Oito Horas não fazem um dia

Por Bernardo Moraes Chacur

HOLY MOTORS

Oito Horas não fazem um dia, série em cinco episódios transmitida entre 1972 e 1973, foi o primeiro trabalho de Rainer Werner Fassbinder para a TV alemã. Conforme anunciado pelos créditos iniciais, o programa era uma Familienserie, gênero popular na Alemanha Ocidental de então. Oito Horas, no entanto, fugia do padrão desse tipo de narrativa ao apresentar uma família operária no lugar tradicionalmente reservado ao “típico” lar de classe média. Mas apesar dessa escolha de personagens e temas, o seriado também rejeitou as convenções do cinema politicamente engajado, contrabandeando discussões políticas entre doses de otimismo e entretenimento. Como resultado, Fassbinder atraiu críticas de ambos os lados do espectro ideológico e a série foi cancelada antes da filmagem dos três últimos três capítulos, apesar do sucesso de audiência.

A trama gira em torno de dois membros da família Epp, Jochen (Gottfried John) e a Avó (Luise Ulrich). O primeiro é um jovem que trabalha em uma fábrica, onde é pressionado por metas crescentes de produtividade. A segunda é uma viúva obrigada a morar com a família por falta de recursos. Jochen se apaixona por Marion (Hanna Schygulla), que lhe ajudará a canalizar de forma produtiva o seu descontentamento com o trabalho. A Avó conhece outro viúvo (Werner Finck), com quem decide buscar independência e um novo lugar para viver. A partir dessas duas linhas de ação somos apresentados a outros membros da família, amigos e, especialmente, colegas de trabalho.

As dificuldades enfrentadas por esses personagens são vencidas de forma coletiva. No contexto da fábrica, contudo, cada vitória obtida por Jochen e seus colegas revela imediatamente um novo desafio, demonstrando a eficiência e ubiquidade daqueles mecanismos de exploração. A partir dessa estrutura, Fassbinder combina esperança e pragmatismo: as vitórias são possíveis, mas o brutal desequilíbrio de forças entre patrões e empregados está sempre presente.

Fassbinder dialogou com a Velha Hollywood ao longo de sua carreira e há momentos em Oito Horas calcados nas screwball comedies. Mas a ligação entre o seriado e o cinema americano dos anos 30-50 ultrapassa o nível superficial. Assim como nos roteiros clássicos, as questões econômicas e sociais são enquadradas em dramas pessoais e entretecidos na narrativa. Os problemas enfrentados pelos personagens são solucionáveis e as comunidades são retratadas como essencialmente boas, apesar das tensões internas. O desenrolar do enredo reforça valores positivos, por mais que os valores defendidos por Fassbinder destoem do tradicional ideário norte-americano. O resultado diverge tanto das preocupações anti-ilusionistas de Brecht quanto do frequente pessimismo do Realismo Social, para citar duas vertentes da arte de esquerda – embora valha mencionar que nos três episódios não filmados, a série daria uma guinada mais trágica e explicitamente política.

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Oito Horas foi filmado cerca de um século depois da publicação do Capital. Algumas situações e diálogos parecem alusões diretas a conceitos marxistas: trabalhares alienados do próprio trabalho; o controle exercido pelos detentores dos meios de produção. Alguns incidentes parecem extraídos do início da Segunda Revolução Industrial e os personagens parecem viver em um mundo no qual o Manifesto Comunista jamais foi publicado. Não há sindicatos a vista. Esses anacronismos podem parecer uma estratégia didática, mas vale lembrar das tentativas de apagamento e estigmatização sofridas pelos discursos anticapitalistas naquele país ao longo do século XX. Líderes trabalhistas alemães foram executados pelo nazismo e, no exílio, por Stalin. O Partido Comunista da Alemanha Ocidental foi banido em 1956 e refundado somente em 1968. Ideias de esquerda eram associadas ao Outro ameaçador, que espreitava do outro lado do Muro ou praticava atentados sob a forma do Grupo Baader-Meinhoff.

A transmissão do seriado coincidiu com os últimos anos da chamada Era de Ouro do Capitalismo (1945-73). O período foi marcado pela ausência de crises financeiras sérias, baixo desemprego e melhora sensível na distribuição de renda – pelo menos no Hemisfério Norte e para a população branca desses países. No intervalo, foram utilizadas políticas execradas pelos defensores da economia de mercado, como intervenção estatal na economia e restrições ao movimento de capitais.[1] O medo de alastramento do comunismo influía na concessão de benefícios e direitos. Em um contexto como esse, a insubordinação de Jochen e seus companheiros de fábrica parecia especialmente plausível.

A partir de 1973, uma série de crises estremeceram a economia global. A assistência social, a regulação econômica e os direitos trabalhistas foram reiteradamente apontados como origem de todos os males. Adotando o caminho oposto, as políticas das décadas seguintes permitiram um incremento cada vez mais acelerado da concentração de riqueza. Essas mudanças foram acompanhadas por um extraordinário esforço de propaganda. Em Oito Horas não fazem um dia os conformistas e conservadores não defendiam o status quo por acreditar que aquela sociedade era justa, mas por considerá-la imutável. Nos dias de hoje, as mesmas pessoas provavelmente falariam em empreendedorismo e estado mínimo para justificar que o capitalismo tardio é o melhor (e único) mundo possível.

Considerando a trajetória das últimas décadas, não é surpreendente o desespero e até derrotismo de tantas obras hoje classificadas como críticas sociais. Em contrapartida, o otimismo de Oito Horas poderia parecer ingênuo e contraproducente. Um dos grandes momentos da série é a festa de casamento de Jochen e Marion, uma longa sequência que reúne a maioria dos personagens, cada vez mais bêbados. Em outros filmes, seria fácil imaginar cenas parecidas redundando em conflitos. Ao invés disso, somente o cunhado conservador e um operário xenofóbico terminam isolados, enquanto entre os demais vence novamente a união e solidariedade. Por que Fassbinder, geralmente tão cáustico, teria adotado aqui esse tom positivo? Talvez por calcular que sem uma opção consciente pela esperança nenhuma mudança pode ser imaginada, postura essencial em um cenário cada vez mais adverso.

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[1] Boa parte dessa síntese foi retirada do seguinte artigo: https://www.newyorker.com/magazine/2018/05/14/is-capitalism-a-threat-to-democracy

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