partir da aproximação a uma “estilística documentária” e da realidade material em transformação e fabulação pelo cinema e pela memória – atravessados pela ação do tempo -, dá-se a luz à uma Macau particular, onde seus domínios reais-concretos e fictícios-imaginários se mesclam e se confundem na imensidão de uma cidade dilatada, territorialmente não tão grande quanto parece. O filme é um travelogue – sem mapa, mas com pé no chão – que traça seu próprio percurso, marginal e íntimo, em uma Macau transformada, irreconhecível e labiríntica: desviando-se do que deveria acolher (a segurança, a hospitalidade, o turismo comercial); e aproximando-se do que deveria distanciar e esconder (o que já se foi, o invisível, a violência, a ambiguidade, o imprevisível). Mas sempre partindo do campo delineado e concreto que – enveredando por estradas múltiplas sobre as quais os imaginários fluirão – nunca abandona o quadro.

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O longa, rodado em equipamento digital, dispõe de um registro espontâneo das luzes e dos recantos da cidade, marcado pelas imagens não estilizadas, pela imprevisibilidade da tomada (das ações, dos lugares, dos seres) e pelo plano precedendo a concepção de cena. Tais características formais-estilísticas aproximam o filme de um teor documental e, juntamente à forte presença do cotidiano, o tornam extremamente concreto e ancorado à realidade. Ainda mais quando articulando isto à premissa da qual o longa parte: o retorno de JRGM à Macau, depois de 30 anos sem vê-la; e as lembranças de infância, até aqui podendo ser compreendidas como retratos objetivos e incontestáveis do passado.

Muitos dos locais e objetos filmados revelam-se como fragmentos/resquícios materiais do passado de JRGM  – o Guerra da Mata, que é tanto realizador quanto personagem -, que se comporta como memória remota e pulsante, afetada pelo tempo e relativa a uma experiência lúdica de cidade: a memória constantemente remodelada no transcorrer dos anos e a infância enquanto meio propício à fabulação, onde as fronteiras entre realidade e fantasia são embaçadas e pouco assimiláveis. Ademais, a própria realidade aqui em jogo já é uma quebra de expectativas em relação à ideia de uma representação fiel da mesma: uma realidade presente, diferente, transformada, que só consegue evocar o passado a partir de sua deturpação na memória e de sua ausência na materialidade.

No longa de JPR e JRGM, através de uma relação de intertextualidade, ou, até mesmo, contribuindo na construção narrativa e na edificação da cidade, Macau, de Stenberg e Ray, se manifesta. A noção de exotismo atribuído ao Oriente por imaginários ocidentais, acaba sendo um pilar forte nesta relação entre os dois filmes: no filme de 52, é utilizada para fortalecer contexto de suspense da narrativa, e em A Última Vez também, mas se apoiando no enfrentamento e na subversão desta noção, mediante o estilo e os elementos concretos do filme. Outro elemento intertextual é Jane Russell, carnalizada no filme antecessor e espiritualizada no filme mais recente, em que é absorvida pela materialidade da cidade.

A composição de Macau no filme de 2012, sujeita-se muito mais aos imaginários e às experiências lúdicas pessoais do que a uma determinada transparência documental, partindo da concepção acerca da impossibilidade de um cinema parcial e objetivo, sendo ele, como a memória e a infância, um dispositivo ficcionalizante da realidade. O cruzamento entre os imaginários – sobretudo o lúdico, oriundo das experiências e histórias de JRGM, e o hollywoodiano, presente em Macau -, representa um aspecto totalizante, que molda a experiência fílmica, com base em uma cidade transformada e irreconhecível, que vai sendo expandida, dissecada e recriada ao longo do filme. Todavia, A Última Vez confia na trivialidade cotidiana e em suas imagens concretas “documentais”, para, juntamente a outros aspectos formais, atingir uma potência criativa e dramática muito particular, capaz de fortalecer o elo entre realidade e ficção até se fundirem em um só elemento.

A encenação em A Última Vez está relacionada ao interesse na ficção emanada, sobretudo, de meios reais e banais, sempre atrelada ao contexto material. O filme aproveita-se da representação aparentemente documental de Macau, da suposta “anti-encenação” inerente às suas imagens e às figuras que as compõem (onde mesmo as atuações premeditadas de JPR e JRGM são gestuais, minuciosas e inexpressivas, além de localizadas na realidade cotidiana imprevisível), para conceber uma encenação própria. A partir da apatia e do silêncio de seres e objetos, cuja existência não é subordinada à mise-en-scéne, é criado o âmbito diegético –  camuflado por entre as luzes piscantes e escondido nas entrevias do cotidiano -, no qual a cidade – ambígua, implacável e hostil às individualidades humanas – é edificada. Os animais, guardiões de Macau (“graças ao trabalho constante dos animais, Buda garante a ordem do universo”), atingem essas expectativas ao máximo: paradoxalmente, incapazes de atuar, acabam sendo alguns dos corpos mais expressivos a ocuparem o quadro. Vigilantes por natureza e silenciosos por instinto, trazem consigo grande parte do suspense e da carga de mistério do filme, fazendo-nos crer que de fato existem homens com propósitos e finalidades duvidosas encarnados em seus corpos blindados.

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A construção da encenação não se fundamenta apenas pelo efeito da anti-encenação (ou anti-atuação) na história. Ela ganha sua completude pelo ritmo decorrente da montagem, que se faz nos cortes, na duração não tão curta e na sucessão dos planos (instituindo um certo confronto entre eles e quem os observa); e na união das imagens concretas às vozes subjetivas (que se confundem entre não diegéticas e dramáticas), articulando, com base nestes dois fatores, a tensão que perambula na cidade e intimida estrangeiros que buscam nela um lar. Além disso, ao se combinarem aos planos – que exprimem uma desconstrução cênica mesmo quando agrupados em unidades de sentido comum -, as vozes do extra-campo atribuem a eles a continuidade narrativa e o sentido de cena que nelas residem. No entanto, fundando muito mais um fluxo expressivo ou uma narrativa flutuante do que uma linearidade através de cenas bem demarcadas.

A Última Vez que Vi Macau inicia com o show de lip sync da música You Kill Me, cantada por Jane Russell em Macau e performada aqui, com tigres enjaulados circulando em segundo plano, por quem posteriormente descobrimos ser Candy Darling – transformista e amiga antiga de Guerra da Mata, que teria partido ao Oriente “atraída pelo exotismo ou por uma vida mais fácil”. É comum nos filmes de JPR, o destaque a personagens e elementos que estão à margem da claridade diurna e do campo cômodo de visão, como no caso de trabalhadores e trabalhadoras dos clubes noturnos, do lixo, do supermercado, etc. Candy, de fato, segue essa constante. Mas, ainda que seja a única figura humana retratada expressivamente no quadro – dublando, fingindo cantar -, há algo que acaba roubando seu foco, tornando Candy e demais figuras humanas que aparecem nos planos elementos secundários fagocitados por um corpo maior (ou confrontados por ele): aqui, é Macau quem domina totalmente o quadro. Secreta e marginal, é personificada através da abordagem estilística e dramática, adquirindo uma força singular tão grande que parece fluir independentemente; a cidade é o palco e aquilo que o ocupa.

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Não é revelado exatamente o que Candy fez para ser perseguida e, posteriormente, assassinada. Porém, através de sua performance (que faz a cena parecer ter sido planejada, coreografada), ela parece tentar sabotar e confrontar a ordem da supremacia de Macau, provocando a cidade. Neste sentido, os tigres, ao fundo, como elementos aparentemente cenográficos, possivelmente já estariam vigiando-a, anunciando seu castigo. Por conta disso, é condenada a não aparecer nunca mais no campo imagético, desde a chegada de Guerra da Mata, que teria voltado a Macau a chamado da amiga. Em A Última Vez, é impossível a presença física humana daqueles que necessitam da própria individualidade para existirem na Macau fílmica, nos quadros que a compõem e que parecem ser submetidos às próprias leis da cidade-personagem. Já as figuras humanas que não violam a soberania de Macau, hora ou outra têm seus rostos filmados e/ou aparecem por inteiro no quadro, mas sempre desamparadas, vinculadas ao anonimato e bloqueadas de qualquer sensibilidade genuína, apenas existindo no mundo concreto, independentemente do frame que as captura e as ficciona. São elas, apenas peças constituintes de uma Macau, essa sim, expressiva e humanizada – e ai de quem deseja resgatar a própria individualidade: a cidade devora.

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O enquadramento “malfeito” e desacolhedor – ou o não enquadramento – de corpos, objetos e ações parece ser uma intenção formal que dialoga diretamente com a suposta anti-encenação e com o sentido dramático. Por vezes, as figuras anonimizadas que existem continuamente no mundo real e não estão onde estão pelo filme – como os turistas, as estudantes, os trabalhadores, etc – são desajustadas pela composição do quadro, que desafia convenções estéticas e as dispõe tortuosamente, sem devidamente focalizá-las e acolhê-las. Por consequência disto, os espaços vazios acabam sendo destacados, preenchidos e ampliados pela expressividade invisível dos imaginários, tão presentes no filme que adquirem uma potência concreta. Por outro lado, esse desajuste do quadro também se exprime nas situações e coisas que Macau faz questão de esconder, mascarar. A violência, aqui, é apenas sugestiva (mas ao mesmo tempo, sempre em pauta): hora a ação decorre no extra-campo, podendo ser assimilada apenas pelas vozes e sons, hora é visível apenas em gestos inexpressivos ou em indícios da consequência da ação, minuciosamente enquadrados, e aguçando a ambiguidade e a dúvida perante os acontecimentos. Ou no caso dos membros da seita do zodíaco, que, enquanto humanos, aparecem apenas gestualmente (contribuindo para o desencadeamento que leva ao clímax), ou se insinuam através de falas desvinculadas de personalidades e de rostos, sem nunca terem suas identidades reveladas em favor da integridade de Macau.

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Já Guerra da Mata, que busca se reconhecer na cidade, tem sua forma humana expressiva distanciada imagéticamente, sempre no extra-campo, confrontado pela cidade-personagem, que é imagem. Ele disputa o protagonismo com Macau, posto que se expressa exclusivamente pela via sonora-verbal, manifestando seus pensamentos e impressões e preservando sua individualidade. Aproveitando-se de seu poder de realizador-personagem, para evitar ser fagocitado por Macau, não se deixa aprisionar pelo enquadramento-cidade, e se utiliza da enunciação verbal como estratégia de sobrevivência. Assim, a dramaticidade aqui presente muito se dá pelo confronto entre a expressividade verbal de Guerra da Mata – que evoca os imaginários, a memória, a introspecção, a subjetividade – e a expressividade imagética de Macau – concreta e material, ainda que muitas vezes ambígua.

Existem duas faces de Macau: a primeira,“calma e sorridente”, associada à Macau “oficial”, mainstream, turística e tranquila; e a segunda “velada e secreta”, aquela que a cidade faz de tudo para esconder. No entanto, a própria abordagem estilística e dramática do filme atribui um tom enigmático e secreto à faceta exposta da cidade: o afastamento da Macau mainstream não quer dizer uma recusa em registrá-la, mas sim uma maneira avessa de abordá-la, rejeitando-a como tal e dispondo-a ao mistério. Com base nas contradições e no caos evidenciados por elementos presentes em suas ruas movimentadas, é salientado o contexto de estranheza de uma cidade sem significado e sem eixo (ou com tantos significados e eixos que se perde completamente pelo excesso). Segundo relata Guerra da Mata, o registro e a descrição acerca das estátuas que simbolizam a devolução de Macau à China, por exemplo, afirmam o discurso histórico oficial através da omissão pontuada pela imobilidade e passividade do gesto. Outro exemplo, é a aglomeração de turistas chineses, que é acima de tudo, fantasmagórica e desesperançosa (“como se a história se apagasse, com o simples click das dezenas de máquinas fotográficas, que obsessivamente congelam a memória e ficcionam a felicidade”). Ou até mesmo, a descaracterização em razão de como a própria Macau é designada, “Las Vegas do Oriente”, o que a permite ser qualquer outro lugar do mundo, no presente, passado ou futuro: Las Vegas, Nova Iorque, Portugal, República Popular da China, Veneza, etc. A espetacularização – que invade e inquieta o plano – presente nas imagens dos remadores de gôndolas, por exemplo, parece atender as demandas turísticas como pretexto para desviar o olhar dos estrangeiros da face oculta da cidade, em favor de uma Macau piscante, monumental e artificial. Tais elementos, advindos de sua realidade “oficial” pautada na mentira (“onde nem tudo que parece ser, é”), confundem sua identidade e mascaram o que há de substancial  e confidencial  nela. E, em função deste esvaziamento significativo, até face “oficial” torna-se fértil aos imaginários.

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Embora haja o florescimento da ficção e dos imaginários em A Última Vez, frente ao fingimento e disfarce excessivos da Macau mainstream, alguns elementos fantásticos lúdicos são hipostasiados, intervindo com certo distanciamento, expondo os artifícios e desiludindo qualquer expectativa do filme em transcender e escapar da cidade presente. Um exemplo é a ópera cantonesa que Guerra da Mata assiste em seu quarto de hotel, que o remete às histórias de piratas da sua infância. No entanto, ela parece tão distante e desencantada quando filmada dentro dos limites de uma tevê tubo,  visivelmente antiquada para uma cidade tão moderna e abastada. Outro caso é a sereia presa no aquário ecrãnizado, que, a evitar outro golpe contra a hegemonia de Macau, aprisiona e desloca o corpo fantástico, metade-mulher e metade-peixe, dos demais elementos constituintes da cidade. Talvez, a criatura pertença a um mundo etéreo e externo. Mas um mundo incapaz de penetrar na Macau fílmica, pela inflexibilidade da cidade e pelo domínio desta sobre o frame. Com a sereia e as “histórias de piratas” sendo apenas visíveis e possíveis dentro dos limites do “aquário” e da tevê, respectivamente, é estabelecida uma relação artificial farsante com a fantasia – onde a realidade impera -, inibindo assim um eventual rompimento com o universo concreto de Macau, que permanece preponderante ao longo de todo o filme.

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Em A Última Vez, Macau é uma cidade que se articula pelos imaginários – invisível se não fosse o encontro do cinema com a memória – subordinada à existência concreta de outra (de mesmo significante), presente, frontal e independente do filme. A constante transformação a qual esta última está submetida, altera o teor pessoal e familiar da materialidade ao longo do tempo, banalizando-a: o antigo lar da família de Guerra da Mata, torna-se patrimônio histórico da cidade; conterrâneos do passado tornam-se lápides. A transformação intensifica o esvaziamento do significante [Macau concreta], e, por conseguinte, a assimilação de novos significados. O filme condiciona os espaços da cidade – no passado, vivos e pulsantes; agora, vazios e desabitados – e os corpos desalmados – mortos ou inanimados – a serem ocupados por almas penadas, transfiguradas em animais, ruínas, panchões; ou tomado por fantasmas do passado, através de imagens de arquivo que invadem de fininho a Macau presente, violando-a.

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Os estrangeiros que tentam a sorte e buscam o amparo no Oriente, fugindo da própria realidade a procura de autoconhecimento e de uma jornada espiritual, se enganam (“sempre achei que Macau era uma terra de mitos e superstições. Agora sei que nesta cidade, do Santo Nome de Deus, nem tudo são mitos.”): confrontados pelo cotidiano e pela materialidade, são perseguidos e, ao fim, aniquilados pela cidade inóspita aos clichês.

Em Macau de 1952, Jane Russell foi reduzida – assim como ocorreu ao longo de toda sua carreira – ao seu corpo, tido ele como a expressão absoluta da carnalidade e da sexualidade. Em A Última Vez, a atriz, que coincidentemente faleceu durante as gravações, em 2011, tem sua presença em espírito evidenciada fisicamente: materializada em seus possíveis rastros, como nas meias boiando na água ou na performance de Candy; transfigurada nas formas da cidade e reencarnada em diferentes corpos, tidos como inertes pela ação do tempo, dispostos à performance ou esvaziados para recebê-la. Assim, é espiritualizada e desassociada de seu corpo para associar-se a outros (não humanos), tendo sua existência expandida e dignificada. Nesse sentido, o destaque do filme à expressividade das formas animais, em detrimento da centralização de corpos humanos em cena, contribui para esta reverência à Jane Russell, que, a todo momento, orbita a Macau de A Última Vez.

É por uma relação de confronto e de interdependência entre dois elementos expressivos que se consolida a enunciação fílmica. Sempre que fala, Guerra da Mata confere ao cosmo de Macau, um teor imaginário, pessoal, lúdico e afetivo. A cidade responde a isto através das imagens, que exprimem sua monumentalidade, sua frontalidade e sua atualidade. No entanto, ao invés de extinguir os imaginários, a cidade proporciona o caráter de sua expressão: a partir dos vazios, do invisível e da incompatibilidade entre campo concreto (imagético) e campo imaginário (sonoro/invisível/escondido). E os imaginários, sempre fundados à sua materialidade, ao invés de romperem com a Macau concreta, a dilatam pela ação que ocorre no extra-campo ou no âmbito invisível do filme, e, por fim, a mitificam.

Guerra da Mata, inspirado pela carta de despedida de Candy, por fim, abre mão de sua busca incessante pela individualidade humana (sendo a única forma de sobrevivência frente o cataclismo). Através das pistas e dos apelos na carta, ele desvenda o segredo da metamorfose, até então privilégio da seita do zodíaco. E, guiado pelos seus instintos, assume a forma animal. A partir deste momento, desapegado do ego e transformado em gato, abandona sua expressividade verbal e é capturado imageticamente, em seu novo corpo, em armistício com a nova Macau – marco de uma nova era, animal. O enquadramento não mais é opressor, agora o acolhe e o liberta, em uma cidade celebrada por bichos e livre de humanos -, mas repleta de vestígios e ruínas reminiscentes, que evocam sua existência concreta preliminar. Enfim, ele compreende que a transformação é fundamental para encontrar a felicidade: aceita as mudanças pelas quais Macau passou e passará, libertando-se do passado e abraçando a presentificação inevitável deste passado, ainda que à custa de sua deturpação e de sua fabulação pela memória e pelo cinema. A transformação e a propensão à fabulação inerentes à cidade são o que a delimitam e a eternizam, sendo, ao mesmo tempo, demarcada por sua concretude elementar que nunca desvanece no plano e expandida pelos imaginários.

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Os belos desencontros de Rochefort

por João Lucas Pedrosa

 

“É uma canção que canto quando estou triste.
Aí fico mais triste, então minha tristeza vira poética.”

O gentil amor dos homens (Jean-Paul Civeyrac, 2002)

 

À luz do sol recém-nascido, caminhoneiros feirantes chegam numa ponte transportadora que os levará à povoação de Rochefort. Enquanto a ponte suspensa flutua sobre o mar, eles dançam sincronizadamente, numa sorte de espreguiçamento coletivo após uma longa viagem. Música e dança fazem desse alongamento um despertar corporal e espiritual, e o atravessamento parece ser ao que é – ou melhor, será, com a chegada deles – uma outra dimensão. Pois ao longo do fim de semana que passarão montando uma feira e fazendo do lugar uma grande festa, é assim mesmo que a provinciana cidade que dá nome a Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort,Jacques Demy, 1967) operará: como um lugar encantado, onde o cotidiano, o arrependimento e a morte são conteúdo de uma beleza incontrolável, inquebrantável, inexorável.

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Essa beleza de Rochefort é a dos musicais da Hollywood clássica. Cores vibrantes, suntuosos números de dança, alegria de viver. Diferente dos filmes que lhe são referência, o filme de Jacques Demy não é filmado em estúdio, mas em meio às ruas da cidadezinha e, ao invés do uso de estilizados cenários manufaturados e afetadas iluminações, recorre às formas e cores (pintadas meses antes pelo cenógrafo Louis Seret) irradiadas pela arquitetura local à luz do dia. A massiva maioria dos números musicais, assim, acontece à manhã e à tarde, em meio à jornada de trabalho e à jornada escolar, completamente atravessadas pela grande festa que energiza a cidade. E é em meio a elas que conhecemos as Duas Garotas Românticas : um austero e melancólico solfejo ao piano toma conta da faixa sonora ao fim do número inicial da chegada dos feirantes e um travelling in adentra pela janela a casa das gêmeas Solange (Françoise Dorléac) e Delphine (Catherine Deneuve), que estão dando uma aula de balé para crianças. Logo a aula termina, e Solange mal espera o último aluno bater a porta para começar a tocar no trompete a energizante música pela qual as duas irmãs se apresentarão a nós. Elas se energizam vendo a instalação da feira pela janela e a usam de fundo para cantar: “Nós somos um par de gêmeas, do signo de Gêmeos…”.

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Demy não sabia de cara que cidade usaria para seu filme. Sabia que queria uma no interior da França e escolheu Rochefort pela “adorável e imponente arquitetura militar”, segundo Agnés Varda, então sua esposa, no documentário que fez sobre o filme 25 anos depois[1]. O tom militar da cidade não é ignorado ou amenizado pela vibração climática do filme e, antes dos feirantes fincarem pé na cidade, um plano os põe lado a lado com um pelotão, indo em direção oposta (o sonho e a guerra em direções opostas). Instituições como o exército militar ou a Igreja destoam facilmente do entorno pelas cores fechadas das soturnas vestes (fardas, hábitos) e quase sempre aparecem de passagem, como figura satélite digressiva à cena – quando não, furam o signo institucional das vestes integrando números de dança com os feirantes e as mães de vestes coloridas. Eles pertencem aos interiores – os quartéis e os conventos – mas, neste musical, os interiores são sede do arrependimento, da ausência de vida. Deles são reféns Yvonne (Danielle Darrieux), a mãe das gêmeas protagonistas, e Simon (Michel Piccoli) seu antigo amante, dono da recém aberta loja de música da cidadezinha. Eles cantam toda vida a falta que sentem do outro e só não se reencontraram ainda por nunca saírem de seus respectivos locais de trabalho. Além deles, há Guillaume Lancien, o persistente ex-pretendente de Delphine que também é um ganancioso marchand de arte e o mais próximo de “vilão” que temos no filme: ele impede o quanto pode o primeiro encontro entre ela e Maxence, o marinheiro pintor que busca a sua ideal feminina, figurada numa pintura estranhamente semelhante à gêmea loura.

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A dificuldade da contiguidade espacial dos casais é, na verdade, a alma motivadora do filme. Se obras de diretores como Éric Rohmer e Maurice Pialat se fomentam das potências mágicas e/ou trágicas do encontro, Duas Garotas Românticas certamente constrói sua mística pelo desencontro. Rochefort é um epicentro irônico de rotas desviadas. Reúne passados desencontrados por décadas e buscas românticas metafísicas em seus menos de 22km² e, quase sadicamente, é o sítio de seu constante quase encontro. Como cenário de sonho, a não consumação do desejo é um fator constituinte de sua mística. Toda canção individual é acerca de um interesse amoroso, o qual se quer rever ou enfim conhecer. Não se sabe onde ele está, mas há um desejo metafísico que beira a transcendência e faz dos números musicais individuais algo muito próximo de uma trova do classicismo com suas musas inatingíveis. Nessa chave, é particularmente interessante que a canção de Andy (Gene Kelly), interesse amoroso de Solange, seja uma versão dançante do melancólico concerto em sol menor por ela composto (e cuja partitura esquecida serve a ele de pista para reencontrá-la), como se o americano tivesse saído magicamente de sua mente, e seguisse os passos que dela vieram.

No documentário de Varda, Michel Legrand disse ter tido uma particular dificuldade em musicar para o filme os versos alexandrinos de Demy. Ele insistia que assim o fossem pois o romantismo francês lhe era uma referência essencial e, se há uma teleologia nas canções trovadoras, é porque ela se segura num objetivo ideal, e não num rumo. Maxence deu a volta ao mundo pela Marinha procurando sua ideal feminina e as gêmeas estão dispostas a procurar os homens de suas vidas fora da cidade (sem saber que deles se afastarão), de forma que não são errantes diferentes de Étienne e de Bill (respectivamente Georges Chakiris e Grover Dale), os feirantes que afirmam em canto viajar “de cidade em cidade” e “de coração em coração”. Assim, Demy faz com que a alegria de viver do romantismo hollywoodiano se sobreponha ao romantismo francês dos fins do século XIX com seus flâneurs e desejos não-consumados e carniças (estas às quais já chegaremos).

Eis que os desencontros em Les Demoiselles não são apenas físicos entre as personagens, mas também tonais dentro do filme. Ao sábado de manhã, uma senhorinha dançarina aposentada é assassinada e esquartejada em sua casa. Quando ouvimos a primeira vez sobre o caso, a música é mais contida e sinistra; personagens cantam a notícia no jornal ou relatos de quando passaram perto da cena do crime. Mas quando essa canção termina e a câmera vai de fato à tal fachada, uma multidão de cores claras e vibrantes ao sol da manhã cerca a polícia que limpa o sangue da calçada ao som de uma explosão musical em orquestra. O que começa com um notável estranhamento tonal logo desemboca na maior cena de desencontros românticos de todo o filme, em que uma gêmea encontra e conversa com o par romântico telos da outra, num diálogo rotineiro e também sutilmente flertivo.

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A beleza em Rochefort torna-se irônica na medida em que é um bloco imanente, bruto, que se sobrepõe à tragédia alheia sem grandes pudores. É um resultado inexorável do romantismo da beleza sonhadora e alienante das obstinadas buscas individuais de cada personagem – o que os torna autocentrados e um tanto detestáveis. A esse ponto do filme, as irmãs sabem, cada uma, da história da outra: Solange sabe que Delphine procura um marinheiro pintor que pintou uma ideal feminina com a cara dela, e Delphine sabe que Solange procura um estrangeiro com a exata descrição física de Andy, mas os objetivos não importam se não são os seus próprios. Por mais que o filme se entregue à potência da beleza e do encantamento, a existência da matança – e o fato de o assassino ter sido, o tempo todo, um componente próximo no círculo de relações das personagens -, lembra que as pulsões de morte estão sempre mais próximas das pulsões de vida do que se imagina e tensiona o efeito de cegueira desse contagiante encantamento.

O lugar alienado desse sofrimento desejoso masturbatório é, muitas vezes, produzido por escolha própria. Yvonne decidiu abandonar Simon Dame 10 anos antes, grávida de seu filho, por achar ridículo ser chamada de “Madame Dame” com o casamento. Quando Solange esbarra com o suposto homem de sua vida e ele pergunta se podem reencontrar-se, ela voluntariamente o recusa e cria o futuro cenário de sofrimento de falta que a levaria à consequente expressão romântica. Atitudes dessa chave trazem dúvidas sobre se as personagens desejam de fato consumar seus desejos ou se há algum futuro que não o desmanche de seus pares para que possam voltar a produzir belos poemas de amor idealizado. Delphine e Maxence, em suas respectivas canções de mesma melodia, cantam: “A ilusão do amor não é o amor encontrado”. Talvez sejam eles o casal que a eternidade carregará por serem um casal unicamente virtual, pois nunca foram um par concreto sem ser nas cabeças – suas e nossas, que os juntamos por meio das imagens que criaram em pincel e em trova. Pelo que dependeu de Demy, também nunca o serão. Eles se juntam no extracampo, dentro de um caminhão azul como a melancolia em direção ao futuro, sem jamais sabermos se se reconhecem ou se Maxence reconhece em Delphine, fora de sua cabeça, a mulher de sua cabeça. Se o amor encontrado é algo perto do amor imaginado. Mas é claro, o sonho não seria sonho se se consumasse em qualquer lugar diferente da alma.

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[1] LES DEMOISELLES ont eu 25 ans. Direção de Agnès Varda (1993).

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O fim das utopias em “Matou a Família e Foi ao Cinema”

Por Chico Torres

 

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Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção

(Tom Zé, Parque Industrial)

Perguntaram a Dom Élder sobre a situação brasileira. Resposta: eu sei, tu sabes, eles sabem, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem
(fala extraída de Matou a família e foi ao cinema de Júlio Bressane)

 

            As utopias de massas do Ocidente e da União Soviética do século XX sempre tiveram a modernização e o progresso como suas metas. Os ensejos máximos dessas duas sociedades opostas estavam calcados nesses elementos em comum: a ideia de avanço civilizacional e de harmonia com o meio urbano. Esse desejo está registrado nos filmes desde a invenção do cinema, que remonta à segunda metade do século XIX. No cinema de atrações, a cidade e o indivíduo urbano são temas privilegiados, à medida que tudo se configura como novidade, a definição própria do moderno. Assim, cidade e cinema se refletem num jogo harmonioso que chega para confirmar o triunfo das massas.

Por outro lado, essas utopias sempre exibiram a sua face oposta, a fantasmagoria que habita as cidades. Buster Keaton e Dziga Vertov trouxeram para seus filmes o aspecto encantado, mas, ao mesmo tempo, perigoso e disforme presente nesse contexto. O indivíduo, fora da ideia de comunidade, agora vive a realidade fragmentada e a sensação de perigo iminente. A atenção, hiperestimulada pela velocidade de tudo, não consegue se deter por muito tempo e a odisseia humana se realiza na manutenção da sobrevivência em meio ao concreto e às ferragens. Em um contexto mais específico que acaba por firmar, no cinema, as diferenças ideológicas desses dois tipos de sociedade, é possível apontar também a constante tematização do conflito simbolizado em enredos fantasiosos. A partir dos anos 1920, a URSS realizou uma série de filmes de ficção científica, produzindo um tipo de mensagem que é a do reconhecimento e eliminação do inimigo externo. Já no mundo ocidental, sobretudo nos EUA pós Segunda Guerra, surgem filmes de catástrofe e o inimigo é tratado da mesma maneira.

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No Brasil, o lastro desenvolvimentista também surge como utopia, como possibilidade da construção de uma grande nação capitalista. De modo sintético, Vargas, Kubitschek e o período da ditadura dos anos sessenta e setenta levantaram essa bandeira, seja para o bem ou para o mal. No campo cultural, havia uma produção de uma arte de esquerda bastante significativa que respondia a esse ideal sustentando no desenvolvimento tecnológico. Dentro desse ambiente artístico, principalmente nos anos 1960, as utopias do capitalismo eram criticadas em nome das supostas raízes autênticas da cultura brasileira. O operariado e os trabalhadores do campo, ou o sertanejo simples e desassistido se tornaram tema de canções que até hoje fazem parte do imaginário popular.

No cinema, a coisa não se deu de forma muito diferente. Os temas campesinos e urbanos se desenvolviam em forma de protesto e revalorização do povo dentro do primeiro impulso do Cinema Novo, ainda que, em seus desdobramentos, esses temas foram repensados de modo mais problematizado. De fato, o Cinema Novo dos idos da década de 1960 escancara os problemas de uma esquerda nacionalista fracassada, perdida em estereótipos que pouco a pouco foram se revelando ultrapassados e arbitrários. Na figura emblemática de Glauber Rocha, temos a complexa realidade nacional virada pelo avesso, mas ainda sob um viés utópico que, ao revelar as profundas mazelas do Brasil como resposta a uma apropriação elitista da cultura popular, resultam em uma outra ideia de nação (Cacá Diegues afirma que o Cinema novo inventou o Brasil), através de um novo olhar em relação aos símbolos nacionais, alegorizados agora em meio ao turbilhão dos acontecimentos catastróficos da ditadura militar. Ao revelar a crise da esquerda através de uma iconoclastia pujante, Glauber termina por exigir uma nova revolução cultural e, por essa razão, seu cinema impõe a si mesmo uma extrema responsabilidade política.

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Um olhar desprendido de grandes ensejos revolucionários na arte, e ao mesmo tempo distante da indústria do entretenimento da época, só é verdadeiramente desenvolvido pelos artistas marginais dos anos 1960. José Agrippino de Paula, com o seu romance  monolítico e cheio de figuras hollywoodianas PanAmérica, José Mojica Marins, inaugurando o cinema de horror no Brasil com Esta noite levarei a tua alma (1964), em parte o Tropicalismo, com a cultura do desbunde e uma retomada inventiva do antropofagismo de Oswald, são apenas alguns nomes que movimentaram ideias que estavam muito longe da cartilha da esquerda nacionalista, mas que nem por isso agradavam a direita desenvolvimentista. Por outro lado, é importante apontar que, apesar desse desprendimento em relação ao modus operandi da esquerda, esses artistas não estavam criando obras estritamente banais e vazias de crítica social. O que demarcava realmente a diferença com aquilo que havia sido feito antes era o fato de que essa arte marginal sentia-se finalmente livre para aglutinar em suas produções elementos da cultura de massas, deixando que diversas contradições surgidas pela condição moderna invadissem as obras, o que era algo inédito no país. Quero destacar, para dar início a um maior diálogo com essas questões em relação ao cinema, o filme de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema, de 1969.

Essa obra, junto com os filmes que Sganzerla realizara até então, parece inaugurar um tipo de estética cinematográfica radical no Brasil. Nela encontramos uma espécie de desencantamento ideológico e precariedade técnica que mais do que crítica e reflexiva, é cínica, mas nem por isso vazia de profundidade psicológica e intelectual. O cinismo se dá por uma representação da cidade e seus habitantes dentro de um ambiente de violência, fluidez e ideia de improviso que dão ao filme um tom delirante, exibindo a família, a cidade e o país através de um olhar assumidamente tragicômico.

Por outro lado, existe a presença de uma sobriedade que parece ter pensado com cuidado como exibir aquela loucura e indeterminação presentes nos aspectos técnicos do filme e nos personagens (o seu elenco principal, um ator e duas atrizes apenas, representa vários papéis, havendo, nessa repetição fisionômica, diversas sugestões conectivas entre todos eles). O início do filme já demarca bem esses dois universos que estão amalgamados: vemos, em close, o rosto das duas personagens femininas, como se pousassem despretensiosamente para a câmera em uma bela manhã de sol. Logo em seguida, de maneira abrupta, há um plano mal enquadrado de um fragmento barulhento da cidade que exibe um outdoor da Coca-Cola. Esse tipo de ironia é uma das tônicas principais do filme, como se o humor e a violência  fossem, na verdade, os únicos sentimentos possíveis diante do absurdo.

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Ante a banalidade da violência presente em toda a obra, já indicada em seu título, vemos se desenrolar uma série de problemáticas concernentes ao cenário político, econômico e social da época. O filme, que tem no vazio existencial e na moral conservadora seus possíveis temas norteadores, revela que a perturbação psíquica e a violência extrema dos personagens surgem em consequência desse cenário. Mas nenhuma dessas críticas obedece a cartilhas, pelo contrário, são exibidas através de um tipo de distanciamento que faz com que todas as mazelas expostas sejam vistas como o espetáculo absurdo que são. Esse cinismo e distanciamento conferem à obra uma estranha e incômoda leveza, como se tudo estivesse sendo filmado diante de um saudável niilismo que a tudo compreende, mas que não pretende interferir em nada.

 Se observarmos mais atentamente para o modo como a violência é representada no filme, é possível entendê-la como uma resposta ao estilo de vida que se desenvolveu dentro de uma sociedade moralista e, ao mesmo tempo, desencantada. Navalha, machado, faca, revolver e o empalamento da tortura: uma variedade de instrumentos para demonstrar as diversas facetas dessa violência. O homem que comete o primeiro assassinato, matando os pais dentro do apartamento, se mostra como uma criança entendiada que, para passar o tempo, resolve matar a família. O casal de mulheres mata a mãe repressora de uma delas, apenas porque a mulher não concordava com o romance das duas jovens; um homem comete feminicídio com uma faca dentro de um barraco cheio de crianças em situação de miséria; agentes da ditadura torturam até a morte um homem em uma sala suja; outro feminicídio, agora com um revólver; por fim, as duas irmãs, isoladas em um sítio, se matam como que por brincadeira, usando as armas do marido de uma delas. Todos os conflitos se resolvem com algum tipo de massacre que se dá na fetichização da arma. Os cenários são diversos, mas sob esse véu de psicopatia e morte, há sempre a presença da opressão, seja ela social, política ou econômica. Todas as mortes envolvem uma espécie de eliminação da família e da tradição, como também a eliminação dos que resistem a essas instituições do estado burguês.

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imagem VI      imagem VII  O que torna o filme de Bressane tão original e politicamente interessante é o modo como ele trata essas questões de maneira cômica e subversiva, mas sem nunca perder de vista um olhar denunciador e trágico. Ver a realidade brasileira representada através desse caos organizado mostra o quanto o diretor estava consciente ao construir a sua linguagem cinematográfica, porque se esta parece ser alienada, enlouquecida e violenta, só o é porque assim também são os indivíduos que a modernidade e seus modelos utópicos conseguiram produzir. Não há mais espaços para idealizações, as massas são substituídas por anônimos perdidos no ambiente hostil da cidade.

A cena final de Matou a família foi ao cinema, em que as jovens rastejam baleadas em seus últimos instantes de vida enquanto se mantêm agarradas em seus revólveres, ao mesmo tempo que ouvimos em alto e bom som Ninguém vai tirar você de mim, de Roberto Carlos, é uma das cenas mais significativas do cinema nacional daquele período sombrio (e que insiste em se repetir), revelando as contradições de uma sociedade desiludida em seu vazio existencial, suas armas e sua alienação.

 

 

                                   

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Um carro roubado, um filme perdido: Keep It for Yourself e a Nova York de Claire Denis

Por Natália Reis

 “City of accidents, your true map
Is the tangling of all our lifelines”

(Adrienne Rich)

 

Um filme dado como desaparecido (ou ainda terminantemente perdido) quando reencontrado resguarda uma experiência comparável à abertura de uma cápsula do tempo. Da ânsia, irrompe o maravilhamento diante da possibilidade de colocar os olhos em um objeto distante e extraordinário –  quem são aqueles que sonham em ver materializados na tela Naniwa Onna (Mizoguchi, 1940), Surucucu Catiripapo (Neville d’Almeida, 1973) ou ainda a versão integral de Greed (Stroheim, 1924)? Para os que possuem uma relação simbiótica com o cinema, a imagem resgatada emana uma luminosidade quase sacra – e nada mais justo que compartilhá-la com o resto do mundo num gesto de comunhão.

Em 2019, o Le Cinéma Club, plataforma de streaming gratuita que, desde 2015, faz a exibição de um curta-metragem diferente por semana (incluindo restaurações, obras raras ou pouco conhecidas), conseguiu localizar e exibir online Keep It for Yourself (1991), único filme realizado por Claire Denis nos Estados Unidos (pelo menos até o momento) e por anos tido como irrecuperável. O média-metragem faz parte de uma peça publicitária, no mínimo curiosa, da empresa automobilística Nissan: diretores de diferentes nacionalidades deveriam desenvolver projetos curtos, nos quais de alguma forma e em alguma ocasião o Figaro – novo modelo da marca à época – fosse inserido no enredo. Dos três segmentos de Figaro Story (Figaro sutōrī, 1991)[1], apenas Keep It for Yourself  pôde ser recuperado. E a cópia japonesa em VHS escavada do ebay (com direito a legendas embutidas em japonês e desfoque censurando os pelos pubianos) acabou se tornando mais uma camada de verniz no estatuto lo-fi da obra.

O filme de Denis parte de duas narrativas equidistantes que colidem em certo ponto. Primeiramente temos Sophie, uma jovem francesa de Dijon – “como a mostarda” –, interpretada por Sophie Simon, que parte para Nova York, após receber uma carta de seu interesse romântico. Ao chegar à cidade, a jovem encontra um bilhete do namorado notificando sua ausência por alguns dias e um apartamento vazio, exceto por alguns eletrodomésticos, um colchão no chão e caixas de pizza igualmente vazias. Na outra ponta da trama, vemos um imigrante latino (E.J. Rodriguez) que, ao visitar o amigo, funcionário em um estacionamento, é levado como motorista/refém por um ladrão de carros (Vincent Gallo). Numa mudança inesperada dos eventos, ele recebe de presente o carro roubado – o simpático Figaro – do assaltante e é confundido com o criminoso pela polícia local. O rapaz busca refúgio em um prédio, no qual a única resposta ao seu pedido de socorro vem do apartamento de Sophie, que abre a porta acreditando ser o companheiro desertor. Passado o pavor inicial da fuga (por parte dele) e da invasão (por parte dela), os dois estrangeiros se aproximam, se aquecem, se amam, e partem juntos ao amanhecer. Deixando para trás um carro japonês rebocado e um ex-namorado que tem medo de se comprometer.

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Olivia Laing é uma escritora e pesquisadora britânica que frequentemente intercala experiências pessoais e dados biográficos de figuras influentes do mundo da arte em seus trabalhos. Em A cidade solitária: Aventuras na arte de estar sozinho (2017), a autora analisa a relação de artistas como Edward Hopper, Andy Warhol, Henry Darger e David Wojnarowicz com a cidade e o isolamento, ao mesmo tempo em que aborda seu trauma enquanto estrangeira vinda para Nova York e, assim como a personagem de Simon, abandonada justamente por quem motivou a partida. Entre as infinitas horas passadas no twitter no interior do apartamento e alguns passeios frios pelas avenidas e pontos turísticos, Laing descobre um tipo de solidão compartilhada quase reconfortante, apoiada na retribuição que o espaço urbano pode oferecer: “Na ausência de amor, eu me vi agarrando irremediavelmente a própria cidade”.

Keep It for Yourself é uma obra sobre solidão e sobre se agarrar à cidade – ou ao menos se abrir para que ela se agarre a você. Desde sua chegada, Sophie se mantém confinada no loft espaçoso no centro de Manhattan. Toma banhos gelados, ouve o rádio, fuma cigarros, passa o dia deitada num colchão ora olhando para as paredes brancas ora observando a chuva e o movimento na rua pela janela. A câmera de Agnès Godard, no primeiro filme de sua trajetória ao lado de Claire Denis, põe-se cúmplice desse tédio recriando uma espécie de mulher ackermaniana, refém das próprias repetições. Se os contrastes monocromáticos tornaram-se rarefeitos pelo tempo e pela conservação da fita, esses instantes são construídos por meio de outras oposições: a garota comprimida num ambiente dilatado e o silêncio interior sendo constantemente atacado pelos ruídos exteriores (buzinas, carros, sirenes). É como Nova York comunica a sua presença ali.

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Em uma das poucas cenas de Sophie fora do apartamento, enquanto come panquecas em um café, uma estranha se aproxima para falar de croissants e chapéus. A mulher, que até então lia um jornal com letras garrafais na primeira página anunciando a guerra do Golfo, é interpretada por Sara Driver, diretora e esposa de Jim Jarmusch, com quem Claire Denis já havia trabalhado como assistente de direção em Down by Law (1986). Assim como Driver, outras personalidades do underground nova-iorquino participam do média, o que – diferente dos travellings e panorâmicas (um movimento de câmera metropolitano por excelência, disse certa vez Jean-Louis Comolli) que acompanham uma conversa desatada ou contornam os arranha-céus – revela uma outra composição da cidade para fora do espaço fílmico: a das produções subterrâneas, de Jonas Mekas e o Anthology Film Archives, dos filmes de baixo orçamento e equipes formadas por amigos e dos clubes noturnos de música e cinema. John Lurie, ator e músico expoente do No Wave, compõe a trilha; Jim Stark, produtor de Coffee and Cigarettes (1986-1989), Mystery Train (1989), Down by Law e outros filmes de Jarmusch, atua como o vizinho calado e locador do imóvel onde a jovem francesa espera; e E.J. Rodriguez, na época percussionista dos Lounge Lizards ao lado de Arto Lindsay, Marc Ribot e os irmãos Lurie, é o latino imigrado e arrastado contra a vontade para um ato criminoso por Vincent Gallo em sua primeira de muitas colaborações com Claire Denis.

É difícil compreender Keep It for Yourself fora desse meio. Mais difícil ainda não evocar, nem de relance, a imagem de Eva, a prima húngara de Willie em Stranger Than Paradise (1984) chegando à metrópole com uma mala, uma sacola de papel e o rádio tocando “I Put a Spell on You” na versão de Screamin’ Jay Hawkins. Eva e Sophie não se esforçam para se integrar à cultura local, mas visivelmente fazem parte da paisagem cultural nova-iorquina. No filme de Denis, são poucos os que não têm sotaque. A atendente do café, a vendedora da loja de chapéus onde Sara Driver leva a recém-conhecida “french princess” (e fecha magicamente um ciclo de cameos de Driver iniciado em Stranger Than Paradise figurando como a “hat girl”), um homem e criança asiáticos que aparecem uma ou duas vezes abrindo o comércio ao lado do prédio do namorado displicente e até o latino confundido com um ladrão de carros que se vê obrigado a forçar a entrada no exílio da francesa solitária, são rostos pincelados pela cidade que trazem, ainda que de forma branda, temas caros à diretora: o trabalho, o estrangeiro, o invasor.

O personagem de E.J. Rodriguez não tem nome, mistura espanhol e inglês com cadência e leva comida chinesa para o amigo que está em horário de trabalho. Na guarita, entre um gole e outro na sopa quente para espantar o frio que vem de fora, reclama que não está muito bem e, quando indagado pelo colega, nomeia seu mal: “nostalgia”. Svetlana Boym dizia que a nostalgia é uma doença moderna sem cura, mas que, “diferente da melancolia, que se limita aos planos da consciência individual, a nostalgia é (também) sobre a relação entre a memória pessoal e coletiva”. A palavra, solta assim no diálogo, sem maiores explicações, é um fio lançado entre o homem que está prestes a se ver envolvido em uma situação na qual se torna fugitivo e a mulher prisioneira da própria espera. O encontro que se dará entre os dois é o prenúncio da partilha dessa nostalgia e de uma solidão experimentada pelos que chegam e pelos que partem da cidade. Sophie abre a porta sem saber se tratar de um estranho, os dois lutam, mas o rapaz a tranquiliza, explicando, mesmo sem ser compreendido, que só precisa de um lugar para se esconder. As distâncias entre as duas línguas aos poucos se encurtam, os corpos frios buscam um ao outro e a seguir vislumbramos uma sequência tão delicada quanto carnal. Nos beijos, toques e carícias Denis esconde, como um pequeno segredo, um tratado para a sobrevivência na cidade grande: estamos todos perdidamente sozinhos, mas às vezes é preciso abrir, ou ainda romper, algumas portas, e nos aquecermos num abraço desconhecido.

[1] Realizados por Claire Denis, pelo japonês Kaizô Hayashi e o argentino Alessandro Agresti.

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Sinfonia da metrópole: cordões e balões, carros e prédios

Por Diogo Serafim

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Um jornal no pé de um bonde acusa a existência de um assassino de crianças à solta na cidade de Los Angeles. O bonde começa a subir a rua íngreme e a câmera, ali instalada, vai desvendando a cidade como uma prisão de luzes, movimento, outdoors, carros, fachadas comerciais e corpos ocultos. Uma imensidão de anonimato operando individualmente em uma estrutura complexa e naturalmente instável. Desde esse primeiro plano, Losey já deixa bem clara a abordagem estruturalista que ele ambiciona desenvolver no filme: de que maneira cada indivíduo interage com o meio que está inserido, e como o meio por sua vez manifesta seus difusos desejos e traumas?

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O diretor emprega uma abordagem formal de exploração geométrica que acaba por dar à própria cidade um protagonismo inflexível na narrativa. Los Angeles aqui funciona como um microcosmo para os Estados Unidos no período do macarthismo, um país tomado por paranoia, neuroses e contradições. Mais que tudo, o sistema político e a organização social da cidade indicam que não há futuro possível para as crianças dali fora desse enclausuramento espacial e existencial.

Logo no início do filme, vemos crianças habitando vários espaços, a rua, a praia, o parque de diversões – o filme vai operando uma lógica formal que torna progressivamente cada lugar em uma potencial jaula, em um ambiente selvagem onde o perigo está sempre presente. M é, acima de tudo, um trabalho de arquitetura, sobre como corpos interagem e existem nesses espaços. Quando Michel Mourlet escreveu que tudo está na mise-en-scène, ele provavelmente pensava nesse filme.

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A cidade em constante expansão amplifica também paralelamente um espaço para o sentimento de individualidade, progressivamente distanciando os cidadãos em uma dinâmica que tem pouca relação com o isolamento espacial em si, mas sim um sentimento derivado de uma ideia fundamental dilatada de individualismo. Esse solipsismo implica em um crescente desinteresse pela individualidade alheia e uma consequente alienação da base da relação social e ontológica da consciência humana – isto é, a relação do Eu com o Outro. A sociedade é aqui um conceito-limite que é resultado das formas de interação social, as pulsões e desejos sublimados de uma população com sua vida social em crise.

Logo no começo do filme, quando a primeira criança é raptada, Losey filma uma sequência absolutamente sublime: a mãe, ao perceber que a filha não voltou para casa, olha para o chão pelo alto das escadas. Já temos aqui uma consciência espacial e um elemento temático que instaura um sentimento de verdadeira angústia – no último andar de um prédio, a mãe grita pela sua filha, perdida em algum lugar da cidade, invisível e inalcançável. Losey acompanha sua descida pacientemente, alternando os planos da mãe progressivamente descendo até a rua com planos estáticos de objetos que remetem à imagem da criança – um copo de leite, a bola esquecida em uma esquina qualquer, o balão que completa o movimento inverso da mãe que descia, indo por sua vez em direção ao céu.

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Enquanto isso, a neurose aumenta na cidade. Uma emissão televisiva é incisiva nas interdições governamentais e no estado de pânico instaurado, transmitidas com um tom autoritário. Na rua, um homem é multado por atravessar a rua fora do local indicado, outro é acusado por ajudar uma criança com seu tornozelo machucado. É como se todos da cidade fossem potencialmente assassinos. Todos são culpados e ninguém está a salvo.

Pouco depois, temos uma cena absolutamente claustrofóbica do assassino no quarto de hotel, seu rosto na penumbra, no qual ele manipula o cordão de uma luminária. A dureza com a qual ele interage com a luminária traça um paralelo logo em seguida ao cadarço de um sapato que ele utiliza para decepar uma figura de gesso – o sapato que é um elemento recorrente no filme, sendo que ele colecionava os sapatos das crianças que assassinava. É como se ele estivesse em um estado permanente de asfixia e, consequentemente, também a cidade.

O lugar que ele se tranca após ser identificado por um vendedor de balões cego é em um shopping center – uma escolha de locação nada inocente – e quem captura o assassino são criminosos da cidade. O julgamento que procede é de uma violência constituinte vigorosa, a fragilidade do assassino é contrastada com a dureza da multidão que o acusa, e após uma confissão na qual ele se lembra de um pássaro que ele matou quando criança, temos a chegada da polícia que finalmente o leva em custódia.

O sujeito influencia e é por sua vez influenciado pelo meio, e essa permutação recíproca resulta em uma reprodução sintomática do estado político vigente, espelhando-o na organização social da cidade. Dessa maneira, os grupos de mafiosos que aprisionam e julgam o assassino aqui funciona como um espelho da estrutura de justiça que o estado emprega.

Foucault uma vez argumentou que a etiologia da justiça na sociedade ocidental vinha de uma inversão dada no sistema judiciário durante a Idade Média: anteriormente a justiça vinha de um direito do lesado em pedir justiça e de acordo com a jurisdição e ao poder que lhe foi dado, cabia ao juiz definir se o apelo era pertinente. Em seguida, durante o feudalismo, essa justiça foi associada a uma lógica financeira, a justiça se torna lucrativa para quem detém o poder e, consequentemente, onerosa para quem está subordinado a ele. Segundo Foucault, foi sobre este pano de fundo de guerra social, de extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o poder judiciário. Em M, fica muito claro que as forças que julgam o assassino de pássaros e crianças é muito mais uma conjuntura que um grupo de pessoas.

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A designação da realidade subjetiva se dá pela soma de especificidades internas e externas ao indivíduo, uma relação constante entre uma base ontológica volátil e um empirismo concreto, mas o sujeito não pode jamais ser descrito apenas por essa operação. Algo sempre escapa, e é aí que repousa o princípio transcendental da vida. Em uma cidade na qual o espaço para o transcendental é alienado por um estado viral de desconfiança, quem é mais vulnerável, o indivíduo ou a cidade?

Quem matou as esperanças das nossas crianças?

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CineBH: Rodson (ou onde o Sol não tem dó)

Por Gabriel Papaléo

O céu sobre o Ceará tinha cor de televisão num canal fora do ar

on the rocks

Na volta da quarentena, no mundo pós-vacina, é para essa festa frita de eletrônico que eu quero ir. Um filme que se anuncia “Fritado e montado por” já demonstra estar num lugar especial, e a concatenação louca entre os diversos dispositivos digitais parece ser a regra e o grande esforço das realizadoras e realizadores de Rodson – ou onde o Sol não tem dó. As dissonâncias espaciais abrem o filme para então nos levar para um panorama quase em livre associação do mundo distópico vivido pelo protagonista do título, uma criança interpretada por um jovem adulto que lida com a violência dos pais diante da sua amizade com um robô fudido que ele achou no lixo – e é condenada a vagar por esse mundo estranho de conflitos identitários onde vivemos.

Os anos 3000 serão feitos de lixo, o curta anterior de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra que serve como uma forma de sequência/derivado desse, já parte dessa crônica dos anos 3000 imaginados pelo trio, com os dejetos digitais utilizados pelas marginalizadas para formar uma resistência terrorista – e aqui a explosão dos formatos é mais variada, e por que não mais lisérgica. Acessamos a um arquivo pirata de uma sitcom da família tradicional brasileira disfuncional viciada em pó, a uma religião que prega pela cocaína contra os “cheiradores de cu”, e as mais diversas transformações que Rodson sofre por onde passa, ao desbravar a distopia futurista palco da luta entre as autoridades fascistas do governo anarcocrente e o grupo musical que se apresenta para o futuro.

Nesse retrato quase a mão livre da localização desse mundo, fica evidente que o caos político no qual vivemos é também, quem sabe sobretudo, uma guerra estética das mais ferrenhas. Como você pinta a sua resistência é central ao conflito, e Rodson vai de Lobo Solitário com seu Daigoro cyberpunk a morador de rua cuja imagem é sequestrada por uma blogueira que usa da miséria para ficar famosa nos festivais gringos, seja Rotterdam, Cannes, Berlim – todos aparecem num powerpoint maluco, fruto dessa liberdade estética marginal tão alucinante e que infelizmente é tão pouco vista em longas-metragem brasileiros contemporâneos.

Que no arremate ainda sobre para a imagem do mar como utopia final da liberdade, filmado num 480p vagabundo lindíssimo, parece sinalizar numa contramão de um filme como Corpo Elétrico de que a elevação espiritual solitária do personagem em comunhão com as águas não é um alívio nem um privilégio, mas um duro e surpreendente retrato do preço pago pelos excluídos e marginalizados. O mar não é a recompensa mas a fuga.

Tudo isso é sob a via do absurdo, espalhafatosa e gritante, num filme engraçadíssimo quando quer, e esse tempero desse afrontamento estético é o coração de Rodson – o que torna tudo francamente muito mais prazeroso de acompanhar. É uma experiência difícil e desafiadora que sonha texturas digitais grotescas para destituir o tecido da realidade escrota que acompanhamos para quem sabe restaurar alguma harmonia e paz na cabeça de quem precisa delas.

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Quatro filmes de mistério – CineBH – sessão curtas 3

Por Gabriel Papaléo

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Coisas Úteis e Agradáveis adapta o texto de Voltaire para um contexto de isolamento, tal qual o República de Grace Passô, e retrata a estrada perdida do protagonista indiano pela sugestão minimalista – de alguns objetos de cena importantes para a dramaturgia ao opressivo cenário caseiro que investiga sombras e prisões. Depois de Vaga Carne, novamente o diretor Ricardo Alves Jr. aproxima a tradição teatral do monólogo para estabelecer uma fina linha dramatúrgica da forma que a luz ecoa a voz do ator em close, de como o gestual do ator e diretor Germano Melo (aqui também responsável por adaptar o texto) incorpora o dilema em primeira pessoa do indiano violentado com o distanciamento brechtiano do relato político. O arsenal de recursos de Alves Jr. na hora de retratar esse universo não é vasto como no filme com Grace Passô, nem é dotado da afronta formal proposta pela artista – o caminho aqui é mais seguro, até mesmo mais desequilibrado. A cenografia acaba um tanto reiterativa volta e meia ao eleger os mesmos objetos do texto, soando ilustrações literais demais da adaptação, mas perto do final Melo e Alves Jr. encontram num retrato fantasmagórico uma âncora misteriosa interessante ao personagem. É um conto que oscila na modulação dramática, por vezes toma caminhos mais óbvios, mas demonstra seu revide político quando precisa e sabe orquestrar uma imagem de impacto com pouco – o que parece se tornar a especialidade de Alves Jr.

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Corre quem pode, dança quem aguenta fez parte da retrospectiva do cineasta Welket Bungué durante essa edição, e torna visual uma crônica sobre as escolhas da vida do artista diante da dança, da performance. O silêncio incomum do Rio de Janeiro, da vista de Santa Teresa, contrasta diretamente com a violência descrita no relato de Bungué, nas formas de opressão veladas ou mais diretas, nos agouros enfrentados pelo performer diante das adversidades sociais tão palpáveis e explícitas numa cidade cosmopolita como o Rio. A forma estética, modesta à princípio, investe nos espaços e em localiza-los como instrumentos de eco da voz do relato; é quando o rosto e corpo de Bungué se tornam mais constantes nos quadros que a dimensão desses espaços ganha um mistério especial, quase como uma confissão íntima diante de locais tão públicos – vazios e silenciosos como quase nunca acontece no Rio -, e cuja luz incide estilizada mesmo em externas naturais, as sombras e o claro-escuro surgindo inesperados. As fusões transformam o dançarino em uma aparição, alguém que flutua pela cidade, e daí temos o lastro visual do que significa esse aguentar do título.

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Do pó ao pó, curta de Beatriz Saldanha, parte da banalidade do cotidiano para transformar a rotina numa prisão, através da repetição das ações e de um eventual e crescente surrealismo nas imagens que organiza. O impacto dessas imagens oscila bastante, e parece mais à vontade nas investidas gráficas com sangue, texturas e viscosidades, e menos interessante quando busca articular pulsões de livre associação (a máscara, a punheta). A montagem em volta da bagunça dos dias da semana também soa bem básica, como um símbolo de primeira mão do que seria o tempo esgarçado em quarentena, e o curta acaba como mais uma curiosidade diante do isolamento que como o pesadelo doente que parece almejar.

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Misterioso como o filme de Bungué, mas através de outros dispositivos formais, de texturas, é o curta Extratos, uma viagem de Sinai Sganzerla ao passado de seus pais, Helena Ignez e Rogério Sganzerla. A voz narradora atual de Helena, das vozes mais poderosas do cinema brasileiros, conta também com a intimidade e a magia do curta de Bungué, mas sob a estética documental das imagens em super 8 e 16mm registradas pelo casal no exílio, de 1970 a 1972. Helena nos conta da sensação de pertencimento roubada pela ditadura brasileira, da errância pelo mundo a procura de verões, de paisagens familiares, das incertezas de dois jovens acossados que voltam escondidos para terem sua filha no Brasil que lhes escapou. Ver duas figuras tão icônicas quanto Helena e Rogério trajando suas roupas jovens, em movimentos cotidianos e de acolhimento, parece sobretudo um exercício de humanização, mas de alguma forma aumenta a mística a sua volta. Entende-se as cores nômades, os sorrisos ocasionais e a melancolia do olhar do plano aqui escolhido, um momento de impacto no arremate do filme. Uma breve história de esperança de quem aproveitou como pode a experiência ao redor do mundo pra investigar formas de enganar a morte, para um presente incerto mas sobretudo à procura de utopias.

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Dois projetos de demolição – CineBH: Sessão Curtas #2

Por Gabriel Papaléo

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Mesmo com uma estética mais afiliada ao cinema experimental, o curta Eu sou a destruição acaba soando também seguro nas suas intenções ao construir apenas através de imagens encontradas – em filmes, em programas de televisão, em vídeos “amadores” – um sentido catártico diante da fala do então ministro da cultura Roberto Alvim no pronunciamento oficial no qual se afinou explicitamente com uma estética nazista para relatar seus planos para o futuro. Iniciando em beijos vários do cinema para então prosseguir em diversas formas de corrupção e perda de contato com o humano, as imagens desafiadoras do filme acabam atreladas demais a uma tendência da cinefilia criadora artística em repousar seus sentidos narrativos de interpretação em obras que melhor articular e desarmam o espectador de certezas – e não é a primeira nem a segunda vez que vejo a proclamação incendiária do personagem em O Diabo, Provavelmente virar força motriz (e até mesmo o título) de um curta de imagens encontradas.

Às vezes parece que o mero assistir e organizar dessas ideias e imagens basta para a construção de novos sentidos, e novamente nem sempre é o caso. As possibilidades que o digital proporcionou ao expandir o acesso às imagens já existentes para novos usos e linhas de pensamento são fenomenais e diante de olhos atentos pode criar filmografias inteiras de percepções novas sobre imagens antigas – como no caso de Harun Farocki, ele mesmo com um filme passando em retrospectiva no CineBH desse ano -, mas também aumenta a quantidade de filmes que parecem existir apenas na base da referência. (ou reverência, o que acaba pior, se pensarmos que a coisa mais violenta que uma imagem pode sofrer é sua sacralização.)

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Quando essa disposição ao confronto se vê enervada pelo mistério de uma organização quase profética de ideias em imagens, o revide político que se almeja vem na figura do espanto, e é nesse lugar que Grace Passô opera seu República. O setting simples do filme de apartamento, muito em razão pela quarentena em decorrência da pandemia, traz a dramaturgia minimalista de Passô para se concentrar apenas em seu rosto, nas percepções das mudanças sutis diante da recepção de uma notícia chocante sobre a realidade. Nesse sentido o filme dialoga com Vaga Carne, o experimento tanto teatral quanto audiovisual de Passô – e filmado por Ricardo Alves Jr. -, que usava do arsenal de sua voz para evocar o pesadelo de explorações corporais abstratas contadas com violência. República é mais contido, mas não abre mão das surpresas na encenação, especialmente ao tocar numa metalinguagem que poderia desarmar as intenções diretas da fábula contada apenas no diálogo ao telefone, mas que escapa de um comentário reducionista para alçar a ficção a voos mais desafiadores e combativos.

A única imagem externa do filme, a vista distante de uma personagem a praguejar feroz na rua noturna, é bem forte no seu intuito de construir uma São Paulo de madrugada, fantasma, habitada pelas condenadas. Esse diálogo se expande com a revelação final do sonho brasileiro, desse alívio momentâneo que vira uma raiva incontida, cujo mistério da imagem inicial dirigida ao colonizador que assiste encara o duro paralelo da imagem final, na qual a testemunha da violência dos colonos grita frustrada que “o meu país nunca existiu”. Passô se propõe um difícil enigma, de encarar o espaço doméstico banal e o localizando com uma unidade dramática apenas, mas como já visto em Vaga Carne é com essas limitações que seu texto esgarça possibilidades, e o telefonema amargurado vira um estudado relatório do emocional instável do ano perdido, refém do desarranjo das autoridades, carente das profecias.

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