Nomad à deriva e o corpo como utopia

Por Beatriz Pôssa

The secret life of Arabia
Never here, never seen
Secret life, evergreen
(The secret life of Arabia, 1977; David Bowie)

Nomad (1982, Patrick Tam) se inicia quase como um pastelão, nos apresentando os irmãos Louis e Kathy e seus respectivos interesses amorosos, Tomato, Pong e Shinsuke, através de situações cômicas, como uma confusão numa piscina pública e num restaurante. Todos os personagens são levados um ao outro por jogos do acaso, uma faceta de leveza que perdura por quase todo o filme até que há um corte brutal em seus últimos minutos. Se podemos classificar um filme como adolescente, sua primeira hora me parece um bom exemplo devido à atmosfera de imediatismo e desejo por liberdade, em que suas paixões são o ponto central de suas vidas. Há uma pulsão muito juvenil que rege os quatro personagens em suas escolhas afetivas, pulsão esta que combina suas aspirações burguesas de amplas mansões a um senso compartilhado de entitlement, como se o mundo estivesse ao dispor de suas vontades. Esse sentimento se estende até no ato de inventar um novo país, essa criação de uma utopia insular na segunda parte do filme, quando os personagens finalmente são confrontados pelo peso das tradições e a herança de conflitos milenares; tornando-se na meia hora final um derradeiro filme de samurai.

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O filme abre com Louis, personagem de Leslie Cheung, aqui com um dos seus papéis mais ingênuos, e seu olhar distraído se derrama sobre as paredes do quarto enquanto ouve a voz da mãe falecida em fitas velhas. Sobre o televisor de Louis, no qual está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma festividade nas ruas de uma cidade anônima, reside uma miniatura de Nomad, o navio que protagoniza seus sonhos febris de partir para Arábia, a promessa de paraíso sussurrada pelos cômodos da grandiosa casa com vista para o oceano que divide com sua irmã Kathy e a madrasta, por quem nutre um desejo secreto e a observa enquanto toma sol na varanda.

Kathy invade seu quarto praticando o kabuki, uma modalidade de teatro japonês que demonstra ter aprendido com o namorado, e lembranças de momentos íntimos com o amante atravessam rapidamente a tela, seus gestos ritualísticos ricos de uma dramaticidade única. Louis assiste a irmã recostado na parede e dois dos mais importantes álbuns de David Bowie emanam de sua cabeça como um halo: Low (1977) e “Heroes” (1977), os dois primeiros discos da trilogia de Berlim, conhecida como a fase mais experimental de Bowie – em um só plano as influências culturais são postas em confronto. A relação de Bowie com a Berlim Ocidental foi intensa para dizer o mínimo, e os álbuns produzidos durante esse período dialogavam com o complicado momento político na Alemanha durante a Guerra Fria. Consequentemente, sua trilogia, que finaliza com Lodger (1979), conversa com a juventude alemã que efervescia com uma arte absolutamente disruptiva de meados dos anos 70 ao mesmo tempo que estava fisicamente dividida, uma oposição ao desejo simbólico e simplesmente físico de constituir um só grande ser, um anseio sessentista sob os ares da Era de Aquário.

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Bowie talvez seja o maior exemplo de uma geração resultante da revolução sexual, sua obra e sua pessoa agindo como um catalisador das mudanças que ainda seriam experienciadas pelo mundo, concebendo uma música embebida em experimentações andróginas com um grande apetite pela liberdade. Os álbuns produzidos no período em que residiu em Berlim evocam muito desse sentimento compartilhado: era uma tentativa de encontrar na música alguma resposta, ou no mínimo um refúgio, para os conflitos políticos e sociais vividos naquelas décadas. Aliado a isso, havia por trás da criação de diferentes personagens que caracterizariam sua carreira um desejo de se modular multiplicidades, buscando a transfiguração do corpo em uma experiência artística e utópica. Sua obra traz um um reflexo da necessidade dos jovens da época pela formação de um organismo, alguma configuração de agrupamento que oferecesse conforto para que fosse possível explorar a fluidez de suas paixões.

A presença de Bowie na paleta de referências de Louis é interessante porque demonstra o desejo de Tam em retratar uma comunidade que busca o prazer sensorial e espacial, ou seja, dimensões que dizem respeito acima de tudo ao corpo. Uma das sequências mais potentes de Nomad é justamente a que evidencia uma impossibilidade do encontro romântico entre Pong e Kathy, que se inicia com as repetidas interrupções na casa de Pong. O plano de ficar a sós é arquitetado perfeitamente: Pong manda a irmã e a mãe para o cinema, mas não esperava ser atrapalhado pelo irmão mais novo e os idosos de sua família, que invadem a placidez da sala compartilhada. O casal trava daí uma coreografia extensa de troca de lugares, explorando o espaço da casa até esta se tornar pequena demais para seus desejos, o querer de ficarem juntos visível em seus gestos imprevisíveis e quase virginais no dividir da cama de solteiro. Quando mesmo na privacidade do quarto são incomodados, reiniciam o movimento e o jogo ao saírem de casa e entrarem no ônibus, a troca de olhares e beijos deliberada, levando ao momento do êxtase em que parecem não controlar mais os próprios corpos e se agarram até parecerem se fundir, e Tam dá ênfase a um plano da mão de Pong escorregando pelo corrimão enquanto carrega Kathy no colo.

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Essa coreografia apaixonada é cortada por Kathy recebendo a notícia de que Shinsuke, seu namorado, está de volta da guerra, retirando a mulher da bolha idílica em que parece viver durante a primeira parte do filme. Tam constrói a sequência como um momento final de filme de terror, os olhos de Kathy aterrorizados pela realidade que agora teria que enfrentar, tendo o homem que ama se tornado um desertor do exército japonês. Até aquele momento nenhum conflito real havia invadido o universo daqueles personagens, todos os desentendimentos resolvidos de maneira rápida e com graciosidade; e mesmo que nada de imediato aconteça com o grupo, nós como espectadores já reconhecemos os maus agouros e o filme assume ares premonitórios. Cada cena de beleza é permeada pela certeza de um acerto de contas, principalmente quando acessamos a verdade de Chiyoko, secretária de um designer de quem Louis é fã e amante da tia de Kathy; que tem a missão de certificar que Shinsuke irá cometer o seppuku.

Logo no título do filme e do navio-personagem, existe a evocação a povos andarilhos, sem residência fixa, que ultrapassam as fronteiras nacionais sempre em busca de horizontes mais promissores. É um desejo de se jogar ao desconhecido no reconhecimento de que fronteiras não passam de meros acordos tácitos entre as nações, linhas imaginárias responsáveis por acolher uns e expulsar outros. Há em Nomad um comentário categórico tanto sobre a influência ocidental quanto a japonesa que pareciam contaminar a vida da juventude honkongiana do início da década de 80 – como o que hoje analisamos como uma faceta do processo assimilatório da globalização – evidenciando até mesmo o olhar muito mais crítico sobre a “invasão cultural” japonesa do que à presença ocidental, principalmente na relação travada entre Pong e Shinsuke. A herança do conflito sino-japonês é articulada no filme como uma disputa de língua e masculinidade, e as influências japonesas no geral são vistas com maus olhos devido ao passado colonialista do arquipélago.

A partir do retorno de Shinsuke, os personagens decidem recomeçar e inventar um espaço em que seria possível viverem suas paixões e dedicarem suas vidas aos interesses do corpo apenas, o anseio de partirem para Arábia como uma meta mais próxima do que antes, pois agora existe algo material, um inimigo claro, que os empurra para fora do berço. O refúgio em um casebre litorâneo se torna uma utopia multicultural, e com ingenuidade acreditam realmente que assim vão escapar do destino que bate à porta. O navio, Nomad, corta o horizonte, um ponto fixo na paisagem, e Kathy vive uma vida dupla ao se encontrar com os amigos na ilha e o taciturno Shinsuke no navio. É lá que confessa a Shinsuke que gosta de Pong porque com ele não precisa pensar, “é físico, só físico”.

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Uma sessão dupla interessante seria assistir Nomad ao lado de O Império do Desejo (1981, Carlos Reichenbach). Ambos os filmes possuem o movimento de explorar as paixões e a sexualidade em uma realidade ilusória na praia, apenas para serem atravessados pela violência e uma brutalidade que não abre brechas para fuga pois encontra os personagens completamente desprevenidos e entregues ao prazer momentâneo. Em um interlúdio dos jovens na praia, vivendo das “coisas simples” como o imaginário burguês idealiza ao compartilharem almoços e camas naquela comunidade recém-criada, aprendemos que Tomato e Louis estão esperando um filho, um gosto do amadurecimento porvir. Shinsuke está entocado no navio distante da areia, excluído e deprimido, seu destino torpe amaldiçoando a alegria daquela nova experiência, mas os sonhos com sua execução contaminam apenas seus próprios pensamentos – os casais na praia não interrompem a oportunidade de viverem uma felicidade efêmera pela certeza da fatalidade iminente. Enquanto descansam sob o sol e compartilham uma garrafa d’água, Tomato reclama do tédio e diz “não fazemos nada para a sociedade”, ao que Louis responde “que sociedade? Nós somos a sociedade.

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Em poucos minutos, Chiyoko, que até então havia se revelado de maneira apenas submissa e dedicada para o grupo, reaparece para terminar seu trabalho. O banho de sangue que se dá em diante só salva o casal que está à espera de uma criança, a fertilidade como uma chance de redenção diante do indizível. Tam interpreta a paixão como um meio e um fim: não existe outra via de acesso ao paraíso além da entrega, a via crucis do corpo. Nomad abraça a potencialidade enganosa da utopia como artifício de uma juventude burguesa, explorando através dos seus corpos um atravessamento cultural que na mesma medida é veneno e cura. A realidade impetuosa que encerra a utopia também abandona os cadáveres na areia, e as águas manchadas de trauma lavam os corpos que ainda permanecem em pé. Nessa articulação complexa, o casal abraçado na praia está de encontro com a vida adulta, esse abismo; e Nomad, o navio à deriva, parte em direção à terra prometida.

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