O Sermão de Huie (Werner Herzog, 1983)

Por Fernando Mendonça

Falar a respeito de um filme como O Sermão de Huie é falar sobre um gesto, sobre um delicado procedimento de observação e operação das formas como raras vezes o registro audiovisual terá conseguido dentro do tema e ambiente explorados. Ao comentá-lo, Werner Werzog referiu-se certa vez a ele como um “trabalho puro sobre as alegrias da vida, da fé e do cinema”, pelo que destacamos a referência a determinada ‘pureza’ de linguagem, um estado singular, ainda que indefinido, da organização fílmica — irrestrita ao domínio cinematográfico, considerado o caráter televisivo desta produção. A proposta do diretor, em refinada simplicidade, consistiu tão somente na filmagem (permitida) de um dos cultos do célebre Bispo Huie L. Rogers, pregador numa das maiores igrejas pentecostais de origem afro-americana nos EUA dos anos 80. Longe de procurar motivações em datas ou atos extrínsecos ao cotidiano da igreja, o culto em questão é apenas mais um dentro da rotina congregacional, sem nenhum evento extraordinário ou incomum. Animados louvores do grupo coral, um sermão doutrinário típico do pensamento cristão e orações fervorosas resumem a liturgia, mas de forma alguma dão conta daquilo que o olhar de Herzog constrói a partir desta matéria-prima.

Importa identificarmos o mecanismo aqui estabelecido pelo cineasta: todo o sermão de Huie — o que dá nome, força motora e movimento ao filme — é capturado por uma câmera reverente e fiel, que se distancia e aproxima do pregador com a máxima discrição, que sustenta o corte até o limite e assim imprime, na qualidade do plano-sequência, uma exata dimensão do tempo. A longa duração da cena é o que permite uma total autonomia de Huie em tornar-se imagem, em apoderar-se do espectador, dentro de seus códigos retóricos pessoais, como num domínio hipnótico, de transe extático. Nesse sentido, eis o filme de Herzog que talvez mais se aproxime do igualmente assombroso Coração de Cristal (1976), seja pela comparação do Bispo Huie ao profeta da ficção, seja pelo efeito que emana da superfície de suas imagens, à beira do anestésico, do aniquilamento de uma sensibilidade que atingiu a máxima potência.

Mas o trabalho de Herzog prossegue: após uma longa permanência no espaço-tempo da igreja, somos assaltados pela montagem de dois planos que reconfiguram O Sermão de Huie quase milagrosamente; sem interromper o áudio da pregação, Herzog intercala dois travellings laterais sobre as decadentes ruas do Brooklyn, bairro da igreja em questão. São imagens de ruínas, movimentos irmãos de todos aqueles que o diretor já fizera e ainda repetiria em território africano, em tantos outros filmes. Entrecruzamentos de espaços e arquiteturas que rearticulam a lógica da religiosidade até então apresentada, prova inconteste que um movimento de câmera ainda carrega imoralidade (ou pelo menos ainda carregava na entrada dos anos 80). Tais deslocamentos acentuam a rigorosa postura de Herzog no interior da igreja e evidenciam a manifesta pureza inicialmente comentada. Considerando que o Bispo Huie ainda hoje é uma figura singular de seu credo e há facilidade de acesso aos incontáveis vídeos de suas pregações no âmbito da internet — iguais entre si e separados por um abismo em relação ao filme de Herzog —, O Sermão de Huie permanece e ganha força como uma das elaborações estéticas mais apuradas provenientes da relação Cinema e Fé.

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Handicapped Future (Werner Herzog, 1971)

Por Fernando Mendonça

Se Werner Herzog é um dos diretores mais lembrados na procura por abordagens que o cinema tenha feito sobre a deficiência física é porque, além da tematização do assunto recorrente em vários de seus filmes, a dificuldade imposta sobre o corpo humano e a manutenção da sobrevivência sempre foram motivações centrais da carreira em questão. Handicapped Future, filme encomenda de caráter institucional, por mais que prescinda das investigações estéticas típicas ao cineasta, não deixa de representar um ponto nevrálgico de sua produção (em particular a dos anos 70), relacionado ao estranhamento dos seres que superabundam no imaginário fílmico por ele construído, de Também os Anões Começaram Pequenos (1970) a Terra do Silêncio e da Escuridão (1971), de Kaspar Hauser (1974) a Stroszek (1977) — lembrada a excelência do trabalho conjunto entre Herzog e Bruno S. nestes últimos filmes, exemplos do que podemos chamar de uma ‘deficiência metafísica’ a ser refletida pelo gesto do diretor, em diluir as limitações naturais do ator ao corpo dramático narrativo.

Filme que antecipa e, segundo Herzog, justifica a existência de Terra do Silêncio e da Escuridão, o média-metragem em que aqui nos detemos guarda forte proximidade com seu trabalho posterior, especialmente na figura da primeira garotinha que é entrevistada. Dentre suas declarações, ela revela que só consegue sonhar de olhos abertos, que suas noites são sempre solitárias e, conseqüentemente, desprovidas de qualquer movimento onírico. As dimensões da visibilidade aí colocadas, futuramente prosseguidas pela mulher cega que conduzirá Terra do Silêncio, concentram uma série de problemas continuamente revisitados por Herzog dentro do cinema. A inadequação dos corpos no mundo que todos os seus filmes — a exceção nos parece impossível — refletem, condicionada a limites anatômicos ou mentais de ordem involuntária, pois uma quase violação ao ser, é colocada em cena por Herzog com o intuito de sempre transformar sua condição primeira, pela materialidade do cinema, numa nova realidade física. Assim, a menina que fala de seus sonhos (da vontade de andar, por exemplo) para a câmera é alguém que concretiza seus desejos na superfície da imagem. Não se trata de ficção, mas de uma instauração do movimento pela sensibilidade de Herzog em concretizar a voz e o anseio de seus entrevistados.

Abrir os olhos para sonhar, como bem sabemos, não deixa de ser um reflexo do princípio cinematográfico que funde tempos e realidades dentro de uma sucessão de imagens. Seja a menina de Handicapped Future ou cada um dos demais que aparecem no filme, sejam os personagens dos outros títulos que citamos pela relação a este trabalho, sejam as crianças que brincam com amigos imaginários em outro curta fundamental do diretor (Ninguém Quer Brincar Comigo, 1976), cada um destes experimenta na tela aquele fragmento de tempo que as pálpebras levam para saírem da escuridão e permitirem o contato entre o olhar e o mundo. São pessoas, personagens e situações que manifestam a recorrente potência do cinema — não só de Herzog, mas especialmente nele — em fazer vir à luz, emergir do caos a ordem. Cinema que resiste ao fechar dos olhos. E por isso, sonha.

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Sinais de Vida (Werner Herzog, 1968)

Por Fernando Mendonça

O primeiro longa-metragem de Werner Herzog, plenamente inserido no espírito que dominava o cinema alemão dos anos 60 (o novo cinema, estabelecido desde 1962, através do Manifesto de Oberhausen), é trabalho de Modernidade latente, fruto de um honesto zeitgeist que hoje podemos avaliar como marco definidor não só de um movimento nacional, mas de uma trajetória particular com o cinema, um novo olhar. Em Sinais de Vida, Herzog não economizou na entrelinha, carregando suas imagens de ambigüidade e sarcasmo, além de sinalizar que sua chegada na arte não trilharia caminhos que se distanciassem da resistência, fazendo de cada filme determinado retrato de inconformismo. Rejeição aos tempos moldados pelo homem, mas também sua subserviência, seu apego pela incontornável matéria.

Desdobramento direto de um pequeno filme que realizara no ano anterior (A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkretz, 1967), Sinais de Vida desenvolve-se sobre a ruína de quatro personagens que se refugiam, durante a guerra, num forte grego isolado e vazio. O soldado Stroszek (Peter Brogle), junto a sua esposa e outros dois soldados feridos, enraíza-se nesta dimensão do espaço como um caractere beckettiano, à espera do acontecimento porvir em tempo indeterminado. Tais circunstâncias, desoladoras pelo grau de sobrevivência forçada que evocam, são preenchidas por um movimento pautado pelo ócio, pela diluição das funções sociais em detrimento de certo conforto necessário à ininterrupta passagem dos dias. Um filme em que o aguardar se faz ato, em que o tempo escorre como fina areia pela imagem-ampulheta.

Assim como no curta de 67, em que quatro homens invadiam um castelo abandonado e se colocavam à espera de um ataque nunca concretizado, os indivíduos agora encarcerados não conseguem evitar o desapontamento pelo cessar bélico — à semelhança do que também veremos em O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976). Enquanto aguardam os rumores de guerra que nunca chegam, eles procuram afazeres que motivem a permanência em seus corpos: pintam o forte, traduzem inscrições antigas, criam cabras, hipnotizam galinhas, inventam armadilhas para capturar baratas, tudo para impedir que a insanidade venha encontrar morada em seu meio.

Mas o inevitável não é coisa que se previne. E os primeiros sinais de que algo não está bem encaixado na rotina que estes seres criam, começam a aparecer. A ruptura definitiva dos níveis de consciência até então preservados por Stroszek, dá-se num cenário que é dos mais emblemáticos para o que compreendemos ser a representação moderna: numa vistoria pela erma região circundante, o soldado se depara com uma árida paisagem reservada para o funcionamento de moinhos de vento. Por meio de alguns cortes no jogo de campo e contracampo, Herzog conclui de uma vez por todas o caráter quixotesco de seu personagem, em planos que prefiguram o olhar do homem e a perspectiva dos moinhos, instaurando a crise que o fará atirar contra eles e completando a loucura que desde o início do filme espreitara. Em decorrência, Stroszek assumirá seu colapso mental voltando-se contra os companheiros e tomando o controle do forte somente para si, assim como do armamento, das bombas e munições que nele estão guardadas; ameaçando implodir o local e, consequentemente, causando pânico em toda a cidade.

Ao contrário do que uma primeira impressão sobre Sinais de Vida possa causar, Herzog não pretendeu com seu filme entregar um mero dispositivo da loucura humana, do abalo típico e muito conhecido que as situações de guerra afligem a seus sobreviventes. É primeiramente no ato de sobreviver, não importam os meios, em que ele se concentra. Se há uma instabilidade no universo — deste filme, de todos os seus filmes — aqui delineado, ela está muito mais relacionada ao espaço do que aos seres que o ocupam. O absurdo e a violência que encerram os últimos atos de Stroszek — e isto vale para o protagonista de Sinais de Vida, assim como para o homônimo da obra-prima que o diretor assinou em 1977, como para o refugiado de O Sobrevivente (2006) — refletem uma deterioração que antes o afetou pelas condições de vida encontradas. Se a guerra não é concretizada, nós a criamos. Se as ameaças são deixadas de lado, nós as retomamos. Esta é a premissa de Herzog diante de um cinema que não pode mais aceitar a passividade das formas, que não pode responder ao calado mundo do séc. XX com um mesmo silêncio. De certa maneira, Sinais de Vida não deixa de ser um filme sobre a loucura da guerra; mas o louco é Herzog, e a guerra, todo o cinema que ele fará a partir daí.

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O Outro Homem (Carol Reed, 1953)

Desde o final da Segunda Guerra, Carol Reed se especializou na elaboração de cuidadosos suspenses, muito próximos entre si por características centrais ao enredo e à investigação dos personagens como pela aposta num estilo próprio muito forte e facilmente identificável. O Outro Homem, dentro de sua carreira, destaca-se como uma obra em plena coerência com seu imaginário particular, mas também como um passo adiante, um novo olhar com perspectivas diversas dos feitos anteriores. Ao mesmo tempo em que enxergamos variáveis já presentes em O Condenado ou O Terceiro Homem, também percebemos que há um nível de desenvolvimento latente, contornando todo o trabalho visual e a psicologia das relações aí existentes.

Sem dúvida, o elemento que mais pode nos ajudar a entender essa nova postura reside na potência que se revela a personagem de Susanne (Claire Bloom), caráter ímpar em toda a filmografia do cineasta, não apenas pelo poder de sua feminilidade como pelo desdobramento que sua identidade tomará no decorrer da trama. Nunca Carol Reed tinha nos apresentado uma mulher tão singular. Seus filmes, geralmente conduzidos por homens incautos, atormentados por culpas e erros não resolvidos, culminam aqui, mesmo através de uma mulher (e talvez somente por isso), num dos casos mais viris e impetuosos de amadurecimento, de confrontação com a realidade e a aceitação de caminhos duvidosos, porém necessários. Ficamos mesmo sem palavras ao nos depararmos com tanta força diante de um ser que aceita as terríveis condições de sobrevivência, por um amor que não oferece segurança, e que muito mal se afirma como amor puro, ideal. Pois já não há lugar para inocência.

Nesse sentido, Susanne é muito próxima do pequeno Phillipe, protagonista de O Ídolo Caído, menino que amargamente descobre a diferença entre a verdade e a mentira, e que para alcançar o que é verdadeiro se verá obrigado a desfazer-se de sua inocência e fragilidade. Duas cenas de O Outro Homem interligam-se para testificar a transformação de Susanne. A primeira, quando numa fuga desesperada pela madrugada nas ruínas de Berlim, vê-se confundida com uma prostituta por devassos que lhe perseguem num carro; um pouco depois, também em desespero por um escape, aceitará ser tomada como uma ‘mulher fácil’ para confundir seus perseguidores. Numa mesma alma encurralada, um confronto de dois pólos. No fingimento de Susanne, uma chave para todo o cinema do próprio Reed.

Há muito Reed também já tinha aprendido seus truques. Revestir narrativas com mirabolantes reviravoltas, impressionantes cenas de ação física e humor inusitado, é coisa típica no cinema em jogo. E é muito bom constatar mais uma vez que a própria condição narrativa do cinema de Reed constitui-se como uma exuberante roupagem para a elaboração meticulosa de sua linguagem. Em O Outro Homem, assim como nos filmes anteriores, também encontraremos a tortuosidade dos ângulos, a simbiose entre personagens e espaços, mas teremos mais. Talvez porque o próprio poder simbólico da cidade em ruínas, comparável somente aos esgotos de O Terceiro Homem, vem representar não só a inquietação de um suposto amor ou a desintegração de uma alma perdida (Ivo Kern/James Mason), mas desafiar a própria razão de ser do cinema. Sob essa perspectiva, Carol Reed dá um passo adiante não apenas em sua carreira, mas através dela auxilia o próprio cinema a mover-se de lugar, de sua segurança clássica, da certeza de uma imagem. O novo lugar do cinema, movediço e incerto, também já não encontrará espaço para inocências e esperanças vãs, pois talvez a única esperança seja fingir. Não fingir para fugir. Mas para enfim viver.

Filmes Citados

O Condenado [Odd Man Out; Reino Unido, 1947], de Carol Reed. 116 min.

O Ídolo Caído [The Fallen Idol; Reino Unido, 1948], de Carol Reed. 95 min.

O Outro Homem [The Man Between; Reino Unido, 1953], de Carol Reed. 100 min.

O Terceiro Homem [The Third Man; Reino Unido, 1949], de Carol Reed. 104 min.

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Missão Impossível: Protocolo Fantasma (Brad Bird, 2011)

Cúmulo da ironia, é nas mãos do diretor menos preocupado com questões autorais em toda franquia Missão Impossível que nos deparamos com um filme em pleno diálogo com ampla tradição cinéfila, repleto de referências e citações que fazem de Protocolo Fantasma um prato cheio não apenas para os admiradores do gênero, mas para todos que curtem um cinema de relação, onde a reviravolta não fica limitada à superfície do que “se roteiriza”, mas alcança tudo o que “se materializa” no corpo da imagem.

Muito mais do que demonstrar competência na organização técnica de uma superprodução e boa dose de rigor no manejo das sequências centralizadas na ação física, Brad Bird oferece com este episódio um leque de conexões que poderia se aproximar, em tese, da proposta original de Brian De Palma ao ressuscitar o personagem de Ethan Hunt — o que aquele próprio não fez, pois apesar de ser ele um diretor da intertextualidade fílmica, seu Missão Impossível não bebe de outras fontes senão do seriado homônimo e alguns títulos de espionagem. Protocolo Fantasma, a começar do belo título encontrado, vem mesmo para jogar com todo um caráter de cinema que se reconhece herdeiro, potencializando não só a condição intrínseca e inerente ao que toca o projeto de um filme sequência (sempre assombrado pelos fantasmas de seus antecessores), mas também inserindo-se numa filiação de certo cinema americano que tem renovado a maneira de colocar uma imagem em diálogo.

Nesse sentido, vem logo à mente a significativa escolha da atriz Léa Seydoux para um importante papel de vilã reservado pelo enredo. Esta mulher que, eternizada como A Bela Junie, vem se tornando presença obrigatória de um cinema autorreferente dos EUA (de Tarantino a Woody Allen), ocupa em Protocolo Fantasma um sentido nuclear daquilo que percebemos enquanto jogo de encenação, de restituição do corpo humano dentro de um gênero que tende a ignorá-lo. Léa não é somente Junie, ou talvez porque continue a sê-lo e para sempre será, ela é todo um imaginário francês, como o provam suas breves e definitivas aparições em Bastardos Inglórios e Meia-noite em Paris, filmes que agora encontram no filme de Bird um irmão mais novo.

Ora, não há motivo para considerar o papel de Léa, ou melhor, esta interpretação de uma leitura cinéfila como objetivo de Protocolo Fantasma, uma resposta do acaso. Inocente é acreditar que um filme como este, que faz equipamentos tecnológicos voarem pendurados num Balão Vermelho — toda a sequência do balão trabalha uma virtuose que enfatiza intencionalmente este recorte do imaginário francês —, venha se valer da atriz apenas para preencher o elenco. Se Léa entra e sai de cena (que se ressalte a saída de efeito…) sem aviso prévio é porque toda a constituição de sua personagem baseia-se numa expectativa em que a ameaça está única e simplesmente em sua própria existência enquanto matéria a ser filmada. Léa é o rosto mal visto por Ethan (Tom Cruise) no início de Protocolo Fantasma, é o corpo que não se afirma, ou melhor, que só se deixa exibir depois de aterrorizar por sua ausência; ela é exatamente aquilo em que Ethan se transformará ao final de sua jornada, o que pesa a semelhança da maneira como se filmam a primeira aparição de Léa e a última de Tom: seres cabisbaixos, quase disformes, fantasmáticos.

E se existe uma cena que tenha a força de representar toda a problemática da imagem levantada por Protocolo Fantasma — problema de materialidade, de visibilidade — é aquela assombrosa sequência da tempestade de areia em Dubai que praticamente rompe o filme ao meio. Além da óbvia tensão advinda do caos natural, a situação climática emoldura a melhor perseguição do filme; melhor, justamente porque nela a convicção do olhar é questionada até o limite. Ethan Hunt não enxerga um palmo à frente dos olhos, e se o vemos é porque a câmera praticamente cola em seu corpo. Dissolvem-se as certezas, os alvos, e ficamos todos à mercê do que não se pode ver, mas que continua lá, em permanente ameaça. Pelo menos desde Vento e Areia, filme agonizante de todo um estatuto do olhar, sabemos que, no cinema, a confiança não pode se estabelecer apenas pelo que se vê, ainda que a visão seja o único recurso para enfrentar o mundo. Protocolo Fantasma reafirma, ao seu modo, que todo movimento parte de um princípio ativo básico (ação, uma condição dramática) para assim gerar o prazer de ver. Porque simplesmente enxergar é clímax.

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Pina (Wim Wenders, 2011)

Filme saudade, o novo documentário de Wim Wenders é coisa pra se tocar com reverência. Mais do que um lamento de homenagem ou o registro póstumo de uma grande figura da arte contemporânea, Pina concretiza o movimento de um cinema íntimo, de algo que parecia guardado pelo diretor há algumas décadas — o que importa ser realmente um projeto nutrido no decorrer de pelo menos vinte anos —, ultrapassando a já compreensível expectativa que possa ter se formado ao redor dele. O filme, antes de ser um retrato da mulher que o nomeia ou da equipe que, metodicamente, se presta a (re)construir todo um imaginário estético de sua líder, é retrato primeiro da elementar condição dos gestos físicos, de uma harmonização do tempo e do espaço como somente o cinema é capaz de possibilitar. Daí ser incabível tratá-lo como cinema-dança, cinema-teatro ou a partir de qualquer outra conjugação. Pina é filme que se sustenta só, estabelecido nesta rígida composição que a imagem em movimento nutre desde os mais primitivos experimentos que associaram o cinematógrafo a corpos que dançam no espaço. Composição de luz e sombra.

Se necessário fosse aproximar este filme de qualquer um legado por seu diretor, vão seria procurar referência num dos muitos documentários que ele assinou a respeito de nomes das artes (o leque de títulos é grande); pelo contrário, se há um filme de Wenders que serve de reflexo a Pina, este não pode ser outro senão O Estado das Coisas. Pois era ali que Wenders se descobria encurralado com os rumos da criação, era naquele ponto de uma carreira com altos e baixos que ele olhava para todos os lados e não encontrava o ponto pacífico da continuidade, por mais que esta se fizesse urgente. Ele lidava com a morte. E por mais que Pina exale uma tranqüilidade e coerência cabais, sobra ao fim de cada cena, de cada coreografia, uma incômoda interrogação sobre o ‘como continuar’, sobre o que esperar do tempo vindouro, especificamente dentro do que se aguarda de uma superfície fílmica.

Enfrentar a morte de Pina Bausch foi o impulso definitivo, o motivo final. Talvez por isso tenha sido preciso abandonar o palco, ou melhor, prossegui-lo numa variação de espaços públicos e naturais que também concordam com esta carência de vida. Argumentos da fragilidade. Ao fazer com que os dançarinos invadissem a cidade de Wuppertal, Wenders restituiu toda uma trajetória biográfica, abandonando o didatismo que parecia inevitável e apostando numa retórica de autonomia superior, pois quase nula. Há de se destacar uma delicada repetição que se ergue aqui: durante todo o filme, inúmeras vezes, Wenders efetua uma nada discreta suspensão do tempo para colocar em cena os quarenta dançarinos em fila, repetindo uma mesma dança, conscientes da câmera; disso se constitui a abertura e um primeiro encerramento do longa, momentos clímax, inicialmente num palco, finalmente numa planície. Do derradeiro gesto aí repetido, um decalque que nos lembra as sombras de O Sétimo Selo, na família que caminhava para a morte, e também a evocação do desfecho em Oito e Meio, pela agonia de se viver uma última dança não como alternativa, mas na dor de uma condenação. À semelhança de Fellini — e do que foi todo o cinema de Wenders nos idos dos anos 80 —, o desfecho de Pina encerra uma espécie de ofertório, de implacável sacrifício.

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O Mundo Vivente (Eugène Green, 2003)

“[…] eu sei que para mim, para quem as flores fazem parte do desejo, há lágrimas à espera nas pétalas de uma rosa. Sempre me aconteceu a mesma coisa, desde a infância. Não há uma única cor escondida no cálice de uma flor, ou na curva de uma concha, à qual, por alguma sutil simpatia com a alma das coisas, a minha natureza não responda. Como Gautier, sempre fui um daqueles pour qui le monde visible existe.”

Para quem o mundo visível existe.

Recordar as palavras que Oscar Wilde dedicou ao amante enquanto estava preso e impossibilitado tanto de manter contato com sua família, sua arte e o mundo, é aproximar-se do espírito que Eugène Green captura em seu mundo particular e nos apresenta neste, um dos filmes mais fantásticos já feitos, onde o registro do fantástico, verdadeiramente extraordinário, adquire significados que ultrapassam o tom da fábula em privilégio primeiramente ao mecanismo cinematográfico, naturalmente dotado e voltado para a capacidade de instaurar a fantasia. Mecanismo que, aqui, revela-se em suas possibilidades mais profundas, ao mesmo tempo distintas e indiscerníveis ao mundo; obriga-se a um rigor na representação que altera o que há de natural nos códigos visuais e na noção de expectativa narrativa; liberta-se das amarras físicas impostas pela natureza da imagem em direção a um estado e um direito de ser próprios. Mecanismo para quem o mundo existe.

Poucas vezes o cinema terá alçado alturas que beirem o inconcebível, fazendo da fantasia não somente um chavão de gênero, mas um lugar e, definitivamente O Lugar, que é devido a si. Pois se a fantasia aflora no mundo de Green como condição primeira do entendimento/sentimento, o faz incidindo ao mesmo tempo no objeto narrado como no objeto que narra, ou seja, desenvolvendo conjuntamente a simplicidade do enredo e a reflexão do que movimenta a imagem fílmica, daquilo que subsiste como vetor da fantasia e por ela sobrevive. Uma imagem, em Green, é mais do que um elo da corrente — seja ela de um corpo, de parte dele, de uma matéria orgânica ou mineral —, cada uma é como um mundo próprio, dotado de um existir e de uma visibilidade tão particulares que quase independentes entre si, o que de fato seriam caso o corte também não significasse todo um novo mundo. É de cortes que a fantasia de Green se alimenta, nutrindo não somente o rico arcabouço visual por ele conseguido, mas sensibilizando em nós, na mente espectadora, um mundo outro; mundo que é quase indiferente ao filme, pois maior no pormenor e mais próximo do mundo primeiro que a câmera conheceu.

Numa determinada cena, a bela dama aprisionada como esposa do temível ogro revela que está unida a ele por palavras e que somente palavras de maior peso poderão libertá-la do jugo. Green demonstra crer nisso tão piamente que imprime um peso único a tudo que filma, somente assim alcançando a libertação de amarras já sedimentadas pelo cinema em sua forma de narrar e figurar uma situação dramática. O cinema, aqui, não é mais aquele interessado unicamente em instigar a imaginação de um público — apesar de atuar diretamente nela —, agora é ele próprio quem se permite imaginar, ir além, pelo que mostra e pelo que oculta, pelo que une e o que separa, pelo vigor de uma continuidade que não se contenta com o prosseguimento do que é visto, mas com um convencimento do que é vivo, e que vive, além do filme.

É mais uma vez em Wilde, homem que também libertou-se pelo peso das palavras, que entendemos o domínio do imaginário:

“O passado, o presente e o futuro mais não são que um momento, aos olhos de Deus, sob cujo olhar devemos tentar viver. O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão, não são mais do que condições acidentais do Pensamento. A imaginação pode transcendê-las, e passar para uma esfera livre, de existências ideais.”

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O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)

Em O Livro de Cabeceira, lidamos com um universo em que a escritura surge como resposta à existência, dentro de um caráter que beira o inexplicável sem abandonar o que é intrínseco a toda uma compreensão racional da vida. Se em determinado momento a protagonista do filme tenta “colar” uma folha datilografada em seu peito, parecendo desejar que as letras impressas lhe penetrem a pele, é para que tenhamos a certeza de que as atitudes dela transcendem o patamar de um fetiche ou exotismo fantasioso. Escrever no corpo é como respirar. É como se nada bastasse em si para permanecer além do contato com as tintas utilizadas na escrita.

Os textos aqui centralizados por Greenaway, notadamente dotados de um interesse literário inspirado na tradição de Sei Shonagon (967 a 1017 d.C.), revestem-se com a importante função do registro da memória. Gênero literário dos mais respeitados pela cultura milenar japonesa, os “Livros de Cabeceira” resgatam não apenas a memória individual de quem os escreve como todo o imaginário social de uma época; a própria obra de Shonagon (Makura no Soshi), por exemplo, é considerada uma das maiores da história da literatura japonesa. Quando, no filme, surge o desejo de se escrever esse gênero sobre corpos humanos, inaugurando o que podemos chamar de uma “textualização do corpo”, atesta-se uma relação incondicional com a ontologia das tatuagens enquanto portadoras de memória e símbolos significantes materializados através da imagem. O corpo escrito/tatuado que Nagiko (Vivian Wu) cria nos amantes passa a não mais ser possuído apenas pelo ser que o utiliza enquanto suporte de vida (os amantes), antes e primeiramente, torna-se propriedade da nova autora, que reconhece na pele inscrita uma manifestação de seu interior (memória).

Há de se considerar que todo O Livro de Cabeceira se estrutura como uma variação direta da prática da tatuagem. Exemplo disso pode ser encontrado logo no início do filme, enquanto acompanhamos a leitura do Livro de Sei Shonagon pela tia de Nagiko. A ação é apresentada da seguinte forma: a página do livro é fotografada como fundo da tela, com as palavras e o número da página sendo revelados; sobre ela, em fusão, a tia realiza a leitura do livro; por fim, no centro da tela, é superposto outro pequeno quadro com a representação do que a mulher lê. Uma leitura permitida por essa “outra tela”, mais apropriada aos momentos em que as visualizações de cada moldura são opostas narrativamente (cada uma contando uma coisa diferente), é a certeza de que Greenaway realiza com esse filme, a tatuagem na imagem por outra imagem. A superposição aí trabalhada alcança, assim, um nível de problematização muito maior do que a simples “divisão de telas” como um procedimento já recorrente na criação cinematográfica de muito tempo.

“Rasgar” a tela principal com um “recorte” de outras telas/janelas — muito apropriado o conceito computacional, já que lidamos aí com uma variante da cultura do hipertexto — é um ato que, na verdade, harmoniza-se com as próprias escrituras de Nagiko, não só as que ela faz em seus amantes, como as que ela recebe desde a infância, ou seja: os ideogramas orientais — registre-se a referência ao paralelo que Eisenstein traçou entre a imagem de cinema e um ideograma. Se nos é impossível enxergar ao mesmo tempo tudo que se passa em cada tela de Greenaway, assim como a leitura de uma palavra sobre a outra dentro do suporte literário, tais limitações parecem se debruçar não sobre as expressões artísticas, mas naqueles que as apreendem, nos que definem a utilização e permanência do texto, do corpo. Pois o problema fica:

O corpo é um alfabeto? Pele pode servir de papel? Há imortalidade no texto? A espinha do livro é a mesma vértebra do homem? Qual é o preço em palavra do amor carnal? O texto pode sentir ciúme? Podem os livros trepar com outros livros e produzir mais livros? Sangue é tinta? A pena é um pênis cujo propósito é fertilizar a página? Aquela que era o papel pode tornar-se a pena? E se foi o corpo que fez todos os signos e símbolos do mundo, passando do cérebro pensante para o braço que move e daí para o gesto da mão e daí para a pena rígida sobre o papel silencioso durante milhares de anos, e agora? — agora que todos nós escrevemos com teclados? Teremos rompido um elo essencial? Haverá agora uma necessária evolução futura para as letras e as palavras? E, se as palavras foram feitas pelo corpo, onde haveria um lugar melhor para depositar essas palavras do que de volta no corpo?

(Peter Greenaway)

Filmes citados

O Livro de Cabeceira [The Pillow Book; França/Inglaterra/Holanda/Luxemburgo, 1996], de Peter Greenaway. 126 min.

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Mais Forte Que a Vingança (Sidney Pollack, 1972)

Segundo um comentário de Phillipe Paraire ao faroeste no cinema americano, o período conturbado dos anos 70, com suas crises e questionamentos sociais, encontrou nesse gênero um retorno do homem à natureza, uma renovação do espírito quando em comunhão com seu ambiente original. De acordo com ele, o western clássico, famoso por tornar célebres em todo o mundo os grandes espaços do sudoeste nos EUA, lograva então transformar de fato a presença da natureza como personagem principal da narrativa filmada, renovando a tradicional manipulação cênica do gênero. Com Jeremiah Johnson — porque ninguém merece a tradução brasileira —, Sidney Pollack se junta a nomes de sua época, como Arthur Penn (Pequeno Grande Homem) e Robert Altman (Quando os Homens São Homens) para restituir com sua arte o lugar do humano no mundo.

Em linhas gerais, o personagem de Johnson (dos maiores trabalhos que Robert Redford já fez, e que o próprio reconhece como seu favorito) nos é apresentado como um homem branco que abandona o centro urbano para se tornar um montanhês solitário, um eremita errante que simplesmente deseja ser esquecido por todos, vivendo apenas consigo próprio. Todos os fatos e ações percorridos no decorrer do filme são um pretexto para retratar a sobrevivência desse homem. O retrato ficcional biográfico (que posteriormente marcaria a história das HQs inspirando o personagem Ken Parker) aí atinge proporções míticas, sendo assistido em onipresença pelas incontáveis montanhas nevadas que o rodeiam e observam, incólumes.  “A montanha é implacável” afirma um velho montanhês, mas não é isso que incomoda Johnson. A vida que assusta nosso herói, aquilo que ele toma por perigo concreto, é justamente tudo o que ele viveu até então. Sua subida pelas montanhas e o processo de reaprendizagem para sanar necessidades básicas de sobrevivência são a maneira que ele encontra para realizar aquilo que a vida comum não pôde oferecer.

Uma seqüência que merece ser lembrada em especial é a que vemos Johnson encontrar uma família executada e socorrer a mulher e a criança que sobreviveram a um massacre. Em seu início, Johnson descobre o acontecimento trágico a uma distância no espaço que não lhe permite riqueza de detalhes. Nós, como espectadores, apreendemos esse instante dentro do esquema clássico de ação e reação; assim, o que vemos são três intercalações entre o fato visto e o sujeito que vê, sendo que, a cada corte de retorno ao fato visto, nos aproximamos da encenação muito além do verossímil olhar de Johnson, ocorrendo dessa maneira a restituição da autonomia à câmera e do poder privilegiado inerente ao espectador. A mulher enlouquecida dirige palavras apenas aos mortos e o menino calado permanecerá mudo por todo o filme, não nos dando a descobrir se seu silêncio é proveniente de uma deficiência natural ou do choque da tragédia. Quando Johnson encontra o menino escondido, sua primeira pergunta é: “Garoto, você viu tudo?” Não há resposta. Acompanhamos a dor do enterro com uma câmera que se distancia em respeito, vemos a mulher entregar o menino para Johnson, ainda sem proferir uma palavra, e no decorrer do filme atravessamos outras peripécias de Johnson, como a conquista de uma índia, que presenteada pelo pajé (seu próprio pai), também não saberá se comunicar, por não conhecer o inglês dos brancos.

Retornemos então à pergunta não respondida de Johnson ao menino: “você viu tudo?”. Nós não vimos. Não vimos a vida de Johnson antes de subir a montanha, não vimos a família do menino ser executada, não vimos como se deu a execução da própria família de Johnson (a índia e o menino) que se dará posteriormente no filme, e não veremos se Johnson algum dia irá encontrar resposta para esse grito interno que o atormenta. Ao colocar numa balança tudo que foi realmente apresentado aos olhos do espectador e aquilo que foi apenas sugerido ou compreendido elipticamente em Jeremiah Johnson, podemos nos perguntar se a experiência fílmica se dá pelo que é efetivamente exibido ou pelo que se completa na dinâmica do imaginário de quem assiste. Afinal, o que é ‘permitido’ dentro da imagem de cinema?

No fim do filme, Johnson encontra uma nova família refugiada no lugar em que encontrou a mulher louca e o menino mudo ao início de sua jornada. Lá, foi construído um monumento semelhante a um túmulo em homenagem ao mito que Johnson se tornou para as pessoas da região. O homem que o encontra diz: “Você é ele”, num misto de pergunta e afirmação. Completa: “Nós nunca o vimos. Nunca sequer o ouvimos. Alguns dizem que já está morto, outros que jamais morrerá.” São palavras que completam a lenda. Que reafirmam o sabor experimentado por todo o filme em se estar diante de uma odisseia de um Ulisses moderno. Em nossa memória permanece a lembrança de um personagem, de uma experiência que não termina de ser exibida enquanto lembrada, pois a resposta aos questionamentos levantados talvez esteja no limiar de nosso inconsciente, todo ele carregado de imagens que acumulamos pelo cinematográfico. Imagens que excedem um exemplar de gênero para alcançar um lugar em nós que, quando em contato com o que há de essencial no cinema, se permite transcender. Numa memória que não se encerra.

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Melancolia (Lars Von Trier, 2011)

Apesar de Von Trier, Melancolia é um filme que se esforça para subsistir enquanto experiência de cinema. A arquitetura do espetáculo, pela eficácia de seu último minuto, confirma uma obra que pede a tela grande e os recursos mais avançados de projeção e sonorização existentes. Há no encontro dos dois planetas, e na escatológica destruição daí proveniente, uma abordagem catártica que, de tão eloquente, torna compensados os demais 135 minutos roubados do espectador. Pois em Melancolia tudo acontece apesar de algo menor.

Não há spoiler possível para este filme. Na verdade, tudo já foi dito sobre Melancolia, tudo já foi visto. Seja na carreira pregressa do diretor, retomada aqui de maneira estéril em referência a diversos de seus filmes, seja no resumão que ele faz nessa nova mania de prólogo antiliterário  (aqueles minutinhos iniciais que, desde Anticristo, comprovam um Von Trier capaz de sobreviver fazendo comerciais de shampoo), todas as cartas são colocadas na mesa assim que vemos o nome dele estampado no cartaz de divulgação.

Numa análise técnica, podemos situar seu novo trabalho como a elaboração perfeita de uma fórmula, pois tudo funciona muito bem: o roteiro tem um excelente ponto de partida, o elenco está afinadíssimo na incorporação de caricaturas sociais rasas, a fotografia deslumbrante concorda com todos os excessos da produção, a começar pela excepcional edição de som, esta sim, das maiores que o cinema já provou. Mas é constatando o resultado final de Melancolia que nos lembramos uma vez mais de que cinema não é fórmula matemática, de que a lógica interna da representação carece de um brilho próprio, um deslocamento, um vir a ser que necessita da encenação (mise en scène) enquanto recurso que não pode ser burlado, falsificado ou padronizado como Von Trier o pretende.

Definir um estilo não é valer-se sempre das mesmas telas e fontes de créditos (Woody Allen quem o diga), não é impor a imagem de si como algo maior que a imagem-filme (ou então Godard nada seria), assim como homenagear alguém não consiste em escrever dedicatórias vazias a um nome (porque nunca, nunca a memória de Tarkovski em Anticristo será justificável). Acima de tudo, Melancolia se sustenta como uma homenagem de Von Trier a si próprio e ao movimento que um dia iniciou, a autorreferência de um cinema que já enfrentou seu apocalipse (quantas vezes será preciso lembrar Anticristo aqui?) e não conseguiu ressurgir.

Nesse sentido podemos tomar como exemplo a primeira metade de Melancolia e sua óbvia relação com Festa de Família, filme manifesto do Dogma ao qual Von Trier faz questão de tornar pastiche em sequências que acentuam, sob qualquer aspecto, suas limitações junto ao olhar da câmera. Pois se no marco dos anos 90 a câmera procurava o movimento espontâneo do mundo, agora vemos o contrário, sendo a câmera quem não se deixa encontrar; é ela quem foge.

Fica difícil nutrir qualquer esperança para um cinema que se autodestrói, que passivamente se rende ao que há de mais previsível no mercado alternativo do cinema, este nicho de festivais e premiações facilmente contentável. Se Melancolia assumisse o posto de último filme de seu diretor certamente teríamos um dos mais belos e incisivos testamentos já feitos. Os contornos seriam outros. Mas há maus ventos dizendo não ser este o caso, o que não nos impede de continuar encontrando nele um paralelo ao final de mundo retratado, o encerramento de um olhar, o derradeiro espasmo de um cinema, a força de um último acorde que precisa ser lembrado, pois inesgotável. Não negamos, Melancolia realiza algo, ele fica, mas tudo apesar de Von Trier.

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A Noiva Vendida (Max Ophüls, 1932)

Por Fernando Mendonça

1932 poderia figurar como um ano precoce para a adaptação de uma ópera no cinema, ao menos se desejada alguma identificação sonora com a peça original. É neste ano que Max Ophüls vem assinar o primeiro filme operístico bem sucedido da história (um nicho a contar com raros representantes em toda a sétima arte), trabalho que também permanece como uma relevante alteridade dentro de sua carreira. Assisti-lo com o conhecimento do que o realizador faria na maturidade — pois dado o absurdo esquecimento que o título sofreu, ele passou a ser procurado apenas por aqueles já familiares ao nome Ophüls — permite uma melhor compreensão não só em termos de carreira, mas até de concepção estética, de possibilidades que abracem o movimento da representação com carinhos distintos.

À menor observação de roteiro já percebemos estarem em A Noiva Vendida todo um arsenal de referências presente no filme-testamento do diretor (Lola Montès): o espetáculo circense, os picadeiros, a algazarra pública. Mas em nenhum momento é possível associar a visão de mundo nutrida em cada um destes filmes. Olhares distintos na trajetória de Ophüls, é curioso como saltam na superfície da tela as características que definem a posição de um homem diante da vida e da arte. De 1932 a 1955 todo um abismo de experiências, crenças e questionamentos que acentuam a coerente autodescoberta vivida pelo cinema de Ophüls com o correr dos tempos.

Primeiramente, a movimentação de A Noiva Vendida não seria brilhante se o fosse conseguida duas décadas depois. É natural o encantamento sentido por um jovem diretor que não se deixa calar pelas convenções de uma narrativa audiovisual (convenções estabelecidas e petrificadas em poucos anos de sonoridade), por isso encontrar o vigor com que Ophüls filma várias sequências, subvertendo o que fora potencialmente teatral, é reconhecer a inventividade de um esteta que era movido acima de tudo pela coragem. Da abertura que situa confusamente — o que é planejado e necessário — os personagens e os espaços da trama, aos últimos planos de frenética coreografia coletiva, temos aqui um cinema que precisa atropelar o tempo, impor-se como algo autônomo ao que é temporalmente externo ao quadro. Urgência que, por inúmeros cinemas, seria vencida nos anos 50.

Mas não é só na técnica que A Noiva Vendida se distancia de Lola Montès. Para além da mise en scène, e pelo que só pode ser provado através desta, há um notável deslocamento ideológico a respeito da ética artística. Nestes trabalhos de juventude, pelo menos em seus dois primeiros longas, Ophüls não encerra qualquer observação crítica (pois sim, ambos são extremamente sarcásticos) senão com uma nota de esperança, de inocente alegria. Entonação impossível para os filmes do futuro. Mesmo considerando a presença do elemento trágico como uma constante que se instaura cedo em sua obra (mais exatamente a partir do italiano A Senhora de Todos), é preciso admitir que em algum momento Ophüls adquiriu uma percepção mais amarga da humanidade, quase totalmente alheia ao A Noiva Vendida. Talvez por isso, vislumbrar sorrisos como os que abundam este filme seja tão doloroso quanto chorar em suas demais representações; por terem vindo depois na cronologia do espectador, eles já chegam pautados pela certeza de que são breves, ou mesmo impossíveis.

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Valsa Brilhante de Chopin (Max Ophüls, 1936)

Por Fernando Mendonça

Clique aqui para assistir.

Filmar musicalmente é um desejo nutrido pela expressão cinematográfica desde o período em que a captura de som era impossível. Dentro das vanguardas européias, inúmeras experiências conseguiram notáveis feitos de sincronização da imagem a partir de uma sensibilidade melódica, e com o surgimento do cinema sonoro, tais possibilidades apenas se acentuaram. Esta Valsa Brilhante de Chopin, pequeno tesouro de uma nova era, permanece não somente pelo olhar que lança a uma performance em si extraordinária, mas pela capacidade de fazer do cinema um ato performático de continuidade, de extensão e criação dos sons que se querem visíveis, plenos. Coisa palpável.

Longe de filiar-se ao nicho que encontraria sentido na simples sincronização audiovisual (núcleo de um gênero dourado e fundamental para Hollywood), Max Ophüls concentraria seus esforços num experimento que partisse simultaneamente do cinema e da música, sem privilegiar um ou outro domínio de percepção (nesse sentido, mais próximo a nomes como Eisenstein e Disney — este em seus primeiros trabalhos). Valsa Brilhante, no primor da encenação e na sinestesia dela proveniente, unifica os sentidos e as reações do público num crescendum de rara intensidade, pois ao mesmo tempo breve e perene.

Da série de planos que articulam a execução musical realizada pelo ucraniano Alexander Brailowsky, renomado especialista em Chopin, não se pode deduzir um cinema que registra o espetáculo, mas que em paralelo o constrói, o materializa. Notemos que não se trata de uma performance pública, mas de uma encenação para as câmeras, daí a liberdade do diretor em abstrair o espaço, criando uma plataforma quase surreal para o suporte do artista e seu instrumento. A sobreposição de palcos em que se assenta Brailowsky não deixa de ser um referente especular ao encadeamento dos motivos musicais e do próprio intercalar de planos fílmicos. Ophüls dilacera o pequeno ambiente, que parece crescer à proporção dos múltiplos planos, e converte a potencial artificialidade do gesto em um organismo vivo, de pulso igual ao ritmo do compasso entoado.

Importa observar que todo um universo de referências toma forma a partir daqui. Seja no aprendizado que o gênero musical assumiu com a devida autoconsciência (George Sidney praticamente refilmou este Ophüls numa antológica sequência de Marujos do Amor, 1945), seja no ecoar das técnicas diluídas pela indústria (documentação de shows, surgimento do videoclipe), a memória do elo entre cinema e música encontra na Valsa Brilhante de Chopin um dos mais belos episódios de sua história. Para se lembrar de que, mesmo numa arte de sons, é preciso aprender a ver.

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Werther (Max Ophüls, 1938)

Por Fernando Mendonça

Como a sua imagem me persegue! Quer vele, quer sonhe, ela enche a minha alma inteira! É quando fecho os olhos, neste ponto da minha fronte onde se concentra a vista interior, que vejo seus olhos negros. Neste ponto! Não posso exprimir-lhe isto. Cada vez que cerro os olhos, eles lá estão, abrem-se diante de mim, em mim, como um oceano, como um abismo; não sinto outra coisa senão eles no meu cérebro.

No original de Goethe, estas palavras ocupam a última carta endereçada voluntariamente por Werther ao seu editor, escritas alguns dias antes do suicídio que marcaria para todo o sempre a história da literatura mundial; morte provocada por um amor impedido, amor mantido por uma obsessão que — a transcrição afirma — é controlada pela imagem da mulher amada.

Dentre os méritos alcançados por Max Ophüls para a adaptação do cânone, o mais importante está na capacidade de dar formas concretas a esta imagem da obsessão, este tormento do olhar. Para isso, destaque-se a ousadia de colocar o próprio Werther, protagonista trágico, num quase segundo plano de enredo, já que toda sua agonia é acentuadamente mediada pela agonia que Charlotte, seu amor impossível, nos mostrará ter.

Já sabemos da importância que o feminino ocupa na carreira do diretor. Poucas coisas significam mais em seus filmes do que as mulheres que neles habitam, na maneira como ele as faz habitar. E se aqui Charlotte (Annie Vernay) surge como um ponto de luz, carregando velas e candelabros, desfilando suas claras vestes em cenários lúgubres, é porque somente através de seu contraste poderemos nos aproximar das trevas que possuem seu desesperado admirador. Um processo de iluminação. Este é o ofício de Ophüls junto ao texto, matéria bruta que não é simplesmente filmada, mas lapidada sob a perspectiva da dor.

Com isso, é natural que o iluminar da tragédia, ou seja, o olhar lançado pelo cineasta sobre ela, priorize alguns eventos em detrimento de outros, sejam eles evidenciados ou não pelo olhar que um dia Goethe nos dera. Talvez o melhor sintoma disto esteja na última imagem do filme, imediatamente anterior ao crédito de encerramento, a ser estampado ironicamente numa contracapa de livro (já no início tivéramos o símbolo bastante banal que fazia o filme começar com o virar de uma página, como indicando algum tipo de fidelidade que na verdade seria ironizada e felizmente deturpada, a exemplo desta cena final). Na cena, Werther suicida-se num campo. Mas não o vemos. Tudo que Ophüls permite materializar na tela é um primeiro plano sobre o cavalo que conduziu Werther até ali.

No animal, a melhor representação do instinto que seu dono não conseguiu domar. Nele, a ausência do corpo vencido, da exaustão assumida por uma força que não condiz à imagem. O ocultar do cadáver, mais do que um decoro ético, vem responder a oração que Charlotte intercede no centro de uma escadaria (espaço central a todo o cinema de Ophüls). E se o diretor precisou abrir mão da materialidade da morte, o fez porque toda a súplica da mulher filmada precisava ser ouvida para além do silêncio de Deus. Em seus filmes, a decadência dos personagens, sempre conscientizada por uma câmera que não se cansa de lhes expor as mais íntimas fraquezas, raramente é acompanhada por algo maior que seus pecados; a idéia divina só se concretiza dentro de uma primeira noção de quadro, primitiva, contrária a qualquer comunhão com os corpos que ultrapasse a margem da tela. Deixá-los crer numa resposta pode ser a única esperança permitida por Ophüls, mas também sua derradeira crueldade, seu abandono. Em Ophüls, não há solução que exceda a imagem.

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O Exilado (Max Ophüls, 1947)

Por Fernando Mendonça

Guardadas as proporções autobiográficas que O Exilado nutre para com seu diretor (temos aqui uma trama onde o rei de uma nação exila-se fora de seu país, curiosamente narrada por um cineasta que precisou fugir da Alemanha nazista), o primeiro trabalho de Max Ophüls em território americano justifica todas as dificuldades enfrentadas por ele no período dos sete anos precedentes, aqueles em que fora impedido de assinar integralmente qualquer projeto cinematográfico.

Talvez como nunca, Ophüls exacerbe sua técnica como um motivo total, justificativa única dos fins permitidos pela produção. Pois promover o nome de Douglas Fairbanks Jr. (quem estrela, co-escreve e produz o filme), dentre todas as desculpas procuradas para uma filmagem, talvez tenha sido a mais vil encontrada pelo cineasta exilado e, com certeza, a melhor contornada, escamoteada, trapaceada pela soberania da mise en scène.

Qualquer eficiência conseguida nas cenas românticas ou de aventura, mais que abundantes, fica em segundo plano se comparada ao verdadeiro triunfo alcançado na construção das atmosferas que estas cenas exigem. São pretextos, situações estampadas para evidenciar algo que as excede, pela câmera, pela concentração dos meios, pela sagacidade de um saber colocar em cena. Não é por acaso que toda a ambientação do filme seja fake (ainda que isso possa ter advindo dos economizados investimentos); dos cenários aos figurinos falsos, da superfície e dos superficiais diálogos, todos os elementos que poderiam enfraquecer O Exilado conspiram por uma unidade que só se consuma pelo vigor de um movimento interno, autônomo, unicamente vinculado ao olhar criativo de seu diretor.

É nas fraquezas de um orçamento e na semelhança aos recursos de outros autores do período — Lang, mais um expatriado geográfico; Welles, um expatriado cinematográfico — que Ophüls encontra a liberdade que nunca tivera, arquitetando um cinema que se afirma enquanto ilusão, e que disso extrai toda a virtualidade necessária ao reflexo exato do real. O êxito no tratamento da profundidade de campo, por exemplo, encaixa-se perfeitamente nas leituras que Bazin fazia naquela época sobre este tipo de composição: um artifício que expõe a ambigüidade do real a ponto de torná-lo mais complexo e atualizado, pois mediado pela câmera e vontade do realizador.

Tudo fica muito claro nos poucos minutos em que Ophüls torna a presença de Maria Montez um interesse central ao filme, os quais confirmam a impressão de que o cinema só se completa para ele quando uma mulher é filmada. Montez surge claramente como um ornamento de luxo, importante apenas para o sucesso de O Exilado nas bilheterias; sua participação é ínfima e pouco decisiva para a progressão do enredo. Mas o que seria o cinema de Ophüls senão uma conscientização do ornamento, do movimento decorativo? Foi Peter Ustinov quem declarou:

Ele era o mais introspectivo dos diretores, um relojoeiro cuja única ambição é fazer o menor relógio do mundo e em seguida, em um súbito rasgo de perversidade, vai colocá-lo no alto de uma catedral.

O único problema de O Exilado estaria na impossibilidade de Ophüls em escalar esta catedral (uma perspectiva não-humana), tendo que abandonar seu relógio no chão desta, à vista de todos. Mas considerando a aglomeração permitida por esta altura (humana) do olhar, há que se considerar outra variação da perversidade, aquela que compreende do público tudo que ele deseja, mas que lhe entrega, pelo excesso, muito mais do que é possível desejar ou mesmo satisfazer, algo que está lá para ser visto, mas que se esconde, que engana. Este cinema que precisa fugir para sobreviver.

Filmes citados

O Exilado [The Exile; EUA, 1947], de Max Ophüls. 95 min.

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