RUÍDO E SILÊNCIO – NEAR DEATH (Frederick Wiseman)

Por Bernardo Moraes Chacur

Com quase seis horas, Near Death (1985) é o documentário mais longo realizado por Frederick Wiseman. É também um dos seus filmes de foco mais restrito, quase não se afastando de uma UTI em Boston. Ao longo de sua duração, as situações se alternam, mas uma certa dinâmica se repete: a comunicação evasiva que se estabelece entre a equipe do hospital, de um lado, e pacientes e familiares, de outro. São diálogos sempre à beira do colapso, limitados pelo jargão e pela constante fuga da responsabilização jurídica, de um lado, e pela incredulidade e limitação física, de outro.

É uma barreira condicionada, em parte, pela nossa relação com a medicina moderna, de quem sempre esperamos prognósticos de salvação. Alguns dos doentes mostrados no decorrer do filme convivem há anos com uma rotina de internações e pioras, mas demonstram uma nítida dificuldade em compreender que as chances de recuperação finalmente se esgotaram.

Mas a julgar pelo que assistimos em Near Death, a responsabilidade por essa incompreensão recai principalmente sobre a linguagem médica, repleta de fórmulas retóricas e eufemismos. É uma dificuldade ressentida pela própria equipe do hospital e verbalizada em mais de uma discussão interna, um embaraço que advém do sofrimento das famílias, da desigualdade de conhecimento e das complicações que surgem na relação entre pessoas e uma instituição. A exemplo de outros trabalhos de Wiseman, vemos profissionais aparentemente bem-intencionados em situações nas quais transparecem algo de absurdo e revoltante, um elemento cuja origem e extensão escapam a qualquer explicação fácil.

Há ainda outros limites: pacientes praticamente incapazes de falar, de quem os médicos precisam extrair sinais de entendimento. Ou a imprecisão do conhecimento clínico, quando melhoras e pioras desmentem previsões que haviam sido longamente debatidas.  E, em meio a todo esse quadro, há um silêncio significativo:  o dos responsáveis pela limpeza, transporte de material e de pacientes, vários dos quais negros, movimentando-se na periferia da imagem ou observados em seus afazeres em cenas rápidas e sem diálogos, em claro contraste com a verborragia da equipe médica.

Finalmente, um outro elemento marcante é a racionalização dessa experiência extrema: vale notar a leveza – real ou dissimulada – com a qual o corpo médico encara a própria rotina. Entre esses dois elementos – a comunicação vacilante e a negação da seriedade da morte – Near Death explora como o inevitável se torna praticamente indizível.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes e aos editores e colegas da Multiplot.

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Avatar: Franquia frustrada ou antifranquia?

Por Bernardo Moraes Chacur

Na superfície, Avatar (2009) não destoa muito dos blockbusters recentes, treze anos depois do seu lançamento original: seja pela onipresença da intervenção digital, pelo uso de 3D, ou pela duração de mais de duas horas. Sob outros aspectos, no entanto, é um objeto estranho no contexto do cinema de franquias.

Com relação à narrativa em torno do filme, temos de um lado a marca autoral de James Cameron, em oposição aos diretores (geralmente) intercambiáveis empregados pela Disney[1], por exemplo. Ao invés de um cronograma de quatro lançamentos anuais, um perfeccionismo que exigiu quatro anos para a produção do primeiro longa e mais de uma década para a entrega da continuação. Seria fácil exagerar e romantizar indevidamente esses contrastes, mas talvez a única sabotagem possível no capitalismo tardio seja justamente algum grau de ineficiência.

Enquanto o público contemporâneo foi gradualmente condicionado a esperar pelo retorno cíclico do já conhecido, de personagens, histórias e cenários familiares, Avatar entregava novas vistas: a topografia insólita, a fauna e flora cujas características se embaralham, uma multiplicidade de cores e fosforescências, a exploração do 3D. Se há uma cena que encapsula essa profusão, é o momento no qual o herói busca se conectar com uma das feras aladas: depois de transporem uma cachoeira, os Na’vi se concentram em um dos cantos do quadro enquanto um novo panorama se descortina do lado oposto. Há movimento e formas estranhas vindo de todas as direções, acompanhados por oscilações da “câmera”. São imagens que seguem inusitadas, talvez por não terem sido canibalizadas até o momento em continuações, prequelas ou spin-offs. Ou talvez por possuírem algo de único e fugidio e que dificulta que sejam engarrafadas em série.  Os detratores de Avatar costumam menosprezá-lo justamente por essa suposta falta de “pegada cultural”, como se o citacionismo nerd e decoração de festas de aniversário fossem métricas indiscutíveis de valor.

Outra crítica recorrente é apontar os clichês do roteiro escrito por Cameron, mas em 2022 vários desses elementos genéricos parecem menos usuais, à medida que Hollywood se afasta dos tipos de filmes que fabricou por décadas. Mesmo a postura anti-establishment do enredo, que poderia ser lida como tímida ou inconsistente, se revela mais certeira com alguma boa-vontade. 

Uma cratera na memória racial

Logo antes da última briga, o vilão pergunta ao herói:  qual a sensação de trair a própria raça? A palavra poderia estar se referindo tanto à espécie (à raça humana) quanto à sua condição de branco. Os dois sentidos cabem no contexto, aplicados a um protagonista que havia rejeitado tanto o antigo corpo quanto o ideário do Destino Manifesto.

Tudo isso está no primeiro plano do enredo, reiteradamente e sem subterfúgios. Vale lembrar, no entanto, que certo grau de anticolonialismo, pró-ambientalismo e simpatia/condescendência pelos povos originários já circulavam havia décadas pelo cinema de Hollywood. A carga polêmica desses temas já estava tão esvaziada a ponto de render tratamentos como o oscarizado Dança com Lobos (Kevin Costner, 1990) e a animação Pocahontas da Disney (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) – tantas vezes comparados a Avatar em tom de deboche. Nesse tipo de filme, os genocídios costumam ser retratados como uma História confortavelmente distante, sem comunicação ou comparabilidade com os dias atuais. A produção de Cameron, ambientada mais de cem anos no futuro, talvez pudesse ser lida assim, como simples alegoria do passado, um faroeste revisionista sob uma capa de ficção científica.

Mas há elementos extemporâneos que desafiam essa interpretação. Por exemplo, quando o vilão orienta as suas tropas a destruir a árvore que é o centro da vida material/espiritual dos Na’vi, se vangloriando de que assim criarão “uma cratera na memória racial” dos nativos. Se a retórica dos tempos coloniais e neocoloniais ainda cultivava a farsa da Missão Civilizatória, a fala do coronel reflete um raciocínio que não só reconhece a própria crueldade como a instrumentaliza em nome da eficiência, a exemplo da política de Choque e Pavor (Shock and Awe), em voga durante as duas invasões do Iraque e diretamente citada por outro personagem ao longo do filme.

Boa parte dos soldados que recebem essas ordens de extermínio é negra, detalhe tão tétrico quanto apropriado (uma vez que representam 12% da população dos Estados Unidos, mas 21% das forças armadas da ativa[2]) e evidenciado em mais de um contraplano. Tanto o discurso militar quanto a composição étnica desse exército privatizado ancoram Avatar no presente. Tendo como referentes simultâneos a conquista do Oeste e as guerras do século XXI, Cameron situa a invasão de Pandora em uma História contínua de depredação.

Uma vez reconhecida a carga política de Avatar, também é necessário admitir o óbvio e dizer que a maior bilheteria de todos os tempos possui limitações como discurso anticapitalista ou polêmica racial, narrando uma história de salvador branco que se revela mais índigena do que os próprios indígenas. Cameron também perpetua aqui o mito no qual o anticorpo necessário para enfrentar a brutalidade dos invasores brancos é um invasor branco com uma dose extra de valores progressistas.

Ainda assim, há imagens que articulam uma perturbação genuína, como as dos animais em chamas após o ataque à árvore-ancestral, semelhantes às do holocausto ambiental que se intensificaria a partir de 2020 na Amazônia. Sempre se falou sobre o potencial (e perigo) da ficção como doutrinadora ideológica, mas qual a extensão dessa influência, caso ela se exerça? Como as pessoas que viram e reviram Avatar conciliam a clara mensagem pró-ecológica e seus próprios posicionamentos políticos? Mesmo considerando as várias camadas de desinformação e negacionismo envolvidas, podemos imaginar que pelo menos parte desse enorme público foi capaz de processar as ideias propostas pelo filme e mesmo assim reagiu com indiferença, considerando-as impertinentes ou inaplicáveis à realidade.

(Reassisti Avatar em setembro de 2022, em um multiplex de Brasília, em sessão razoavelmente cheia. Poucos dias depois o candidato derrotado à reeleição para presidente receberia quase 52% dos votos no Distrito Federal. Em 2018, esse percentual havia sido de quase 70%.)

Não é raro que cinéfilos de esquerda consumam filmes com graus variados de conservadorismo, cativados pela narrativa, por interesse estético, histórico, pelas neuroses desse discurso, por masoquismo e, ocasionalmente, identificação – relações que também devem se verificar ao longo de todo o espectro político.

Nunca foram modernos

Em Pandora, os Na’vi estão conectados aos animais e vegetais que os cercam – mas isso acontece pela via de um rabo de cavalo que é simultaneamente penteado e cabo USB. Os seus antepassados seguem vivos na grande árvore, mas isso é aferível graças a impulsos elétricos mensurados pela equipe de cientistas. Avatar habita essa contradição: valida outras perspectivas, na contramão do racionalismo clássico, mas para isso, recorre ao lastro desse mesmo racionalismo. Há sobrenatural e saberes ancestrais, mas como territórios a serem conquistados pela ciência.

Há pelo menos duas formas, que não se excluem mutuamente, de interpretar essa postura. A primeira seria ressaltar a inconsistência, alojada sob a boa intenção. A segunda é avaliar o que acontece com essas descobertas científicas no contexto do enredo, desconsideradas e ridicularizadas assim que se tornam inconvenientes para os interesses econômicos em jogo. Há aqui, mais uma vez, um exemplo do saldo geral de Avatar: para cada elemento simplista, outro momento lúcido e onde cada lugar-comum pode ser tornar vívido graças à inspiração visual e narrativa.

Cena pós-créditos: impressões após assistir Avatar: O Caminho da Água (2022)

Vi o segundo filme pouco depois da conclusão do texto. Seguem minhas impressões sobre como ficaram os temas desenvolvidos acima, à luz do novo episódio:

Há um bom número de repetições em Avatar 2: da estrutura, de situações e personagens (do vilão, inclusive). Se parte disso pode ser atribuído a inércia própria das continuações, em pelo menos um caso enxergo mais uma reiteração pertinente do que falta de originalidade: ainda no prólogo, vemos novamente os animais e a mata incendiada, uma imagem cujo horror se renova a cada vez, dentro ou fora do universo ficcional — e que deve ter continuado a assombrar James Cameron.

Com relação à política, desde o primeiro momento não há qualquer ilusão de convivência pacífica: a invasão humana já começa brutal e encontra como resposta imediata atos de terrorismo. Posição bem mais direta do que o típico deixa-disso centrista predominante no cinema/discurso mainstream.

Na trama original, cada ideia “radical” parecia conviver com outra mais conservadora. Essa dinâmica se repete na nova história, mas o polo menos convencional tende a ser  favorecido. Os êxtases da filha adotiva do herói são diagnosticados pelos cientistas como epilepsia, explicação que é desautorizada mais à frente. Jake Sully prioriza a família nuclear em detrimento da tribo e do povo, mas tem algumas de suas convicções postas em cheque ao final da intriga.  

Avatar 2 conecta mais uma vez o capitalismo passado e contemporâneo. A caça aos tulkuns combina séculos de pesca às baleias (especialmente a extração de espermacete) em cenas que detalham um processo tão cruel quanto eficiente de chacinar animais pelo lucro. Não por acaso, a eventual desforra contra os soldados e baleeiros será mostrada de forma igualmente clara e cruenta, com certo prazer vingativo.

Há um peso incomum na ação e na violência em cena, especialmente em comparação com a falta de densidade prevalente nas últimas décadas de cinema de entretenimento. Costuma-se atribuir essa falta de gravidade ao uso de CGI, mas Cameron e equipe demonstram que é possível criar um mundo ficcional convincente com ferramentas digitais. Não me parece coincidência que um tal resultado seja obtido por um diretor capaz de articular, em suas imagens, reflexão e revolta genuínas sobre a realidade que nos cerca.


[1] Ironicamente, uma vez que a Disney absorveu a 20th Century Fox em 2019, Avatar também virou mais um ativo do estúdio.

[2] Dados de 2021 e 2019, respectivamente.

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Retórica, obscenidade e sistemas automáticos – O Auge do Humano e Friedrich Kittler

Por Bernardo Moraes Chacur

A narrativa precisa ter caráter (…), indicar o propósito moral (…). É por isso que argumentos matemáticos não possuem caráter, uma vez que também lhes falta propósito moral (…).1

Aristóteles, A Arte da Retórica.

Se forjássemos (…) máquinas de contar histórias (…), que funcionassem sozinhas, (…), elas funcionariam absolutamente como o Sr. Flaubert. Sentiríamos nessas máquinas tanta vida, alma, entranhas humanas, quanto no homem de mármore que escreveu Madame Bovary com uma pluma de pedra, como uma faca de selvagens.

Barbey d’Aurevilly, Le Pays, 6 de outubro de 1857

A originalidade da fotografia com relação à pintura reside (…) em sua objetividade essencial. Tanto que o grupo de lentes que constitui o olho fotográfico substituindo o olho humano se chama precisamente “a objetiva”. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação, nada se interpõe além de outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem intervenção criadora do homem, segundo um determinismo rigoroso.3

André Bazin, ‘Ontologia da Imagem Fotográfica’ em O Que é o Cinema?

A arma autoguiada da Segunda Guerra Mundial deu cabo de dois conceitos fundamentais da modernidade – o da causalidade e o da subjetividade. – e iniciou a atualidade como era dos sistemas técnicos. (…). Quer sejam digitais ou analógicos, os sistemas técnicos são sempre autônomos.4

Friedrich Kittler, ‘Unconditional Surrender’, em A Verdade do Mundo Técnico.

O registro impassível da realidade é historicamente associado à matemática, às máquinas e – como no caso de Flaubert – ao obsceno. Desde, pelo menos, Aristóteles, a falta de comentário, a ausência de um juízo claramente articulado, costumam ser interpretadas como lacunas retóricas e morais. Há pouco mais de cem anos, a fotografia e o cinema – pretensamente livres de subjetividade – vieram complicar essa discussão. Nas últimas décadas, sistemas automáticos passaram a afetar quase todos os aspectos de nossas vidas, tornando questões sobre neutralidade e despersonalização incontornáveis e cada vez menos claras. Qual é o caráter de uma decisão automatizada? Como decodificar discursos sem narração manifesta? E, em contrapartida, até que ponto devemos nos deixar convencer pelas intenções alegadas pelas interfaces e narradores em primeiro plano? 

O Auge do Humano

Em O Auge do Humano (El Auge del Humano, Eduardo Williams, 2016) temos um estilo aparentemente neutro retratando um mundo supostamente impessoal. Caso ideal, portanto, para a discussão desses temas. Antes, no entanto, um breve histórico. 

Retórica – limpando a barra do narrador

No segundo livro da Retórica, encontramos duas proposições: “o objetivo da retórica é formar um juízo” e “devemos atentar não apenas para que o discurso seja demonstrativo e persuasivo, mas também que o discursante demonstre possuir certas disposições (…)”. Sob essa ótica, o discurso não deve apenas descrever objetos ou situações, mas também estabelecer e resguardar a posição moral do próprio orador com relação ao que está sendo abordado. 

Vale lembrar que, em suas primeiras décadas, era difundida a crença de que os que os filmes apenas registravam, sem comentar, as cenas que capturavam (um cinema de mostração, como dizem alguns estudiosos do período). Não por acaso, a nova mídia foi taxada muitas vezes como imoral. Poucos anos depois, a transição para o modo narrativo foi essencial para garantir a aceitabilidade social e viabilidade econômica das indústrias cinematográficas: contar uma história permitia propor uma moral da história (e de mundo). 

O arco narrativo passou a funcionar como álibi: todas as ambiguidades e dissonâncias morais deveriam ser sanadas impreterivelmente até o final de cada trama. Mas isso nem sempre era o suficiente. Reagindo à acusação de que os filmes de gângster romantizariam o crime e os criminosos, Scarface (Howard Hawks, 1932) tenta abrandar seu conteúdo anárquico e “formar juízo” por meio de um texto introdutório, cuja condenação ao modo de vida de seus personagens é reforçada pelo subtítulo “Vergonha de uma Nação”. Podemos questionar o grau de consistência (ou sinceridade) desse alegado respeito aos bons costumes, mas o texto que abre Scarface integra uma longa tradição.

Texto introdutório de Scarface – A Vergonha de uma Nação. Criticando a indiferença do governo etc. etc.

Flaubert no banco dos réus

Em 1857, pouco depois da primeira publicação de Madame Bovary, Flaubert foi processado por ultraje à moral pública. O desconforto causado pelo romance costuma ser associado a uma descrição impassível de atos imorais, atenuando a voz do narrador em favor da perspectiva dos personagens. Nas discussões da época, o estilo do autor chegou a ser descrito como “fotograficamente exato”, comparando-o a uma tecnologia de produção de imagens considerada neutra e, portanto, amoral. O processo, contudo, foi decidido em favor do réu. Antoine Sénard, o advogado de defesa, contestou as acusações da promotoria afirmando que “o desenlace em favor da moralidade se encontra em cada linha do livro” (justificativa provavelmente tão suspeita quanto o texto que abre Scarface). De qualquer forma, a absolvição contribui para uma verdadeira jurisprudência interpretativa: o “caráter” da narração (para retomar o termo aristotélico) poderia estar subentendido e não precisa ser imputado exclusivamente à clareza enunciativa do narrador, dependendo igualmente do processo de leitura e recepção. Ironicamente, a primeira adaptação hollywoodiana do livro (dirigida por Vincente Minnelli em 1949) começa com uma versão dramatizada desse julgamento, enxertando assim a justificação moral que faltava à obra original, manobra necessária em tempos de Código Hays.

James Mason como Gustave Flaubert no início do Madame Bovary de 1949

O humano

É difícil atribuir intenções e juízos a O Auge do Humano. O filme (per)segue grupos de jovens em três países distintos (Argentina, Moçambique e Filipinas), em saltos espaciais sem motivação aparente. Em uma sinopse rasteira, poderíamos dizer que o fio condutor da ‘trama’ é a existência millenial em tempos da onipresença da tecnologia, mas essa sinopse é desautorizada por uma análise atenta. Várias das situações apresentadas envolvem falhas tecnológicas: falta de luz, celulares quebrados ou descarregados, internet inacessível – um colapso intermitente e sem explicação, que sugere um estado pós ou pré-apocalíptico. Na cena inicial, um rapaz emerge do escuro em sua casa de subúrbio, abrindo a porta para a rua alagada, talvez pós-diluviana (ou pós-colapso climático).

O Auge do Humano

Durante o primeiro segmento, esse mesmo personagem procura demoradamente por um local com acesso à Rede, mas quando finalmente o encontra, não parece precisar dela – dentro de um quarto fechado, em que rapazes nus ou seminus se exibem por dinheiro na frente de uma sexcam. O garoto que acompanhamos até então é o único a permanecer vestido e não participativo, sem parecer extrair, tampouco, estímulo erótico da cena em volta. A dinâmica se repete durante o segmento filipino, quando uma jovem procura um cybercafé no meio da selva, interpelando todas as pessoas com quem cruza pelo caminho, obtendo indicações que esquece ou desconsidera imediatamente depois, repetindo a mesma pergunta para os próximos passantes.

O Auge do Humano

Se O Auge do Humano é “sobre tecnologia”, como explicar que a maior parte de suas cenas envolva perambulações pelo espaço físico – periferias urbanas, mas também selvas e florestas? Como explicar a cena em que um grupo, sem motivo aparente, se reúne para conversar em um oco de árvore? Se é um filme sobre millenials, como explicar a sequência em que a câmera penetra em um formigueiro em Moçambique, espiona por cerca de cinco minutos a vida das formigas e cuja saída nos leva às Filipinas? Deveríamos recorrer a metáforas, os jovens como formigas, a internet como o formigueiro?

Seria o filme uma crítica à dependência tecnológica das novas gerações, sua passividade e falta de pudor? Ou deveríamos nos concentrar em uma leitura socioeconômica, considerando o estado de subemprego de boa parte dos personagens, mais bem recompensados se exibindo pela internet? A maneira como as cenas das sexcams são filmadas pode trazer um pouco de luz à discussão. Durante a primeira, na Argentina, temos um plano-sequência de cinco minutos e nenhum movimento de câmera, sem corte ou afastamento do olhar nos momentos em que os atos se tornam mais explícitos. Se o filme é um discurso moralista, porque não temos qualquer elipse, uma vez apontada a presença do ato condenado? Se, por outro lado, trata-se de um millenialexploitation, como interpretar a falta de ênfase e sensacionalismo? 

O Auge do Humano

Já na segunda, os rapazes de Moçambique são espiados a partir de uma tela de computador na Argentina, que exibe várias janelas: a sexcam à esquerda e um artigo sobre corpos e anticorpos à direita. O artigo explicaria, por acaso, o sentido e o juízo da obra? É uma chave hermética ou uma pista falsa?

Ambas as cenas nos remetem a ‘A Mensagem Fotográfica’, artigo publicado por Roland Barthes em 1961. A cena argentina, a impassível, faz mais do que se abster do juízo: muito antes, parece chamar atenção para a própria abstenção de juízo, uma vez que “não há cena filmada cuja objetividade não seja em última análise lida como o próprio signo da objetividade”. Não estamos, provavelmente, diante de uma omissão ou ignorância retórica, mas de uma bem-articulada “resistência ao investimento de valores”. Aproveitando a definição barthesiana: “quando se quer ser “neutro, objetivo”, a gente se esforça por copiar minuciosamente o real, como se a analogia fosse um fator de resistência ao investimento de valores”.

Mas retomando dois termos usados por Barthes na passagem citada, se O Auge do Humano é “neutro” e anuncia a própria neutralidade, dificilmente poderia ser classificado como “objetivo”, considerando os seus já apontados elementos de obscuridade e non-sense. O que nos leva de volta à segunda sexcam, em Moçambique, inicialmente visualizada na Argentina e que serve de transição entre o primeiro e o segundo segmentos.

O Auge do Humano

Como já mencionamos, a janela que enquadra a performance dos garotos está à esquerda de outro navegador, em que consta um artigo sobre biologia. Barthes, ainda em ‘A Mensagem Fotográfica’, comenta sobre como as legendas são utilizadas para restringir o campo semântico de uma fotografia, desempenhando funções de explicitação e especificação. E, acrescenta, também podem produzir ou criar “um significado inteiramente novo e que é de algum modo projetado retroativamente na imagem”. Para além da projeção retroativa, há tentativas de contenção preventivas, como na já aludida abertura de Scarface ou em um dos primeiros intertítulos de O Nascimento de uma Nação (Griffith, 1915), cuja apologética ecoa questões levantadas por Aristóteles e durante o julgamento de Flaubert: a narração e o narrador devem se posicionar com relação à imoralidade que “retratam” ou arriscarem-se à acusação de cumplicidade.

‘Nascimento de uma nação’, intertítulo, fazendo exigências.

Não há, evidentemente, uma equivalência entre essas três práticas – legendas em fotografias, textos introdutórios em filmes e uma janela de navegador integrada ao mundo diegético – mas há um paralelo entre as situações: a inflexão – ou expectativa de inflexão – da imagem pela palavra escrita, especialmente como antídoto contra a dubiedade ou o vácuo de sentido. Mas no caso do Auge do Humano, encontramos, mais uma vez, ruído ao invés de esclarecimento: condicionados pelas convenções narrativas, esperamos que a imagem-texto exibida (o artigo sobre os anticorpos) contenha alguma relevância para a trama, hipótese que não é confirmada pelo restante do filme.

Temos, portanto, uma primeira cena cuja neutralidade estilística ostenta a própria neutralidade retórica e uma segunda cena que destaca um elemento comumente semântico (o texto contíguo à imagem, o texto na imagem), utilizado de forma assignificativa. Todo esse preâmbulo serve de advertência para a parte final deste texto: O Auge do Humano é um filme resistente à atribuição de sentidos, mas ainda assim iremos utilizá-lo – arbitrariamente – como contraponto a algumas proposições do teórico da mídia Friedrich Kittler, reunidas na coleção A verdade do mundo técnico.

A verdade…? 

Escrevendo em 1997, Kittler defendia que a análise dos sistemas de poder era inseparável da investigação sobre a lógica dos sistemas técnicos – uma interpenetração entre tecnologia e formas de organização humana:

Em primeiro lugar, deveríamos tentar conceber o poder não mais como função da chamada sociedade, mas construir a sociologia a partir das arquiteturas do chip. À primeira vista, parece lógico analisar os níveis de privilégio de um microprocessador como verdade daquelas burocracias que incentivaram seu desenvolvimento e realizaram sua aplicação em massa. Existem razões pelas quais a distinção entre supervisor level e user level na Motorola, e entre protected mode e real mode na Intel, ocorreu nos anos em que os Estados Unidos começaram a construir um sistema impermeável de duas classes. (…); num império cuja população só vê o resto do mundo na tela do televisor, pensar em algo como política se torna um privilégio governamental. (Kittler, 2017, p. 363)

Essa configuração teria se instaurado desde (pelo menos) a Segunda Guerra Mundial, com o início do processo que “substituiu tubos, indutores e capacitores por placas de circuito impresso” (p. 349). As mudanças introduzidas extrapolaram em muito o simples upgrade de armas e equipamentos. Tecnologias de telecomunicações, burocracias estatais e corporativas, prioridades de pesquisa científica e o Estado de Vigilância – todos remeteriam diretamente ao período. Mas Kittler propõe uma inversão da causalidade esperada: foi a revolução técnica que serviu às necessidades do conflito ou, pelo contrário, a Guerra e o seu desenlace foram condicionados pelo desenvolvimento irrefreável da Técnica? Findo o combate, a evolução tecnológica prosseguiu imperturbada, apesar da eventual troca de supervisores e usos (envolvendo a transferência de um enorme contingente de cientistas alemães para os poderes Aliados). As pesquisas nazistas de desenvolvimento de foguetes permitiram o nosso atual sistema de satélites, enquanto os esforços de contra-inteligência britânicos criaram os primeiros computadores (lembremos da citação de Aristóteles que abriu esse artigo: “argumentos matemáticos não possuem caráter, como também lhes falta propósito moral”). A convergência de ambos viabilizou tanto a Internet quanto a NSA:

Seus satélites de espionagem interceptam a telefonia, a telegrafia e a telecomunicação por micro-ondas, ou seja, o correio de todas as regiões da Terra, seus computadores decodificam eventuais máquinas de codificação intercaladas, scrambler etc., arquivam automaticamente a mensagem e detectam automaticamente palavras-chaves suspeitas. O resultado disso é que 0,1% de todas as telecomunicações do planeta é absorvido pela inteligência artificial da NSA. Ninguém sabe o que acontece com isso. (…) (Kittler, 2017, p. 328)

De forma não literal, O Auge do Humano ilustra a ubiquidade quase invisível desse olhar eletrônico e especialmente a sua inescrutabilidade. Há uma tentação inicial de vincular as imagens do filme ao exibicionismo e aos registros do cotidiano postados no Youtube, Instagram ou Tiktok, mas na maior parte do tempo, os personagens ignoram que estão sendo filmados (às vezes o pressentindo: “Não sei se tu consegues ouvir”, diz um dos moçambicanos em plena savana, “sinto que alguma coisa está a espiar-nos”). Williams trabalha com uma combinação de movimento e rigidez: imagem estática quando os personagens estão em ambientes fechados, móvel enquanto perambulam. O distanciamento entre câmera e atores introduz uma perturbação, quase os deixando escapar, apenas para recaptura-los logo depois. Mesmo uma interpretação voyeurística parece inadequada: nas cenas de sexcam, os garotos interagem com métricas virtuais: os dólares acumulados e a quantidade de usuários on-line, que varia de acordo com uma lógica obscura. Sequências terminam antes da ação tornar-se inteligível, como se obedecendo a um desapaixonado critério de amostragem – dois personagens planejam entrar sorrateiramente em um estabelecimento (loja?), mas não descobrimos nem as razões nem o resultado da tentativa. Há, portanto, uma causa adicional de ansiedade: nada indica que a inteligência que nos vigia seja reconhecivelmente humana.

O Auge do Humano

Essa inacessibilidade é a marca do “ideal criptográfico” e das “funções de mão única” (p. 357), a barreira de cognoscibilidade interposta entre usuários e código. Se concordarmos com Kittler, suas ramificações não se resumem à vigilância, pautando igualmente a nossa organização socioeconômica. Pelo menos dois personagens perdem o emprego ao longo do filme, mas não há patrões à vista em O Auge do Humano – a única interação entre as partes ocorre via telefone celular. A última cena do filme se passa no ambiente asséptico de uma fábrica de tablets nas Filipinas e a única voz ouvida provém de um aparelho de checagem, validando o trabalho do grupo de funcionários. Aqui, os computadores não somente “assumem sua própria reprodução” (p. 303), como também supervisionam os trabalhadores da linha de montagem. Podemos interpretar Kittler literalmente e acreditar em um já instalado domínio das máquinas ou apontar interesses totalmente humanos por trás dessa forma de organização do capitalismo tardio. Ou, ainda, pressupor qualquer combinação entre esses dois pontos de vista. De uma maneira ou de outra, os sistemas técnicos se tornaram parte inescapável de nossa realidade e são – recorrendo uma última vez à terminologia aristotélica – ou amorais ou silenciosos quanto a seus verdadeiros juízos e disposições.

O Auge do Humano

A retórica, a literatura, as teorias do cinema e da mídia já lidam há muito com essas perguntas: o que constitui a neutralidade na narrativa e na ação? Como se estabelece um posicionamento e juízo diante do mundo? Como podemos acessar níveis de significado inescrutáveis, talvez ausentes? Essas questões não se limitam à esfera dos equipamentos, mídias e instituições, mas concerne igualmente ao polo oposto – nossa existência enquanto leitores, espectadores e consumidores de tecnologia, como sugerido pela passagem (e imagem) a seguir:

Numa era que há muito se despediu dos fantasmas do criador ou do autor, mas, por bons motivos financeiros continua a defender o direito autoral como efeito histórico desses fantasmas, o ardil se tornou uma fonte lucrativa. Os súditos da Microsoft não caíram do céu: como todos os seus precursores histórico-midiáticos – os leitores de livros, os frequentadores de cinema, etc. –, eles foram produzidos. O único problema é como essa submissão pode ser ocultada dos sujeitos para então dar início à sua conquista mundial. (Kittler, 2017, p. 358).

Mais um intertítulo de Nascimento de uma Nação. Produzindo súditos/consumidores

Agradeço ao Pablo Gonçalo por ter me apresentado ao Kittler e à Juliana Fausto que me deu valiosos toques há uns anos, quando escrevi uma primeira versão deste texto. Agradecimentos especiais a quem quer que tenha tido paciência para ler esse artigo inteiro.

Referências e fontes:

ARISTÓTELES. The Art of Rethoric. Tradução de Hugh Lawson-Tancred.Londres: Penguin Books, 1991. Tradução nossa para o português. O trecho específico foi extraído da página 253.

BAZIN, André. Qu’est-ce le cinema? Paris: Éditions du Cerf. 2011.

KITTLER, Friedrich. A Verdade do Mundo Técnico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.

Os trechos sobre o julgamento de Flaubert retirados de:

JAUSS, Hans Robert, Toward an Aestethic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982

Para o artigo do Barthes usei a tradução de César Blonm disponível em: https://veele.files.wordpress.com/2011/11/roland-barthes-a-mensagemfotogrc3a1fica.pdf#page=1&zoom=auto,-79,798

Sobre os comentários sobre as primeiras décadas de cinema e transição para o modo narrativo:
COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração E Domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.

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Por um cinema falado

Éric Rohmer[1]

Tradução: Bernardo Moraes Chacur

O cinema passou mais de trinta anos aprendendo a prescindir da palavra. É natural que, dezoito anos depois[2], ele ainda não tenha encontrado a forma de utilizá-la. Estou me referindo à desconfiança, disseminada entre os melhores diretores, com relação a esse poder da linguagem que lhe é essencial, o de significar. Se o filme falado é uma arte, é necessário que a palavra desempenhe nele um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual. Ainda é muito difundida a crença de que o valor de um filme seria proporcional à sua independência das palavras e de que uma obra cinematográfica digna desse nome perderia muito pouco ao ser assistida sem dublagem por um público estrangeiro. Pode-se admirar o excelente Farrapo Humano porque Billy Wilder consegue iluminar as intenções mais sutis de seus personagens com métodos puramente visuais – ou sonoros. Mas lamenta-se, enfim, que eles falem. A palavra ou é supérflua ou indispensável. Não se pode adicioná-la sem necessidade ou subtraí-la sem prejuízos.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, Billy Wilder, 1945)

Em resumo, não é exagero dizer que, até hoje, há apenas um cinema sonoro. O erro dos cineastas de 1930 foi acreditar que somente a questão do tratamento cinematográfico do som era importante, enquanto a solução para o problema secundário da palavra (a introdução de um modo autônomo de significação, que é a linguagem, em uma arte de expressão visual) seria encontrada como decorrência lógica da primeira. Todos os esforços posteriores conduziram ao enfraquecimento da potência própria à palavra. Logo compreendeu-se que a palavra era som antes de ser signo e admitiu-se que ela deveria ser tratada como um modo de ser e não de revelar. A fala de cinema não se apoia somente sobre os diálogos que a precedem ou que a sucedem, ela está no tempo e não no texto. Simples instante no desenrolar de um filme, ela requer a sustentação de outros instantes, inclusive dos silenciosos. “O problema principal para os roteiristas”, escreveu André Malraux, na Verve em 1940, “é saber quando os seus personagens devem falar”.

Não se trata de trapacear. O problema do cinema falado não é apenas de encenação e o papel cada vez mais especializado que, na maioria dos casos, é relegado aos diretores, é certamente uma das causas desse equívoco. Eu sei que alguns dialoguistas compreendem muito bem que devem escrever para as telas de modo diferente do que fariam para o teatro ou para a página impressa. Pode-se inclusive repreendê-los por introduzir modificações absolutamente desnecessárias em suas adaptações, sob o pretexto das exigências próprias ao cinema. Mas esses remanejamentos se concentram muito mais sobre os modos de apresentação do que sobre o sentido. A maioria dos diálogos escritos para o cinema até aqui podem ser definidos como falas de teatro ao estilo de romance. Em geral, sob a forma escrita, eles pediriam naturalmente o “disse ele”, que, em um romance, delimitaria as frases dos personagens a um intervalo específico de tempo. Ainda assim, seu conteúdo jamais atinge a naturalidade dos diálogos dos romances americanos, por exemplo. Estes, conforme suficientemente demonstrado pela experiência, não podem ser transpostos para as telas sem perdas. Tais diálogos só são eficientes, aliás, porque conseguem trazer à vida todo um mundo à sua volta. No cinema, esse mundo existe. A frase pronunciada não precisa evocá-lo, mas somente encaixar-se nele e, desse modo, possuir uma densidade de sentido capaz de salvá-la da destruição. Os dialoguistas com aptidão para o cinema tentaram viabilizar de diversas maneiras essa junção entre palavra e mundo filmado. O texto de Prévert costuma ser um comentário poético ou humorístico sobre a imagem, mas o erro é precisamente confundir a imagem com um elemento do filme, como se fez tantas vezes desde o começo do cinema falado. Griffith, Sjöström, os expressionistas alemães, Chaplin, Gance e Eisenstein criaram – por meios muito diferentes – uma linguagem que se mostrou quase tão rica e sutil quanto a fala. É compreensível que a palavra tenha surgido como um elemento parasita, a ser mantido sobretudo às margens, e que a presença simultânea das duas linguagens tenha enfraquecido consideravelmente a capacidade expressiva de ambas. Não apenas a palavra foi tratada como som, conforme já mencionado, mas também a imagem foi reduzida a simples quadro ou cenário. A imagem nunca foi tão intrinsecamente bela, tão amorosamente trabalhada por seus especialistas quanto nos anos entre 1930 e 1940, uma verdadeira era de ouro para esses profissionais, sobretudo na França. No período, os diretores legavam a esses especialistas a maior liberdade possível com relação à determinação da posição dos atores no quadro e à distribuição das massas de sombra e luz.

Em nossa opinião, a relação entre o elemento visual e a palavra deve se estabelecer de forma totalmente diferente. Vários filmes permitem entrever como a linguagem poderia recuperar sua verdadeira função, precisamente aqueles que, passada quase uma década, indicam o rumo para uma nova concepção de decupagem. Talvez devamos exigir menos dos dialoguistas do que dos próprios diretores, que frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos. Não será, tampouco, com personagens enunciando máximas de La Rochefoucauld enquanto consertam rádios ou dirigem por vias engarrafadas, entrecortando seus discursos com interjeições e balbucios, que se falará a uma autêntica linguagem de cinema. A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra. Os melhores diálogos de Cocteau estão em As Damas do Bois de Boulogne, assim como os melhores de Prévert estão em O Crime de Monsieur Lange, porque Bresson e Renoir só lhes permitiram incluir o essencial à compreensão do filme (e não estou me referindo à sua dimensão anedótica). Com o uso do plano-sequência, tal exigência se torna ainda mais evidente e o ponto fraco de Cidadão Kane, é que nele a palavra ainda é tratada como barulho. Em Soberba (que considero superior), por outro lado, até a palavra mais breve tem peso, porque ela nos revela aspectos dos personagens ainda não evidenciados pela narrativa. Os dois melhores exemplos são sem dúvida o plano fixo na cozinha e o longuíssimo travelling ao longo da rua. Um jogo entre plano e contraplano teria certamente enfraquecido o caráter expressivo de ambos. A imobilidade do ritmo (caso possa-se assim dizer), a fixidez obstinada dos dois personagens, o “não coma tão depressa”, da tia, desempenham um papel bem oposto ao realismo mundano que o cinema costuma oferecer com condescendência. Retomando a distinção clássica, eles estão ali por necessidade e de forma alguma por verossimilhança. O travelling ao longo da rua, por sua vez, exprime pelo seu desenrolar monótono o vazio de uma conversa que não será concluída. Não é com a imagem que a palavra mantém uma relação, mas com um elemento totalmente cinematográfico: a dinâmica do plano, ainda que nesses dois casos, ela seja obtida por uma tensão na imobilidade.

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Assim, é preciso encontrar uma maneira de integrar a palavra ao filme e não ao mundo filmado, seja ao plano em que ela é enunciada ou à uma sequência anterior ou subsequente. Na cena do hangar em Portas da Noite, a falha do texto de Prévert (no diálogo entre Yves Montand e Nathalie Nattier) é evocar um imaginário exterior ao filme, como em uma narrativa teatral.  Já a sequência de O Crime de Monsieur Lange, na qual René Lefèvre relata a Maurice Baquet como passou sua manhã de domingo, é excelente pela dupla razão de aludir diretamente a uma outra cena e porque esse relato é mentira. Não se mente o suficiente no cinema, exceto talvez nas comédias (pode-se considerar que René Clair, Lubitsch e Capra dirigiram os filmes de maior valor do período entre 30 e 40, as raras obras que não nos forçam à nostalgia pelo cinema mudo). Para atenuar ou controlar a potência formidável da palavra não é necessário, como se acreditou, tornar a sua significação indiferente, mas enganosa. No teatro, nunca se mente. Isto é, seja na tragédia ou na comédia, a palavra nunca é simplesmente modo de ação de um personagem sobre os demais e sempre possui um valor intrínseco – ou atemporal se preferirem. Não há lugar no teatro para aquela ambiguidade própria aos diálogos de Dostoievski, Balzac ou Faulkner. Por outro lado, encontramos essa ambiguidade nos melhores filmes realizados nos últimos dez anos: A Regra do Jogo de Renoir, As Damas do Bois de Boulogne de Bresson/Cocteau, na obra de Preston Sturges, em alguns policiais americanos como O Falcão Maltês de Huston/Hammett ou À Beira do Abismo de Hawks/Faulkner. Em Orson Welles, esse hiato entre a significação da palavra e a do elemento visual, o contraponto entre texto e película (que é totalmente diferente do contraponto sonoro outrora preconizado por Pudovkin e Eisenstein) tende a seguir a via do comentário. Nos últimos anos, diretores muito diversos têm usado com frequência esse procedimento – talvez um pouco simplório – evidenciando a inegável necessidade de restituir à palavra a sua função legítima dentro de um filme.

As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, Robert Bresson, 1945)

A distinção que podemos estabelecer entre o cinema e o teatro não recai de forma alguma sobre a importância respectiva que cada um confere à palavra. Temos, sobre os cineastas de 1930, a imensa vantagem de não sermos mais assombrados pelo espectro do teatro filmado e será possível, de agora em diante, dedicar toda a nossa atenção ao problema essencial: escrever diálogos realmente feitos para o filme no qual terão lugar. Isto pressupõe, da parte dos dialoguistas, um conhecimento perfeito da linguagem visual com a qual o diretor pretende se expressar e, da parte do segundo (caso não sejam a mesma pessoa, como desejável), a disposição para considerar a palavra como parte constitutiva de sua obra.

Até tempos recentes, enquanto se contentava em adaptar de forma mais ou menos hábil os procedimentos que outrora compensaram a ausência das palavras, não se podia dizer que havia um verdadeiro estilo do cinema falado. Para a elaboração desse estilo, deverão ser aproveitadas as explorações das vanguardas dignas desse nome, apesar das dificuldades materiais. Já esperamos demais pela prova de que a era do cinema falado já começou.

Le Temps Modernes, setembro de 1948 (Retirado da coleção Le Goût de la beauté, Cahiers du cinéma, 2004)                              

Conto de Verão (Conte d’été, Éric Rohmer, 1996)


[1] Na verdade, o artigo é assinado por Maurice Schérer, que só passaria a usar ‘Éric Rohmer’ a partir de 1955, já na Cahiers du Cinéma.

[2] O texto foi originalmente publicado em 1948.

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Memórias de cinema, revolução e uma aristocracia ridícula

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em A Última Ordem (Josef Von Sternberg, 1928), um ex-general czarista, interpretado por Emil Jannings, se vê reduzido a figurante em Hollywood, representando a si mesmo em uma produção ambientada durante o fim do antigo regime. Sendo um filme sobre a feitura de filmes, é memória de uma indústria já a pleno vapor durante a transição para o cinema falado. Ao recontar a queda do general, é também registro da revolução de 1917 ou, mais precisamente, de uma certa imagem daquela revolução poucos anos depois dos fatos e poucas décadas antes da União Soviética se consolidar como o grande adversário dos Estados Unidos.

A trama começa com um diretor russo (William Powell), escalando o elenco para seu próximo trabalho e que, após examinar várias fotos, reconhece uma figura do passado, o grão-duque Sergius Alexander, selecionando-o prontamente. Na sequência, encontramos pela primeira vez o antigo aristocrata, na penúria e acometido por tremores incontroláveis. Arrastando-se até os portões do estúdio, o ex-militar se acotovela entre uma legião de maltrapilhos, figurantes miseráveis como ele. Uma vez admitido, o acompanhamos através da verdadeira linha de montagem na qual recebe o figurino das mãos de funcionários maldispostos. Trata-se de uma imagem totalmente desglamourizada de uma indústria que sempre buscou se retratar como a “fábrica de sonhos” e, não por acaso, o filme desagradou os executivos da Paramount, que cogitaram engavetá-lo. Já paramentado, o grão-duque tira dos bolsos uma antiga condecoração e, após ser ridicularizado pelos colegas de elenco, fita-se no espelho. A partir desse momento, a narrativa retrocede a 1917, em um dos fronts russos da Primeira Guerra Mundial.

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Naqueles dias, o general ainda se encontrava confortavelmente instalado em sua posição de prestígio e arrogância. Inspecionando o local onde suas tropas estavam lotadas, interroga dois bolcheviques, que tentam se passar por simples membros de uma trupe teatral. Um deles é o personagem do futuro diretor de cinema, que é açoitado pelo grão-duque. A segunda (Evelyn Brent, com parte das pernas à mostra, apesar da nevasca circundante) torna-se um misto de prisioneira e convidada de honra, situação da qual se aproveita para planejar o assassinato do general.

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Mas, embaraçando tais planos, o aristocrata se revela um verdadeiro patriota aos olhos da revolucionária. Se em um primeiro momento, o general desloca a contragosto um pelotão para a frívola inspeção do czar, posteriormente se recusa a encenar uma ofensiva para entretenimento do monarca, cioso em sacrificar vidas (ou, talvez, recursos militares) em prol do jogo de cena. Pouco depois, a bolchevique cai nos braços do grão-duque que, servido por todos, não perde nenhuma oportunidade de servi-la. Quando a revolução finalmente irrompe, a espiã reassume seu antigo papel e precisa participar dos ataques e humilhações ao amante para poder se colocar na posição de salvá-lo (outra encenação em uma trama repleta delas). Colaborando em sua fuga, contribui antes para a sua destruição moral.

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A representação do levante popular e suas causas é tratada no filme de forma ambígua. Por um lado, o mito de fundação dos Estados Unidos enaltece a insurreição antimonárquica e a vitória do povo comum (evidentemente branco) contra a classe aristocrática e há aqui resquícios dessa retórica. Nas décadas de 1930 e 1940, no embate contra o nazismo, vários roteiros seriam filmados sobre revoltas contra a tirania através dos tempos. Em 1928, contudo, aqueles eventos eram desconfortavelmente recentes – e comunistas. O precedente mais próximo do enfoque adotado em O Último Comando é provavelmente o enquadramento da Revolução Francesa no cinema norte-americano (e que remonta a, pelo menos, Dickens): uma rebelião com princípios justos, mas que degenera em anarquia nas mãos de uma turba de baixos instintos. Vale lembrar que, vinte anos mais tarde, durante o terror dos primeiros anos da Guerra Fria, tanto a escolha do tema quanto o menor gesto de simpatia pela União Soviética poderiam render prisão ou banimento para os envolvidos.

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Com o fim do flashback nos dias de revolução, retornamos a 1927 e ao set de filmagens, onde fica evidente que o diretor, antiga vítima do general, pretende reencenar a agressão sofrida, seja por vingança, masoquismo ou espírito de denúncia (e como pode se esperar de Sternberg, essa motivação não será esclarecida). No meio da gravação da cena, ambientada em uma trincheira, o grão-duque começa a delirar, acreditando-se transportado de volta à antiga pátria e posição e exorta os comandados a uma última investida pela salvação da Rússia. O arrebatamento aniquila o velho peito e o aristocrata/figurante morre no ato. Quando um dos membros da produção lamenta a perda de um “grande ator”, o diretor surpreendentemente replica: “ele era um grande homem”.

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Como podemos entender essa contraditória admiração do bolchevique/diretor pelo algoz, ainda menos explicável que o amor da espiã pelo captor? A narrativa, pelo menos, parece ter menos simpatia pelo personagem: assim como na próxima parceria entre Jennings e Sternberg (O Anjo Azul, de 1930), A Última Ordem é o espetáculo de degradação de uma autoridade. O grão-duque é, na maior parte do tempo, presunçoso e cruel, desmoronando fragorosamente uma vez derrubado de seu pedestal e só volta a exibir alguma dignidade no momento da filmagem, quando se vê cenograficamente restituído de um poder que, aliás, sempre dependeu de uma elevada carga simbólica. Assim, o fascínio dos revolucionários diante de uma figura tão patética parece capturar elementos essenciais da atração exercida pela aristocracia: romântica, inconsistente e atrelada a figuras incapazes de justificar a veneração recebida.

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Balzac, que se declarava reacionário e monarquista, era o romancista preferido de Engels e Marx. Para os filósofos, a simpatia do escritor à “classe condenada a desaparecer” não o impediu de “os ter descrito como não merecendo melhor sorte”[1]. Trabalhando em outro registro e explorando outro contexto, Sternberg executa uma variação ainda mais irônica dessa dinâmica entre elegia e sátira: deixa a nostalgia por conta de alguns personagens, enquanto se entrega sem maiores reservas à demolição da Velha Ordem.

 

Agradecimentos aos editores da Multiplot pelo espaço e paciência

[1] Seguem as citações completas:

Não há dúvida que, em política, Balzac era legitimista. A grande obra que deixou é uma elegia permanente, lamentando a decomposição inevitável da alta sociedade; todas as suas simpatias vão para a classe condenada a desaparecer. Mas, apesar disso, a sátira nunca é tão contundente nem a ironia nunca tão amarga como quando põe em ação, precisamente, os aristocratas, esses homens e mulheres por quem sentia uma simpatia tão profunda”. (Karl Marx, em correspondência à Margaret Harkness em 1888).

O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpatias de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter descrito como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser encontrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac”. (Friedrich Engels, na mesma correspondência)

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: City Hall

Por Bernardo Moraes Chacur

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A premissa de City Hall, 43º documentário de Frederick Wiseman, soa familiar, considerando a filmografia do diretor: a imersão em um determinado local ou instituição (desta vez a prefeitura de Boston em 2018), a partir da observação de vários aspectos de sua rotina, sem narração, sem entrevistas, sem legendas de identificação ou contextualização. Há, no entanto, um elemento inesperado: a frequência com a qual o prefeito, o democrata Martin J. Walsh, aparece em cena.

Todo esse espaço dedicado ao discurso oficial sugere uma primeira hipótese: Wiseman estaria em busca de contradições entre retórica e práticas, transpassando a imagem institucional a partir do registro paciente. Não vemos, contudo, momentos claramente desabonadores para o prefeito e gabinete. Walsh, que em 2018 acabava de se reeleger, é um político oriundo do movimento sindical (fato não mencionado no filme) e alinhado a causas socialmente progressistas: defesa da diversidade racial, dos imigrantes e da população LBGTQI+, combate à fome e à disparidade de renda. Nem por isso o prefeito deixa de enaltecer a importância do exército em um encontro de veteranos de guerra, ou de se apresentar como um bostoniano da gema, filho de imigrantes irlandeses e com sotaque evidente. É, portanto, um exemplar da esquerda considerada eleitoralmente viável dentro do bipartidarismo norte-americano.

A carga crítica mais evidente em City Hall é o contraste entre um governo municipal progressista e uma esfera federal agressivamente reacionária. Se alguns dos avanços democratas parecem tímidos e paliativos, há uma diferença clara entre essa insuficiência e a desumanidade ativa encarnada pelo presidente Trump, com resultados concretos para as vidas de uma população. E Wiseman, como de costume, não trata essas pessoas como abstrações, mas como casos concretos, com problemas urgentes e específicos.

Para além disso, o documentário suscita uma ideia mais ampla e menos óbvia. Em múltiplas instâncias, testemunhamos os limites de atuação de um governo local – aparentemente bem-intencionado – em meio a uma organização econômica que inevitavelmente perpetua e intensifica a miséria. Durante a inauguração de um banco de alimentos, o prefeito cita os indicadores de prosperidade econômica da cidade, acrescentando um contraponto sombrio: mesmo em situação de pleno emprego, um em cada seis bostonianos vive em situação de insegurança alimentar. Há um dilema constante em City Hall: devemos nos tranquilizar com a intervenção humanitária da prefeitura ou refletir sobre o estado de emergência permanente que essas políticas moderadas podem apenas mitigar?

Um outro padrão inquietante também se evidencia. Em determinada cena, um empreiteiro de origem latina relata como sua empresa se enquadra consistentemente em programas de cotas, mas é sempre barrada dos grandes projetos. Em outro momento, presenciamos uma reunião de vizinhança, cuja realização era pré-requisito legal para abertura de uma loja de cannabis. Ao longo da conversa, fica claro que não há garantias de que o empreendimento gerará empregos para a comunidade e que, apesar da obrigatoriedade da reunião, os moradores não possuem poder de decisão. Logo, o bairro em questão, assolado pelo tráfico ilegal de drogas e com altíssimas taxas de encarceramento, dificilmente lucrará com a legalização do comércio da maconha, uma das bandeiras progressivas clássicas das últimas décadas. Essas e outras ocasiões indicam que já existem políticas de ação afirmativa e consulta popular ativas em Boston há algum tempo, mas com alcance e efetividade limitados. Tais problemas certamente ultrapassam a esfera municipal e antecedem a administração de Walsh, mas em que medida a boa-vontade demonstrada pelos agentes da prefeitura, prontos a reconhecer os desequilíbrios, será capaz de reverter essa inércia?

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Mesmo com essas ressalvas, é difícil assistir City Hall sem a impressão de que o diretor (nascido em Boston e residente em Cambridge, cidade vizinha) demonstra algum grau de simpatia pelo prefeito e sua linha de governo, violando a imagem de distanciamento cultivada por toda uma tradição documentária, um decoro que admite a oposição política, mas que se constrange com a adesão clara. Mas vale lembrar que Wiseman sempre rejeitou a suposta neutralidade do cinema documental, apesar do aparente laconismo de seu estilo. Pelo contraste, City Hall nos lembra que a abstenção é uma posição política especialmente irresponsável durante tempos de ascensão da extrema direita.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes.

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Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em S/Z, Barthes defende que uma das características do texto clássico é a especificação crescente, em que cada descrição e acontecimento gradualmente limita as possibilidades da narrativa[1]. A progressão do enredo tende a nos fazer esquecer que a história poderia ter seguido rumos diferentes e mesmo as eventuais releituras e revisões acabam sendo condicionadas pelo desenlace já conhecido. Esses aspectos são claramente perceptíveis no cinema de franquias, em que cada nova iteração precisa se ater a um cânone ou incorrer na acusação de heresia. Esse cabresto também é aplicado retroativamente: o primeiro filme de uma série é frequentemente valorizado de acordo com a quantidade de elementos canônicos que prefigura, enquanto os pontos discordantes são ignorados ou menosprezados.

No caso de Mad Max (George Miller, 1979), os pontos discordantes são indisfarçáveis. Enquanto suas três sequências (de 1981, 1985 e 2015) são pós-apocalípticas, ambientadas décadas depois do colapso da civilização, o episódio inaugural se passa em um mundo quase inteiramente familiar. Logo depois dos créditos, há o aviso de que estamos em um futuro próximo (‘A FEW YEARS FROM NOW’), embora boa parte da ambientação pareça simplesmente a Austrália de 1979 em um filme de baixo orçamento. Mesmo a presença de gangues caricatas não serve de índice futurista, considerando quantas vezes o cinema das décadas de 60-80 (pós-contracultura, pós-movimentos pelos direitos civis) representou marginais desgrenhados como a encarnação dos medos conservadores. Nesse mundo, o comércio e a prestação de serviços ainda funcionam: vemos casas noturnas, sorveterias e hospitais. Há um único sinal inequívoco, portanto, de que a Ordem se encontra nos estertores: o prédio-sede da polícia, dilapidado e quase vazio.

Em um momento decisivo da trama, o protagonista se sente afetado pela anarquia crescente e resolve tirar férias com a família. Nesse ponto o filme se transforma: Max, mulher e filho vestem as melhores roupas e viajam para o campo, onde a crise social parece exorcizada. Os partidários dos “roteiros plausíveis” provavelmente considerariam a premissa absurda: que tipo de gente sai de férias em meio ao caos? Penso, contudo, que esse é o elemento mais perceptivo da obra, ilustrando o nível de negacionismo mobilizado por uma sociedade para rejeitar as evidências de que seu modo de vida não é mais sustentável. Mas a ilusão de segurança é frágil e a mesma gangue enfrentada por Max em seu trabalho como policial vêm romper definitivamente o idílio.

Como se demarca um fim de mundo, a transição entre normalidade e a catástrofe? Em Mad Max, assim como na cultura hegemônica do século XXI, a gravidade da crise só se torna clara quando a família branca das nações desenvolvidas é sacudida de sua habitual posição de conforto: para as demais populações, as distopias já começaram muito mais cedo.

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Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) também nos situa “alguns anos no futuro” e, assim como no filme de Miller, apresenta poucas diferenças evidentes entre seu universo ficcional e as representações do presente. Há, no entanto, o detalhe periférico de um televisor ligado, na qual lemos as palavras: “AO VIVO. EXECUÇÕES PÚBLICAS RECOMEÇAM ÀS 14H – VALE DO ANHANGABAÚ”. O prefixo recomeçam – indica uma barbárie já instalada e provoca a pergunta: quando teríamos transposto aquele limite? Considerando que o jornalismo policial clama há décadas pelo extermínio dos “bandidos” e o número efetivo de mortos em “confrontos com a polícia” no Brasil, essa fronteira já não teria sido ultrapassada?

Situar uma narrativa pessimista em um futuro próximo possui, em princípio, uma carga perturbadora, sugerindo que pouco separa a nossa realidade dos piores cenários. Ao mesmo tempo, o expediente interpõe uma distância reconfortante entre o presente e a catástrofe. Resta, dessa forma, uma gama de opções ante os prognósticos adversos, da sensação de urgência ao derrotismo e a negação, escolhas que poderão ser postergadas até que finalmente alcancemos o ponto da irreversibilidade.

P.S.: Agradecimentos a Victor Lopes pelo incentivo, a Juliana Fausto pela ajuda com a redação de um trecho e aos editores da Multiplot pela paciência.

Referências

Roland Barthes, S/Z. Éditions du Seuil, 1970

[1] Éditions du Seuil, 1970. Paráfrase livre do que o autor escreve sobre a redução da pluralidade no texto clássico em várias passagens, como nas seções VI, XV e XL e também sobre a nominação na seção XI. As frases posteriores à referência são extrapolações por minha conta, acreditando que a situação mudou muito desde que Barthes escreveu que “os hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade recomendam que joguemos fora a história uma vez consumida” (seção IX, p.20, tradução própria).

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Oito Horas não fazem um dia

Por Bernardo Moraes Chacur

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Oito Horas não fazem um dia, série em cinco episódios transmitida entre 1972 e 1973, foi o primeiro trabalho de Rainer Werner Fassbinder para a TV alemã. Conforme anunciado pelos créditos iniciais, o programa era uma Familienserie, gênero popular na Alemanha Ocidental de então. Oito Horas, no entanto, fugia do padrão desse tipo de narrativa ao apresentar uma família operária no lugar tradicionalmente reservado ao “típico” lar de classe média. Mas apesar dessa escolha de personagens e temas, o seriado também rejeitou as convenções do cinema politicamente engajado, contrabandeando discussões políticas entre doses de otimismo e entretenimento. Como resultado, Fassbinder atraiu críticas de ambos os lados do espectro ideológico e a série foi cancelada antes da filmagem dos três últimos três capítulos, apesar do sucesso de audiência.

A trama gira em torno de dois membros da família Epp, Jochen (Gottfried John) e a Avó (Luise Ulrich). O primeiro é um jovem que trabalha em uma fábrica, onde é pressionado por metas crescentes de produtividade. A segunda é uma viúva obrigada a morar com a família por falta de recursos. Jochen se apaixona por Marion (Hanna Schygulla), que lhe ajudará a canalizar de forma produtiva o seu descontentamento com o trabalho. A Avó conhece outro viúvo (Werner Finck), com quem decide buscar independência e um novo lugar para viver. A partir dessas duas linhas de ação somos apresentados a outros membros da família, amigos e, especialmente, colegas de trabalho.

As dificuldades enfrentadas por esses personagens são vencidas de forma coletiva. No contexto da fábrica, contudo, cada vitória obtida por Jochen e seus colegas revela imediatamente um novo desafio, demonstrando a eficiência e ubiquidade daqueles mecanismos de exploração. A partir dessa estrutura, Fassbinder combina esperança e pragmatismo: as vitórias são possíveis, mas o brutal desequilíbrio de forças entre patrões e empregados está sempre presente.

Fassbinder dialogou com a Velha Hollywood ao longo de sua carreira e há momentos em Oito Horas calcados nas screwball comedies. Mas a ligação entre o seriado e o cinema americano dos anos 30-50 ultrapassa o nível superficial. Assim como nos roteiros clássicos, as questões econômicas e sociais são enquadradas em dramas pessoais e entretecidos na narrativa. Os problemas enfrentados pelos personagens são solucionáveis e as comunidades são retratadas como essencialmente boas, apesar das tensões internas. O desenrolar do enredo reforça valores positivos, por mais que os valores defendidos por Fassbinder destoem do tradicional ideário norte-americano. O resultado diverge tanto das preocupações anti-ilusionistas de Brecht quanto do frequente pessimismo do Realismo Social, para citar duas vertentes da arte de esquerda – embora valha mencionar que nos três episódios não filmados, a série daria uma guinada mais trágica e explicitamente política.

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Oito Horas foi filmado cerca de um século depois da publicação do Capital. Algumas situações e diálogos parecem alusões diretas a conceitos marxistas: trabalhares alienados do próprio trabalho; o controle exercido pelos detentores dos meios de produção. Alguns incidentes parecem extraídos do início da Segunda Revolução Industrial e os personagens parecem viver em um mundo no qual o Manifesto Comunista jamais foi publicado. Não há sindicatos a vista. Esses anacronismos podem parecer uma estratégia didática, mas vale lembrar das tentativas de apagamento e estigmatização sofridas pelos discursos anticapitalistas naquele país ao longo do século XX. Líderes trabalhistas alemães foram executados pelo nazismo e, no exílio, por Stalin. O Partido Comunista da Alemanha Ocidental foi banido em 1956 e refundado somente em 1968. Ideias de esquerda eram associadas ao Outro ameaçador, que espreitava do outro lado do Muro ou praticava atentados sob a forma do Grupo Baader-Meinhoff.

A transmissão do seriado coincidiu com os últimos anos da chamada Era de Ouro do Capitalismo (1945-73). O período foi marcado pela ausência de crises financeiras sérias, baixo desemprego e melhora sensível na distribuição de renda – pelo menos no Hemisfério Norte e para a população branca desses países. No intervalo, foram utilizadas políticas execradas pelos defensores da economia de mercado, como intervenção estatal na economia e restrições ao movimento de capitais.[1] O medo de alastramento do comunismo influía na concessão de benefícios e direitos. Em um contexto como esse, a insubordinação de Jochen e seus companheiros de fábrica parecia especialmente plausível.

A partir de 1973, uma série de crises estremeceram a economia global. A assistência social, a regulação econômica e os direitos trabalhistas foram reiteradamente apontados como origem de todos os males. Adotando o caminho oposto, as políticas das décadas seguintes permitiram um incremento cada vez mais acelerado da concentração de riqueza. Essas mudanças foram acompanhadas por um extraordinário esforço de propaganda. Em Oito Horas não fazem um dia os conformistas e conservadores não defendiam o status quo por acreditar que aquela sociedade era justa, mas por considerá-la imutável. Nos dias de hoje, as mesmas pessoas provavelmente falariam em empreendedorismo e estado mínimo para justificar que o capitalismo tardio é o melhor (e único) mundo possível.

Considerando a trajetória das últimas décadas, não é surpreendente o desespero e até derrotismo de tantas obras hoje classificadas como críticas sociais. Em contrapartida, o otimismo de Oito Horas poderia parecer ingênuo e contraproducente. Um dos grandes momentos da série é a festa de casamento de Jochen e Marion, uma longa sequência que reúne a maioria dos personagens, cada vez mais bêbados. Em outros filmes, seria fácil imaginar cenas parecidas redundando em conflitos. Ao invés disso, somente o cunhado conservador e um operário xenofóbico terminam isolados, enquanto entre os demais vence novamente a união e solidariedade. Por que Fassbinder, geralmente tão cáustico, teria adotado aqui esse tom positivo? Talvez por calcular que sem uma opção consciente pela esperança nenhuma mudança pode ser imaginada, postura essencial em um cenário cada vez mais adverso.

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[1] Boa parte dessa síntese foi retirada do seguinte artigo: https://www.newyorker.com/magazine/2018/05/14/is-capitalism-a-threat-to-democracy

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O zumbi da História – Ecos de Calibã e a Bruxa em George Romero

Por Bernardo Moraes Chacur

 

Todas as histórias antigas, como disse uma das nossas belas mentes, são apenas fábulas convencionadas; e para os modernos, um caos que não pode ser desvendado.

Voltaire, Jeannot et Colin

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Bruegel, o velho, O Triunfo da Morte, 1562 (detalhe)

Na historiografia tradicional, o surgimento do capitalismo é representado como um progresso natural, a vitória do pragmatismo econômico sobre o feudalismo e as trevas. Nessas narrativas, a miséria e a pilha de mortos acumuladas durante a transição costumam ser retratadas como incidentes lamentáveis, mas periféricos, da grande marcha evolutiva. Essa versão oficial é contestada em Calibã e a Bruxa, de Sílvia Federici, que identifica a violência e a expropriação como elementos indispensáveis para o estabelecimento da nova ordem. A conquista da América e o tráfico negreiro foram, afinal, os grandes financiadores da revolução industrial, que exigiu por sua vez uma força de trabalho empobrecida e disciplinada pela repressão às revoltas camponesas, pela perseguição aos hereges, por um novo sistema de criminalização e pelo cerceamento à liberdade feminina. Sangue e sofrimento permearam cada etapa do processo.

Mas na obra, Federici não se limita em perfilar uma longa sequência de injustiças, dedicando igual atenção ao extenso histórico de revoltas que marcou o fim da era feudal. Para a autora,

O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e dos papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal — possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo.[1]

A transição pacífica rumo ao capitalismo é, portanto, uma fábula convencionada, omitindo a intensidade e potencial subversivo dessa grande sacudida. Essa mesma omissão foi perpetuada pelo cinema, um dos grandes vetores do nosso imaginário histórico. Há, certamente, filmes sobre a luta contra a tirania ambientados no mesmo período abrangido por Federici. Essas histórias costumam assumir, contudo, tons vagos e moderados, esquivando-se de aproximações desconfortáveis entre os carrascos de então e seus herdeiros contemporâneos. Basta lembrar que o protagonista preferencial desse tipo de enredo é o nobre renegado que enfrenta os usurpadores da autoridade legítima: nessas tramas, o problema da ordem constituída é sempre seu desvirtuamento, nunca sua fundamentação. Enquanto consumimos revisões periódicas do mito de Robin Hood, histórias como a Rebelião de Kett (encabeçada por um servo) ou a insurgência de “37 mulheres, lideradas por uma tal Capitã Dorothy[2] (ambas contra os cercamentos na Inglaterra), seguem na obscuridade, a exemplo de dezenas de outros casos elencados ao longo de Calibã e a Bruxa.

Para além dessa lacuna, também poderíamos questionar a aptidão de um roteiro clássico (centrado em heróis e heroínas individualizados) para representar esse histórico de insurgências coletivas. Essa questão já havia sido levantada por cineastas do bloco soviético, que tentaram retratar a multidão como protagonista da História (como por exemplo, Miklós Jancsó em Salmo Vermelho, de 1972). Mas, salvo exceções, a massa indiferenciada costuma ocupar uma posição bastante diversa na caracterização cinematográfica, onde a contraposição entre personagens principais e uma multidão ameaçadora é uma constante desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação. E, assim como no filme de Griffith, essa distinção orienta-se frequentemente por coordenadas raciais: os nativos da América, África e Ásia como obstáculos para a “missão civilizatória” dos europeus e seus descendentes, reproduzindo nas telas uma retórica mobilizada a cada novo projeto de expansão territorial-econômica. O clichê presta-se igualmente a criminosos, terroristas, exércitos inimigos ou qualquer outro grupo apresentado de forma homogênea e sub-humana.

***

À primeira vista, os zumbis pareceriam a continuidade dessa longa tradição, a massa desumanizada por excelência. Mas na obra de George A. Romero, o grande arquiteto do gênero, os mortos-vivos nunca receberam tratamento simplista. Pelo contrário, os filmes compreendidos entre A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Terra dos Mortos (2005) são algumas das explorações mais interessantes já produzidas pelo cinema sobre o conflito entre alteridade e identificação e sobre o potencial colapso de uma ordem ainda mais assassina do que os canibais que a destroem.

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A Noite dos Mortos-Vivos, 1968

O fim da civilização já era um espectro recorrente no terror e ficção científica quando o primeiro filme da série foi lançado em 68, mas o desenlace mais comum para esse tipo de enredo ainda era a superação da ameaça, preferencialmente por meios científicos – a vitória do racionalismo contra a face sombria da Natureza. Noite também parece terminar com a reafirmação do status quo, mas o reestabelecimento da ordem passa inequivocamente pela ignorância e truculência: caipiras armados exterminam os zumbis que encontram pelo caminho e, no processo, executam o herói negro, identificando-o como um dos monstros – desenlace já prenunciado pelo início da trama, quando o grupo (branco) de sobreviventes hesitava entre considerar Ben um aliado ou um risco.

A “vitória” revela-se apenas temporária em O Despertar dos Mortos (78), no qual acompanhamos o agravamento do caos precipitado pelos zumbis, mas consumado pela brutalidade dos vivos. Seguindo o padrão histórico, a resposta das autoridades ao clima de instabilidade é direcionar seu aparato de violência aos guetos: a trama começa com a invasão de policiais a um bairro de negros e hispânicos, produzindo mais uma pilha de cadáveres na declarada intenção de reestabelecer a paz. E ao final do filme, a fortaleza estabelecida pelos personagens não é rompida pela horda de mortos-vivos, mas por um grupo de saqueadores humanos. Na imaginação de Romero, a lógica – política e cinematográfica – do “nós contra eles”, é habilmente subvertida.

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O Despertar dos Mortos, 1978

Nesse segundo episódio se manifesta uma fascinação pelo apocalipse, o êxtase do abandono do trabalho e do passeio pelo shopping center em um mundo em que o dinheiro perdeu o valor, evidenciando o caráter arbitrário e contingente de uma organização social que tendemos a considerar natural e imutável. Esse esvaziamento de sentido é levado adiante em Dia dos Mortos (1985), em que militares e cientistas tentam aplicar as soluções tradicionais – violência e instrumentalização – a uma situação além de qualquer controle. No segundo grupo, o Dr. Logan defende a conversão dos mortos em força de trabalho, um adestramento que exige recompensas (“eles precisam ser recompensados, Capitão. Caso contrário, como irão fazer o que queremos?”) – que no caso, só pode significar alimento. O exército, contudo, enoja-se com a perspectiva de ter que sacrificar (literalmente) a própria carne. Na falta de consenso, os zumbis invadem a base e despedaçam quem encontram pelo caminho, na sequência mais brutal da série. No desfecho do filme, Bub, a principal cobaia do Dr. Logan reafirma sua dignidade, enquanto o Capitão Rhodes, líder truculento e antipático, é destroçado sem despertar qualquer simpatia.

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Dia dos Mortos, 1985

Romero retornou a esse universo duas décadas depois em Terra dos Mortos (2005). Desta vez, somos apresentados a um condomínio de luxo cujo conforto é sustentado por servos iludidos pela promessa de ascensão social e pelo saque dos subúrbios habitados pelos mortos. Depois de uma dessas incursões violentas, um grupo de zumbis decide organizar-se e retaliar a predação, concretizando a possibilidade de um ponto-de-vista zumbi já sugerido no filme anterior. O deslocamento narrativo acompanha a tomada de consciência por parte dos “monstros”: facilmente ludibriados nas primeiras cenas, solidários e alertas na conclusão da saga.

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Terra dos Mortos, 2005

***

Mas qual é, afinal, a conexão entre Calibã e a Bruxa e a tetralogia dos Mortos? Há, certamente, pontos de contato entre as obras: tanto a historiadora quanto o cineasta descrevem cenários de calamidade e anarquia acompanhados de repressões violentas. Ambos articulam, cada um ao seu modo, indignação contra injustiças sociais inseparáveis de desigualdades econômicas. Cada um é, à sua maneira, otimista, ou pelo menos afirmativo: Federici resgata insurreições que alcançaram vitórias importantes, ainda que parciais ou provisórias. Romero imagina uma realidade em que os detentores do poder são vencidos, apesar de toda sua violência, ou justamente por causa dessa violência. Os exercícios de memória e imaginação envolvem, como sempre, posturas políticas.

Todo esse preâmbulo me prepara para admitir que, afinal, não há conexão direta entre Calibã e Bruxa e a tetralogia dos Mortos. Nada sugere que Romero estivesse pensando em alegorias históricas quando conseguia esporadicamente os recursos para retornar a esse universo. Seria, além disso, simplista reduzir uma obra tão rica a uma leitura unívoca. Ainda assim, lendo Federici, deparei-me com situações e imagens que me remeteram a esses quatro filmes.

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Jacques Callot, Os horrores da Guerra, 1633

Como lembra a autora, “a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa[3]. A privatização de terras coletivas desestabilizou a produção de alimentos, cuja distribuição também passou a ser condicionada por um novo fluxo comercial. A pressão combinada dessas e outras mudanças reduziu parte expressiva da população à indigência. Legiões de desnutridos assombravam as estradas e batiam desesperados nos portões das cidades.

(…) as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta.[4]

A indignação e repulsa não se dirigiu, entretanto, às causas da crise, redirecionando-se contra os mais atingidos, conforme atesta o comentário de um médico lombardo em 1630:

O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso quem já o tenha experimentado.[5]

Em situações extremas, ameaças de canibalismo compuseram o panorama das revoltas, “já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los[6]. Em Nápoles em 1585, “durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne[7]. O espectro da antropofagia fez parte da demonização dos revoltosos. No mesmo período, o arquétipo do canibal foi indispensável para caracterizar a suposta selvageria dos habitantes das novas colônias. As vítimas sofreram assim uma dupla violência: de um lado, a desestruturação total de seu modo de vida e de outro, a imposição do estigma de monstros. Esses dois movimentos se retroalimentaram:  a imagem de sub-humanidade justificava novas espoliações, que engendraram por sua vez mais miséria.

“A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carece de qualquer poder de raciocinar e [seus membros] apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (…) Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. A seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (…).[8]

Na concepção que se difundiu, o ser humano é uma combinação – separável – entre razão e animalidade. Às mulheres, aos camponeses, aos africanos e indígenas escravizados, cabia apenas a segunda parte: corpos sem intelecto. E na mesma linha do Dr. Logan em Dia dos Mortos, o pensamento europeu converteu esses corpos em objeto de estudo, visando a sua utilização para fins produtivos. Vivissecções eram realizadas publicamente em “teatros anatômicos”, preferencialmente em condenados.  Mas enquanto a ciência buscava explicar o corpo como uma máquina,

Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo, segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas.[9] 

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William Hogarth, A recompensa da Crueldade, 1751

Essa crença relaciona-se com a popularização do canibalismo medicinal na Europa dos séculos XVI a XVIII, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo, não (…) limitado a grupos marginais: era também praticado nos círculos mais respeitáveis[10]. Ironicamente, imagens de banquetes antropofágicos foram peças-chave da propaganda que qualificou os ameríndios como criaturas bestiais.

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Théodore de Bry, Canibais na Amazônia, 1578

Calibã e a Bruxa abrange muito mais que os episódios e temas periféricos que reuni nesses últimos parágrafos. Espero, no entanto, que esses poucos exemplos indiquem como diferentes discursos foram – e continuam sendo – mobilizados para justificar desequilíbrios, exclusões e fomentar o medo. O cinema acaba sendo mais um componente dessa engrenagem, por inércia ou deliberação. Parte da originalidade de Romero (e de Federici) é justamente a desestabilização desse tipo de narrativa.  A cada iteração, o diretor nunca perdeu de vista os piores monstros, sejam os fictícios ou suas contrapartes no mundo real: das milícias que executam o herói negro no primeiro filme aos magnatas manipuladores da última parte, que se beneficiam do ciclo de morte sem jamais sujarem as mãos.

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Durante a elaboração desse texto tive em mente a resenha de A Noite dos Mortos-Vivos publicada pela Multiplot em 12 de junho de 2018, escrita por Kênia Freitas (http://multiplotcinema.com.br/2018/06/a-noite-dos-mortos-vivos-night-of-the-living-dead-george-romero-1968/). Espero que ninguém a culpe por isso.

[1] Federicci, Silvia. Calibã e Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante, 2007, p. 44

[2] p.143

[3] p. 155

[4] p. 158

[5] p. 158

[6] p. 318

[7] p. 319

[8] p. 278

[9] p. 263

[10] p. 388

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(Re)encontros de família: indefinição e redefinição da narrativa familiar em Zemeckis, Romero e Resnais.

Por Bernardo Moraes Chacur

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Quatro ideias prontas:

  1. Filmes americanos possuem alta carga ideológica.
  2. Filmes americanos são ingênuos, logo simples.
  3. Um certo cinema europeu rompe com os padrões hollywoodianos.
  4. Romper com o padrão hollywoodiano implica em ausência de padrão, aleatoriedade.

São generalizações bem difundidas, apesar de contraditórias entre si (1 e 2) ou superficiais (3 e 4). Inconsistências pouco aparentes a princípio, mas demonstráveis a partir da análise de três encontros de família, que exemplificam diferentes relações entre o cinema e a narrativa.

I.

Narrar não é observação passiva da ‘realidade’ ou dos ‘fatos’, é uma atividade de reconfiguração. Estabelecer relações entre causas e consequências, definir o que merece recordação, atribuir responsabilidade a indivíduos ou deslocá-la para forças que os transcendem (sejam sociais, naturais, sobrenaturais etc.). É erigir um mundo, mantê-lo de pé ou desestabilizá-lo. A narrativa não se restringe à ficção. Também está presente na historiografia, na psicanálise, no jornalismo diário e no cinema, de forma indissociável.

Nem sempre foi assim. Termos como filmes de mostração ou de atrações costumam ser utilizados para definir as primeiras décadas de produção cinematográfica. De certa maneira, a narração sempre esteve ali: decodificar a saída dos empregados da fábrica Lumière exigia uma compreensão mínima das ações (são funcionários partindo após a jornada de trabalho) e do contexto (trata-se de um local onde se executa jornada remunerada em uma cidade moderna do ocidente etc.) representados naquela película de 1895. Mesmo os loops projetados nos cinetoscópios Edison (como o execrável Electrocuting an Elephant, de 1903) poderiam apresentar início, meio e fim discerníveis, o germe narrativo.

Mas nada disso se compara à sofisticação narrativa conquistada após o advento da montagem e o desenvolvimento de Hollywood como indústria e linguagem, já no final da década de 1910. A transição entre exibir e narrar foi central para a aceitação da nova mídia. A mostração de lutas de boxe ou esquetes de vaudeville era considerada entretenimento vulgar, enquanto a boa ficção seria capaz de educar moralmente as massas (vide as discussões sobre a utilidade da literatura e da arte, no mesmo período). E de que moral estamos falando?

Lembremos algumas convenções desse cinema: contar uma estória, com lógica causal bem definida, focada em indivíduos com motivações compreensíveis e resolução clara dos conflitos apresentados. Qual representação de mundo é inseparável dessa maneira de organizar a informação? De modo geral, é a crença na liberdade do ser humano e na efetividade da ação: o protagonista é o agente de seu próprio destino, capaz de intervir nos rumos de sua vida e, se necessário, nos rumos de sua sociedade. Essa concatenação nem sempre é otimista: nos noirs, como em algumas tragédias clássicas, a vontade dos personagens pode ser insuficiente ou até mesmo engendrar sua derrocada. Ainda assim, na superação ou na queda, prevalece a iniciativa do self-made man e a trama raramente abandona a província do explicável. São convenções fortes, que mantém-se efetivas mesmo em histórias de viagem no tempo e realidades alternativas.

O que nos traz ao primeiro dos nossos três encontros familiares, a trilogia De Volta para o Futuro (Robert Zemeckis, 1985/89/90), em que o personagem principal reescreve a própria biografia, a de seus pais e filhos. Cada desenlace é diretamente associável a uma origem específica (a covardia paterna que se arrasta desde os tempos de colegial; o fracasso do Marty de meia-idade, cuja origem está no acidente automobilístico etc.) e, logo, admite intervenção. O efeito de cada ação é aferível, seja no retorno a 1985 ou através dos objetos que se modificam às vistas do herói (o retrato de família, os jornais, a carta de demissão). O mesmo vale para toda a cidade de Hill Valley, que se converte em distopia quando McFly comporta-se irresponsavelmente (à semelhança da Bedford Falls alternativa em A Felicidade Não se Compra, privada de seu pilar-da-comunidade). Trata-se enfim, do mito hollywoodiano em estado de arte.

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Falando em mitos, é comum apontar o componente edipiano no filme de Zemeckis. Também valeria compará-lo à Odisséia: no princípio das duas histórias, o solar da família encontra-se em desordem (assolado ora por Biff, ora pelos pretendentes de Penélope). Ambos os protagonistas reentram incógnitos em seus lares: Odisseu transfigurado, Marty irreconhecível em 1955. O ‘disfarce’ lhes concede tanto a liberdade de ação quanto a observação indiscreta de seus familiares (como as esposas, mães e descendentes se comportam durante a ausência do filho/marido?). Após um ciclo de peripécias, a ordem é instituída pela ação dos heróis, com alguma ajuda externa (Atena, o Dr. Brown). São (dentre outras leituras possíveis) duas jornadas de salvaguarda da linhagem paterna, belíssimas articulações de ideários regressivos – mas de forma alguma “simples” ou “ingênuos”. Em nível mais geral, testemunham a crença no poder do indivíduo e suas escolhas, ainda um corolário dos manuais de roteiro. Situação diversa da que veremos a seguir.

II.

Nos tempos da Hollywood clássica, o Terror era o gênero mais afeito ao pessimismo e à incerteza. Durante a década de 70, em conformidade com o malaise prevalente, essas duas tendências se disseminaram por boa parte do cinema americano. Nem sempre uma tendência favorecia a outra, afinal o pessimismo pode redundar em explicações bastante restritas, eliminando dessa forma a incerteza. Ocasionalmente, a dinâmica entre essas duas forças era estimulada pela influência do cinema europeu. São questões ilustradas por Martin (George Romero, 1978), nosso segundo encontro de família.

Quando a trama se inicia, o personagem título está a caminho da casa de parentes, onde causará divergências: Para seu velho guardião, o recém-chegado encarna uma maldição sobrenatural que os persegue desde a Lituânia, o vampirismo. Martin, por sua vez, atribui a suposta monstruosidade a causas genéticas, enquanto a prima mais nova crê que o hóspede é apenas um jovem confuso, capaz de transcender as neuroses familiares. O filme não solucionará inequivocamente a questão, embora indique uma resposta mais plausível.

Em qualquer hipótese, Martin é um assassino. As perseguições, que visualiza de acordo com o clichê vampírico, redundam em estupro e assassinato, perpetrados desajeitadamente. Se De Volta para o Futuro é homérico, entramos agora em terreno quixótico: um homem tentando encaixar o mundo no gênero literário/cinematográfico. Coincidência importante: o papel idealizado das donzelas em perigo, tanto nos romances de cavalaria quanto na fantasia vampiresca.

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A estrutura do filme é episódica, assim como em Cervantes. Há frouxo encadeamento entre acontecimentos e os ‘heróis’ realizam muito pouco. Para Quixote, a Dulcinéia jamais se materializa. Martin, por outro lado, se envolve com uma dona-de-casa e o sexo real começa a suprimir os impulsos de sanguessuga. Ao contrário do fidalgo manchego, vislumbra uma vida além do delírio, até ser punido pelo crime que não cometeu. É a inversão dos valores do roteiro clássico: o indivíduo não domina seu destino e não se descobre satisfatoriamente no decurso da trama. Inversões, no entanto, se relacionam ao modelo: o pessimismo à New Hollywood ainda sustenta alguma causalidade (Martin é destruído pela incompreensão do tio e pelo peso moral das transgressões cometidas) e a sua ambiguidade é, no mais das vezes, solucionável (ele quase certamente não é um vampiro).

Nesse filme, Romero utiliza técnicas narrativas popularizadas pelo cinema europeu das duas décadas precedentes, que buscava outras maneiras de representar a realidade, o tempo e a ação (enxergo pontos de contato com Melville, Godard e Antonioni). A meticulosidade com que os ataques de Martin são encenados torna-os o verdadeiro centro do filme, ao invés de elos em uma cadeia de eventos. Seu ‘realismo’ torna indisfarçável a violência e feiura usualmente destinadas a elipses. O confronto com a idealização é temático e, ao mesmo tempo, exprimido cinematograficamente.

III.

Em Muriel, ou o Tempo de um Retorno (Alain Resnais, 1963), nosso terceiro encontro, a linearidade é sistematicamente desconstruída. Desta vez, não estamos diante de uma família tradicional: Alphonse é acolhido por um antigo amor, a viúva Hélène, com quem poderia ter se casado. A viúva mora com um rapaz, Bernard, à primeira vista seu filho, na verdade enteado. Alphonse chega acompanhado da jovem Françoise, que apresenta como sobrinha e de quem é, na realidade, amante. Cada relação de parentesco está irremediavelmente truncada.

Alphonse e Hélène se conheceram e separaram durante a ocupação nazista naquela mesma cidade. Placas e buracos de bala rememoram o conflito, que, no entanto, permanece obscuro para os antigos participantes, incapazes de lembrar o número e a identidade dos mortos (ou diferenciá-los dos vivos, convenientemente esquecidos). Bernard é assombrado pelas memórias da Guerra da Argélia, jamais esclarecidas, reativadas a partir de fragmentos: diários, fotografias, filmes de 8mm. O apartamento da viúva é também um antiquário: móveis aparecem e desaparecem cena a cena, sedimentos instáveis de passado.

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Walter Benjamin observou que os combatentes da 1ª Guerra, “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. Parte das funções da narrativa – explicar, tornar os eventos suportáveis – havia sido “desmoralizada” pela sua inadequação ante os traumas vividos. O mesmo pode ser dito a respeito dos discursos oficiais sobre a República de Vichy e a colonização francesa na África. Os personagens de Muriel vivem sob o peso dessa desagregação e submetê-los à narração tradicional seria outra violência, a justificação do injustificável.

A representação adequada desse ceticismo não é obtida aleatoriamente. Exige, pelo contrário, o questionamento de cada premissa da lógica linear e, consequentemente, da gramática do cinema. As regras de boa edição recomendam motivações diegéticas e invisibilidade nos cortes, ditames assiduamente desrespeitados por Resnais. Não se trata de exibicionismo formal, há consistência notável entre escolhas e temática: imagens de presente e passado justapõe-se, como em nossa memória e à nossa revelia. Pontos chaves da trama ultrapassam a ambiguidade para permanecer indecidíveis. Em Martin, não obstante a incerteza, Romero ainda fornecia suporte para inferências. Em Muriel, Resnais suprime deliberadamente os elementos que elucidariam os mistérios centrais.

Aludimos ao cânone ocidental na discussão dos filmes anteriores. Para Resnais, nesse período, o precedente literário mais direto seria o nouveau roman, igualmente dedicado a questionar os limites e a ética da Forma (vale lembrar que o diretor adaptou ou colaborou com dois de seus luminares: Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet). Tais experimentos – no cinema ou na literatura – são frequentemente mal interpretados. Costumam ser acusados de incompreensibilidade, esteticismo, desvio da ficção ‘natural’. Há um indisfarçável autoritarismo nessa argumentação: desacreditar as narrações alternativas é sustentar que apenas a versão predominante seria admissível, o único modo de organizar a informação e o mundo, apesar da ampla evidência histórica sugerindo o contrário. Abandonar a estrutura tradicional não implica em ausência de estrutura: recusar as identidades e ordenações pré-estabelecidas pode ser um ato de resistência.

***

De acordo com o estereótipo, partimos do cinema simples de nosso primeiro exemplo e avançamos gradualmente até sua contraparte mais sofisticada, embora tenhamos retroagido algumas décadas durante o percurso (dos anos 80 aos 60). Sinal de declínio cultural? Ou poderíamos inverter a tendência a partir da escolha de três outros filmes? Considerando o nível de articulação, observável em cada caso, entre ideias e expressão cinematográfica, seria adequado descrevê-los em termos de maior ou menor complexidade? Ou seria mais produtivo refletir sobre as possibilidades abertas (ou desconsideradas) em qualquer narração?

Em tais discussões, precisamos nos ater à forma/conteúdo do texto? Ou deveríamos reconhecer igualmente o papel desempenhado pela leitura na produção de sentido? Exemplificando: os paralelos apontados aqui entre filmes e literatura emanaram naturalmente de uma recorrência de arquétipos ou são resultado de uma linha argumentativa? Concluo este texto com outra ideia pronta: convém não esquecer que a crítica, os ensaios e teorias também fazem parte da narrativa.

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Guilherme Gaspar e Marcus Martins

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Vulgarismo e prestígio – Alguns precedentes e considerações

Por Bernardo Moraes Chacur

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Discussões sobre o vulgar auterism costumam orbitar em torno do segundo elemento da expressão – isto é, sobre a pertinência da comparação entre esse conceito mal definido e o cânone estabelecido em torno da Política dos Autores nos anos 50. Talvez seja mais produtivo refletir sobre o primeiro componente da fórmula: a noção de vulgaridade em arte.

Respeitaremos o clichê e começaremos pela Poética de Aristóteles, que já abordava as relações de superioridade entre diferentes gêneros da mimesis. Segundo leituras mais apressadas desse texto, as formas mais elevadas de arte tratariam de temas e personagens elevados – Deuses, Heróis, Reis. Já a comédia representaria o seu extremo oposto: os piores tipos de comportamento, as classes mais baixas, apelo aos basic instincts do seu público. Variações desse discurso nortearam a hierarquização estética durante alguns séculos, embora algumas dessas máximas não possam ser diretamente atribuídas ao texto original sem alguma controvérsia.

No trecho a seguir (condensado a partir de duas passagens), o filósofo resume os preconceitos de seu tempo nos seguintes termos:

Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se (…) [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores (…) feita para um público de bom gosto (…) a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior”[1]

Em seguida, Aristóteles defende a primazia da tragédia sobre a epopeia, contrariando esse consenso. Logo, seria o filósofo o grande precursor do vulgarismo? Ressalvando-se a malandragem confessa da seleção acima, é possível arriscar duas conexões entre este debate e outros bem mais recentes: 1) um determinado gênero, de alta aceitação popular, é julgado inferior a priori; 2) A refutação dessa suposta inferioridade, propondo modificar a valoração anterior.

Nessas disputas pela posição de diferentes gêneros em uma mesma hierarquia, raramente (ou nunca) a própria noção de hierarquia era atacada. Diferentes concepções foram utilizadas para definir o que constitui um tema elevado em outros períodos históricos: a partir da Renascença, a pintura ocidental prestigiou ora os tópicos religiosos, ora os histórico-mitológicos até chegarmos, às temáticas sociais alguns séculos mais tarde. Durante todo este intervalo, havia demanda pela chamada pintura de gênero e outras modalidades de menor status: cenas domésticas, naturezas-mortas, paisagens etc., com alguns gêneros ganhando ou perdendo ascendência ao longo do tempo. Ainda assim, podemos apontar uma constante cambiável: certos gêneros são considerados frívolos, enquanto outros, dignos de contemplação séria.

As questões envolvidas nunca eram meramente estéticas, gerando impactos socioeconômicos concretos sobre a produção artística: cargos oficiais para artistas, ensino em academias, o acúmulo ou desvalorização de capital cultural para um público consumidor que procurava se afirmar ou diferenciar socialmente. Mas entre tendências conservadoras ou contestadoras, os produtos culturais consumidos pelas classes mais baixas invariavelmente ocupavam a base da pirâmide do prestígio.

O interesse por histórias e formas de expressão populares só foi despontar na Europa quando as mesmas passaram a ser consideradas em vias de desaparecimento, sob as ondas de urbanização dos séculos XVIII e XIX (e o Nacionalismo, com sua ênfase na ‘descoberta’ de culturas próprias, foi de igual importância para essa valorização)[2]. Para nossa pauta, dois precedentes são relevantes nesse movimento folclorista a) os detritos de uma era passaram a ser o tesouro de outra; b) a cultura popular urbana era vista como uma forma decaída da anterior e as cidades como o espaço onde o patrimônio ancestral iria se perder.

Esta última ideia ainda era bem aceita em princípios de século XX, como atestam as reações causadas pelas novas mídias (fotografia, rádio, cinema). Os Guardiões do Bom Gosto puderam, até então, oscilar entre desinteresse e desprezo pelo juízo estético das massas. Agora, eram afrontados pela própria escala massificada dessa cultura. E o cinema, em suas primeiríssimas encarnações, concentrava todos os vícios atribuídos à vulgaridade urbana. Até os primeiros anos da década de 1910, certos locais dedicados à exibição de filmes – os nickelodeons, dentre outros – chegavam a ser considerados física e moralmente insalubres[3].

Transcorrido pouco tempo, consolida-se uma indústria de cinema, ofertando um produto assimilável pela Boa Sociedade. Nesse contexto de necessidade mercadológica e legitimação, o cinema cortejou os padrões pequeno-burgueses de respeitabilidade e distinção cultural, condensando em torno de si alguns milênios de indicadores de prestígio e hierarquias de gêneros (vários dos quais já ultrapassados àquela altura em seus campos de origem).

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Por vezes, apelavam-se às mesmas virtudes já repisadas desde a Antiguidade ou Renascença: os Eventos Históricos, a vida dos Grandes Personagens, a Relevância Social (todas presentes em o Nascimento de uma Nação de Griffith). Outro procedimento recorrente era a adaptação de textos consagrados da Literatura e Teatro, reivindicando de forma quase parasítica as glórias concedidas às outras Artes. Não por acaso, termos oriundos de uma noção ingênua de dramaturgia ainda são usados para enaltecer este “cinema de qualidade’, como a ‘Boa Estória’, ‘os Diálogos Inteligentes’ etc. Cem anos depois, alguns desses valores ainda persistem como critérios de excelência para parte do público e crítica.

A linha de montagem hollywoodiana seguiu produzindo a sua cota anual de Filmes Sérios, mas em número sempre inferior à oferta de títulos de genealogia menos ilustre: roteiros baseados em contos publicados em periódicos, no teatro melodramático e na literatura barata. Essa produção média não foi uniformemente desprezada pelos próximos 30 anos: atingindo milhões de pessoas, o cinema consolidou o seu nicho, justificando o surgimento de uma crítica especializada. Ainda assim, a sua ordenação no totem de prestígio manteve-se, na melhor das hipóteses, intermediária. Até o final da década de 50 e o advento do “autorismo”[4].

Na ocasião, dois fenômenos complementavam-se: 1) a expansão de um cinema internacional, com sua alteridade em relação à Hollywood e seus sobrenomes convertidos em marcas registradas (Kurosawa, Bergman, Fellini etc.); 2) a defesa entusiasmada, por parte de uma nova geração de críticos, de nomes que atuavam há décadas no cinema americano. Tais discussões acabaram gerando um cânone alternativo (e que se tornaria “oficial”) de Grandes Cineastas, composto por realizadores europeus, asiáticos e – em pé de igualdade ou precedência – diretores baseados nos EUA e cuja obra consistia em suspenses, comédias, faroestes etc.

Esse movimento não deve ser interpretado como uma heroica caminhada até a luz. Antes, trata-se de mais uma etapa na trajetória da valoração cultural: defender que a 7ª ARTE possuía Autores (vulgares ou não), também era um recurso de conquista de prestígio, reivindicar o mesmo status das suas seis precedentes e inseri-la em uma narrativa equivalente, com seus Grandes Homens, Gênios e Autores (de Homero a Shakespeare, de Michelangelo a John Ford). Além disso, escrever um livro sobre Hitchcock não é apenas uma defesa do valor do diretor inglês, mas também a defesa do valor de escrever sobre o diretor inglês, ou seja, um exercício de autojustificação para um público de entusiastas e para os próprios críticos e estudiosos.

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II.

Uma variação da seguinte anedota é veiculada periodicamente na imprensa e redes sociais: um balde, esfregão ou qualquer objeto prosaico é esquecido em um museu e o público confunde-o com uma obra em exposição (nas entrelinhas: a suposta falta de legitimidade da arte moderna/contemporânea). As suas origens podem ser traçadas até o momento em que Duchamp expôs um urinol e batizou-o A Fonte. A obra pode ser interpretada de diversas maneiras, uma delas bastante aplicável ao nosso tema: a importância da posição, do quadro de referência para as construções de Sentido. Mais do que uma provocação, a Fonte de Duchamp (e as anedotas sobre baldes esquecidos) sugere algo essencial sobre o funcionamento do sistema.

Alguns exemplos, mencionados ou apenas sugeridos nos parágrafos precedentes: os contos populares do início da Idade Moderna eram apenas a camada inferior da cultura no seu próprio tempo e alguns séculos depois, Folclore. Vertigo foi recebido como um mistério mediano e mal resolvido em 1958 e o maior filme de todos os tempos em 2012[5]. Deslocando o nosso foco da recepção para a produção dos textos: a Poética pôde ter elementos de polêmica quando escrita, mas converteu-se em manual de excelência literária poucos séculos depois. A Política dos Autores, de controvérsia inicial passou a influenciar concretamente a importância dos diretores na Indústria, em pouquíssimos anos.

Especialmente nos dois primeiros exemplos, temos um mesmo texto recebido de formas completamente diferentes em um novo contexto, demonstrando a importância da moldura, da inserção do objeto no Museu, para a construção do sentido a cada leitura. A maneira como os objetos, culturais ou não, são confrontados é de tal forma orientada pela sua função, status e discursos adjacentes que é impossível pensa-los de forma separada de seu quadro de referência, isolar a Obra-em-si. O que não quer dizer que a Obra não exista, que todo o sentido seja arbitrário, uma mera ilusão de ótica convencionada por cada grupo observador.

Quando os folcloristas passaram a debruçar-se sobre a literatura vernácula, identificaram inúmeros pontos de interesse relativos à sua estrutura, a sua capacidade de produzir variações e as suas raízes históricas. Quando a crítica começa a exaltar Hitchcock, depara-se com um domínio estilístico e densidade temática observáveis na construção de cada plano. Em ambas as situações, a recepção não se produziu aleatoriamente, mas a partir de elementos identificáveis nas próprias obras. Paul Ricœur certa vez resumiu que a Leitura (que deve ser entendida de forma ampla) consiste no encontro entre um mundo do texto e um mundo do leitor[6]. Nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em uma discussão sobre o sentido.

Ambas as situações atestam a crescente importância do formalismo no pensamento ocidental sobre a estética. Percebe-se o deslocamento de uma análise e valorização centrados na temática evidente, nos referentes da obra no ‘mundo real’ (valores ‘externos’) para a consideração dos elementos constitutivos do texto e seu aparato de produção (valores ‘internos’)[7]. Evidentemente, tais transições não são totais nem homogêneas, menos ainda o ponto final da História em uma linha de evolução constante. A análise formalista não é a única possível em 2016, tampouco constitui a resposta ‘certa’ ou definitiva.

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III.

No Islã, os xiitas creem que a Revelação se encerrou com o Profeta, enquanto para os sunitas, ela continuou até os seus sucessores diretos. O autorismo também possui seus xiitas e sunitas. Os xiitas acreditam que a inspiração divina se limitava à canonização de Hitchcock, Hawks, Ford etc. e que nunca mais se encontraria algo de valor sob a cobertura do cinema de gênero. Sunitas diversos estenderam o precedente para outros cineastas e décadas em uma fronteira periodicamente deslocada, mas jamais abolida. Dessa forma assistimos a gradual incorporação das comédias de Tashlin até os zumbis de Romero ao quadro de respeitabilidade. Ainda assim, cada nova tentativa de expansão desse limite costuma encontrar resistências.

O ramo xiita costuma protestar que as práticas dos autores originais eram indissociáveis do modo de produção da Hollywood Clássica. Já os sunitas podem objetar que um Isaac Florentine não estaria no mesmo nível de um Paul Verhoeven (um dos mais recentes reabilitados). No entanto, tais protestos só são aplicáveis à indagação menos interessante (existem Autores, em termos comparáveis aos grandes cineastas do passado, em espetáculos de CGI 3D ou em fitas de pancada Direto-para-Streaming?), em prejuízo de questões mais férteis: pode-se encontrar valor estético no Vulgar? É possível confrontar e produzir ideias a partir deste ‘gênero’?

Cortejarei protestos sugerindo um instante de comparação entre dois filmesAdeus à Linguagem 3D dispensa lógica narrativa e personagens, a exemplo das últimas décadas da filmografia de Godard. Para processar com sucesso os seus temas nos termos propostos pelo diretor franco-suíço é necessário, além de certa familiaridade com alusões filosóficas e literárias, atentar para o sentido produzido pelos seus procedimentos formais, pelos elementos constituintes das imagens que se sucedem e como eles ilustram e complicam as ideias sugeridas pelo próprio título da obra e pelas frases que irrompem ora escritas, ora proferidas pelos atores em cena.

Para os dispostos, a experiência permite uma exploração sobre o estado da Linguagem (cinematográfica ou não), sua adequação para confrontar questões políticas, pessoais e seu potencial para o autoritarismo e violência. Outra abordagem possível seria admirar a beleza das imagens e da mise-en-scène, sem fazer questão de decodificar cada passagem. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria buscar no filme uma estória coerente ou personagens que permitam uma identificação com o público (mal-entendidos frequentes).

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Resident Evil: Retribuição (também 3D) não parece preocupado com uma lógica narrativa impecável ou desenvolvimento de personagens. Há um enredo, que trata da manipulação violenta de espaços físicos e temporais simulados e da sobrevivência nesta fronteira permeável entre real/virtual. Aproveitando-se do fato de que praticamente todas as imagens foram produzidas digitalmente, Paul W.S. Anderson libera a sua “câmera” e a faz transitar em velocidade vertiginosa entre visões microscópicas e telescópicas da ação, acelerações e desacelerações do tempo, transições entre mapas de videogame e cenários “reais”.

Para os dispostos, o efeito cumulativo desses procedimentos formais ilustra e complica um subtexto não muito distante do próprio texto. Outra abordagem possível seria simplesmente se divertir com a beleza das imagens, com o absurdo das situações e a inventividade da mise-en-scène. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria procurar no filme uma estória, personagens e atuações que atendam aos padrões de dramaturgia-cinematográfica-de-qualidade vigentes em 2016.

A comparação proposta pode soar descabida, uma vez que Godard é considerado um intelectual, enquanto Anderson dirigiu quatro adaptações de videogames. No entanto, penso que os exemplos superficialmente elencados nestas páginas ilustram o caráter historicamente variável de cada leitura. Cientes disso, ao invés de perpetuar as interpretações já autorizadas, podemos explorar as possibilidades de um confronto aberto com cada obra. Ao perseguir esse objetivo, não nos desvencilharemos completamente de nossas preconcepções, mas torna-se possível pensá-las e testar os seus limites. Armadilhas nos aguardam a cada passo. Um erro comum seria acreditar que, uma vez que o vulgar de um período pode se tornar valorizado no próximo, todo produto marginal estaria destinado a uma revalorização futura, em um mero processo de reversões cíclicas.

Para finalizar, vale lembrar que tais movimentos não possuem mão única. Quantos filmes não seriam levados à sério graças ao seu verniz de importância, antes de qualquer análise? E ao longo do tempo, mesmo os cânones podem perder a sua centralidade. David Bordwell ao estudar pormenorizadamente a linguagem clássica de Hollywood, não pôde deixar de notar o quanto os arthouses que lhe faziam contraponto também compartilhavam entre si semelhanças estéticas, estratégias narrativas, e convenções: o original, portanto, tinha (e continua a ter) um forte componente genérico, que certamente não o torna pior, mas coloca em cheque a sua hipotética superioridade. E se as filmografias de Jerry Lewis e Ingmar Bergman podem se ver igualadas em diferentes climas, outras obras, outrora incensadas, podem sofrer pior destino, como atesta a legião de títulos premiados a quem restou o proverbial Olvido da História – deslocamento que, por sua vez, também não será necessariamente irreversível.

 

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Bruno Amato, Marcus Martins e a toda comunidade CV. Agradecimento especial para Guilherme Gaspar, que tornou este texto legível.

[1] Seguem as passagens originais: “XXVI. 2.: Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria, por conseguinte a mais vulgar. (…) 5. Esta [a epopeia], segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior.” A poética clássica /Aristóteles, Horácio, Longino.  Introdução Roberto de Oliveira Brandão; tradução Jaime Bruna. 7.  ed.  São Paulo:  Cultrix, 1997.

[2] Os fenômenos mencionados não esgotam os fatores envolvidos nessa transição. Sugiro BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa 1500-1800 / trad. Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. para um panorama abrangente da mesma. Também penso haver grande interesse em pensar a questão sob o prisma das mudanças epistemológicas – vide As palavras e as coisas (FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.).

[3] Para este e os próximos parágrafos: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação. São Paulo. Scritta, 1995 e Bordwell, David; Staiger, Janet; Thompson, Kristin. The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press: 1985.

[4] O autorismo da década de 50 não representa a primeiríssima vez em que se atribuiu aos diretores aspirações e méritos estéticos. Não nos interessa aqui o ineditismo da abordagem, mas o papel desempenhado pela mesma na mudança de status experimentada pelo cinema a partir daquele período. Tampouco deve-se acreditar em uma equivalência automática entre autorismo e análise “esclarecida”, uma vez que diversas refutações e corretivos já foram propostos aos seus axiomas (que vão desde os mais ingênuas –  propor outra classe profissional, como os roteiristas, como principais autores de um filme – aos mais pertinentes – como apontar as tendências autoristas em ancorar suas leituras nas discutíveis “intenções do autor” ou ignorar contextos históricos em prol de um discurso excepcionalista).

[5] De acordo com a enquete realizada a cada dez anos pela Sight and Sound.

[6] RICŒUR, Paul. Temps et Récit . Volume 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, 1991. (Coll. Points – Essais).

[7] Tentei aludir aqui aos conceitos de episteme e formações discursivas, conforme descritos por Foucault em As Palavras e as Coisas, já citada anteriormente. Restringindo muito a abrangência dessas ideias, arrisco resumir que o discurso (em nosso caso, a hierarquização) é inseparável de suas condições de possibilidade (as premissas que definem o que constitui a excelência). Vide nota 2 acima.

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