A Poesia Sonora de Blue

Por Chico Torres

Blue (1993), de Derek Jarman, é uma obra composta de fragmentos sonoros-textuais que se conflitam e se complementam, em uma interpenetrabilidade constante. A força dessa contradição produz a unidade estilística do filme e o preenche de humanidade. Todos os riscos de Blue, suas mudanças bruscas, seus saltos narrativos, suas múltiplas atmosferas ganham um relevo homogêneo devido a essa energia que unifica forças ambíguas: temos, então, vida e morte, céu e inferno, sublime e banal amalgamados através de uma unidade poética que oscila como o badalo de um sino que produz dois sons que se separam e se unificam ao mesmo tempo.  

A narração, os diversos efeitos sonoros e os temas musicais funcionam não apenas como criação não visual de um tempo-espaço que precisa ser imaginado. Eles também cumprem essa função, mas não determinam o tom do filme. Blue não pode ser visto como uma obra cinematográfica que “perdeu” sua imagem e que agora tem na narração, nos efeitos sonoros e na música os elementos que devem sustentá-la, deixando que as imagens sejam produzidas individualmente, em nossa subjetividade. Pelo contrário, a obra cria uma série de fragmentos sonoros-textuais que podem ou não determinar um tempo-espaço, mas que também são poesia, discurso, manifesto, ensaio etc. Tal multiplicidade narrativa e sonora que se apresenta diante da tela azul, portanto, não apenas sugere imagens, mas, sobretudo, sensações, muitas delas de caráter abstrato ou contemplativo.  

O filme possui uma estrutura narrativa cubista. A princípio, a narração, sempre estabelecida como monólogo interior, se estrutura em diferentes ambientações: uma voz que evoca, através da poesia, a beleza sublime do azul; um homem em situação de guerra que vive suas mazelas; e o relato do próprio Jarman e sua experiência com o HIV e a perda da visão. Essas vozes, à medida que se repetem, se misturam e surgem como que contaminadas por todas as ambiências que fazem parte da obra. Essa multiplicidade de vozes, afinal, representa a interioridade do próprio Jarman, seja em forma de poesia, de metáfora ou da mais crua e terrível realidade. Aqui ele se apresenta, com a mesma intensidade, como poeta, pensador e ser humano consciente de sua finitude, expondo sem melindres a aspereza que essa consciência pode provocar. 

Toda a sonoridade do filme acompanha sua narrativa, sempre através do equilíbrio entre suas tensões. Se temos a evocação poética acompanhada por uma música barroca, uma elegia ao azul, temos, por outro lado, elementos sinistros que se estabelecem não só através da música, mas também de ruídos e ambientações sonoras. A diversidade musical e sonora é imensa: temas musicais que se sustentam por si mesmos ou são um paralelo daquilo que é narrado; paisagens sonoras que cumprem funções narrativas, poéticas e sensoriais; elementos sonoros que presentificam o personagem que narra (os sons do bar do homem que vive a guerra; os sons dos aparelhos médicos, das ondas do mar etc). Ainda que esses elementos possam surgir separadamente, há um esforço constante de mesclá-los, de modo que os elementos sonoros se complexificam junto à multiplicidade narrativa. À medida que o filme avança, aprofunda-se a fusão dessas vozes e desses sons, havendo a unificação entre o celeste e o demoníaco. Desenha-se, assim, a alma do criador, em conflito constante, nos proporcionando sensações ambíguas, sendo possível, por exemplo, sentir calma e angústia ao mesmo tempo. 

Blue, enquanto um filme-ensaio, extrapola a estrutura autobiográfica e memorialista baseada no formato diário/monólogo interior. É a poesia que contamina todo o filme, não apenas em sua presença explícita em seu tom propositadamente exagerado, mas também em suas incursões disruptivas, em sua maneira não convencional de fundir sensações e ambientações. Ainda que pese toda crueldade do mundo real, com a presença da morte e da maldade em suas múltiplas formas, Blue é também sobre a beleza, sobre uma beleza profunda e ao mesmo tempo superficial, que corre sobre os ouvidos e que é simples como o azul que insiste sobre a tela. Uma obra múltipla, polifônica, que entende a contradição como a estrutura da vida e da subjetividade humana. É assim que Jarman compôs o seu testamento, nos entregando a força de sua angústia, de seus pensamentos e, sobretudo, de sua poesia.

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Rio, 360 Graus (Rio Babilônia, Neville D’Almeida, 1982)

Por Anita Gonçalves

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Em “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), longa mais recente de Neville D’Almeida, o desmantelamento do Rio de Janeiro “Cidade Maravilhosa” se faz por via do tempo fechado, tapando qualquer brecha de luz solar, qualquer eventual perspectiva de esperança naquele espaço trágico e arruinado. Em contraste, “Rio Babilônia” (1982), realizado mais de quatro décadas antes, também partilha da dissolução do estatuto de cidade-paisagem idílica e harmoniosa, mas, dessa vez, através do Sol, irradiante: ao mesmo tempo que queima e incendeia o asfalto, incide sobre e ilumina tudo aquilo que, em ebulição, se vê fora das limitações de uma representação estática, despovoada e sóbria de “cartão-postal”.

Como ponto de partida em “Rio Babilônia”, existe tal imagem do “Rio de Janeiro cartão-postal”, enquadrado perfeitamente através da janela do edifício da Companhia Nacional de Relações Públicas: é o Rio de exportação, disciplinado e devoto aos gringos, fonte geradora dos lucros e luxos dos que ganham com a venda de tal representação de cidade. Mas essa paisagem postal, imaculada e despovoada, será justamente convulsionada, corrompida e superada, havendo, em contrapartida – e que passa a ser central, revelado pela luz do Sol de 40 graus – tudo aquilo que essa imagem pura de “Cidade Maravilhosa” necessariamente esconde. Em um momento de diálogo entre Marciano (Joel Barcellos) e o excelentíssimo Doutor Liberato (Jardel Filho), quando este, aparentemente gozador de um estatuto público de prestígio e imponência, em uma espécie de elogio, diz que a cidade caminha ao progresso, querendo exaltar a paisagem polida e virginal com a qual se depara quando vai ao clube e sobrevoa o mar e os prédios de helicóptero, Marciano rebate: “construíram aquele prédio e esconderam a favela que tem ali atrás”.

Opondo-se a esse ato de “esconder”, “Rio Babilônia” é um filme que repudia o privado e celebra o público, operando primordialmente por meio de uma qualidade, baseada na luz e frontalidade, que impede a existência do privado e obstrui qualquer ensejo de sigilo. O Rio de Janeiro de contrastes e contradições – complexo e diversificado, e sobretudo desigual, ocultado pelos prédios, indústrias, empresas e (especialmente) cartões-postais – é fulcral, sendo aquilo que se desejaria esconder e privar, aqui, o coração das imagens.

Por meio das lentes confrontadoras e nunca mansas de Neville, há uma exposição da desigualdade, da violência e de um povo que passa fome, em meio ao contexto praticamente explícito de crise inflacionária e carestia (“a inflação cai, mas a comida não”, manchete discreta de um jornal). Assim, a cena onde Marciano mostra o “real Rio” à estrela norte-americana Linda Lamar, desobedecendo às próprias limitações territoriais da cidade, capital do estado propriamente dita, e levando-a para a Baixada Fluminense – mais especificamente o momento do saque coletivo à caminhonete que transportava feijão –, é certamente violenta e brutal, praticamente uma cena de batalha que expressa a tamanha fome da multidão; mas também, em um estremecido clamor de “feijão para o povo”, dignifica aquele ato e expressa a celebração do público, fazendo da cena envolta por uma atmosfera eufórica de esperança na potência energética, rebelde e insubordinada de um povo (ainda) oprimido.

Já na cena do Morro da Babilônia, o morro é uma espécie de templo sagrado, genuinamente belo e instigante na orbe fílmica; no entanto, desprezado e violentado por aqueles que não conhecem verdadeiramente sua força divina. É lugar de sincretismo onde Jesus Cristo e Oxalá convivem em harmonia, mas, ainda assim, onde a violência invade e irrompe nas imagens de serenidade. Dona Zica, aqui praticamente feita uma santa, reza a Ave Maria, enquanto o canto que escuta no rádio invade as imagens de violência; e, apesar de sua força sagrada – que no fugaz tempo que perdura nas imagens, já as toma -, tem um policial apontando o revólver em sua cabeça. Mesmo que seja o morro o ponto mais alto, onde o Sol menos incinera, onde a brisa bate mais leve e onde o céu está mais próximo, os policiais atiram e matam a sangue frio; enquanto milionários, criminosos impunes, fazem a festa – até que o asfalto esquenta demais, derretendo as extravagantes armaduras da burguesia.

O filme expõe as paixões, prazeres e fraquezas, tidos como motivo de constrangimento, de figuras de um “corpo dominante”, despindo-as, tornando-as dominadas, vulneráveis e enfraquecidas, submetendo suas representações por meio da qualidade fílmica de um cinema que enfrenta e subverte a realidade. No ato final do assalto que interrompe a performatividade da festa privada da elite, filma-se, com irreverência, e aqui sim, capturando, como reféns, seus convidados da cabeça aos pés, exibindo aquelas figuras de forma tão crua, fora de seus pedestais, sem terem como recorrer aos seus estatutos, pois estão atadas e amedrontadas. Em “Rio Babilônia”, no tocante a uma certa condição frontal e humana das imagens, o que interessa é o que está debaixo dos vestidos das madames e dentro das calças dos doutores.

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O prazer generalizado, enrustido nos discursos e publicizado e liberto nas imagens, paira sobre todo e cada plano, frustrando esforços para delegá-los à esfera privada, constrangida e retraída em si mesma, inexistente e ofuscada pelo clarão solar em “Rio Babilônia”. A sacanagem de exportação, higiênica e restrita, é desacatada, e a sacanagem manifestada é a do prazer público, sujo e belo, sem limites e sem cortes. Aqui, empresários, industriais, diplomatas, parlamentares, carregando ridiculamente seus insustentáveis títulos e esbanjando decadentemente seus luxos, são desnudados, desvirginados e destituídos da postura e formalidade que asseguram e legitimam sua imponência; e têm suas taras expostas, por meio de orgias com prostitutas de luxo em apartamentos trancados a sete chaves – mas que o Sol não esconde e a câmera não perde por esperar em expor.  E o povo extasiado também se deleita, livremente, sem que forças conservadoras de “Rio Babilônia”, fracas e impotentes, sejam capazes de acobertar, conter e domesticar: o sexo público e popular e sua beleza e força indomáveis penetram nas imagens, as quais proporcionam e impulsionam que extrapolem qualquer limitação. Contrapondo-se ao despovoado e sóbrio cartão-postal, o filme tem como força motriz as pessoas e suas paixões pulsantes, movidas a calor e reveladas pela luz que o Sol emana.

Com exceção das imagens que fazem a burguesia nua de refém, vulnerabilizada e ridicularizada, o enquadramento menos aprisiona e mais dá vazão àquilo que é expresso – e menos capturado – nas imagens: as pessoas em transe e suas manifestações flamejantes de amor, prazer, paixão. Sem seguir normas que precedem e determinam com exatidão o que está no quadro e subvertendo qualquer ordem possivelmente pré-estabelecida, a câmera se adapta e submete-se ao movimento que filma, anda junto e conflui com a liberdade daquilo que está manifestado nas imagens.

Nesse sentido, o filme renuncia muitas vezes da narrativa perfilada a um só eixo para dar lugar à expressão genuína do êxtase e da embriaguez; do batuque, do samba, da atração na cena do lançamento do perfume, por exemplo, onde mesmo durante o discurso de Paulo Villaça, o empresário bronco, Pat Cleveland, a Linda Lamar, requebra e mal serve ao que foi contratada, acena e se encanta, olhando e sorrindo para o que está fora do quadro; e nada sai como foi esperado e encomendado. O bronco grita: “eu tô pagando!”, enquanto a festa explode – para além da dimensão imagética do quadro –, totalmente fora de seu controle.

Há momentos, relativos a essa falta de controle, cujo caráter se aproxima do documental, onde meninos passam na frente da câmera e tapam a paisagem postal e turística, até então caucasiana, da praia, ou até mesmo cenas nas quais existe uma interação disruptiva das figuras com a câmera. São momentos consonantes a essa permeabilidade do enquadramento que permitem que as figuras e seus corpos em quadro se expressem livremente, quase como se não estivessem, como se, apaixonadas, impetuosas e em ebulição, transcendessem ou enfim sublimassem. Aqui, o rigor se faz no deixar fluir aquilo que está em quadro, criando uma situação fílmica que se pauta pela liberdade e pelo inesperado, sempre esquivando-se de qualquer tendência de um quadro-postal estático, ordenado e controlado.

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Somado a esse caráter libertino do quadro, ao longo do filme, ocorrem mudanças bruscas e repentinas de atmosfera fílmica, sobretudo de gênero e de encenação, pois cada cena, e até mesmo cada plano, possui um certo grau de autonomia e liberdade expressiva em relação ao todo, assumindo a imprevisibilidade, sem se ater a um único eixo narrativo que pode parecer ser proposto de início. Esse todo, o filme em si, é multifacetado e livre, desprendido de qualquer coisa que beira restringi-lo a um único fio condutor disciplinado e bem-comportado. Entretanto, não se opera exatamente por meio de um abandono da narrativa, mas por uma narrativa que não determina os trilhos, que não necessariamente dita o que está por vir, constituída por cenas-expressões transitórias desse Rio de Janeiro fílmico que aqui se constrói: esse lugar babélico, complexo e exorbitante, onde as pessoas que vivem ou que passam por ele, são o que verdadeiramente o constituem.

Ao longo dos sete dias sagrados, o boêmio Marciano, em seu itinerário insubordinado e caótico, cruza com inúmeras figuras – como patinadoras, eruditos, traficantes, jornalistas, capangas, artistas, mães e filhos, prostitutas, empresários, estrelas, cafetinas, deputados, estrangeiros, etc – que, mesmo quando passageiras, são extremamente centrais e expressivas em cada cena onde surgem e em cada plano em que aparecem, vulnerabilizadas e/ou, sobretudo, libertadas.

A beleza existe, revelada pela luz e pelo calor que arde na cidade do caos, lado a lado com a violência e brutalidade incendiária que essa luz inerentemente também revela. A beleza em “Rio Babilônia” não é comportada, apelativa e precisa – como a paisagem despovoada e imutável do cartão-postal. É a beleza humana de um povo apaixonado e suado, frágil e forte, exposto frontalmente, iluminado pelos raios solares e pelo enquadramento que menos limita e mais liberta. É uma beleza subversiva e insubmissa às tentativas de controle, as quais, na forma de discursos, acabam por se tornarem superadas pela linguagem confrontadora do filme, que faz desses meros discursos, insuficientes e falso moralistas, medíocres e pequenos demais frente a expressividade e exorbitância das imagens incineradas e iluminadas, libertinas e sagradas.

Como uma promessa final, por via do poema de Neruda (na voz de Christiane Torloni) e do Sol que alvorece e preenche a última imagem do filme, “Rio Babilônia” tem fé. Fé na potência humana, inquieta e desobediente do povo, e, apesar da descrença no chapado cartão-postal, esperança – que no filme se realiza – de que um dia o Cristo haverá de abraçar a todos, de que um dia, ó Rio de Janeiro, “para todos os teus filhos, não só para alguns, dês o teu sorriso, espuma de náiade morena”. Além disso, crê em Deus; mas um Deus que não está acima de tudo e todos, ou apenas ao lado dos ditos pudicos (pois não há quem seja), mas dentre a gente mundana, humana, livre e extasiada, e emergido nas imagens ousadas e devassas, que – assim como os antigos babilônios, próximos aos deuses com seus monumentais e altivos templos – se aproximam dos céus, através do Cristo Redentor eminente, dos sagrados e frescos morros e da própria sublimação das paixões por meio da libertinagem e depravação da ordem. Nas palavras de Jairo Ferreira: “Mestre do cinemão, gênio no experimental, Neville agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta”1.

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1 Jairo Ferreira em “Neville D’Almeida, retaguarda da vanguarda”, no livro “Cinema de Invenção”, 1986.

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A Dama do Lotação (Neville D’Almeida, 1978)

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Por Gabriel Papaléo

A leitura de Nelson Rodrigues sempre prezou pelo escândalo, e é comum – ainda que equivocada a meu ver – a noção de que seus arquétipos e suas teses são datadas, que não existe espaço para elas no cenário contemporâneo brasileiro atual, mas a forma que retrata as neuroses de uma burguesia carioca, e o como expõe as vísceras dos desejos e perversões reprimidos reflete um segmento da sociedade que não parece ter mudado, e sim se higienizado, sob seus obscuros desejos de poder. Num canal tão disposto a abraçar a aspereza e a putaria de Nelson como Neville D’Almeida, a dramaturgia aflora bem diante da encenação abertamente declamada. Em A Dama do Lotação, Neville sequestra Nelson para imaginar as maneiras que Sônia Braga dribla o eixo familiar de aparências onde os ideais de masculinidade são passados como legado de defesa, de uma atitude sexista sobretudo de medo.

E o que move esse legado é a fanfarra da hipocrisia, propulsionada especialmente pelos chavões do que as instituições esperam dos choques entre homens e mulheres. A amizade masculina falida, alvo no qual o diretor se diverte ironizando, é vista sob a mesma desconfiança até que a psicanálise, na figura de Claudio Marzo forçando a ideia de fidelidade e amor pelo marido em Solange mesmo que ela grite por violência, clame pelo expurgo. Segundo o diretor, nenhuma instituição segura essa fina camada que une os indivíduos sob suas capas de autoridade, e o desejo estimula as perversões sem categoriza-las como tais, sempre buscando esconde-las em algum subterfúgio moral, intelectual, ou financeiro.

Na sequência na qual Solange, Carlinhos e seus amigos vão na boite Barbarella da época, a tensão é por debaixo da mesa, escusa, no segredo, implorando por um desejo oculto. O perigo do flagrante permanece o motor das ações de Solange diante da recusa inicial do sexo, uma intuição em reação aos julgamentos de Carlinhos e seu pai. “A esposa deve ser frígida”, o pai afirma, porque sabe que sexo bom é aquele controlado pela instituição, seja ela qual seja (nesse caso, a família). A castidade imposta muito tem a ver com esse medo, essa tensão do desafio, de homens tão reféns do desejo feminino que tremem diante da possibilidade das mulheres perceberem seu poder sexual – uma variável impenetrável da fragilidade dos seus poderes autoproclamados. O que escapa de Carlinhos é o que motiva o desejo de Solange.

Não por acaso, Solange sempre reforça que os homens com quem transa são “piores” que seu marido, porque no limite esses sexos só existem para que tolere melhor a realidade do seu casamento. Existe um acordo de civilidade entre os homens que aqui interagem, seja Carlinhos com seu pai, seja Carlinhos com seu amigo, seja o motorista do ônibus com o cobrador, que prevê secretamente que as relações horizontais e confiáveis são apenas entre eles, como se o suposto mistério feminino fosse cruel o suficiente para não ser digno de confiança. A questão mais engraçada da sátira multifacetada que Neville propõe é que algo nunca discutido entre esses homens é que os seus desejos são a única forma de quebrar esse elo civilizado, de que secretamente esses homens entendem que relação alguma resiste ao desejo do pau; e assim Solange consegue dar pro pai do marido, pro melhor amigo do marido, e literalmente nada muda.

O que escapa à sátira, pontualmente, são as relações femininas que Neville filma. Como em Matou a Família e Foi ao Cinema, parece que existe uma atenção dramática especial, mesmo diante da crítica de classe, a relações que escapam dos homens que buscam o controle. A bela cena de tensão entre a mãe de Nuno Leal Maia e sua amiga (e amante) Matilde é um toque de mergulho no melodrama sem a ironia que atravessa todas as outras relações do filme. Nesse sentido Neville parece estar filmando Nelson Rodrigues até quando não está, mas diferente do carnaval cataclísmico de Rio Babilônia, aqui o diretor deixa seus comentários sociais diretos escorrerem por entre a dramaturgia, mais pontuado, ainda que não mais sutil. Essa atenção às neuroses da classe média perdida não furta o diretor de filmar o Rio de Janeiro contrastante, visto pelas janelas dos ônibus, na janela fechada do carro, na praia cheia que nunca acessamos – sempre sob o ponto de vista de Solange, sempre diante da progressão do seu arco dramático de pouca transformação e muita autopunição.

Evitar as perversões do outro na suposta civilidade da cidade culmina no desligamento de Solange dos planos familiares, do que se espera dela, e portanto tudo deve acabar numa praia vazia, da última foda com Sônia Braga e Paulo Villaça, felizes em estarem isolados, diante de uma utopia apenas deles depois de se conhecerem num ônibus, descartável como qualquer relação a qual Solange se submete em busca de sentir algo, de ser punida por seus atos. Seja chamada de segurança, seja de medo, seja de raiva de classe, o fio que liga o emocional dessa classe média retratada é o da vontade de sumir da cidade.

Esse mal-estar de classe é por todo momento refletido diretamente na forma que se lida com sexo, como se esse fosse um canal apropriado de intimidade para não se ter vergonha ou culpa de implorar por violência, por punição. Solange busca ser a mulher de todos principalmente porque quer sofrer alguma consequência que seja de seus atos; a questão é que no Rio de Janeiro, se você é de berço, se você é abastado, se existe privilégio de classe que seja, a possibilidade de que se arque com alguma responsabilidade é muito pequena. Cabe à dama explorar seu prazer implodindo as noções de masculinidade e família dos que a machucam sem sua autorização.

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CINEMA E MEMÓRIA

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EDITORIAL: CINEMA E MEMÓRIA
João Lucas Pedrosa

O QUE JAZ FOSFORECENTE DENTRO DA CASCA CARBONIZADA
Lucas Saturnino

ANDROIDES FLUTUANDO NO RIO DE HERÁCLITO
Luis Flores

O PÊNDULO, A FUGITIVA
Felipe Leal

AMORES DO MEU EXÍLIO
João Pedro Faro

O QUE DEVE O CINEMA MARROQUINO DA DÉCADA DE 70 FILMAR?
Geo Abreu

MEMÓRIAS DE CINEMA, REVOLUÇÃO E UMA ARISTOCRACIA RIDÍCULA
Bernardo Moraes-Chacur

ILUMINAR O MUNDO PELO OPACO
Diogo Serafim

O TRAUMA TRANSMITIDO, O TRAUMA OMITIDO: TÚMULO DOS VAGALUMES, MARIA ANTONIETTA E JOJO RABBIT
João Lucas Pedrosa

LEVEM OS PROFETAS AO LIMITE – SOBRE O CARPINTEIRO STEINER E O CAMPONÊS HIAS
Gabriel Papaléo

REICHENBACH 09 NOVEMBRO 2004 (2)
Natália Reis e Ruy Gardnier

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REICHENBACH 09 novembro 2004 (2)

Por Natália Reis e Ruy Gardnier

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Faz mais ou menos um ano que descobri numa checagem aleatória dos meus lugares favoritos na internet que o “Olhos Livres”, blog que Carlos Reichenbach manteve com afinco entre meados de 2008 e 2010 (para além do “Reduto do Comodoro”, “Olhos Livres ano 02” e “Olhos Livres bônus”), havia sido tirado do ar. O choque inicial – misturado com uma tristeza, como a de quem perde uma fotografia de família – veio principalmente porque eu gostava de pensar, hiperbolicamente, que minha grande colaboração para a memória do cinema brasileiro seria uma espécie de  catalogação e organização dos posts migrados para um novo domínio pago e seguro, sem riscos de se perder no tempo – uma tentativa de preservar o processo cuidadoso de curadoria e rememoração com que o diretor listava raridades, descobertas musicais, músicos e bandas que acreditava que não deveriam ser esquecidos (com uma série própria chamada “Onde foram parar esses caras?”  parte do inventário “999 discos para ouvir antes de morrer”), “gênios” pouco comentados como Jackie Gleeson e ainda os registros cineclubistas das suas “Sessões Comodoro” no Cinesesc (SP) e das suas imersões no “cinema escatológico”.

“Ouça com olhos livres/ veja com ouvidos livres” são expressões encontradas no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, amigo e por incontáveis vezes companheiro criativo do Carlão. Penso que funcionam muito bem como senha ou palavras-chave para se adentrar no universo cinematográfico de ambos e, de certa forma, o registro da presença virtual de Reichenbach, através dos posts intermináveis nos seus blogs – exercício que manteve desde o começo dos anos 2000 –, assumia esse mesmo papel complementar a sua obra. Graças a ferramentas como a “Wayback Machine” do archive.org (que nos permite ver uma versão arquivada do site em momentos diversos de uma linha temporal), hoje é possível ter acesso a muita coisa ali, mas a sensação constante em meio ao cemitério de links desativados do rapidshare que o diretor disponibilizava em toda a sua generosidade (e transgressão) para download dos álbuns que escavava, é a de estar manuseando uma peça frágil que um dia também pode se desfazer.

É difícil traçar paralelos entre cinema brasileiro e memória sem lamentar os processos de deterioração que caminham ao lado de uma história feita também de filmes que jamais poderão ser vistos – perdidos, corroídos ou debandados por museus e cinematecas fora do país. Mas vez ou outra um acontecimento extraordinário como o upload de uma obra rara e já desacreditada em fóruns de pirataria ou a transcrição de uma entrevista até então inédita com um cineasta imenso como Carlos Reichenbach possui o poder de restabelecer parte das nossas esperanças. No final de 2017 uma fita com a etiqueta “REICHENBACH 09 novembro 2004  (2)” chegou até mim de maneira igualmente extraordinária, mas por inúmeros motivos permaneceu intocada até agora. Por ocasião de uma nova edição da Multiplot!, cujo tema é Cinema e Memória, parece mais que propício trazer à tona essa preciosidade guardada por tanto tempo e também uma forma de celebração das conexões e amizades que trabalham para garantir que as memórias do nosso cinema possam ser preservadas. Ainda que seja um fragmento de uma conversa maior, espero que o depoimento a seguir forneça um vislumbre das paixões que consumiam e moviam o Carlão – pelos filmes, pelo fazer cinema, pelos amigos queridos e, claro, pelo gesto de contar suas histórias. Certas informações e nomes precisaram ser checados e graças às contribuições de Paulo Sacramento e Remier Lion, algumas lacunas puderam ser preenchidas. Os agradecimentos logicamente também vão para os três entrevistadores Francisco Guarnieri (que contribuiu igualmente para a identificação de alguns trechos), Guilherme Martins e Ruy Gardnier, que além de ter assumido a transcrição, nos oferece essa breve introdução:

“A conversa aconteceu no dia 9 de novembro de 2004 na casa do Carlão, na R. Piauí, em Higienópolis, São Paulo. Era uma entrevista para a Contracampo e fomos eu, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. O encontro foi mais um papo descontraído do que uma entrevista ao pé da letra. Na minha volta para o Rio de Janeiro, uma série de obrigações tomou a frente nos afazeres e a entrevista acabou nunca sendo transcrita. Das três fitas, só a fita 2 pôde ser encontrada. O assunto da fita 1 girava em torno de Bens Confiscados e Garotas do ABC, que eram seus filmes mais recentes, e dos projetos cinematográficos do Reichenbomber (apelido a partir da coluna online que ele tinha no ZAZ/Terra). Na fita 2, a conversa rumou para filmes extremos, cinefilia na internet, salas de repertório, o futuro digital do cinema e o Quepe do Comodoro, premiação criada por ele para valorizar quem ama cinema. (RG)”

LADO A:

Carlos Reichenbach: Você tem esse tipo de coisa, que falavam tão mal do filme, que eu me preparei pra sair decepcionado, quase mudando de ramo. Uma surpresa atrás da outra, esses caras [que falaram mal] tão loucos? Ou nós estamos ficando loucos?

Francisco Guarnieri: Mas a Olga é um personagem de TV.

CR: Como eu tava dizendo, não vi, não posso comentar, seria injusto.

Ruy Gardnier: Já que a gente está falando dos filmes de cinema brasileiro, tem um filme bastante perdido na década de 90, e que se não me falha a memória é o único filme da década de 90 a fazer um paralelo claro com o Douglas Sirk, e eu acho que nesse sentido lembra muito Bens Confiscados, que é o filme do Amylton de Almeida, O Amor Está no Ar.

CR: Mas o Amylton de Almeida, além de ter sido um grande amigo, foi uma pessoa… Você vai levar um susto! Pra ele, o maior filme do cinema brasileiro era o Filme Demência. Ele fez questão de colocar o Ênio Gonçalves no filme em homenagem ao Filme Demência. A grande crítica do Filme Demência da época em que ele foi lançado é do Amylton de Almeida, que era um crítico importantíssimo, talvez o mais importante do Espírito Santo. Ele era apaixonado por dois filmes, Amor Palavra Prostituta e Filme Demência. Filme Demência então pra ele era o Deus e o Diabo na Terra do Sol. Então havia uma certa ligação. Mas eu não vi o filme, infelizmente eu não vi. Mesmo porque foram tantos problemas que ele teve pra poder concluir, ele morreu no meio do processo. Ele gostava muito de Amor Palavra Prostituta. (…) Ele deu um nome sirkiano. Não duvido que Sirk seja um cineasta que é referência pra ele. E ele tinha uma coisa curiosa porque tinha mais influência da cultura germânica do que eu tinha, por exemplo. Eu sou de família germânica. Até onde eu saiba ele não era, mas tinha muito essa influência. Detectou bem esse aspecto dele que… talvez ele sim teria sido um grande cineasta influenciado pelo Fassbinder. Mesmo porque adorava Douglas Sirk. E tinha essa coisa da cultura germânica. Pra mim talvez o cinema e a cultura que mais me tenha influenciado seja o cinema italiano. O cinema japonês também, mas basicamente o cinema italiano. Minhas grandes referências foram sempre fincadas no cinema italiano. Cada vez eu percebo isso com mais clareza.

RG: O Bens Confiscados tem uma coisa muito interessante de estrutura, que ao mesmo tempo o cenário macro da política fica do lado de fora, fica só passando pelas visitas do assessor ou de alguma coisa que se vê na televisão, mas ao mesmo tempo você vê os efeitos da política presentes na carne dos personagens, sobretudo no da Betty Faria, e ao mesmo tempo você joga a outra face da política, ou a outra face do político, porque afinal apesar de ser um grande ladrão, se coloca na voz da Betty Faria o outro aspecto que dá humanidade a essa pessoa, essa figura, que é o contato humano, o jeito como ele ama as mulheres. Você cria uma ambivalência do personagem, você tenta dar corpo a ele, mais ou menos como uma ideia. Na figura pública e nas opções éticas se pode julgar uma pessoa, mas quando se vê de perto sempre fica sendo mais difícil.

CR: Olha, isso daí inclusive vou te dizer, talvez eu tenha detectado onde nasce isso, isso é indiscutível, talvez seja a herança do cinema do Zurlini. Zurlini talvez tenha sido o cineasta mais influenciado – e assumiu isso inclusive publicamente numa grande entrevista sobre a carreira dele – pela leitura do Tolstoi. Tolstói não à toa é um escritor anarquista. Talvez uma grande referência literária pra mim tenha sido o Tolstoi que dizia que por trás de toda grande história, todo grande drama íntimo, tem um momento histórico traumático acontecendo. E talvez o filme referência pra isso, pra mim, é indiscutivelmente Verão Violento. Onde você vê o fascismo estourando lá dentro e aquele casal dançando. Aquela sequência é genial. Os camisas-negras estão chegando lá dentro e o casal dançando “Tender Moon”, ou algum clássico da música americana. Um pé no fascismo já. E a coisa afetiva, a coisa romântica aparentemente em primeiro plano. Agora, você nunca aceita uma realidade histórica tão latente, ela invade a vida das pessoas pela porta dos fundos. Que marca muito também Dois Destinos, não é? Em nenhum momento do filme, é dito, explicitado, que o Mastroianni pertence ao Partido Comunista. Mas você percebe isso, isso afeta a convivência dele com o irmão. E então é muito legal, quando você vê que no fundo é a história que está dando as cartas. Eu acho que isso da política é nitidamente influência zurliniana, eu não quis fazer um filme sobre a política vista pela porta da cozinha mas a forma como ela age é iminentemente instintiva. Pra mim, no ato de escrever, aliás o que me estimulou a desenvolver esse roteiro, e a trabalhar uma coisa que a meu ver foi a chave para escrever esse roteiro, foi a ideia de escrever um roteiro em que o personagem principal, você não vai ter nem uma fotografia desse cidadão. Esse personagem vai afetar todas essas pessoas o tempo todo, manipular. Mas ao mesmo tempo, sem ficar trabalhando com personagens chavões. O cara tem as duas caras. É uma espécie de Cidadão Kane ao mesmo tempo que é fascinante, é calhorda… Shakespeare é parte disso, né… Grandes filmes sobre grandes personagens, grandes canalhas, e absolutamente sedutores. Isso está dentro da tradição da dramaturgia, acho que não tem nenhuma novidade, é só uma forma de trazer isso para a minha realidade.

02Verão Violento (Valerio Zurlini, 1959)

Como a gente não confia nessa… cultura da corrupção, tráfico de influência. Eu acho que a grande diferença que a gente tem no cinema brasileiro – não sei se foi o Roberto Santos que dizia isso –, quando se vai fazer uma coisa no Brasil, não pode abdicar de uma certa dose de humor. É o que te bota o pé aqui. Tem alguma coisa que tem que ter e é nisso que você percebe o quanto existe o preconceito contra – num geral, a cultura brasileira, a literatura, a música, o cinema. Existe um preconceito fenomenal, fala-se tanto, cobra-se tanto do cinema popular, mas quando se fala em chanchada, todo mundo bota o pé pra trás. Mas bota o pé pra trás no ato. Eu estive vivendo muito essa aflição com Alma Corsária. Eu lembro que muitas críticas diziam assim: “Ah, o filme é bacana, um filme heróico, feito sozinho” (…) elevado a um âmbito do heroísmo. Vai à merda! O filme é outra coisa. Ao contrário. Eu acho que se o filme tem uma unidade, é uma vontade o tempo todo de fazer chanchada, tipo pedir pro Jorge Fernando homenagear o Zé Trindade – uma puta homenagem ao Zé Trindade –, a própria jurada do Silvio Santos [Flor] lembrava a velha comediante, a Dercy Gonçalves quando jovem, até fisicamente lembra, a Dercy Gonçalves novinha.  (Uma convidada entra na casa e os cachorros começam a latir, deixando a conversa inaudível)

RG: Estávamos no preconceito da elite culturalista contra a comédia brasileira.

CR: Nossa, é uma coisa inacreditável. Por mais democrático que possa parecer, na hora que você toca na questão da comédia, é uma loucura, porque os preconceitos baixam mesmo. É tudo muito bonito quando é visto à distância, tipo pobre, visto de longe. Mas eu lembro quando teve a grande retrospectiva da chanchada, foi há uns 30 anos, foi na Universidade de São Paulo, na sala de projeção, eu perdi um mês da minha vida. Perdi nada, ganhei um mês da minha vida. Ia todo dia lá porque eu não conseguia deixar de ir. Era impressionante como… foi uma geração que não se reciclou mais. Eu não tenho a menor dúvida de que uma mostra dessa como a do Remier [Cinema Brasileiro – A Vergonha de uma Nação, nde *] é utilidade pública. Os filmes mais próximos da pornochanchada nem são tão interessantes, mas aqueles filmes da década de 50 ninguém viu. Eu tenho loucura pra ver esses filmes. Tem coisas audaciosíssimas que vão ser exibidas.Tem O 5º Poder do [Carlos] Pedregal. Filme feito pelo Radar [Leovegildo Cordeiro], filme feito em elogio ao Esquadrão da Morte, considerado o filme mais fascista jamais feito no Brasil, um filme que faz totalmente a apologia do olho por olho… O nosso William Lustig.   Com música do Remo Usai. Wilson Grey como assistente de direção. Deve ser genial. Deve ser uma coisa do outro mundo. A chance de poder ver Massacre no Supermercado, melhor filme do J.B. Tanko. Acho que é a hora inclusive de se quebrar muitos tabus. Isso que falta, eu acho que tem toda uma geração que não se reciclou, não viu chanchada. Houve, assim, a coisa de papel. Eu quero ver o sujeito ir lá, ficar durante um mês todo dia vendo filme do Zé Trindade, do Ronaldo Lupo. É impressionante, porque de uma certa forma, queira ou não queira, o cinema de gênero também precisa de um aprendizado, exige um certo aprendizado. Perder o preconceito, quebrar tabus exige um certo aprendizado. Eu acho que tem um pouco essa função, tudo isso que ele [Remier] está fazendo, é por aí mesmo. Existe nitidamente uma diferença entre o chamado cinema trash e o cinema transgressor. Ed Wood é um horror, é uma bosta. Estou falando de filmes transgressores e existe uma diferença da água pro vinho, uma mínima inteligência percebe isso. Então você tem uma coisa de afinar gosto.

O fato de também estar preparando… Não sei nem se eu vou terminar fazendo… Mas é um projeto que eu venho desenvolvendo há um ano e meio, de fazer um filme sobre censura, na verdade não é sobre censura, mas é sobre imagem interditada. Imagens interditadas. Então durante um ano e meio eu tentei descansar um pouco a visão. Eu sujei meus olhos. Escatologia, barra pesadíssima. Puro cinema interditado propriamente dito. Os filmes mais ignóbeis jamais feitos. Teve uma pesquisa inclusive, você deve ter visto, lá no Cineclick. Os filmes mais nojentos. A partir disso eu resolvi fazer um documentário de longa-metragem, só com material comprado – tenho dois contatos inclusive, na Itália e na França, pra ir atrás dos filmes, pra ver quanto custa os direitos de Emmanuelle na América, de uma série de filmes teoricamente que não sejam snuff – e aí você de uma certa forma, é muito engraçado – e isso é uma teoria que se aprende mais vendo filme ruim do que filme bom, e que escola de cinema tinha que mostrar é bosta mesmo, o pior do cinema e não o melhor do cinema, porque o cara nunca vai fazer mesmo, né? Do melhor e do pior do melhor, ou o melhor do pior, sei lá, qualquer coisa. Foi um exercício de um ano e meio, quase dois anos, de ver tudo. “Ih, esse filme foi proibido em 60 países, 70 países”, eu vou atrás, vou comprar, fazer a cópia, entendeu? Cansei de ir em locadora de filme pornô pra poder ver até onde a mente humana foi capaz de chegar. Porque no fundo o documentário é sobre isso, sobre exatamente essa ideia do que o que é vetado aqui não é ali. Se eu mostro um braço aqui, não diz nada, e filmar o braço da atriz principal no Irã, entendeu, é pecado mortal. Tudo isso começou com essa descoberta, dei uma grande entrevista para um casal de críticos iranianos, lá em Pesaro, e eles ficaram muito impressionados por causa do sucesso do Abbas Kiarostami, e o outro lá, Mohsen Makhmalbaf: “Eu quero entender isso em São Paulo”. Aí esse casal de críticos iranianos veio fazer uma entrevista. Isso num calor de 40 graus. Fizemos a entrevista. Eles tinham visto Alma Corsária, foi lá que o filme ganhou um prêmio de melhor filme, eles queriam publicar uma foto e perguntaram: “Por favor, você não tem material fotográfico do filme?” Aí eu escolhi material fotográfico e a primeira fotografia que eu dei era uma fotografia da Carolina Ferraz em cima de um prédio, que é o símbolo do filme. Dei pra eles, assim. Aí eles falaram: “Desculpe, eu não posso reproduzir essa foto”. “Por quê? Só tem ombro aqui”. “Por causa do braço de fora”. Só então eu me dei conta que a mulher dele estava com a blusa até o punho, e isso com um calor de 40 graus. Quer dizer, não publica a foto da Carolina Ferraz porque estava com o ombro de fora. Uma das grandes razões de fazer o documentário é exatamente sobre isso

 

03Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993)

Esse projeto eu ainda tenho, se chama “Cinema Interditado”. Um projeto todo feito com material de arquivo, de filmes etc. e tal, e claro que tem que ter o filme sobre Maomé [The Message, de Moustapha Akkad], que é proibido de passar, que só passa no aniversário… Que não passa no Oriente. E daí pra frente essa coisa mais louca e mais violenta… A primeira coisa por trás do filme é quebrar tabus. Tem que ir até o fim. Eu estou falando tudo isso porque eu senti com muita clareza, a minha visão do cinema mudou muito. O nível de exigência também mudou. Eu tive que sujar, como se estivesse realmente quase ferindo o olho mesmo. Como se estivesse passando uma lixa na visão pra poder aperfeiçoar ela. Vi da coisa mais bárbara, mais ignóbil, das imagens mais torpes, mais malfeitas e ao mesmo tempo violentas e sublimes. E acho que isso talvez tenha me tornado mais rigoroso talvez até com meu próprio cinema. E eu posso dar certeza pra você, alguém uma vez falou “Tem alguma coisa curiosa, tenho uma impressão que mudou, tem uma coisa visual diferente nos seus dois últimos filmes em relação aos filmes anteriores”. Deve ter sim! E foi esse exercício. Foram três anos dedicados a isso. Antes de filmar [Garotas do ABC], antes inclusive de ter tido o infarto. E acho que nesse nível também, a minha coordenação aumentou profundamente com relação a certas coisas, muito mesmo, até certos filmes que hoje eu admiro muito, passei a admirar…

RG: Por exemplo?

CR: Canibal Holocausto [de Ruggero Deodato].

RG: Tinha visto antes?

CR: Era fascinado, mas não admitia que gostava. Acho que pra muita gente isso aconteceu. Não é só pra mim não. Tanto que hoje o cara é mestre. Até três anos atrás era um cara da contrafação. É muito louca essa questão. Eu vou te dizer como muda a noção. Nunca me passou pela cabeça que um dia eu tivesse coragem de ver vinte, trinta filmes do Jesús Franco, um cineasta horrível. Eu precisei ver trinta filmes do Jesús Franco pra ver duas obras-primas. O resto é muito ruim, muito ruim. Em todos os sentidos, ele era porco pra filmar. Bota porco nisso. Mas quando ele acerta, talvez pelo fato de ter trabalhado com todos os grandes…

RG: Quais são esses dois?

CR: Succubus é uma obra-prima. Succubus acho que inclusive é Mulholland Drive antes de Mulholland Drive. Esse vale a pena. O outro é Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa. É uma beleza de filme. Um filme simples, ao mesmo tempo extremamente delicado… E tem uns filmes intermediários que são muito interessantes, que por incrível que pareça, são os filmes mais comerciais, filmes de “woman in prison”, etc. e tal, que são até engraçados, que têm um charme interessante. Mulheres lindas, como a Ursula Buchfellner, que é uma deusa. E tem também uma coisa que ele faz com a mulher dele [Lina Romay], que é muito interessante porque não importa se o filme não é bom, o que é genial é a coisa da postura de vida mesmo. Ele, em certo sentido, é o Mojica europeu. Sem dúvida nenhuma.

04Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (Jesús Franco, 1977)

RG: Mistura de Mojica e Raul Ruiz, essa coisa de filmar um atrás do outro.

CR: Mas ao mesmo tempo tem esse tipo de coisa. Uma das coisas que é absolutamente fascinante é como ele é apaixonado pela genitália da mulher dele. Ele faz filmes que no fundo nada mais são do que uma grande elegia à genitália da Lina Romay. É uma relação de amor. Tem um filme que é o tempo inteiro ela andando pelada por um castelo, isso passa a ter uma beleza… É engraçado porque você precisa realmente… até pra você aprender a gostar da coisa, precisa um aprendizado. Precisa perder todo o preconceito, uma carga de preconceito. Mas ele tá dá uma… Eu posso dizer com tranquilidade hoje que todo esse conhecimento, esse interesse, apurou o meu olhar. Hoje eu sou muito mais exigente comigo mesmo, com a minha estética, com a minha forma de enxergar o cinema e o mundo, a partir de um processo de aprendizado do olhar. Como se tivesse que lixar o olho. E digo mais pra você: eu comprei o domínio da “olhos livres” [risos]. E ao mesmo tempo você fica até mais exigente, você consegue diferenciar, diferenciar o cinema ruim… Filme que é ruim é ruim e acabou, de gente sem talento, mediocridade, não faz sentido ficar lambendo a nuca de medíocres. Não tem nenhum sentido, quando é ruim é ruim. É ruim como quando você tem filmes artísticos entre aspas, que são ruins, são piores até. Até hoje eu encontro pessoas que me perguntam: “Por que você gosta do Mojica?” Entendeu? Só quem gosta do cinema pode gostar do Mojica. Não tem explicação. Uma vez perguntaram uma coisa assim, não lembro, se colegas quando eu fazia faculdade de cinema: “Por que você gosta do Fuller?” E eu sempre fui apaixonado pelo Fuller. Olha, não sei se eu te contei essa brincadeira. Há uma forma de se descobrir, é um vestibular pra cineasta: o cara vai ser um bom diretor? Então mostra um filme do Fuller. Se ele não gostar, ele não vai ser cineasta. É uma condição sine qua non. Fuller é o cinema. Já dizia Godard [risos].

RG: Ele fala isso do Nicholas Ray [risos].

CR: Sim, mas são os dois. A dupla do cinema independente. E nesse processo eu não tenho a menor dúvida que você inclusive vai aperfeiçoar o nível de exigência… Eu vejo um filme e… Outro diz estava comentando com o Julio Bressane, da última vez que ele esteve aqui, que as pessoas estavam cortando os filmes como se cortam bichos, pessoal tava botando a lente como se a lente fosse um lápis, um pincel mágico, essa coisa que sai tinta pra tudo que é lado. Não se estava usando a caneta. Cinema tem que ser usado pra entender, não obviamente por causa de grana, mas é preciso ter uma caneta Parker, desenvolver a caligrafia. E as pessoas estão fazendo borrões. Uma coisa assim, ágrafa. No fundo, no fundo, eles não sabem onde vão pôr a câmera. É uma coisa assim, caramba, você olha certos filmes e se pergunta: Que lente que o cara usou? Que estupidez! Mas essa é a questão, que é um nível de exigência que se soma a um aprendizado sistemático, que pode aperfeiçoar. Mas isso até o cineasta mais genial do mundo que é o Kubrick dizia isso. Não tem outra maneira de aprender cinema do que vendo filmes. Tem que ver 1500 filmes no mínimo. Acho que foi numa entrevista que ele falou isso. Mas tem um número lá, estratosférico. Não deve ser muito mais do que isso. “Já viu dois 1500, 2000 filmes?” “Não vi nem duzentos”.

RG: Você estava falando de todos esses filmes, e mais recentemente você está fazendo um papel de exibidor, inclusive, não só de diretor, mas também exibidor. Está fazendo uma sessão mensal no CineSesc e você também já mostrou o desejo de criar um cinema para também exibir os filmes, pra poder lançar certos filmes.

CR: Eu acho que todo cineasta tem vontade de fazer um cinema, na verdade. Ter o seu cinema e… O cineasta-cinéfilo, né? Como chama aquele italiano que tem um cinema… o de Caro Diário?

RG: Nanni Moretti.

CR: O Nanni Moretti! O Moretti tem cinema, tem vários diretores que têm salas de cinema na Europa. Uma salinha só, pra perder dinheiro. Foi o único que exibiu Abbas Kiarostami lá, na Itália, etc. e tal. Essa ideia que todo mundo promete e não cumpre, de fazer um cinema de repertório. No momento que alguém criar uma sala que conseguir estabilizar uma prática da sala de repertório, que nem sala francesa, pelo menos durante 5, 6 anos… O meu projeto de vida é fazer um cinema de repertório por excelência. Inclusive pra exibir os meus filmes. Eu quero restaurar uma cópia, por exemplo, de Amor Palavra Prostituta que nunca foi exibida integralmente no Brasil, mas você vai saber que toda terça-feira, como se faz em Paris, toda terça ao meio-dia, ou às 3 horas da tarde, você vai poder assistir Amor Palavra Prostituta. Aí não vai ter um chato pra não dizer “Porra, não tem cópia pra ver”. “Tem cópia sim, vai lá na quarta-feira às duas horas da tarde e vai ver!” Mas eu gostaria de fazer isso com filmes comprados também. Comprar umas duas cópias no máximo. Foi em Paris que eu descobri como funciona isso. Eu sempre tive loucura pra poder ver o filme do Curzio Malaparte, um escritor que fez um único filme, acusado de fascista, aquela coisa toda [Il Cristo proibito, 1951]. Você vê que é uma coisa mitológica, um Cristo interditado. Esse é um filme que eu gostaria de trazer, que você vai descobrir, de repente, que tem um filme que nem Deus e o Diabo na Terra do Sol que foi feito em 1953, porra. Um cara correndo no deserto na direção do mar. Excepcional, lindíssimo, com Raf Vallone. Uma série de filmes que as pessoas não vão trazer. Não adianta, não vão trazer. Tem que ter uma sala pra poder fazer cinema de repertório. Eu quero deixar um tempo pra pessoa não poder mais reclamar, deixar o filme passando um ano, você vai ter à sua disposição pelo menos em um dia. “Ah, eu quero rever Filme Demência”. “Vai lá sábado duas horas da tarde que vai estar passando, uma cópia que eu mandei fazer especialmente”. Isso é cinema de repertório. E ao mesmo tempo você poder importar filme japonês, por exemplo. Trazer Sugawa, que nunca passou… Comprar uma cópia, duas cópias e fazer uma coisa pra cinéfilo mesmo, um cinema onde eu possa ter um espaço como espectador, pra realmente satisfazer a minha ânsia de espectador. Eu tenho certeza que vai dar certo. Entende? Todas as sextas-feiras dedicar só a filme de horror, de ficção… [fim do LADO A]

LADO B:

As pessoas originalmente se comprometem a fazer uma sala de cinema diferente, e é muito engraçado como acaba virando uma sala que apenas fica fazendo circular às vezes filmes pelos quais não se têm muito interesse. Por que não criar um dia em que você passa só filmes…. O que a gente percebe nitidamente é que até esses cinemas de repertório perderam o sentido da sua existência. Daqui a pouco está passando Guerra nas Estrelas, porra. Não tem muito sentido. Até tem sentido, na verdade, mas não é essa a ideia. É por isso que está surgindo cada vez mais essa necessidade. E ao mesmo tempo se o cara [de outros circuitos] quer te arrancar fora, “Porra, vai pro Cine Comodoro”.

RG: Essa ideia desse cinema inclusive pra salvar do esquecimento esses lançamentos de resistência visual do cinema brasileiro, como o próprio Garotas do ABC ou O Prisioneiro da Grade de Ferro, que o Paulo [Sacramento] teve que alugar um cinema pra passar, ou filmes que vão na segunda semana direto pra duas sessões.

CR: E sobretudo também trazer filmes que não vêm pra cá. Eu quero saber por que um filme como Apaixonadas, do Tonino De Bernardi, faz um sucesso absurdo na Itália, que a plateia canta junto, os italianos tudo cantando a música napolitana junto, você viu?

RG: Vi.

CR: E ninguém traz, bicho. Ficam trazendo merda, filmes fraquíssimos, que não dizem absolutamente nada. E recuperar mesmo, também. Um certo cinema de gênero. Se tivesse saúde também, e com disposição pra poder fazer, também estou desenvolvendo um projeto com o Eugenio Puppo, e fazer uma mostra internacional de cinema extremo. Mas isso voltado pro autor. “Ah, acabou o cinema autoral?” Eu quero o cinema autoral de volta, é em cima disso que eu quero trabalhar. Trazer de volta. Porque a ideia não é “exibir filmes”. Não é exibir 5 mil filmes que ninguém vai ver um terço. É trabalhar o autor. Trabalhar o essencial de determinados autores. Trabalhar com dez, doze autores por ano, e só. Mas assim: autores que façam um determinado tipo de cinema que vai desde o cinema mais autoral, radical, até a experiência mais extrema mesmo, entende. Vai de Lustig a Stephen Dwoskin, o mais experimentalista dos cineastas do mundo todo… Faz cada miuraço [risos]. Mas assim, deslumbrante, ele faz um cinema altamente experimental. Conseguir trazer uma mostra que traga os filmes dos accionistas austríacos, do cinema de transgressão americano. Um cinema que ninguém nem conhece. Não conhecem Nick Zedd, não conhecem o cinema do Richard Kern. Cineastas que fazem uma coisa que radicaliza o discurso, vão desde uma coisa underground e que esbarra no pornográfico. Esse é o verdadeiro cinema de transgressão. E quem vai trazer isso? Se eu não for trazer, ninguém vai trazer. Então eu acho que é muito instigante, esse trabalho tem sido muito legal.

05Submit to me (Richard Kern, 1985)

Agora o que é engraçado, foi a descoberta da relação que se desenvolve na internet. Na verdade, pra mim foi a grande descoberta desses últimos dois, três anos. Eu comecei fazendo uma coluna no Terra, passei depois a fazer uma coluna no Cineclick, até realmente descobrir a força que é ter um site, ter um blog. Eu acho que o blog hoje é indiscutivelmente… Por isso que eu tenho brigado muito em instituir esse prêmio, que eu vou pagar do meu bolso, um prêmio de prata pura, não vou fazer um troféu pra segurar porta, é preciso que tenha um puta de um conceito por trás. A ideia da coisa é essa, o conceito, na verdade, que fica. Solicitei a uma grande escultora, que é a Elaine Morrone. O conceito é fazer uma figura que só você sabe o que é, um passarinho, sei lá o quê. Que não é nada, ao mesmo tempo. O cara vai acabar usando pra segurar porta, depois, de qualquer forma. A quantidade de gente que eu vi botar troféu pra segurar porta…. Mas esse é o conceito.

O que tem na internet que é fantástico de descobrir é como você se relaciona. Quatro mil pessoas de quatro em quatro, cinco em cinco dias, nem os meus filmes fazem mais isso. É óbvio que isso te obriga a suprir conteúdo. Mas ao mesmo tempo você consegue ouvir a resposta imediata ao próprio filme que está no cinema. A própria relação com o filme que está no cinema. Por exemplo, ontem eu recebi um telefonema do pessoal do Centro Cultural São Paulo, que quer fazer uma mini-retrospectiva semana que vem, pô. Como eles têm direito, inclusive, porque eles são meio co-produtores de Alma Corsária, Dois Córregos e do próprio filme novo, Bens Confiscados. Iam acabar fazendo retrospectiva com três, dois filmes, sendo que eu tenho uns quinze. Dá pra fazer com quatro ou cinco. Mas tudo bem, vai poder passar Filme Demência, que estão cobrando que seja exibido. Tem um cara que fica toda hora reclamando no blog, “Quero ver Filme Demência”. Mas é até interessante, através dele eu sei que tem pessoas que querem ver. E eu posso também divulgar, é lá que eu vou divulgar: “Quem tá enchendo o saco pra ver Filme Demência, vai ver no Cine Centro Cultural São Paulo, tal dia”. Você tem a comunicação imediata, essa comunicação direta e espontânea. O cara acabou de ver teu filme e escreve pra lá. É prazeroso. É uma coisa que dá trabalho. Você conhece a experiência, pode falar melhor que ninguém. Mas ao mesmo tempo é importantíssimo pra dar subsídio pro que eu vou fazer daqui pra frente. Foi através do blog que nasceu o projeto do documentário. Sério. Nasceu através de uma conversa via blog. Através dele nasceu essa coisa do prêmio, a Sessão Comodoro também. No fundo, no fundo, está sendo um investimento muito interessante. E uma experiência formidável. E eu acho que essa coisa que o blog tem que é fantástica, e é isso que eu estou insistindo com o pessoal pra premiar, é entender o blog como os nossos antigos cadernos de cinema. Eu nunca me esqueço, quando eu fiquei amigo do Jairo Ferreira, a gente ficava trocando caderno. Ficava vendo o que ele escrevia com 16 anos de idade, “Olha aqui, você viu o filme do Edouard Molinaro?” Esses filmes que ninguém fala mais hoje. Os pais da nouvelle vague, né. Jacques Bourdon, já ouviu falar?

RG: Não.

CR: Aí tinha aquela coisa: “Eu vi Sombras na Areia”. Sabe aquela coisa assim, “Dou cinco estrelas” [risos]. Hoje o blog supriu isso. Uma coisa que eu acho fantástica. Você vê o blog do Ailton Monteiro, por exemplo. Atingiu não sei quantos mil leitores, uma coisa de trezentos, quatrocentos mil. E há quatro anos que ele faz. Foi um dos primeiros caras a fazer. Tirou o cara lá da reclusão absoluta, lá em Fortaleza, não tinha nada pra fazer, pra ver ou se comunicar. O que é fantástico é como o cara apurou o gosto. Não há a menor dúvida de que o crítico, o cara apura o gosto escrevendo, entendeu. E eu acho que o blog hoje tem essa função. O que eu pedi pros meus jurados foi levar em consideração de que blog não é uma coisa profissional, e que o blog tem esse sentido de aperfeiçoamento mesmo. E é muito interessante, o blog que já ganhou o prêmio de público – só não está veiculando porque eu pedi pra não veicular, mas todo mundo já sabe – é feito por um grupo de estudantes de jornalismo da Casper Líbero. São seis, sete, oito caras que se juntaram para escrever sobre vários assuntos, inclusive cinema, é um grupo de estudantes de jornalismo e os caras exercitam a atividade crítica. É do cacete, na verdade. Se você for observar, no começo, até a visão do Igor, que é o crítico oficial, você nota nitidamente de um ano pra cá o apuramento do gosto, a percepção de que o cara está escrevendo cada vez melhor, com gosto cada vez mais afinado, mais exigente. E acho que essa é a grande função do blog hoje. O júri do Quepe do Comodoro tem dois professores universitários, o André Setaro que é professor da Universidade da Bahia, e blogueiro também; além dele o João Luiz Vieira; a Lúcia Valentim Rodrigues, que é redatora da Folha de São Paulo, que tem acompanhado todo o processo desde o começo, desde que a gente começou as sessões lá no CineSesc], e que está fazendo um puta movimento aqui em São Paulo, uma das grandes organizadoras do São Paulo Centro; um menino que foi webdesigner que é o Estevão [S. Augusto]; e o Paulo Sacramento. São pessoas que não têm blog, que não tem site, que não têm nenhum vínculo com algum veículo. Infelizmente tivemos que pedir que o Daniel Caetano [risos] saísse para não prejudicar a própria Contracampo. Ele me ajudou muito para poder fazer as indicações, mas ele mesmo me mandou uma carta preocupado com isso. E eu insisto com os membros do júri de que blog não pode ser considerado como um site profissional, ele não pode perder essa característica de ser um caderno de anotações, é como você faz. Você faz a sua anotação pra não esquecer o filme que você viu. Quando eu era moleque, eu tinha trinta cadernos, e naquela época eu já fazia assim: “diretor… produtor…”. Como dizia o Jairo Ferreira na época, quando a gente tinha 14 anos a figura mais importante do filme era o produtor. “Sam Spiegel!” Não tinha aqueles caras? [risos]. É impressionante como o cara afina e apura o gosto, realmente com a coisa da prática cotidiana. Isso é muito legal. Isso é a coisa mais genial que tem nessa coisa do blog mesmo. Eu nunca me esqueço uma vez. O Ailton tem uma coisa genial, uma vez ele me mandou uma coisa, publicou um texto enorme, e me mandou. É o contato que ele tem com o mundo, não tem a menor dúvida. O cara que mora em alguma cidade desse tipo, meio fim do mundo, que mora em Dois Córregos [risos], essa é a forma dele se comunicar com o mundo.

RG: O meu blog de música [pracoisanenhuma.blogspot.com] funciona nesse esquema, porque eu ouço música que vai desde a coisa mais extrema de free jazz até a música experimental conceitual minimalista japonesa e não tenho um amigo que fala de tudo isso, então jogo lá. Aí você cria uma persona de internet com a qual você dialoga.

CR: É fantástico. No fundo, no fundo, em algum momento você vai encontrar um cara que tenha a sua identidade. Por incrível que pareça, por mais esdrúxulo que seja, o assunto pode ser a coisa mais estapafúrdia possível, de repente tem um cara que também gosta daquela coisa estapafúrdia e pronto. Aliás, grandes amizades criadas nesses últimos anos foram graças a isso. Uma delas o fato de ter feito uma conferência sobre o Brian Wilson. Chamava-se “A genialidade como carma”. Sala lotada, foi na Funarte, e não tinha um cara de cinema. Tinha gente do México, engenheiro, arquiteto. E eu acho que existe essa possibilidade de você sintonizar com alguém em outra chave.

Só complementando a coisa que eu acho fantástica do Ailton Monteiro. Ele escreveu um texto gigantesco sobre Tarkovski, e ele mandou um aviso: “Ufa! Faz quatro anos que eu tento escrever sobre esse cara, e finalmente eu consegui” [risos]. É genial! Eu realmente mandei uma carta dando os parabéns a ele. Tomadas as devidas distâncias, esse foi o meu problema com o Jesús Franco. Eu não conseguia gostar de porra nenhuma. Até descobrir que tinha esses dois filmes que valem a obra inteira do cara. Isso que o Julinho [Bressane] chama de cinema inocente, né. O cara é genial quando você menos espera. Por isso é preciso tomar um cuidado danado com um cara que você tá vendo… você percebe que tem alguma coisa a mais. Mas não acontece, não acontece. Mas quando você vê o vigésimo filme: “Não tá acontecendo nada…” E aí você pensa, “Esse cara é chato pra cacete”. Eu fico imaginando o que deve acontecer com alguém que não embarca num Tarkovski da vida, no Straub, nada mais radical. Você quer uma coisa pra fazer um teste de resistência, é o Empédocles, A Morte de Empédocles [Straub/Huillet, 1987], eu fiz esse teste de resistência com os alunos lá. Aí depois, quando eu fui conversar com amigos em comum, falei assim: “Mas você não viu o Crítias?” “Crítias, que Crítias?”. “O Crítias, esse cara [William Berger] é o maior comediante, é como se fosse o Ronald Golias”. É a mesma coisa que fazer aqui no Brasil e chamar o Ronald Golias pra ser o Crítias. Aí você vê os alemães se esborrachando de dar risada. Você imagina aquele texto histórico, falado pelo Ronald Golias, que seja, né. [risos] Deve ser de rachar o bico. É impressionante, naquela projeção, só os alemães riam. [risos]. Às vezes a gente vai entendendo a coisa aos poucos, né. É claro que exige uma, uma… Eu fiquei realmente sensibilizado, realmente para ele [Ailton] foi uma batalha ganha conseguir entender e gostar de Tarkovski. Falou assim: “Eu ganhei dez anos da minha vida”. Isso é uma coisa que você só vê em blog, não tem mais os cadernos, os famosos cadernos. Acho que você manter esse tipo de coisa… Tem três aqui [risos]. Mas ele, por exemplo, ele exercita isso no blog. Você carrega caderno?

FG: Eu carrego caderno. O problema é que eu estou sem computador. Então eu voltei a ter caderno, mas o caderno é um acessório pro blog. E o blog também funciona como…

CR: …como caderno de cinema, esse é o sentido da coisa. Essas coisas todas eu acho que têm uma relação interessante aí. Com toda sinceridade, eu acho muito mais interessante do que ficar fazendo filme miliberbê, etc e tal. Mais um, entende. Tem outra coisa que eu estava outro dia comentando com o Inácio [Araújo]: agora a coisa do cinema virou assunto. Virou cinema de assunto, não sei se está entendendo o que eu estou falando. “Você viu aquele filme?” “Vi”. “O que que é legal?” “O assunto”. “Vamos falar de filme.” “Qual deles?” “Qualquer um deles.” Agora o cinema é o assunto.

FG: Qualquer filme sobre tal assunto seria bom. Parte desse princípio aí.

CR: Pois é, é evidente. Qualquer cara que fosse passar 3, 4, 5 anos com uma câmera dentro de um… – não vamos citar os nomes – não teria como não fazer um filme interessante. O resto é punheta técnica, de ficar discutindo o suporte, não sei se você tem acompanhado essa discussão absolutamente bizantina. [risos] Bicho, desde que eu comecei em cinema essa discussão existe. Quando surgiu o Super-8, era a panaceia pra qualquer coisa. Quando surgiu o vídeo, era a panaceia para qualquer coisa. Agora continuam com a mesma conversa fiada. Essa é a grande questão. Essa discussão é muito mais complexa, tenho discutido muito dessa questão com pessoas que realmente entendem, como o Zé Luiz Sasso, o próprio Paulo Sacramento tem acompanhado isso muito bem, que é essa questão do suporte, da mídia, porque nós estamos comentando com pessoas que realmente lidam com a questão da mídia. Tudo na verdade é uma coisa que, sabe, a Kodak tem que deixar, os americanos têm que abrir as pernas pra Sony, pros japoneses, etc e tal, se não não vai acontecer nada, vai continuar a mesma coisa. Definitivamente não somos nós que vamos resolver esse problema. O que eu acho muito grave é achar que a panacéia tá numa quarta figura. Isso que me incomoda. Porque hoje a situação da exibição digital, da exibição eletrônica, faz aparecer a quarta pessoa. Se não bastasse o produtor ter que negociar com o distribuidor e com o exibidor, agora vai ter também o emissor de sinal. É mais um cara pra te dizer se o seu filme é uma bosta ou não é. Eu não quero mais isso. E se tem um problema da discussão, ainda é a questão, que é a grande discussão hoje no mundo inteiro, das majors, é a questão da pirataria. Porque a mídia já foi inventada. Todos nós que já sabemos tecnicamente, quem conhece minimamente a técnica, já sabe que a mídia já foi inventada, que é o optical disk, etc e tal, que grava um volume monumental de informação, mais que o negativo até. Já existe a mídia, o negócio já existe. Só que a patente é japonesa e o americano não deixa entrar. Aí começa a desenvolver e já faz, enfim, uma briga pra cada um deter os direitos sobre essa mídia. Essa discussão, ela é bizantina porque já começa velha. Sinto muito, ela não está nas mãos de quem faz filme.

RG: É o peixe grande que tá decidindo.

CR: Pois é, infelizmente. Então enquanto isso…

RG: A não ser que façam uma patente linux disso tudo, uma tecnologia livre como linux.

CR: E você acha que vão deixar? Eu fico aqui nesse desespero dessa discussão, é um desespero que vem acompanhando o cinema desde a década de cinquenta. Enquanto isso, o sistema de exibição brasileiro já saiu da mão de famílias e foi pras majors. Noventa por cento dos circuitos brasileiros hoje ficam pra americano. Acho que só o Severiano Ribeiro que continua mantendo família, não é isso? Mesmo assim, deve ter até parceria já com… [major]. Mas essas coisas, mal ou bem, têm que ser ditas. Tem que ser levantadas. Porque fica uma coisa da panaceia, da questão do digital, da MiniDV, a 24p… Nada tá resolvido no fundo. Ninguém vai parar o cinema pra poder dizer “Vamos primeiro descobrir qual vai ser… [o formato digital a ser utilizado]”. E enquanto isso os caras tomam conta do mercado brasileiro. Do jeito que querem, da forma como querem. O que eu acho é que tem fazer filme… Do jeito que der, fazer o máximo possível. No momento que você tiver a produção de mais de cem filmes, aí dá pra ir pro pau, pra briga.

RG: Depende do filme, também.

CR: Mas mesmo assim é uma coisa que eles vão decidir lá, qual vai ser o seu suporte amanhã. Porque antes não dava pra fazer produção por causa disso, né… [fim do LADO B]

*Nota do editor

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Levem os profetas ao limite – sobre o carpinteiro Steiner e o camponês Hias

Por Gabriel Papaléo

Coração de Cristal 1

“Construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava noutra coisa e assim o rei ordenou que o atirasse no mais fundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo.”

Jorge Luís Borges, O Zahir, em O Aleph.

 

O que é mais perigoso na altitude, o risco físico de vida ou os efeitos psicológicos que ela gera na percepção da realidade? Para os esportistas dos Alpes e os habitantes da Bavária ambos são costumes da rotina, quase motores e, para cineastas interessados pelo misterioso efeito alucinógeno da natureza como Werner Herzog, investigar o dever da excepcionalidade desses personagens cria contos dedicados às cerimônias que acontecem nos lugares. Em O Êxtase do Carpinteiro Steiner (1974) e Coração de Cristal (1976), o alemão filma dois protagonistas bem distintos – um esportista carpinteiro e um camponês – para ver a forma que ambos lidam com suas responsabilidades com o ambiente e principalmente saber o que fazer com o poder de ambos em profecia.

No filme de 1974, os Alpes são uma dimensão bruta de reflexo direto do clima, do tempo, na paciência típica dos esportes de inverno que só podem existir em uma época específica do ano. Os desafios físicos parecem maiores do que o humano é capaz e, ao dobrar essas certezas, o carpinteiro Steiner alcança alturas inimagináveis. No filme de 1976, a paisagem da Bavária contém ali gravada os contos épicos de relato oral, dos quais a encenação de Herzog se aproxima tanto de uma teatralidade física quanto dessa dimensão barroca, de grandes temas, das paisagens grandiosas que refletem as incertezas da vida daqueles homens e mulheres. É assim que o camponês Hias é apresentado: em meio a montanhas misteriosas, procurado pelas crianças que o percebem como uma criatura em conjuntura com os astros, como alguém que guarda criptografada a história do mundo.

Steiner 1

Então como exatamente a memória, esse estado de conforto emocional que pouco tem a ver com fatos, se reflete no cinema de Herzog, conhecido justamente pela crueza do presente, pelas elipses contadas quase sempre pela consciência alheia, pela atenção à ação do momento como provação dos seus personagens diante dos deuses, do cosmos, da terra? Há uma fina camada de realidade que distancia passado e presente nos contos bávaros do diretor, uma vez que o que já aconteceu permanece pairando de alguma forma o imaginário dos habitantes daquele lugar. Cabe ao demiurgo da vez, Hias, a não apenas canalizar as energias desse passado vivo que todos sentem e discutem sobre, como também o dever de assimilar que ele é o homem que atravessa essa ponte do tempo.

A terra ali retratada é vista especialmente sob o filtro das verdades absolutas que incidem sobre os habitantes em um literal transe. A única precisão que se percebe ali é a dos trabalhadores do vidro, concentrados e brutos nos gestos de criação de algo tão delicado. O senhor feudal do local é consumido por delírios de grandeza, em busca do tal vidro vermelho, e cabe aos pobres vassalos a subserviência dos acontecimentos – até que do transe são despertados, pelas palavras incendiárias de Hias, que permanecerá num pêndulo entre profeta e charlatão pelo crivo da opinião pública até os eventos levarem ao inevitável confronto com a autoridade que curva a sociedade que comanda sob seu desejo distorcido. O fogo das fornalhas aparece como uma miragem, desconhecida diante daqueles elementos mundanos, com a sedução da curiosidade apenas rivalizada pelo registro de Hias quase sempre à parte, acima do vilarejo, elucubrando diante das cataratas furiosas.

Coração de Cristal 4

A difusão quase abstrata entre as paisagens fantasiosas e os relatos comportamentais etnográficos que Herzog filma em Coração de Cristal parece investigar onde estão os vestígios emocionais da História daquele lugar, como ela se manifesta para além da catalogação, da preservação; como ela existe de forma intuitiva no movimento daquela população, como uma hipnose, como a qual o diretor submeteu seus atores durante a filmagem.

Por essa contradição entre um impulso altamente ético de organização social e o fascínio por personagens cuja desconexão com a realidade frequentemente é traduzida por delírios de grandeza que assumem uma tirania diante do bem comum que Herzog permanece dos grandes – senão o maior – alto turista europeu, usando a classificação de Thom Andersen e Los Angeles por Ela Mesma, a visitar a América do Sul com sua câmera. Os românticos Hias e Steiner (e mesmo Kaspar Hauser, com seu destino à experiência humana determinado pela fronteira social que nunca conseguiu ultrapassar) de alguma forma reconhecem a responsabilidade dos seus atos de grandeza, talvez porque estão ambos diante das suas terras de origem. Já o expedicionário Aguirre, o empreendedor Fitzcarraldo, o mercenário Cobra Verde, o vampiro Nosferatu, entre outros, se reconhecem no direito de fazer valer da influência, da suposta lei do mais forte, de entender que seus sonhos são tão espetaculares que a realidade deve se curvar diante deles. A negociação nunca é diplomática; é sempre de enfrentamento tortuoso, explosivo contra a terra alheia que deve ser colonizada pela mente brilhante dos falsos profetas.

Não por acaso são todos personagens vividos pelo ator Klaus Kinski, que viveu nesses filmes – e também em O Grande Silêncio, o grandioso banho de sangue de Sergio Corbucci – homens consumidos por uma crueldade voraz por simplesmente se aterem a seus objetivos pragmáticos de conquistas. A esses colonizadores fica apenas o delírio, a febre do lugar que não compreendem, os sonhos megalomaníacos movidos apenas por ego – conquistas do inútil, para ficar em autodefinições do próprio cineasta alemão. Sua visão fica consideravelmente diferente diante de seus conterrâneos que escolhem desafios que não sejam autoritários, que reconhecem a sociedade de alguma forma sob a extensão ética de seus atos – mesmo que esse ideal os leve ao exílio.

E em Coração de Cristal o profeta e o destruidor terminam na mesma cela, talvez porque mesmo diametralmente opostos na bússola moral, para Herzog existe neles uma aproximação através da excepcionalidade, no descumprimento das regras sociais e no isolamento que isso gera. Se o vilão enlouquece no seu luxuoso exílio particular com sua mente febril pelo zahir, Hias é afastado das pessoas por suas palavras intoxicantes, de confronto, de vanguarda. É da natureza, da floresta, que ele sente falta. Nunca conseguiu se afinar àquelas pessoas, o isolamento dos seus poderes de profecia o deixando sempre à margem, a viver com observadores e contemplações, destinado à solidão do presente porque é para o futuro que mira seus dizeres.

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A solidão também é uma constante no outro protagonista profeta de Herzog aqui retratado, o personagem-título de O Êxtase do Carpinteiro Steiner. O esquiador (e carpinteiro) percebe que o circo está em torno dos seus feitos, e o risco de vida ao qual ele é colocado parece importar apenas ao próprio Steiner (e à câmera de Herzog). São por essas dimensões psicológicas difusas e de rápidas decisões que Steiner atravessa ao longo desses dias de treino e competição, ponderando sobre a distância dos limites do seu corpo e seu poder de voar. A quem interessa as distâncias e os recordes? Quando perguntado por Herzog, o carpinteiro parece se importar menos com o recorde mundial que com o próprio recorde pessoal, talvez porque a importância de manter a mente sob controle e com medo suficiente para continuar saltando seja no limite a base para Steiner.

E como manter o controle se a ideia é justamente ir até o limite, no risco de vida, nas ideias, na transcendência? Steiner sobe e desce as colinas de neve o tempo todo numa jornada incessante por provação que soa pessoal a todo momento, quase como se para ele não houvesse oponentes, apenas a superação de si. E é nessa superação que existe o contato com o místico, no caso a natureza e a pulsão de vida que o perigo em dialogar com ela traz, nos voos viscerais que tentam trazer uma profecia de novas formas de imersão no ambiente – como se sintetizasse as mesmas visões de Hias, de uma forma tão abstrata quanto, mas infinitamente mais concisa, individual e esotérica. Se o camponês conjurava verdades ancestrais para tentar trazer paridade à realidade bávara de seu tempo, o carpinteiro faz sua busca utópica pela harmonia como uma ideia individual que com sorte contaminará aqueles que o observam a também experimentarem.

Coração de Cristal 3

Diz muito sobre essa distância abissal entre a necessidade do dever na profecia e o equilíbrio pessoal que o filme termine com um verso do protagonista dizendo o quanto sua liberdade seria alcançada quando estivesse sozinho, enquanto vemos ao fundo um dos magníficos planos de salto em câmera lenta. Por aqueles instantes no ar Steiner está consigo mesmo, preparado para satisfazer uma população vibrante que o assiste e quebrar recordes, mas sobretudo com a concentração e paz de quem está sozinho, voando aos céus, com boas esperanças de pouso.

O epílogo cerimonioso de Coração de Cristal ajuda a entender melhor o que significa essa curiosidade gerada pelas palavras e ações dos profetas, o comichão deixado na cabeça dos habitantes a procurar, em futuros, o ato de questionar – e quem sabe assim poder entrar em acordo com a natureza novamente, ser acompanhado pelos pássaros, se esbaldar nas possibilidades utópicas do mar e o que ele pode oferecer. Essa invenção também atravessa o carpinteiro Steiner, filmado por Herzog como um alquimista dos ventos, num voo suspenso que encerra o filme em uma das câmeras-lentas que buscam a eternidade do movimento, que concentram cada detalhe dos músculos do esquiador em queda livre à procura do solo.

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A aterrissagem não parece interessar tanto a Herzog na construção da mitologia de seu profeta até a última cena, talvez porque a terra seja dos habitantes que enxergam o presente, e aos alquimistas só resta o futuro, a possibilidade. Talvez essa seja a grande tragédia dos personagens românticos bávaros do diretor: não existe memória para quem está delirante, em contato com uma dimensão fantasma não-acessada no hoje, em busca da eternidade e da lembrança de quem estará no futuro, além do seu alcance como mágicos e além do nosso alcance como espectadores. Steiner quer apenas saltar, ficar na sua, como se o esporte fosse antes uma meditação, portanto solitária.

A chave dessa conexão que se apresenta quase mística para Herzog sempre vem na fricção com a natureza, e se há algo que as árvores e os rios e o vento e a terra guardam é a ancestralidade não-gravada, não-comunicada de forma humana, que apenas profetas em estado maníaco acessam – seja por acaso, seja por maldição, seja por muito, muito treinamento.

Coração de Cristal 6

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O trauma transmitido, o trauma omitido: Túmulo dos Vagalumes, Maria Antonieta e Jojo Rabbit

Por João Lucas Pedrosa

“O tempo descontextualiza o trauma.
O trauma descontextualizado numa pessoa parece personalidade.
O trauma descontextualizado em uma família parece traços de família.
O trauma descontextualizado num povo parece cultura.”

  • Reesma Menakem[1]

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Uma das maiores preocupações de Isao Takahata durante a feitura de Túmulo dos Vagalumes (lançado em 1988) foi que, na equipe, apenas ele e o compositor Michio Mamiya tinham vivido a Segunda Guerra Mundial, pano de fundo da animação. O resto tinha nascido após 1945 e não tinham o trauma correndo pelas veias. E Túmulo… é, definitivamente, um filme sobre trauma. Sobre lembrar de um tempo sem redenção. Voltar a quando a perda foi evitável e ocorreu mesmo assim – olhar o erro no olho:

  • O primeiro plano abre num fade in para Seita, o protagonista adolescente, trajando vestes militares e olhando diretamente para nós em fundo escuro. Sua voz, em narração, nos diz o dia em que morreu (será uma das poucas intervenções narradas por todo o filme) e ele vira-se para o lado – a virada, seguida da quebra de quarta parede, sugere estar a coisa olhada também ao nosso lado. A história a seguir pertence também ao mundo de quem olha a tela, afinal; daí a escuridão da introdução espelhar a da sala de cinema. Um over the shoulder revela que ele olha para o próprio corpo moribundo, que incide um foco de luz sobre a escuridão. Um lento zoom out na direção do menino fraco e ele se torna um portal para a estação de trem atarefada no dia “21 de setembro, 1945”, quando morre de fome. Já no começo, o movimento principal é traçado: a partida do lugar-então-presente (para o fantasma, o vácuo da memória; para o espectador, a sala de projeção) em direção ao lugar-passado (lugar geográfico da morte do protagonista); o narrador é o morto e o veículo da locomoção é a imagem do seu definhamento. Quando, após a abertura, o filme recua até quando ele e a irmã se despedem da mãe pela última vez antes de esta morrer num bombardeio, já sabemos qual será o fim deles. Estamos prestes a ver o processo dos irmãos em direção à morte. Estamos prestes a ver um filme que é uma autópsia.
  • O over the shoulder em que se cruzam o fantasma de Seita e seu eu moribundo são tão enfáticos como irônicos. A forma fantasmática do protagonista não é limpa, mas está ainda nutrida – sua forma eterna é como um arquétipo seu, baseado na imagem do imediato pré-orfandade, pré-início do fim, no ponto onde passamos a acompanhá-lo após a abertura. O over the shoulder, assim, nos mostra a imagem que é ambos do eterno e do início olhando para a imagem do fim. Olha para o arrependimento, ao mesmo tempo que para o destino. O filme acabou de começar; a tragédia no filme é fato acontecido (passado) e a ser consumado em imagem (futuro). Assisti-lo é como assistir a uma sentença de morte.
  • O movimento autopsial do filme é circular e vertical, porque para Takahata circular é a memória (indo do presente para o passado e vice-versa) e verticais são o tempo e o espaço. O filme gira enquanto se afunda, como uma broca. Por isso, termina com o espírito de Seita, sentado num banco à distância, olhando os edifícios da metrópole japonesa oitentista, enquanto o espírito da irmã dorme sobre a coxa; por isso, após a morte de Setsuko, vemos uma família voltando à sua casa em frente ao lago e matando saudades da vista, enquanto, na margem oposta, o depósito abandonado guarda os momentos de brincadeira solitária da menina em vida; ela é ambos memória e fantasma – e não é toda memória um fantasma?
  • O giro de broca de Takahata fica-se à terra, pois escava pelas histórias que ela guarda. A ele importava o mapeamento dos lugares: o ponto de polícia que prende Seita quando rouba cana precisava ter as janelas vedadas com fita, para que os vidros não quebrassem em bombardeio; o depósito-caverna abandonado onde os irmãos residem existia de fato, assim como muitos outros lugares, reproduzidos com o máximo de fidelidade possível à Kobe da época. Projetar sobre a terra a imagem do seu passado concreto, num palimpsesto inverso. É a mesma terra e a desgraça pretérita é raiz encravada no chão presente.
  • O giro de broca de Takahata é transcendental, pois precisa da impressão do tempo corrente para sentir no espírito a ação concreta de uma morte tão distante. Constrói sua transparência para atacar as opacidades, e desse ataque faz sua metafísica.
  • Uma vez que crença está nos gestos inseridos no espaço e no tempo, a acuidade do movimento é indiferente. Neste filme, as personagens necessariamente não são de carne, ainda que suas imagens sofram as mazelas dela (os cabelos tomados pelo piolho, a pele tomada pela urticária, o corpo tomado pela desnutrição). A carnalidade da rotoscopia de, por exemplo, Ralph Bakshi, muito provavelmente trairia Túmulo. A morte aqui não toma corpos, mas carcome os personagens em sua bidimensionalidade, como um parasita devorador de abstrações. “Temos uma criança morrendo de fome, mas pelo jeito que aqui vemos, temos a ideia de uma garota morrendo de fome”, disse Ebert sobre o filme[2]. Como Eisenstein, Takahata quer atingir as dimensões virtuais do espectador, mas ao invés de conduzir uma leitura política pelo fervor da vibração intelectual, contagia em realismo psicológico a impressão da morte pela imagem da criança sucumbindo na guerra. Daí o jogo da transparência atacando a opacidade: os mecanismos que mostram o desfazer das roupas e o realce do esqueleto sob a desnutrida pele de Setsuko são os que assassinam à nossa frente um conceito de infância e de pureza – e por isso o neorrealismo de Túmulo é mais próximo de Vittorio De Sica que de Roberto Rossellini.
  • É difícil as crianças não virem à mente quando pensamos em De Sica no pós-guerra. Os protagonistas de Vítimas da Tormenta, Bruno em Ladrões de Bicicletas, a bondade infantil do jovem Totó em Milagre em Milão. Existe um afeto puro – talvez o amor inato e intransitivo típico das crianças, que em poucos se mantém -, que ou se quebra pela crise (o amor entre os amigos que termina com o assassinato de um pelo outro, a devoção desmedida pelo pai que o testemunha virando um ladrão no desespero) ou se torna fantasia (a ascensão aos céus). É segurando-se com toda força à fantasia que Seita sela o destino de Setsuko e o seu. É suicídio, mas diferente do das crianças de Rosselini. Alemanha, Ano Zero e Europa 51 trazem crianças se atirando de alturas, encerrando a vida num brusco encontro com o concreto. Aqui, o movimento é contrário, os menores buscam uma evasão que não conseguem – estão presos ao chão, à vida e às suas regras. Seita rejeita cada desgraça que o acomete (sequer conta da morte da mãe para Setsuko), e se retira com a irmã da casa da tia (um lugar seguro onde é preciso engolir o orgulho) por se recusar a seguir o coletivo e tentar criar um retiro para os sonhos e brincadeiras infantis da irmã; as necessidades concretas não permitem que isso dure, e a cena em que Setsuko chupa uma bola de gude fingindo ser uma bala e faz bolos de terra que finge serem de arroz é a forma mais atroz da necessidade se impôr sobre a inocência infantil. A brincadeira não consegue burlar a fome, é uma briga injusta. Seita é suicida, mas Setsuko morre só por ser criança; é isso o que mais dói em sua morte.
  • A cena dos vagalumes é categórica: Seita, numa sorte de caverna/depósito abandonado à beira do lago onde agora mora com Setsuko, solta vagalumes para brincar com ela à noite. Os pirilampos tomam a forma de uma parada da Marinha militar japonesa, da qual seu pai fazia parte: as luzes do mito ultranacionalista militarista nipônico. Mas os insetinhos já estão mortos pela manhã. A beleza deles era nada mais que efemeridade, depois da qual precisamos lidar com os corpos mortos que custou o intervalo de beleza (o monte de vagalumes mortos gatilha em Seita a lembrança do monte de corpos onde sua mãe foi jogada antes da cremação; a caixa que Seita levava no trem tinha Deus sabe quantos mortos). Daí os trajes militares que caracterizam Seita, e se desfazem no decorrer do filme.[3] O gesto assassino-suicida do protagonista é o mesmo do militarismo do país.

O projeto de Túmulo dos Vagalumes é transportar o trauma pelo tempo.

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O correr dos anos é uma das coisas da qual não se escapa e, se já é raro que um filme sobre qualquer das guerras mundiais tenha um sobrevivente do evento na equipe ou que seja por ela consultado hoje em dia, logo será impossível. Como passa a ser lido um trauma global quando as pessoas que por ele passaram, como as células de um corpo, foram substituídas após os anos pelas mais novas?

Quero passar por dois exemplos estadunidenses que escolhem cruzar o retorno ao passado estrangeiro com o imaginário da cultura pop, especificamente o da comédia romântica: o primeiro é independente, o segundo não; o primeiro não trata de uma guerra mundial, o segundo sim; o primeiro dispõe do jogo de gênero para comentar sobre o núcleo social e o período abordados, o segundo não. Como Túmulo dos Vagalumes, os dois são narrativas de amadurecimento (ou exatamente de resistência a ele). As imagens assumidas e as imagens rejeitadas em cada filme revelam as intenções de seu respectivo cruzamento.

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Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola, inicia ao som do pós-punk Natural’s Not In It, do Gang of Fours. Um canto irônico em volta da futilidade do sistema do prazer contemporâneo e da preguiça do ascetismo. Repackaged sex keeps your interest. Abre uma imagem de Maria Antonieta deitada num divã, e uma empregada vestindo seus pés num enquadramento bastante próximo de uma pintura neoclassicista. A rainha pega com a ponta do dedo um pouco da cobertura do bolo ao seu lado e dá um sorriso arteiro para a objetiva, arqueando as sobrancelhas à la Ferris Bueller. Dessa forma operará o longa, filmando a vida de Antonieta na realeza como a de uma protagonista de comédia romântica adolescente dos anos 1990-2000 subitamente importada à corte da França rococó (lembremos, tanto ela quanto o noivo eram adolescentes à época do casamento). Assim que ela pisa na França e a corte inteira vem recebê-la, ela agradece ao Duque de Choiseul, que arranjou seu matrimônio com Luís XVI:

  • Eu nunca esquecerei que você foi responsável pela minha felicidade.
  • E a da França, ele responde.

O diálogo entrega o que será a questão do filme: à adolescente noiva do neto do rei, a entrada na realeza significa o estado eterno de felicidade. Na prática, o vício do consumo. Extensivas festas, ostensivos trajes, jogatinas, construção de suntuosos jardins e demais retiros para evasão. A linguagem briga com a trama, pois a percepção idealizada do mundo – que chapa figuras políticas em arquétipos típicos de comédias teen (Luís XVI como o nerdzinho tímido; Hans Axel de Fersen como o garanhão sedutor; Madame de Polignac como a amiga saidinha) e bailes em videoclipes pop/indie, como no aniversário de dezoito anos de Maria Antonieta (a suposta maioridade) – rejeita seu próprio fundo político. A rainha é como a ouvinte do conto de fadas que acabou por se tornar de fato rainha, e levou o “felizes para sempre” ao pé da letra sem se dar conta da responsabilidade concreta envolvida. Sua maior preocupação, naturalmente, é a consumação do casamento e a concepção de filhos com Luís XVI. O sucesso do objetivo, entretanto, serve muito menos ao filme pela manutenção da linhagem real que com a satisfação do arco romântico – daí seu romance extraconjugal com Fersen que, apesar de não chacoalhar o casamento, ironicamente consuma um tão familiar triângulo amoroso.

Eis que a operação de Coppola é, ao mesmo tempo, crítica aos dois componentes envolvidos (a corte francesa e a percepção viciada da cultura de massa) pelo que os une: a alienação pelo consumismo. Maria Antonieta não difere muito de Seita em intenções, mas ao invés da crise, ela vive o sonho da ostentação que causa uma em seu respectivo fundo histórico – e temos a diferença entre o olhar vazio que o fantasma nos dirige em sua abertura e o sedutor e provocativo da rainha. Porém, o mundo responde. O indie rock que preenchia a faixa sonora pela predominância do filme é abandonado após uma curta sequência de troca de quadros, que condensa todos os anos de sua vida entre a recém-maioridade e a morte de seu filho, às vésperas da Revolução Francesa. A partir dali, o cenário passa a ser de perda, e o som passa a ser ambiente. E o ambiente grita. Os berros de seu bebê nervoso misturam-se com os do povo faminto e revoltado em seu jardim. Um momento decisivo da história de um país cuja rainha acabou de descobrir que existe. Ironicamente, a perda a aproxima da percepção do povo.

A classe popular não aparece pela primeira vez nessa altura do filme, mas está presente desde o primeiro plano, em que rainha e serva compartilham a mesma distância da câmera. Nessa tomada introdutória, o espectador escolhe se olha para Kirsten Dunst ou para a empregada, focada no trabalho. A contiguidade de plano enquadramento é proposital, assim como a tendência ao espectador/câmera cativos pelo olhar da estrela/elite; apenas depois nos atentamos aos arredores. A escolha da diretora segue a da Vênus de Urbino de Ticiano ou da Olympia de Manet, que justapõe os servos e a musa feminina em choque e ironia. O resto do filme, naturalmente, escolhe a protagonista, e daí em diante os trabalhadores são apenas figurantes. Quando cruzam ou até olham para a objetiva em tomadas de ponto-de-vista, o plano logo é cortado ou a câmera se vira para outra direção; o recorte perceptivo não perdoa. Numa noite, ela, enfim, olha para o proletariado na forma de uma furiosa massa miserável com tochas e paus sob sua sacada, bradando vozerio francês num filme anglofônico. Calma, Antonieta se curva em continência à massa, e eles entram magicamente em silêncio enquanto ela está abaixada. Mas assim que se levanta, o povo volta a gritar em fúria. A perspectiva de final feliz morreu instantaneamente.

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Na última cena, finalmente, a fuga do palácio. Da carruagem, Maria olha melancolicamente para seu jardim, e seu marido lhe diz:

  • Está admirando a sua avenida de limeiras?
  • Estou dizendo adeus.

O filme foi arduamente criticado (não à toa bem mais nos Estados Unidos que na França) pela imprecisão com o estilo da época, e por apresentar em seu lugar um destoante e vibrante anacronismo. Mas Maria Antonieta é muito menos um filme histórico do que uma despedida da adolescência. Corte para o quarto da rainha, totalmente destruído. O silêncio reina. Fim.

Jojo Rabbit, de Taika Waititi, penso que seria o filme que a Maria Antonieta de Coppola dirigiria sobre a Alemanha nazista.

O vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado segue Johannes Betzler, uma criança de dez anos apaixonada por Hitler (que encarna seu amigo imaginário) em meio ao fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo contexto de Túmulo dos Vagalumes. A parte mais bem sucedida do filme são os créditos iniciais, que, ao som da versão alemã de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles, junta imagens de arquivo de paradas nazistas e das mãos de seus seguidores levantadas. Hitler, à sua época, era de fato uma superestrela aos demais nazifascistas; uma esperta aproximação.

A esperteza logo abandona o filme, e o tom irônico que prometia outros ácidos paralelos entre o contexto fascista-eugenista abordado e a cultura estadunidense se entrega à comédia romântica pasteurizada. O arco é simples: Jojo descobre nas paredes de sua casa Elsa, uma garota judia refugiada que sua mãe abrigou; ele se apaixona por ela e começa a desconstruir seu nazismo. Existem algumas abordagens em que isto poderia ser não ser atroz, como assumindo a perversidade infantil do protagonista, como o contexto é efetivamente perturbador (e, assim, fez de Jojo uma criança perturbada), ou até mesmo ironizando as opacidades de um gênero leve sobre a tragédia (algo que me parece próximo a Verhoeven). Mas nada disso acontece. Afinal, é um filme Disney.

O produto segue uma estilização um tanto parecida com a de Wes Anderson em seus enquadramentos simétricos e paletas agradáveis, mas a graça pretendida pelo filme não se apresenta em críticas ácidas, diálogos espertos ou tempos alongados constrangedores. Está em sua similaridade com o teatro infantil. Existe uma graça específica numa encenação escrita pelas crianças de ambientes saudáveis, pois em suas cabeças não há a assimilação de situações monstruosas. Um certo absurdismo fofo toma forma, pois o associamos à pureza da mente ainda crua das crianças. As personagens que menores escrevem geralmente têm pulos súbitos de um ponto a outro de seu arco, ou simplesmente tomam um estado bruto, imutável. Como Ulisses, da Ilíada, que envelhece e ganha cicatrizes por fora, mas sua personalidade permanece sempre a mesma, como se a mente por nada tivesse passado. Ulisses, é claro, é a composição pioneira do arquétipo do herói, do inabalável espírito de guerra da Grécia Antiga. Já Jojo é a composição do quê?

Um argumento comum é que o tom do filme se pauta na subjetividade infantil do protagonista. Mas ele sofre mais do que o bastante para que hajam irretornáveis abalos subjetivos: ele sofre um bombardeio que o desfigura, perde sua mãe para o nazismo, testemunha menores, idosos e deficientes perdendo para o exército adversário e vê seu treinador militar (o mais perto de figura paterna durante a ausência do pai) morrer para salvá-lo dos estadunidenses. Sua mudança, no filme, é de um menino nazista até um “homem” anti-nazista (supostamente autônomo), mas suas personalidade e preocupações se mantêm em volta do arco romântico – inclusive sua virada ideológica parece mais movida pela paixão que pela morte da mãe. Me vejo obrigado a retomar a assombrosa foto de David Seymour da criança polonesa Teresa Adwentowska, mais conhecida como “Tereska”. Ela sobreviveu aos estilhaços de bala que danificaram seu cérebro durante a repressão nazista ao levante da Varsóvia de 1945, e passou fome por semanas na miserável Polônia pós-guerra com apenas quatro anos. O clique é de 1948, ela tinha sete para oito anos e estava então numa residência para crianças perturbadas. Ela desenha para a proposta de exercício “To jest hom” – “Este é o lar”[4]:

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A confusão nos olhos e nos traços de Tereska berram as cicatrizes de uma mente que fracassou em assimilar o inassimilável e que agora sequer assimila o mais básico: um lugar de conforto e segurança. É gritante como a pureza na psique de uma criança que tem contato direto com a guerra não sai ilesa, assim como é autoral e extremamente desonesta a recusa do efeito da monstruosidade sobre a subjetividade infantil pelo bem da mera leveza de gênero, da ampliação do público-alvo.

Os três exemplos aqui citados envolvem, curiosamente, a morte da mãe dos protagonistas, em seus diferentes tons e intenções. Justaponhamos as cenas.

Em Túmulo dos Vagalumes, a mãe de Seita morre antes dos 20 minutos de filme. Ele a vê respirando pela última vez enfaixada e ensanguentada pelos ferimentos do bombardeio. Nos buracos dos olhos, nariz e boca, vê-se a textura da pele queimada e talvez o que mais se estranha em seu desenho sejam a protuberância triangular do nariz e o rosado desidratado dos lábios. A última vez que vimos seu rosto antes disso foi no traço animesco das demais personagens no filme: grandes olhos redondos, três traços no lugar de nariz e narinas, dois traços no lugar dos lábios. Mas agora ela porta as texturas, cores e relevos da carne morta e, no dia seguinte, apenas os vermes que comem sua carne podre se mexem no enquadramento. É uma imagem de choque, destoa bruscamente do estilo até então apresentado no filme, e do que aparece no decorrer seguinte. A marca de quebra estética que propõe a imagem é também a marca de quebra narrativa no arco dos irmãos: é o início do fim para eles.

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Em Maria Antonieta, a morte da mãe aparece como detalhe e presságio do que será seu período final, marcado pela perda (da mãe, do filho, do reinado). O tom episódico do fato ganha seus subtons irônicos porque: 1. todo detalhe histórico ganha tom episódico e banal no conjunto etéreo, efêmero da linguagem do filme; 2. a mãe mal aparece no todo da obra, apenas mediada pelo irmão, que deixava claras as intenções maternas de manipular o rei pela filha, e então pela notícia da morte. Maria fica visivelmente abalada, mas o bucolismo do cenário em plano aberto continua contrastando com o tom geral da cena em que ela, de súbito e sem qualquer tato, recebe a notícia. O plano seguinte é seu irmão olhando a mãe morta sobre o leito, na paleta escura de luto. A perda é verdadeira, mas distante, não contígua, não imediata. Até a morte de seu filho, tudo (a distância da pátria-mãe, a fortuna e a proteção real a seu dispôr) favorece que Maria esteja longe da crise e da dor, por mais que, em última instância, as sofra. A verdadeira imagem de quebra para Maria é a da revolta do povo sob a sacada, imposta para fora do extracampo ou das periferias do plano.

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Já Jojo segue inocentemente uma borboleta azul que o leva, sem que ele perceba, ao sítio onde sua mãe foi enforcada. Os antinazistas lá são enforcados a céu aberto e ficam pendurados para que sirvam de exemplo aos demais, assustando os que talvez possam compartilhar oposições. Ele se abaixa para ver o inseto de perto e levanta-se quando ela voa, num tilt que revela os marcantes sapatos pelos quais a identificávamos em outros planos mais cedo no filme, logo antes da entrada de seu rosto. Jojo os reconhece e olha para cima, mas não temos seu ponto de vista. Ele chora e abraça os pés da mãe por um longo tempo. É fundamental que não tenhamos o contraplano do rosto rígido da mãe morta, provavelmente roxo e inchado, pois é a quebra que não permitiria a manutenção do teatro infantil. É uma imagem de trauma, e o trauma é de não retorno. Por isso a metonímia, por isso a fragmentação do cadáver. É necessário que o efeito depressivo da morte materna seja temporária; um efeito emotivo, não uma cicatriz. Por isso as tragédias não são acontecimentos na vida de Jojo, mas episódios: a reação a isso dura no máximo uma cena depois (como a tentativa de matar a judia, a despedida do professor após a derrota que conclui a guerra), e o filme volta à leveza das crianças. Do mesmo jeito funciona sua desfiguração: no extracampo. Quando ele volta ao plano, seu rosto está no lugar, com cicatrizes vistosas. Mas o corpo do protagonista é como o do filme: as cicatrizes em muito pouco tempo tornam-se sutis arranhões.

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O problema de Jojo Rabbit não é ser um filme pró-nazismo, pois não o é (e o dia em que isso for metade do mínimo esperado de um filme, estaremos perdidos). O problema de Jojo Rabbit é ser um filme anti-nazista e anti-guerra por obrigação, por tabela; existe a cena da morte da mãe, existe a sequência dos débeis corpos nazistas restantes lutando uma luta perdida contra os estadunidenses. Mas isso não perturba o tom geral do filme, a leve alegria. Diferente de Maria Antonieta, o filme não dispensa as evasões com qualquer noção de crueza, e a manutenção do gênero a todo custo faz, no longa de Waititi, a guerra ser não muito diferente da briga entre mocinha e mocinho antes da reconciliação no baile. Depois que Jojo chuta seu Hitler imaginário janela afora e decide encarar o mundo com sua amada, seu look e pose são como a de um galã de filme dos anos 1980, com topete e mãos nos bolsos do blazer. O crescimento em direção ao rapaz livre da lavagem cerebral nazista é equivalente ao do rapaz com segurança de chegar na mocinha. À frente da porta da casa de cujas paredes ela acabou de descobrir que existia viabilidade de vida, os dois se olham frente a frente como antes do beijo em fim de romance meloso. E agora, o que fazemos?, ele pergunta. E Elsa puxa tímida e constrangedoramente uma dança, que cresce sob o som da versão alemã de Heroes, de David Bowie. O fim da guerra aparece como uma porta imediatamente aberta para o amor, e a construção dos heróis está terminada. Na prática, os dois são menores órfãos, o país está destruído e tomado pela miséria. Mas o filme se recusa a deixar-se assimilar a crise. Uma estrofe de Rilke vira epígrafe ao fim do filme:

Deixe tudo lhe acontecer
Beleza e terror
Apenas continue
Nenhum sentimento é final

Beleza e terror, no trecho, são tão inevitáveis quanto passageiros. São opostos, complementares, e podem ser assustadoramente próximos. Mas o filme faz a primeira rejeitar a segunda. Não existe em Jojo Rabbit o êxtase de encontrar a beleza após o terror, apesar dele ou sequer dentro dele escondida, porque neste filme o terror não existe; existe uma versão sua pasteurizada, empacotada para o entretenimento, para o pequeno prazer. Ele não aparece no filme como um estado que cruza a câmera (pois contaminaria a unidade do filme, ainda que pela quebra), mas circunstância de um momento específico, deslocado do conjunto (e por isso é corriqueira, facilmente superável). É um filme que não reconhece dispôr de uma beleza que não vem do mundo, mas da evasão projetada sobre o abissal. Por isso sequer é a beleza arrebatadora de que Rilke fala, que acontece. É fugidia, forçada, como as festas de Maria Antonieta. Um poema poderoso, tornado desculpa covarde na tela.

Penso que um filme desse tipo é tão execrável quanto inexorável, e é com um pavor profético de filmes como este de Waititi que Takahata fez uma obra tão cruel quanto Túmulo dos Vagalumes. Um filme que deixa o trauma de herança ao espectador. Desde os anos 1910, a guerra já era gênero cinematográfico, mas ainda tateava-se com delicadeza pelas reminiscências do trauma antes que se fizesse dele um mero pano fundo para experiências sensoriais alegres. É inevitável que se dê uma distância subjetiva de acontecimentos hediondos com o tempo; cada vez mais, eles se tornam um ponto numa história distante a um público imune – ou anestesiado – ao monstruoso. Mas não é inevitável o tratamento capitalista e abutresco sobre eles. Mesmo quando mediados pelo samba de gêneros de Tarantino em Bastardos Inglórios, sua violência não é elipsada ou episódica. Pelo contrário, é um filme alimentado por um visceral ódio antifascista. Seus planos jorram sangue, torturas, tiros e tripas vindas de todo lado em direção a todo lado. Diferentes ataques contra Hitler se encontram acidentalmente ao fim, matando ele como uns aos outros: a barbárie vence a barbárie de seu jeito anárquico e suicida. Não teria como o capitão da missão bem sucedida ser qualquer coisa tonalmente diferente de um caipira obcecado por escalpos nazistas, que marca suásticas com faca nas testas dos que deixa viver. No fundo, ele quer sangue. E é ao mesmo tempo a sede de sangue nazista e a consciência que ela vem do diretor e do público que alimentam a irônica retomada histórica. A violência é cartunesca, divertida, mas não depende da rejeição de um trauma, e sim da expiação de um ressentimento histórico, herdado. Em algum ponto, o exercício desse ressentimento se tornou estágio de abertura para o esgotamento de um dos pouquíssimos eventos tidos como consensualmente hediondos.

[1] “Resmaa Menakem – Racism, Trauma and Healing – Levitate with ….” https://open.spotify.com/episode/2UjwB3Na3DwXnplRAxt0yR?si=5yeHtFnzT42IRf3wp7-l_A. Acessado em 9 mai.. 2021.

[2] At the Movies with Ebert and Roeper: Grave of the Fireflies. Chicago, Illinois: WBBT-TV, 1994. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yU3mZT0a9Rw> e <https://www.youtube.com/watch?v=_9WEyuMq0Yk&t=133s>.

[3] GOLDBERG, Wendy. Transcending the Victim’s History: Takahata Isao’s Grave of the Fireflies. 13p. In: Mechademia, Volume 4, 2009, p. 39-52, Minneapolis: University of Minnesota Press. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/368618>.

[4] “David ‘Chim’ Seymour: Unraveling a 70-Year-Old Mystery | Time.” 12 abr.. 2017, https://time.com/4735368/tereska-david-chim-seymour/. Acessado em 5 mai.. 2021.

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Iluminar o mundo pelo opaco

Por Diogo Serafim

 Nuestra mente es porosa para el olvido; yo mismo estoy falseando y perdiendo, bajo la trágica erosión de los años, los rasgos de Beatriz.

Jorge Luis Borges, El Aleph

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People take pictures of each other, and the moment to last them for ever, of the time when they mattered to someone. Picture of me when I was just three, sucking my thumb by the old oak tree. Oh, how I love things as they used to be, don’t show me no more, please.

People Take Pictures of Each Other, The Kinks

Não há vida numa imagem. Imagens são como palavras, sons, odores; sintomas de vida que adquirem substância na potência da memória. A madalena de Proust nada mais é que isso: metamorfose da realidade. A realidade é aniquilada como abstração e manifesta uma nova configuração, uma nova existência. Não ser já é outro ser.

A grande tragédia do cinema é essa: embalsamar o passado é a ilusão da eternidade. Corromper o silêncio das palavras pela fraude da imagem. O cinema é a manufatura da memória, lembrança montada.

Em 50 First Dates (2004), filme de Peter Segal, o personagem de Adam Sandler se apaixona por uma mulher com um tipo de amnésia particular: ela esquece os eventos que ocorreram durante o dia após dormir. Logo, ele tem que encontrar uma maneira de fazê-la se apaixonar por ele todos os dias como se fosse a primeira vez que eles se encontram.

Uma das soluções que ele encontra é filmá-la junto das pessoas que a amam e das coisas que ela ama, para que cada dia as gravações possam lembrá-la de quem ela é. O cinema tem essa característica kantiana de educação sentimental, como toda arte: não se trata forçosamente de um aprendizado novo em si, mas sim de uma assimilação concreta no espírito de um sentimento que se perdeu na erosão da experiência.

Segal constrói seu filme numa charmosa miscelânia de comédia vulgar, romantismo excessivo, cultura pop e precisão dramática. É um filme que se abre de maneira descarada para um universo altamente estilizado, a uma ideia de cinema popular contaminado por um sentimento pungente de romance idealizado. Por detrás de todas as piadas e excesso, reside uma sensibilidade dolorosa, a impotência do corpo que luta desesperadamente contra a erosão do tempo com a única ferramenta que ele encontra: o amor eternizado na imagem.

O filme Forget Me Not (2015), de Kei Horie, é em vários sentidos o filme complementar de 50 First Dates. Aqui, no lugar de se apaixonar por alguém que esquece todos os dias, um jovem se apaixona por uma menina que é esquecida por todos em torno dela. A primeira cena em que ele a encontra no filme é numa encruzilhada na qual ela o atropela com a sua bicicleta. Horie filma essa encruzilhada sempre do mesmo ângulo cada vez que ela reaparece na narrativa. Seus personagens são suscetíveis ao esquecimento, mas a câmera ainda lembra.

A solução encontrada pelo protagonista é a mesma encontrada pelo personagem de Adam Sandler, em 50 First Dates: filmá-la, aqui não para ser lembrado, mas sim para não esquecer. Filma-se para reencontrar na matéria do mundo os resquícios do que ele já foi certa vez. Uma voz do passado que enflora, assombra, repete, que não cessa de voltar. Filmar não é muito diferente de lembrar. Filma-se pra lembrar, lembra-se filmando.

O filme inteiro é construído numa simplicidade comovente, cheio de pequenos momentos que são sentidos com uma força descomunal. Como quando o jovem grita para o mundo que não vai esquecê-la, e a câmera se afasta, como se testemunha da sua promessa, para no fim testemunhar esse mesmo jovem correndo pelas ruas da cidade, gritando o nome dela, esperando que por um milagre ele possa reencontrá-la.

Ambos os filmes trabalham essa dialética de cinema e memória, numa tentativa vã de recuperar a essência através da imagem. O grito desesperado do jovem pronunciando o nome da sua amada no final do filme de Horie é o medo de que tudo aquilo que amamos seja reduzido a uma distância, uma duração.

A tragédia do corpo é que amar é um grito pronunciado pelas mãos. E nós sabemos que no cinema pode-se ver, mas não se pode tocar. Tudo de sólido que pode ser nomeado se torna fluido, homogêneo, se perde em descrição. A ênfase é sempre naquilo cujo nome a gente desconhece. Daquilo que não se sabe o nome, guarda-se as semelhanças.

Todas as nossas memórias são verdades inventadas. A memória é vento sem direção, vida imaginada. Filma-se o rosto dela no ventre da lua, o seu corpo refletindo a luz do sol e o seu sorriso desenhando nuvens cegas. Basta fechar os olhos e a bobina projeta todos esses instantes esquecidos. Às vezes, eu sinto que o passado está logo à nossa frente.

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Nota do autor: Nada nesse texto foi escrito por mim. Não mantive registros das devidas referências porque honestamente nem sei de onde vêm a maioria das ideias, frases, lampejos, devaneios e delírios desse artigo.

Eu nunca crio nada: eu só me lembro.

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Androides flutuando no rio de Heráclito

Por Luís Flores

            “Antes, quando alguém tinha um segredo que não queria contar a ninguém, subia até o topo de uma montanha, procurava uma árvore, fazia um buraco e sussurrava o segredo dentro. Depois, tapava com barro. Assim, ninguém o encontraria”. Essas palavras ressoam na abertura de 2046, terceiro filme da trilogia informal de Wong Kar-wai sobre o amor, iniciada com Dias selvagens (1990). Trata-se de um pequeno prólogo sci-fi, no qual a narração over — que situa a história no ano de 2046 — nos informa que “um trem misterioso parte para 2046, periodicamente”. Como se esse significante conjugasse o espaço e o tempo. Vemos imagens digitais, que representam, de maneira onírica, uma metrópole futurista com cores antinaturais, luzes neon e traços esfumaçados, mas cuja arquitetura geral pouco difere da Hong Kong contemporânea ou mesmo moderna (uma cidade qualquer de um tempo indistinto). 2046, cabe apontar, consiste no prazo para a transição de Hong Kong acordado entre Inglaterra e China, sendo portanto um ano limítrofe para os desígnios de autonomia e soberania nacional.

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            A narração, em voz masculina, relata que esse misterioso destino, identificado simplesmente pelo número-título, atrai passageiros que desejam recuperar suas memórias perdidas, “porque nada nunca muda em 2046”. Uma miragem, portanto, ou algum tipo de simulação hipermnésica, eternizada, de uma Morel ou Marienbad futurista. É o que parece sugerir a visualidade dessa sequência inicial, cujas cores e formas já mencionadas são acrescidas de um certo efeito de travamento na imagem, uma condição de atraso, lapso ou lentidão existencial. O narrador nos conta que ele próprio fora o primeiro a sair de 2046, sendo que a história do filme — que começa a seguir, em registro mais realista do que a abertura sci-fi, mas com a fatura aproximada de um maneirismo tardio — estabelecerá uma correspondência alegórica com o preâmbulo, sem nunca ficar claro se é passado ou futuro o tempo que se esvai.

            Acompanhamos os mementos amorosos de Chow (Tony Chiu-Wai Leung), o jornalista e escritor honconguês que escreveu um livro homônimo ao filme, cuja narrativa corresponderá, em certa medida, ao preâmbulo que vimos — mas não de maneira direta ou equivalente. Chow encontra quatro mulheres principais, em idas e vindas: Su Li-zhen (Gong Li), a jogadora que inicialmente parece ser o seu grande amor; Lulu ou Mimi (Carina Lau), antiga amiga do escritor, que é esfaqueada pelo namorado ciumento no quarto 2046 do hotel (e que reaparece como a ginoide de cabelo roxo, no registro da ficção científica); Wang Jing-wen (Faye Wong), a filha do dono do hotel (que reaparece como a ginoide principal, por quem o escritor se apaixona, na cena de ficção científica); e Bai Ling (Ziyi Zhang), a vizinha do quarto 2046, que se apaixona ingenuamente por ele. A única talvez que acredita no amor, com ecos de Ginny Morehead em Some came running, o que a torna também, parafraseando João Bénard, um dos mais bonitos personagens que o cinema alguma vez inventou (ou reinventou).

            A narrativa de 2046 se funda, de fato, em um movimento de retomada e transbordamento do passado, das imagens que restavam guardadas, inexatas, no “buraco da árvore” — metáfora ambivalente para o inconsciente, sobretudo como depósito “arcaico” de experiências perdidas, ultrapassadas ou expropriadas pela cidade neoliberal, essa paisagem sem árvores dominada por letreiros neon, torres de cimento e anúncios publicitários. Tais imagens “subterrâneas”, permito-me esquematizar, são de ordem pessoal ou coletiva, incluída nessa segunda categoria a “memória cinéfila”, por assim dizer, que me remete à Ginny Morehead, de Minneli, mas também a outros filmes, especialmente os do próprio Wong. Por um lado, portanto, vemos fragmentos e lampejos mnêmicos dos personagens, em registros cujo aparente realismo se nutre de uma aura envolvente de estilização: enquadramentos premeditados, músicas over, efeitos visuais como slow motion. Tais efeitos, que já estavam presentes em Dias selvagens e Amor à flor da pele (principalmente), são acentuados em 2046. Por outro lado, portanto, na esfera que nomeei de coletiva, há uma afloração recorrente de imagens do próprio cinema (a começar pelos filmes anteriores da “trilogia”), da qual destacarei dois aspectos indissociáveis. Primeiro, Wong repete procedimentos de encenação e montagem como, por exemplo, a reiteração de detalhes (em Amor…, o encontro na escada da sopa ou o corredor de cortinas vermelhas; em 2046, os pés da ginoide ou o instante em preto-e-branco no carro), produzindo todavia um efeito imersivo maior. Depois, ele organiza um espelhamento intrincado de falas, situações e pessoas, radicalizando a tendência às permutas e interseções narrativas presentes nos outros dois filmes.

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            Junto à rememoração, portanto, há um deslizamento imagético em cachoeiras de sonhos e reflexos, labirintos de artifícios e detalhes interconexos, sempre com a exuberância visual característica do diretor. Por vezes, os planos-sequência constituem verdadeiros tableaux vivants, como já acontecia magistralmente em Amor à flor da pele. Em 2046, porém, a técnica narrativa é levada ao estado da total embriaguez, em sintonia talvez com o próprio personagem de Chow, sempre fumando e bebendo muito (para viver, para esquecer). Entre cortinas vermelhas (cenográficas), escadas, corrimãos, portas, divisórias, vãos, espelhos e brechas, elementos que abrem ou margeiam o campo do visível, consuma-se um teatro movente da paixão. Ficamos literalmente chapados — em meio a imagens sedutoras que carregam, consigo, vidas reais e imaginárias (a um só tempo), turbilhões magnéticos de emoção e desejo. O fluxo cinematográfico revela-se, enfim, um manancial encantatório, induzindo-nos a uma atitude algo primitiva de fascinação e deslumbramento. (Por isso, também, evito levar adiante um paralelo com a psicanálise, preferindo apostar em outro tipo de sopro para essas imagens).

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            Por mais díspares que sejam os registros de sci-fi e os casos amorosos, entre si, constitui-se neles uma afinidade estético-narrativa que a montagem sublinha, seja “costurando” planos e detalhes (especialmente de Wang Jing-wen, o reflexo en abyme do primeiro amor), seja repetindo recursos como as cartelas de elipse. Os eventos esparsos são conduzidos por meio de uma sofisticada rememoração visual, um tipo de sinfonia polifônica que não os encerra discursivamente, mas antes o contrário. Algumas vezes, os encadeamentos adquirem duração prolongada; em outras, são subitamente interrompidos, obstruem-se e alternam-se por saltos, deixam lacunas de atravessamento, pontos abertos de penetração. É significativo, claro, que haja um escritor — em tripla instância, personagem, jornalista/romancista e diretor — atuando para recompor em história os estilhaços de sonho que transcorrem da memória. Mas ele próprio, em suas contínuas derivas do corpo e do desejo, parece reiterar uma condição dupla, algo contraditória: aprisionamento no circuito de eterno retorno das histórias amorosas e busca infinitiva por um ponto de fuga ou plenitude (mesmo que esse ponto seja o jogo donjuanesco da sedução amorosa ou certo êxtase ambíguo).

            A memória, vale dizer, é também o irrecuperável, seja porque o amor não pode ser substituído, seja porque tudo se transforma o tempo todo. “Nada acontece duas vezes / nem acontecerá. Eis nossa sina. / Nascemos sem prática / e morremos sem rotina” (da heraclitiana Wislawa). A memória, além disso, tem seus truques, seus reflexos imprevistos, seus desvios impossíveis, como um jogo de espelhos que nos desorienta ou nos guia, sem que notemos. Lá pelas tantas, descobrimos que o suposto primeiro amor de Chow é uma apostadora profissional, uma rainha das cartas, e, mais ainda, ela é também a imagem duplicada de um primeiro amor, talvez igualmente ilusório (mas o que não é?), de outra mulher com o mesmo nome e o mesmo rosto. (Em Amor à flor da pele, vale lembrar, Su Li-zhen e Chow ensaiavam infinitamente uma paixão ao avesso, que nunca se consumava; enquanto ao final de Dias selvagens, víamos Su Li-zhen sozinha e Tony Leung vestindo-se para sair como jogador profissional. Esse ponto é interessante, pois as correspondências entre os filmes podem ser entendidas menos como sequências do que afluências quânticas, multiversais ou incompossíveis).

            Me agrada pensar a memória como um jogo, sendo que os próprios personagens às vezes fingem lembrar de menos ou de mais, represam ou exageram os mementos que reencenam (em inglês, em francês, o ator é aquele que “joga” um papel: to play ou jouer). Lulu ou Mimi, amante de York em Dias selvagens, afirma não se lembrar de Chow em 2046, de modo que Chow poderia ser entendido como a sobrevivência espectral do amante anterior, do amor primeiro. Mais significativo ainda é quando York e Tide dizem, em Dias selvagens, que não têm boa memória, que não se lembram um do outro, quando na verdade não somente se lembravam, como também se lembravam em demasia. As memórias e as imagens, entidades dotadas de vida, manifestações sensíveis que sobrevivem e se multiplicam à nossa revelia. Em outro sentido, a decisão de ir para Hong Kong ou ficar, em 2046, é tomada por Su Li-zhen a partir de uma disputa de cartas, restituindo ao jogo amoroso certa dose de aleatoriedade — ou será de cálculo, de maquinação invisível? 2046 não é, aliás, um herdeiro de direito de Vertigo ou um primo galante de Blackout e New rose hotel, filmes que se dissolvem no jogo ensandecido da paixão e do desejo?

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            Todavia, a memória é ainda aquilo que se apaga tão logo se guarda, como o segredo que, selado no tronco da árvore, se perde no fundo de nós; como a fumaça que fica diante das mãos, depois que o amor se foi (“chama, e, depois, fumaça”, escreveu Bandeira; impossível não pensar na névoa que sobe do cigarro, em Amor à flor da pele e 2046). Um momento que, congelado (isso é memória), também pode paralisar, sendo emblemáticos os planos de Chow e Su, cada um a seu turno, imóveis no corredor de cortinas vermelhas que leva ao quarto 2046 — cuja simbologia já se insinuava em Amor à flor da pele — ou o plano de Chow fumando no terraço do hotel, sozinho, em uma imagem estática cujo único movimento é o zoom out que termina no rosto de Wang, virando-se para a câmera, em uma rede intertemporal de olhares que ultrapassa o escopo convencional do que chamamos de “cena”. A memória, enfim, é o que submerge, naufraga ou desaparece, seja na defasagem de um inconsciente pessoal, seja no dinamismo da paisagem cambiável (ou cinematográfica), falsamente coletiva, num mundo marcado pela gentrificação, pelo globalismo, pela transitoriedade. (Se em Amor à flor da pele chovia frequentemente, a falta de chuva em 2046 é sinal de que já se está afundado na água ou pelo menos à deriva).

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            É crucial que o enredo sci-fi seja sobre um homem japonês (um híbrido entre Chow e o namorado de Wang Jing-wen), que se apaixona por uma ginoide cujos sentimentos estão retardados graças ao seu estado de exaustão. Dialética, portanto, entre a hipervelocidade do mundo exterior, que penetra também nos impulsos anímicos, e a inadequação do sujeito-máquina em seus processos internos que emanam para fora. Poucas vezes, aliás, os créditos finais de um filme foram tão significativos para resumir e expandir uma ideia subliminar: os nomes que surgem e desaparecem junto aos prédios, em um protótipo de Hong Kong digitalizado; trechos sonoros de rádio ou tevê, com notícias que se referem ao processo de modernização do país e ao “progresso”.

            2046 é uma elaboração pujante das condições do sujeito contemporâneo e de sua existência sensível, amalgamada de imagens e experiências que escapam, frequentemente, ao manejo direto do vivente. Desprendidas entre a memória e o sonho, proliferadas na paisagem desbotada do pós-capitalismo, com seus mecanismos infinitivos de lembrança e esquecimento, as vidas abstratas de 2046 padecem de um “sonhar acordado”, de um “retorno eterno” que nunca cessa de recomeçar. Multiplicam-se em singularidades ilusórias (os mesmos planos, os mesmos gestos, os mesmos anseios), que reafirmam no fundo a máquina abstrata de repetição do mundo, reino de fantasmas e androides, de lembranças e quimeras: como o cinema, aliás.

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O que jaz fosforescente dentro da casca carbonizada

por Lucas Saturnino

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Diz uma lenda do Talmude que, ao nascer, a criança carrega uma vela sobre a cabeça como símbolo de conhecimento ilimitado. No momento de seu nascimento, um anjo apaga a vela e a criança esquece tudo. Durante o caminho de sua vida, ela deve aprender a se lembrar daquilo que havia esquecido.

(Born in Evin, Maryam Zaree)

As lacunas são elementos estruturantes da história de todo cinema nacional. No que pode soar uma proposição paradoxal, o que existe fica mais nítido em face do que não. Como se a cinematografia a que podemos assistir no presente momento fosse composta por fragmentos de uma potência criativa que nunca terá se consumado em sua totalidade e sobre a qual esses vestígios nos estimulam a imaginar. A incompletude intrínseca à produção artística vista como reflexo representativo de uma comunidade nacional não desmerece os frutos concretos da realidade, pelo contrário: valorizam-nos, uma vez que colocam a materialidade em perspectiva frente à possibilidade do desaparecimento. Se uma nação é uma comunidade imaginada, a sua invenção oficial também se dá por meio de silenciamentos seletivos, apagamentos estratégicos e da coação ao contraditório. O caso iraniano é emblemático: do xá aos aiatolás, a censura jamais deixou de existir.

Em seu monumental estudo A Social History of Iranian Cinema (2011/12), Hamid Naficy escreve que o cinema no Irã serviu como metáfora e corporificação para a modernidade em um território de lutas perpétuas, ferozes e desiguais — político-ideológicas e além. Por modernidade, entende-se, em síntese, ocidentalização, racionalização, deslocamento de diversas ordens, intensificação sensorial, mutabilidade sociocultural e quebra de tradições — isto é, uma travessia traumática. O autor resgata a afirmação de Miriam Bratu Hansen de que o cinema seria o mais significativo “horizonte cultural no qual os efeitos traumáticos da modernidade foram refletidos, rejeitados ou renegados, transmutados e negociados”. E Naficy completa: “A política da modernidade iraniana sempre envolveu a política da percepção fílmica, da representação e da contrarrepresentação”[1].

No decurso da revolução de 1978/9, as salas de cinema sofreram o mesmo destino de outros estabelecimentos associados às perversões do imperialismo ocidental como bancos e lojas de bebidas alcoólicas, tornando-se alvos da fúria antissistema na condição de símbolos da decadência cultural e espiritual do regime do xá, de modo que mais de um terço dos cinemas iranianos teria sido destruído no período. O processo de “limpeza” pós-revolucionária também motivou a eliminação de inúmeras cópias e negativos de filmes (ficção e documentário) considerados imorais ou apologéticos à monarquia.

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O caso mais atroz ocorreu em Abadan — uma cidade com cerca de 300 mil habitantes, situada na fronteira com o Iraque, onde a Anglo-Persian Oil Company (antepassada da contemporânea BP) inaugurara uma das maiores refinarias de petróleo do planeta em 1912, e que na década de 1950 viria a ser central nas disputas referentes aos esforços de nacionalização do petróleo por parte do governo do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, deposto em um golpe orquestrado pela CIA em 19 de agosto de 1953. Foram os britânicos os primeiros a trazer o cinema para Abadan: na primeira década do século XX, quando a exploração do petróleo na região ainda se encontrava nos primórdios, uma unidade de cinema móvel teria passado pelo local — numa prática de propaganda que futuramente seria adotada pelo Empire Marketing Board e pelo British Council.

No 25º aniversário do golpe, na noite de 19 de agosto de 1978, quatro homens atearam fogo com gasolina ao Cinema Rex, descrito como uma sala de segunda na parte pobre de Abadan, durante uma sessão de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974), matando cerca de 400 pessoas, no que se estima ter sido o segundo maior atentado terrorista do século XX não perpetrado por atores estatais em número de vítimas. Os funerais se converteram em protestos sob o cântico de clamores revolucionários e ao evento é usualmente atribuída uma importância fulcral para convulsionar de vez a revolta popular que culminaria com a deposição do regime monárquico.

O governo do xá culpou os islamistas e os islamistas culparam o governo do xá. Em todo o caso, “os grupos de oposição […] incitaram claramente a destruição dos cinemas […] ou se referiram a tais ações em termos de júbilo e aprovação” e “testemunhos e documentos compilados após a queda do xá também estabelecem uma ligação clara entre os incendiários e líderes clericais anti-xá”, escreve Naficy, que compara o caso ao assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy no tocante ao acúmulo de perguntas não-respondidas e obscurecidas por sucessivas investigações problemáticas.

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Dos quatro supostos incendiários, apenas um foi julgado e condenado à morte em 1980. Em depoimento no tribunal, ele confessou a sua participação no crime, que teria cometido com o objetivo de inflamar a população contra o regime, se declarando um ex-viciado em heroína (precisamente a temática abordada em The Deer) que largara o tráfico e as drogas após ingressar em um grupo de estudos islâmicos, abraçar a religião e subsequentemente aderir aos protestos revolucionários. Contudo, lhe foi negado o direito à defesa profissional e nenhuma das testemunhas ou colaboradores apontados pelo réu foram chamados a depor, o que Naficy entende como uma forma de evitar a qualquer custo expor o potencial envolvimento de figuras religiosas no atentado.

Ao menos dois dos três incendiários restantes morreram no incêndio e é possível que o terceiro, desaparecido, tenha escapado caso também não tenha morrido no local. Outras cinco pessoas foram executadas (incluindo o dono e o gerente do cinema, acusados de cumplicidade) e muitas mais presas em um julgamento envolto em grande controvérsia. Ironicamente, as sessões da corte islâmica em Abadan tiveram lugar no cinema Taj (hoje Naft — ou “petróleo”), um imponente edifício em art déco onde os funcionários da antiga petrolífera britânica outrora podiam assistir aos filmes exibidos em sua língua materna, sem a presença de iranianos, que de início estiveram proibidos de frequentá-lo.

II.

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Inspirado pelo atentado ao cinema Rex é o filme Careless Crime (Jenayat-e bi deghat, 2020), dirigido por Shahram Mokri, que se utiliza dos fatos conhecidos para compor uma ficção metalinguística, flertando com o realismo mágico, como se fantasiasse: era uma vez o cinema que aqui jaz obstinadamente reenfeitiçando a própria sorte…

Em cenas orientadas esteticamente pela efervescência de uma percepção perturbada, quatros homens suspensos no tempo planejam incendiar um cinema, que pode ser o malfadado Rex ou o agouro de uma repetição contemporânea da tragédia. Noutra linha narrativa, enigmaticamente simultânea e assincrônica à primeira, em registro mais dado ao realismo cotidiano se representa a organização e realização de uma sessão de cinema numa espécie de instituição cultural, vista a partir de diferentes núcleos de personagens que vão se cruzando até o clímax, quando as duas cronologias confluem. Ainda há uma terceira, inclinada ao artifício: o filme dentro do filme (também chamado Careless Crime, também assinado por Mokri), sobre um míssil que caiu e não explodiu no interior do país, onde duas mulheres preparam uma projeção (ritual?) ao ar livre de The Deer.

Careless Crime é um filme obcecado com a ritualística da sala de cinema e, por consequência, com suas fraturas, as quais adquirem ressonâncias para muito além do seu contexto original em razão da pandemia global do coronavírus e do quão condenado pode parecer toda essa representação das “preliminares” de uma sessão de cinema enquanto experiência coletiva na data em que escrevo (março/abril de 2021). A aura fantasmática do cerimonial se duplica: a sala de cinema sendo não só espaço físico de crise simbólica da identidade nacional como também espaço simbólico de crise material da modernidade cinematográfica que havia desestabilizado aquela identidade antes do mais.

Na aparente transição temporal que separa as tentativas dos incendiários, podemos observar a experiência da espectatorialidade cinematográfica sofrendo uma indiscutível conversão ao migrar dos estabelecimentos de rua e circuito para os museus, cinematecas e demais instituições culturais. Na grande sala em torno da qual gravita a ação, o cinema iraniano encontra-se entre o ânimo continuador da juventude e a deferência museológica simbolizada pelos abundantes cartazes de obras clássicas, que já não convidam a assistir sua programação, mas estampam a magnitude de um determinado patrimônio artístico.

Os filmes de Mokri, cujo interesse por circuitos e circularidades alude a prismas estéticos e filosóficos, são experimentos que buscam nivelar a representação ao real convencional como método de desestabilizá-los mutuamente, aspirando à energia vital que nasce do encontro entre a formalização estrutural e o risco de sua incongruência. Em Fish & Cat (Mahi va gorbeh, 2013), a técnica do single take é manipulada com o propósito quase paradoxal de ratificar o tempo do relógio, igualando-o ao da ação fílmica, para assim então colocar esse tempo do relógio em xeque. Já no distópico Invasion (Hojoom, 2017), a reconstituição de um crime maniacamente subordinada à fidedignidade dos fatos descamba na convulsão do cognoscível, que se turva entre a mimesis e a reduplicação.

Em Careless Crime, mantém-se a concepção da expressão cinematográfica como coexistência (maníaca, convulsiva, disruptiva) do sistema com o ruído; e retornam, com variações, as referidas questões trabalhadas nos filmes anteriores: a perspectiva de um fechamento que acaba se baralhando entre a mimesis e a reduplicação do golpe original, além do distúrbio no tempo do calendário como sintoma dessa inconclusão traumática.

Assim, a narrativa assincrônica interpela o fenômeno da modernidade descontínua (em termos de tempo e espaço, contrato social e identidade, razão e causalidade), vivenciada pelo sujeito histórico (individual e coletivo) como convulsão vertiginosa. Vão se acumulando no presente as sequelas de temporalidades que não cessam de o preceder, consoante a compreensão de que o tornar-se é a ação de continuar tornando-se (sujeito, nação etc.). Em se tratando de escopo, Mokri vê no fragmentário um meio de acessar o holístico. De qualquer forma, se Careless Crime é capaz de nos envolver no experimento, isso se deve ao modo como articula em seu âmago o fascínio primordial do enigma.

O eixo é o trauma e o trauma é o marco fundador da cultura cinematográfica purificada em chamas, entre outros expurgos recalcados no processo de exploração do espaço de mobilidade da República Islâmica. Nesse quadro, a ritualização da memória ferida não desconsidera o choque das expectativas terapêuticas que possam existir no ímpeto por detrás do gesto com as manifestações inconstantes de um distúrbio autorreflexivo — “esta rebelião contínua a que chamamos de dramaturgia”, como diz Nasim Ahmadpour, a roteirista de Careless Crime[2] —, dando origem à catarse, se tanto, mediada pela própria inconclusão.

O respiro encantatório fica por conta do filme dentro do filme, onde a memória do cinema iraniano consegue ser projetada em uma idílica nascente sem que haja a interferência de quaisquer reflexos na tela, como notam incrédulos os personagens, enquanto a harmonia do ambiente magicamente desimpedido os congrega em comunhão, olhares convergindo tal e qual é condição sine qua non do utópico, por mais efêmero que seja. E se as bruxas fossem cineclubistas? E se elas zanzassem por aí disseminando a dádiva dos olhos livres como missão e bruxedo? O feitiço das projecionistas é justamente dar a ver — no passado, esse lugar suspeito, raiz de toda melancolia, desfavorecido pelos seus tantos pecados desvelados — o que jaz de fosforescente dentro da casca carbonizada.

III.

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O incêndio do cinema Rex também é evocado no início de outra obra recém-lançada sobre a história do cinema iraniano: Filmfarsi, de Ehsan Khoshbakht (2019), um melancólico filme-ensaio sobre a cinematografia do período pré-revolucionário, imerso na angústia diante da iminência de um duplo perecimento: o oblívio social e a obliteração material — ambos politicamente induzidos pelo atual regime iraniano, receoso quanto à circulação de imagens e significantes não produzidos sob o seu domínio, explica Khoshbakht (que, além de cineasta e escritor, é codiretor do festival Il Cinema Ritrovato, em Bologna).

Filmfarsi conduz o público em uma viagem pelo purgatório das imagens em desuso como quem nos convida a gozar do que ainda arrisca ser a derradeira orgia dos mortos-vivos às vésperas do desmemoriamento enfim irreversível, reunindo imagens cuja sobrevivência dependeria da circulação de fitas VHS e rips derivados, esses vetores miraculosos de uma existência desfigurada, transmissores do próprio conteúdo no limite do esfacelamento.

A primeira imagem de Filmfarsi é a de uma mulher com véu, coberta pelo xador (a veste chegou a ser proibida pela monarquia Pahlavi como medida de modernização forçada e após a revolução islâmica tornou-se obrigatória para uso feminino em público). Ela está perceptivelmente transtornada, ocupando a posição de testemunha em um tribunal, onde, acuada pelos microfones, jura sobre o livro sagrado. O julgamento é o da tragédia do Rex.

Na sequência, Khoshbakht traça um paralelo entre o velamento compulsório das mulheres iranianas e a manipulação da história nacional, a ofensiva contra um passado (in)comum por meio da oclusão de uma herança cultural indesejada — o cinema varrido para baixo dos panos como indigno da esfera pública, dito degenerado e corruptor. “Os cinemas se transformaram em valas comuns [para o enterro] da consciência coletiva”, proclama ele, enquanto a visão das numerosas salas incineradas preenche a tela.

Khoshbakht afirma que todos os filmes incluídos na montagem se encontram proibidos no Irã e explica que sua geração só os pode descobrir através de fitas VHS ilegais — daí ter denominado Filmfarsi de obra em “VHSscope”, colagem confeccionada com base na textura inconfundível do videoteipe de resistência (pois difunde ao passo que, bem longe do público, o passado vai se desintegrando em latas de película enferrujadas).

Cunhado pelo crítico Amir Houshang Kavousi, o termo “filmfarsi” se refere ao cinema popular iraniano produzido entre os anos 1950 e a revolução de 1979. Segundo Kavousi, o filmfarsi era fundamentado em um mashup de diversos cinemas populares estrangeiros até que disso fosse produzido algo que passasse a ilusão de ser singularmente iraniano — em certo sentido uma concepção próxima à de antropofagia cultural. Além do mais, o conceito propõe que o filmfarsi seria um simulacro zombeteiro de “cinema nacional” ao invés de sê-lo propriamente, pois o modo de produção mambembe característico da época deixaria a dever seja em matéria de “cinema” ou em sua contraparte “nacional” — como se no resultado estivesse sempre patente a “precariedade” e o “fora do lugar”.

Khoshbakht busca reivindicar as plateias descontinuadas tanto quanto os próprios filmes, enquadrados em seu contexto (social e emocional) de relação com o público: o choro, o riso, as reações extremadas da psique de um coletivo esquizofrênico. Ele observa que os futuros revolucionários também terão sido espectadores daquele cinema. Então “como puderam se enfurecer contra a imagem que eles haviam criado para si mesmos?”.

Os filmfarsi desagradavam o regime e as cabeças pensantes de ambos os lados da oposição, dividida entre religião e modernidade, na medida em que, funcionando como espelho, expunham a esquizofrenia do país a olhos vistos, alienando o público da imagem oficial de nação que o xá desejava passar e também afrontando os projetos concorrentes de seus críticos, fossem religiosos ou modernizantes. Essas disputas se faziam presentes, por exemplo, na representação do corpo feminino: para além da clássica dicotomia entre a mãe e a puta, surgiu nos filmes a figura bipolar da mulher que trajava o véu e a minissaia em simultâneo, combinando finalidades contraditórias no mesmíssimo look.

O lamento é direcionado a um cinema popular interrompido, reprimido, enterrado vivo. À parte a relação sentimental com o VHS de um lado e a questão do olhar orientalista de outro, a dinâmica de Filmfarsi se assemelha a Once Upon a Time in Beirut (Kanya Ya Ma Kan, Beyrouth, Jocelyne Saab, 1995): à sombra dos 15 anos de guerra civil libanesa, duas garotas de 20 anos encontram um tal de Mr. Farouk, guardião de películas como tesouros, que lhes (re)apresenta Beirute — cidade que elas só conheceram devastada — através do cinema, onde bruxuleante a memória do que foi perdido mantém-se palpável.

A melancolia intrínseca ao cinema: tirar companhia de onde só há fantasmas. Khoshbakht lamenta que sua atriz favorita (Irene Zazians, ou Iren, falecida em 2012) tenha sido banida pela revolução e então a traz de volta, em espectro, para um último close-up. Às telas, ela só havia retornado uma única vez: em Shirin, de Abbas Kiarostami (2008), no qual uma centena de atrizes são filmadas assistindo à representação de um antigo poema persa que o espectador nunca vê — vê-se só as reações dos rostos delas: olhares, emoções etc.

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Khoshbakht nota em tom jocoso que embora o país tivesse uma das mais ricas literaturas sobre o amor, teria sido incapaz de representá-lo nos filmfarsi. Os olhos de quem os viam, porém, é que nunca deixaram de estar lá, preenchendo essas e outras lacunas.

IV.

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Maryam Zaree é uma atriz alemã que nasceu na prisão de Evin, em Teerã, designada aos presos políticos do regime iraniano, onde seus pais, então jovens militantes de esquerda, estiveram detidos devido ao engajamento político. A mãe de Zaree foi presa já grávida da filha, que nasceria no encarceramento em julho de 1983. Dois anos e meio depois, as duas obtiveram a liberdade e rumaram ao asilo político na Alemanha. O pai só seria libertado em meados dos anos 1990 e também buscaria refúgio no mesmo país. O que se passou na prisão, como foram seus primeiros anos, ela não sabe, não lembra, nunca lhe contaram.

Born in Evin (2019) é o primeiro filme dirigido por Zaree (conhecida pelo trabalho como atriz em Transit e Undine, de Christian Petzold, além da série 4 Blocks) e se fundamenta na busca por descortinar o não-dito acerca do que terá significado nascer na prisão, algo que os pais dela jamais quiseram ou se importaram em esclarecê-la. Zaree também faz uso do vídeo para exibir imagens limadas da consciência coletiva iraniana, deixando-nos espiar os vídeos caseiros de uma família feliz diferente das outras — formada por um pai preso, uma mãe exilada e uma filhinha que não está entendendo quase nada.

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A dinâmica é simples e livre de dispositivos: acompanhamos Zaree de conversa em conversa, intercalando o afetuoso e o truncado. Se há um centro gravitacional no filme, são as expressões — reações — faciais dela. A rigor, os seus interlocutores nunca lhe fazem grandes revelações — não há clímax à nível de novas informações sobre o passado. Até pode-se achar que os mais velhos estão enrolando-a — é o que as pessoas fazem, pois, quando não veem sentido na abordagem frontal de uma determinada questão, seja lá por qual motivo. Além do que, as respostas convenientes ao processo de narrativização dos problemas muitas vezes simplesmente não existem — restando, abissais, as lacunas.

As lacunas são formativas, confundem-se com o que tomamos por realidade manifesta. O encoberto, por sua vez, não costuma reemergir na forma de discurso clarificante. É elusivo e impreciso, revelando-se nas entrelinhas do diálogo, nas maneiras de enunciação, nas digressões da convivência, nos limites da transparência, na linguagem corporal. A câmera (em belíssimo trabalho de Siri Klug) se detém no cicatrizado ao invés de ficar só sondando o lancinante, como seria usual em iniciativas similares, e a atenção do olhar à riqueza das expressões faciais que vão se acumulando no percurso é extraordinária.

O comovente é a delicadeza dos rostos roubados à morte. Quase todas as pessoas em Born in Evin, praticamente sem exceção, só não estão mortas por detalhes — dos que já tiveram a vida no fio da navalha aos que poderiam nem sequer ter nascido. E, entretanto, ali estão. A fisicalidade dos sobreviventes retratados é a fonte humanista da beleza que transborda graciosa, imponente e encantadora. Trata-se de uma política de contrarrepresentação.

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Zaree se vê na necessidade de inventar uma nova gramática para endereçar sua história. A iraniana lhe é estrangeira, além de uma impossibilidade prática — nenhuma imagem é autorizada aos derrotados, de forma que eles deixem de existir na consciência coletiva do país. Quanto à alemã, só lhe resta fazer chacota com o trabalho de atriz “étnica” na Europa. Logo no início, ela se representa vestindo um longo véu islâmico — como se estivesse se preparando para uma filmagem, que, caso não seja real, poderia ser — e diz: “A geração dos nossos pais não fugiu do Irã para que os filhos tivessem que interpretar estereótipos racistas nos mais estupidamente nonsenses dramas televisivos alemães”.

A princípio, ela tenta fazer isso através de uma chave performática, só que as ideias nem sempre funcionam. Ao final, não se inventa nada e a questão da performance deixa de ser central conforme vamos assistindo Zaree submergir em seu íntimo. A câmera operando como sismógrafo que mensura a permanência sinuosa do trauma em cada face filmada — à exemplo do choro preso que se converte em lágrima irrefreavelmente derramada.

Já é um clichê afirmar que tal filme é “sobre trauma” e decerto hoje existem demandas (comerciais e políticas) para que essas narrativas sobre trauma sejam produzidas, em massa, nas artes, tornando natural a suspeita em relação a estetização cosmeticamente terapêutica da matéria, sem nem entrar no mérito de iniciativas mais condenáveis.

O caso de Born in Evin é curioso: Zaree não teria crescido com a plena consciência dolorosa do trauma e parte do ímpeto por trás da realização do filme até parece se originar de certa culpa internalizada em relação ao próprio esquecimento, que, embora a tenha protegido, não poupou mais ninguém. Para além da ausência do pai em parte da infância, ela conta que só adulta descobriu uma memória traumática incrustada (inconsciente) dentro de si: no Marrocos, teve um ataque de pânico causado pela declamação de versículos religiosos no sistema de som de um ônibus; mais tarde, o seu pai lhe explicou que a reprodução ininterrupta de versículos religiosos era um dos métodos de tortura aplicados em Evin.

A questão pode não ser tanto descobrir a verdade quanto finalmente encontrar o seu preço. A moral, então, aqui, passa a ser sofrer juntos uma dor que é ou deveria ser coletiva — como consciência essencial à faculdade de sentir. O filme é uma carta de amor (dela aos pais) e, como tal, procura dar forma às coisas para avivar o mais difícil de expressar.

V.

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À 00:20 de 14 de novembro de 2020, foi dado o upload: uma cópia da versão restaurada de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974) apareceu em um célebre fórum de tracker privado para compartilhamento de filmes. Aos familiarizados com as condições prévias de disponibilidade de The Deer, era como um milagre: a qualidade da imagem cristalina, 1080p, AR apropriado, duração completa, final original, sem cortes. A restauração foi produzida com base na telecinagem de uma versão em película quase completa do filme, conquanto duas breves cenas só tenham podido ser recuperadas das fitas VHS.

O filme tinha aparecido ali pela primeira vez em agosto de 2013: a versão censurada, sem legendas, qualidade horrorosa de som e imagem, proveniente de um DVD iraniano ao que tudo indica ilegal. Os esforços de legendagem para o inglês começaram um ano depois. Alguém, nesse meio-tempo, encontrou um corte mais longo no YouTube (2h vs. 1h42) — é o único upload do perfil, um CAMrip, datado de 03/02/2013 (em abril de 2021, conta 474 mil views). Porém, um dos falantes de persa do fórum advertiu que o áudio dessa versão estava fortemente editado, censurado. Levantou-se, então, a possibilidade de que fosse customizada uma montagem amalgamada a partir das duas cópias.

O corte censurado ressurgiu com melhor qualidade após um usuário comprar outro DVD bootleg em meados de 2015. Naquele setembro, a primeira versão das legendas em inglês foi concluída — e revisões foram sendo feitas nos anos seguintes. O corte original apareceu assistível pela primeira vez em abril de 2016. Já em agosto de 2020 foi encontrada uma cópia colorizada em um grupo de Telegram, novo método de compartilhamento de arquivos no Irã (nos comentários, linkou-se uma notícia sobre estudantes que teriam desenvolvido um software, baseado em inteligência artificial, de coloração de imagens).

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The Deer é o tipo de coisa que não interessa a ninguém que deseja cultivar uma imagem de nação. Trata-se de um melodrama masculino cujo foco é o reencontro de dois amigos de infância desfigurados pela passagem do tempo no cenário imundo de uma sociedade corrupta, repressiva e letárgica, onde o fracasso é nacional, geracional e generalizado. De um lado, o viciado em heroína que inspira asco em todos à sua volta; do outro, o assaltante de bancos que, escondido da polícia, assiste impotente à vida passar na janela (codificado de forma a remeter a um guerrilheiro de esquerda, dado inexplícito devido à censura).

The Deer é um ponto de conexão entre o filmfarsi e o cinema novo de Mehrjui, Beizai e companhia. Os créditos iniciais foram criados por Kiarostami e consistem na justaposição de arames farpados e sementes de dente-de-leão, acentuando no plano-detalhe o contraste entre a beleza e a feiura, a degeneração e a inocência, como observa Naficy. A desolação também se sobressai por efeito da alternância entre close-ups e planos gerais, à medida que, seja na distância ou na intimidade, já não se distingue esperança nas perspectivas.

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No papel do toxicômano arruinado, a performance de Behrouz Vossoughi é brilhante, tão impactante que a repressão estatal o elegeu como o principal responsável por aquela desmoralização. Além das sessões de interrogatório e ameaças de morte, o filme já lhe havia rendido, antes, o prêmio de melhor ator no festival de Teerã, entregue pela Imperatriz Farah em pessoa. Vossoughi, grande estrela popular no período, até hoje vive no exílio.

“Nós sabemos que essas coisas acontecem no país, mas não é necessário representá-las no cinema!”, teria reagido indignada a irmã do xá, Ashraf Pahlavi, ao assisti-lo. The Deer foi severamente mutilado pela ação da censura e o final modificado para atenuar a brutalidade policial. Após mais de um ano bloqueado na censura, ele estrearia apenas em janeiro de 1976, tornando-se um fenômeno de público e sendo exibido continuamente até o fatídico incêndio do Rex. Poucas semanas depois do atentado, na chamada “sexta-feira negra” de setembro de 1978, o exército do xá abriria fogo contra manifestantes reunidos em frente ao Cinema Nahid, em Teerã, onde The Deer ainda se encontrava em cartaz.

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Como os filmes que viriam a ser banidos após a revolução sobreviveram? Uma vez que o poder ainda não havia sido centralizado por completo durante os dois primeiros anos da República Islâmica, algum espaço de manobra persistiu brevemente no meio da confusão transicional. Assim foi possível que à época um certo alguém anônimo percorresse os estúdios, telecinando o material em 35mm e criando cópias disso em vídeo. As fitas então passaram a ser vendidas junto à crescente diáspora iraniana na Califórnia, pois o home video demoraria a se popularizar no Irã — e posteriormente seriam através desses mesmos bootlegs, diz Khoshbakht, que os filmes retornariam ao seu país de origem[3].

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Para Khoshbakht, os filmfarsi são caracterizados pela tensão — tensão que está presente nas narrativas e na estética; repercute na produção e na exibição; atravessa a técnica e a cultura; reporta-se aos artistas, aos personagens e aos espectadores. Naficy faz diversas alusões a espelhos: ao cinema que fabrica e reflete as imagens distorcidas da identidade nacional, em crise mediante as perturbações de reflexos afrontando espelhos. Nas cópias clandestinas, essas tensões e distorções são também literais em face da precariedade da imagem. E assim a visão de cada versão desfigurada de The Deer acaba se firmando como monumentalização momentânea em homenagem às ruínas insurgentes daquela cultura cinematográfica desmemoriada.

Questionado sobre o enigmático título de The Deer, Kimiai cita uma memória dos tempos de escola: um professor seu dizia que “os cervos têm pernas feias e lindos chifres, mas o que os salva do perigo é a sua velocidade, e isso graças às pernas disformes e esqueléticas, enquanto o que os enrasca são logo seus longos e formosos chifres”.

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[1] As referências da primeira seção se encontram em “A Social History of Iranian Cinema”, de Hamid Naficy (Duke University Press, 2011/12). As da última seção, no tocante a “The Deer”, também. Sobre modernidade, ver o volume 1. Sobre “The Deer”, volume 2. Sobre o incêndio do cinema Rex, volume 3.

[2] http://www.iranart.news/Section-cinema-4/11055-nasim-ahmadpour-playing-with-literature-and-dramaturgy

[3]  https://soundcloud.com/user-596073675/24-filmfarsi-the-deer-with-ehsan-khoshbakht

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Editorial: cinema e memória

“O presente é o instante em que o futuro desmorona no passado”
– citação incerta de suposto verso de Browning por Susan Sontag,
em carta memorial a Jorge Luis Borges

Por João Lucas Pedrosa

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Não é um debate simples, o da memória na contemporaneidade. Recheadas de gerações póstumas – pós-moderna, pós-cinemática, pós-verdade, no caso latino americano pós-(quantos)golpe(s) -, as últimas quatro décadas parecem ter sido tomadas pelo espírito de fim de festa da razão, que festeja apenas para espantar (ou celebrar) a iminência do fim do mundo (em voz passiva, pulsão de morte). Talvez o fim da pandemia possa trazer o deslocamento perceptivo necessário para fazer enfim surgir o pós-apocalipse e, daí, ressurgir dos escombros o espírito da gênese (em voz ativa, pulsão de vida).

É pensando na gênese que vem a proposta do tema desta edição da Multiplot!. Na expressão da memória como ação. Henri Bergson via o corpo humano “como uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro”[1]. Enquanto tal, é inevitavelmente ligado ao passado, este que influencia cada movimento seu e expira na consumação de cada ação. Eis que há o cinema como ambos ação e registro da ação, o revirar da duração. Onde entra a arte que restitui a corrente da ação passada no presente, e que tumula, além dos mortos, suas cadências? Além dos corpos, seus espíritos de tempo? Além das matérias – ou sequer elas -, as suas virtualidades?

Nisso há muito: a tensão das percepções humanas de temporalidade (as obras de Alain Resnais e Chris Marker nos anos 1960); as contradições historiográficas feitas cinema (os filmes de Carlos Adriano, Congo de Arthur Omar, Center Stage de Stanley Kwan); o retorno ao passado como autópsia de um trauma histórico (Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata); o filme histórico como objeto de fabulação (Bastardos Inglórios e Era Uma Vez… Em Hollywood, de Quentin Tarantino); a manipulação da História pela indústria hegemônica (O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, primeiro “longa histórico” de Hollywood e suas referências bibliográficas nas cartelas); a guerra e o holocausto tornadas gênero fílmico e como isso afeta o imaginário coletivo e a consequente relação das massas com o passado… o córrego é infinito, pois infinito é o cinema.

[1] BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 86.

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É Tudo Verdade: Alvorada (Anna Muylaerte, Lô Politi)

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Alvorada, de Anna Muylaert, junto com O processo (Maria Augusta Ramos) e Democracia em Vertigem (Petra Costa), se agregam em uma trilogia que acompanha os acontecimentos relacionados ao Impeachment de Dilma Rousseff.  Se O processo e Democracia em Vertigem se atêm a uma visão ampla, traçando panoramas e detalhes dos acontecimentos que culminaram no fatídico ano de 2016, Alvorada completa a trilogia sendo a versão contemplativa daquele momento. O filme não se preocupa em destrinchar aquilo que já foi detalhado exaustivamente, mas se põe como representante do vazio e da melancolia, em uma versão mais intimista no que se refere à atmosfera dos últimos dias da presidente no poder.

Em certo ponto do filme, Dilma afirma que nunca perdeu o equilíbrio. Pelo contrário, precisa compreender o fato de que outras pessoas o perdem em situações-limite. Em certo sentido, Alvorada também parece se imbuir da personalidade serena de Dilma, seguindo com sobriedade os seus últimos momentos como presidente. Não apenas ao lado de Dilma, mas acompanhando a rotina do Palácio junto de diversos funcionários em suas atividades cotidianas, o documentário consegue, através de seu olhar mais contemplativo que narrativo, se sustentar em formas simbólicas interessantes.

Esse simbolismo se dá justamente por meio dos funcionários e de suas funções. Além da equipe de Dilma, vemos uma série de empregados do Palácio em suas atividades ordinárias: a guarda e suas cerimônias, o processo de limpeza da piscina, a cozinha etc. Se as atividades básicas que fazem o Palácio da Alvorada funcionar continuam as mesmas, uma série de mudanças sutis ocorrem durante esse processo de mudança. A troca das cadeiras vermelhas por azuis é apenas um dos exemplos desse simbolismo que se realiza nessa dinâmica em relação aos objetos.

Assim, essa trilogia feminina acaba sendo completada pelo documentário singular de Anna Muylaert, se realizando através de uma visão mais intimista e sóbria sobre o início de um dos processos mais traumáticos da história do país. De forma silenciosa e prática, o filme consegue ter algo como uma objetividade melancólica, ainda que em diversos momentos o seu tom pareça vago e impreciso. Um filme que não se preocupa em preencher lacunas, mas sim de ser um olhar mais pessoal e específico sobre os bastidores de uma tragédia pessoal e política.

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A pós-verdade no É Tudo Verdade

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Dois filmes exibidos no Festival É Tudo Verdade representam bem, e de maneira irônica em relação ao título do festival, o que se costumou chamar de pós-verdade. Esse termo, que vem ganhando a alcunha de conceito, surgiu para nomear a crise política que se instaurou no século XXI no que se refere ao modo como as redes sociais se tornaram meios para a disseminação em massa de notícias falsas. Desse gatilho inicial, se desenvolvem não apenas as famigeradas fakenews, mas uma série de teorias conspiratórias e brigas políticas em torno de discursos. Assim, a pós-verdade se instaura no campo da linguagem e do valor semiótico da imagem propagada na internet: não mais importa aquilo que é sustentado cientificamente, mas apenas o modo como certas informações são transmitidas (e por quem são transmitidas), privilegiando interesses particulares e ideologias misturadas à teorias da conspiração que ganham alcance global.

Em Mil Cortes (A Thousend Cuts) e Sob Total Controle (Totally Under Control), temos a presença dessa problemática em contextos diferentes. No primeiro, vemos o modo como o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, sustenta todo o seu governo numa guerra contra as drogas, realizando uma lógica de extermínio de pequenos traficantes e usuários, além de censura implícita à imprensa através do discurso de ódio por meio de bots que investem seus ataques sobretudo à Maria Ressa e à sua equipe de jornalismo da Reppler. Além desse recurso usado nas redes sociais para promover ataques sistemáticos, vemos como Duterte criminaliza a atividade jornalística usando o seu poder político, em um esquema que se concretiza com o julgamento de Ressa, acusada de injúria cibernética, além de outros processos que ainda se desenrolam. Um quadro asqueroso que une um tipo de espetacularização da política que maquia o desmoronamento da democracia das Felipinas e que tem como um dos seus sustentáculos os bots das redes sociais.

Já em Sob Total Controle temos um recorte do início da pandemia do novo Corona Vírus nos EUA. Ainda que tenha envelhecido rápido, o filme traça um panorama interessante do início da pandemia no mundo e a irresponsabilidade do governo norte-americano em relação a isso. No que diz respeito ao tema da à pós-verdade, o documentário revela a postura negacionista de Trump e o modo como o seu desprezo à ciência chega à população, fazendo provavelmente o primeiro processo de politização globalmente conhecido do vírus em questão. As consequências dessa politização nós já sabemos, pois essa realidade é quase que sistematicamente repetida aqui no Brasil. O excesso de desinformação por parte do governo gera um clima de desconfiança constante sobre aquilo que estava estabelecido e soluções duvidosas aparecem em forma de milagre: é o caso do uso da hidroxicloroquina como remédio preventivo contra a Covid-19. O discurso interesseiro e sem fundamento toma o lugar do fato e do dado científico, a narrativa se sobrepõe àquilo que deveria ser consenso em nome do bem público.

Assim, esses dois documentários, compondo a programação do É Tudo Verdade, são ótimos exemplos de mostrar como a verdade é escorregadia e frágil. Se ela depende da comunicação e da linguagem para se realizar, a história da humanidade mostra o quanto que quem detém certo poder dessa linguagem e tem como disseminar aquilo que deseja comunicar, se utiliza desse recurso para fins próprios, por mais retrógrados que sejam. Mostra também que com o desenvolvimento da internet esse processo se tornou ainda mais nefasto, já que agora a forma da informação ganhou um novo impulso e a verdade parece ter recebido o ultimato de sua falência.

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É Tudo Verdade: Dois Tempos

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Por Chico Torres

Dois tempos é um roadiemovie em que Yamandu Costa e Lúcio Yanel exploram as regiões fronteiriças entre Brasil e Argentina. Uma busca que procura remontar as origens de Yanel, o primeiro mestre de Yamandu no ofício do violão. Yanel se radicou no Brasil e teve como primeiro lar a casa de Yamandu quando esse ainda era menino. Diante disso, o filme funciona como uma espécie de retorno ao lar, um presente de discípulo para mestre através de uma viagem em um trailer.

O filme não se furta do silêncio e a naturalidade do convívio que se estabelece entre os dois personagens faz com que a presença da câmera seja incorporada à rotina de ambos sem dificuldades. Ficamos com a sensação de que eles estão ali da forma mais autêntica possível, sem que os momentos de silêncio ou de diálogos vagos prejudique o filme. Logo fica visível a sabedoria de Yanel, uma sabedoria popular e que tem na experiência a sua grande validade. Em nenhum momento a figura de Yamandu se sobrepõe a do mestre. Como todos sabem, Yamandu é um dos violonistas de maior destaque no mundo, mas no documentário o seu papel é quase o de coadjuvante e a sua postura é a de alguém que está ali para aprender e para viver a amizade.

O retorno de Yanel representa também o modo como as coisas mudam e ao mesmo tempo permanecem ao longo do tempo, fazendo com que ele se reconheça e se afaste do seu lugar de origem. Mais do que diálogos sobre música (esses praticamente não existem no filme), o que se tem de pano de fundo é um conteúdo espiritual e filosófico que trata sobre destino, morte e fé, mas tudo sob uma simplicidade cativante. A mística do interior Argentino é resgatada através dos encontros com populares, com a visita ao cemitério, à estação ferroviária na qual trabalhou o pai de yanel, tudo isso regado à música tradicional gaúcha presente no Brasil e na Argentina.

Um filme que contempla paisagens, que se debruça sobre uma cultura subterrânea, que coloca dois grandes violonistas no seio da cultura que os alimentou, enfim, um filme honesto que não procura biografar seus personagens, mas deixa que eles sigam como os andarilhos que são.

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É Tudo Verdade: Paulo César Pinheiro – Letra e Alma

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Por Chico Torres

O documentário sobre o Paulo César Pinheiro não traz entrevistados. Só há a presença do próprio poeta, no conforto de sua casa, contando a sua própria história que é complementada com imagens de arquivos. Vemos o panorama de uma biografia que se confunde com a própria “cultura brasileira”, talvez a única cultura que tenha no formato canção um dos seus pilares mais fundamentais de formação de identidade nacional. Junto com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro é sem dúvida, ao menos na categoria específica “letrista”, um dos maiores construtores dessa ideia de brasilidade.

Traçando de modo cronológico, como diz o próprio PCP, um percurso que consegue unir cinco gerações, começando com Pixinguinha e chegando aos jovens compositores do século XXI, o filme aborda satisfatoriamente a potência criativa do poeta, mas não promove conflitos ou investigações mais minuciosas sobre o seu processo de trabalho, por exemplo. Pelo contrário, segue na passividade de contar os sucessos de alguém que teve a chance de viver exclusivamente da música. Como muitos documentários biográficos, a impressão é que se fica na superfície para poder dar conta de uma biografia que parece já oferecer atrativos suficientes ao público.

O filme se mantém no passado, estreito à visão do poeta e de suas saudades, seus encantamentos e o seu orgulho reiterado de ser um dos detentores da moribunda cultura nacional. Não há um mínimo esforço provocativo, dialético, nenhuma centelha de chacoalhar a paz daquele deus impassível que observa tudo e que ainda é capaz de contemplar. O que temos, enfim, é um documentário dócil e muito pouco criativo. PCP sempre aparece em preto e branco, como se estivesse preso a um passado que é constantemente rememorado. Faz pensar o quanto que se perdeu dessa ideia de Brasil com “S” e não com “Z”, o quanto que está datada a ideia do poeta, do compositor, do cantautor, dando lugar aos fuzis e ao funk carioca. Mas, se o poeta está vivendo esse tempo, nada mais digno do que fazê-lo confrontar esse mundo através de suas ideias, de seus voos imaginativo. Mas não, o documentário se mantém em sua reverência para que o homem rememore e lamente. Um lamento justificável e louvável, mas que ganharia muito mais potência se viesse carregado de ideias para o presente, perturbando a paz e exigindo troco.

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