No coração do mundo: Contagem é o motherfucking Texas!

Por Kênia Freitas

“O trabalho é a essência do homem porra nenhuma” (Pichação) – Mais do que um resumo, esta frase é uma possível porta de entrada para No Coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019). O filme se constrói a partir de duas espacialidades de natureza diferentes: a concretude da vizinhança do Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG; e o desejo por um novo lugar de plenitude da existência, o sonhado Coração do Mundo. Entre um e outro, os atravessadores das relações tornam-se o trabalho e o dinheiro.

E o trabalho aqui é entendido mais próximo de sua origem no latim, na palavra  “Tripallium”: um instrumento de tortura para fazer os escravos e pobres produzirem. As múltiplas dimensões do trabalho no filme passam pela sobrevivência, pela busca de emancipação (principalmente a feminina), por uma possibilidade de afirmação de si. Mas o trabalho das personagens constitui sobretudo um sistema brutalizante do cotidiano: das micro agressões (a dona da loja que ainda desconfia de Miro [Robert Frank], o seu empregado como vendedor há sete anos), até as macros (a passageira que fisicamente agride Ana [Kelly Crifer] por não possuir o troco para a passagem de ônibus). Em suas flexíveis e porosas reconfigurações no século XXI, as linhas são tênues e os corres são muitos – é salão e Uber ao mesmo tempo, inventando tempo ainda para o marido e os esquemas de encontrar o amante.“Meu nome é trabalho, meu sobrenome é dinheiro”, é como explica Rose (Bárbara Colen) a impossibilidade cotidiana de suas atividades. É também, ao mesmo tempo, vender foto na escola e planejar um assalto.

Nesse sentido, os corres direta ou indiretamente ligados ao crime (pequenos golpes, o empréstimo de uma arma, etc.) não estão desconectados dos trabalhos lícitos formais e informais. Mas, mesmo na porosidade, as fronteiras existem e parte do dilema do filme é nos confrontar com os pontos de não retorno. Na lógica do poder operante do neoliberalismo, sustentada na criação de máquinas de moer gente e os seus desejos, quem sobrevive (e às vezes até vive) são aquelas e aqueles com mais maleabilidade para driblar as engrenagens dentro das regras dos jogos aos quais se propõem ou se submetem – seja no capitalismo ou no crime. O que a vacilação de Beto (Renato Novaes) logo no início do filme deixa evidente é que não basta atirar, mas é necessário saber o momento certo e, sobretudo, acertar a boa. Lição que voltará para assombrar o trio Ana, Marquinhos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô) em seu plano de assalto cheio de pontas soltas – não há perdão.

Na estrutura capitalista de exploração sem limites das forças vitais, dos desejos e das formas de vida, a violência dos pequenos e grandes golpes e dos assassinatos é assim, também, parte das fronteiras indefinidas do trabalho – mostrando uma faceta do seu potencial de extração e exploração máxima e direta. “Contagem é o motherfucking Texas!”, como anuncia a música do Mc Papo que abre o filme. A cena inicial já começa por trazer os entrecruzamentos desta porosidade de relações, conjugando no mesmo acontecimento e espacialidade: o trabalho de entrega de mensagens românticas presenciais de uma pequena empresa, a declaração de amor de Ana para Marquinhos em seu aniversário, e uma execução, na qual Beto usando a arma emprestada por Marquinhos mata a pessoa errada.

Marquinhos e Ana no ponto de não retorno

Fica evidente também as intersecções das relações de gênero com o trabalho. O filme opera quase sempre por contrastes pedagógicos na apresentação dessa dinâmica: a inércia de Marquinhos, tentando se virar com pequenos esquemas (como ajudando Selma no negócio das fotos para as escolas), em oposição à sua mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que com persistência vende diariamente os seus produtos caseiros batendo de porta em porta e à irmã Fernanda (Malu Ramos), com 17 anos e já contribuindo nas contas da casa. Um contraste semelhante é mostrado entre os amantes Rose e Miro: enquanto ela articula-se para somar mais uma renda como motorista de Uber, ele permanece no mesmo emprego há sete anos. Em ambos os casos, para Fernanda e Rose, a autonomia financeira desdobra-se em uma emancipação sexual: Rose com segurança comanda Miro durante a cena de sexo, Fernanda tem a permissão e a cumplicidade da mãe para dormir na casa do namorado.

As amigas Rose e Selma falam da vida e tratam de negócios.

Em seus vários arranjos familiares, o filme ressalta a falência das figuras masculinas como referência de autoridade ou de compasso moral – e uma intrínseca relação entre esse deslocamento e as novas fontes de renda e trabalho das mulheres. Se ao final do filme, Brenda (Mc Carol), que está a caminho do novo trabalho arranjado pela a avó, dá a letra para Marquinhos, o seu amigo das antigas – “não dá mais pra ficar nessa vagabundagem” -, é o olhar de decepção para o filho de Dona Fia (enquanto empurra o seu carrinho cheio de garrafa pet) que termina por condená-lo.

As relações que compõem o trio Ana, Marquinhos e Selma no assalto do desfecho do filme se configuram de formas mais complexas. Selma é construída no filme também na linha mulher-emancipada-e-autoconsciente, como Fernanda e Rose, mas já em outra fase da vida. É ela que enuncia o desejo de partir para o Coração do mundo – o lugar em que se quer pisar, o lugar do desejo e da vida plena. Esta explicação para Marquinhos, desse desejo pulsante por recomeço, é o que constrói discursivamente o desfecho da narrativa. No entanto, há um evidente descompasso entre o desenvolvimento da personagem na trama e a sua importância enunciativa. Com as outras personagens centrais há um processo de mostrar as relações cotidianas familiares e amorosas em ato, mas de Selma nos aproximamos apenas por seu longo relato para Marquinhos (o mesmo que enuncia o Coração do mundo) e por algumas fotos vistas no celular. Por brilhante que seja a atuação de Grace Passô, a estratégia do filme acaba por criar mais uma desconfiança do que uma adesão ao conflito da trama. Selma, nesse sentido, funciona quase como um dispositivo narrativo para catalisar a ação do casal.

Selma explica o que é o Coração do Mundo, enquanto arruma o cenário para as fotos de escola.

Já entre o casal Ana e Marquinhos há um acordo implícito que se quebra quando ele a convida para participar da fita (por exigência de Selma). O não dito entre eles é falado pela primeira vez, e as fronteiras não delimitadas dos corres de Marquinhos ganham nome e demarcação. Não mais a porosidade entre pequenos delitos e trabalho precarizado, o novo arranjo com a concordância de Ana gera uma ruptura. É acertar a boa ou nada: “Agora não tem mais volta”, como Selma avisa minutos antes do assalto.

O desastre após a fita e a melancolia de Marquinhos e Ana seguindo com a sua rotina depois de cruzarem um ponto de não retorno acabam com qualquer expectativa de resolução da trama pela catarse ou pela fuga. Um pouco traído pelas promessas de um ritmo inicial vibrante do filme, ao espectador cabe lidar com o fato de que Contagem é o Texas, não Hollywood. E que, em se estabelecendo a trama sobre uma dinâmica de mundo estruturada em um sistema econômico, social e racial que é uma máquina de moer as forças vitais e os desejos, não há negociação possível com um final feliz – não importa o quanto a construção da narrativa tenha nos prometido outra coisa.

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