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Um homem é uma câmera

Por João Pedro Faro

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O cinema é colagem a partir do momento em que um frame junto do outro gera movimento. Disso, gera-se a montagem. Da montagem gera-se o filme. Seja de um processo analógico ou digital, o maquinário por trás dessas etapas é a possibilidade do cinema de existir. Como a história de qualquer arte é a história do artista estando cada vez mais integrado fisicamente e intelectualmente à sua arte, a máquina, inevitavelmente reconhecida, é o grande centro de criação da contemporaneidade. Dentro do cinema, a maior de todas as máquinas, a que é a invenção do próprio cinema, é a câmera filmadora. E a história dessa câmera também é a história do cinema, do fim de uma mitificação industrial para um produto caseiro e do produto caseiro para a sua banalização como acessório de máquinas multifuncionais (a reprotubilidade técnica de Walter Benjamin no cinema). É desse princípio o cineasta americano Jem Cohen inicia sua carreira de curtas-metragens no final da década de 80, em Nova York. Influenciado por trabalhos de Benjamin e pela sua própria vivência na cidade, Cohen termina em 96 um trabalho de cinco anos: Lost Book Found, uma obra-chave não apenas pelo experimentalismo, não apenas pela fusão entre a câmera e quem a opera, mas principalmente pela possibilidade da colagem.

Nova York já era o espaço de grandes autores em jornadas solitárias com a própria filmadora. Mekas já estava há anos construindo diários sobre as efervescências nova-iorquinas e Peter Hutton encerrava em 1990 sua trilogia que leva o nome da cidade. Mas antes de um diário ou um exercício atmosférico, Lost Book Found é o encontro do advento do cinema solitário com a consciência da desmistificação de seu meio. Misturando as memórias de Cohen enquanto era dono de um carrinho de vendas com suas impressões urbanas após achar um estranho livro de anotações, o filme corre em torno das pulsões assustadoras que o registro de uma cidade em movimento ininterrupto pode gerar. E tudo isso está nas leituras narradas do conteúdo no livro encontrado pelo personagem, em sua maioria uma série de códigos, listagens, endereços e ditados. Quando essas palavras aparentemente aleatórias se juntam às imagens de Cohen por Nova York, o resultado é uma paranoica tentativa de decodificação do caos de elementos que constroem a cidade.

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O grande segredo descoberto é que quanto mais se observa, menos se entende, mais se acumulam imagens por cima de imagens, barulhos por cima de barulhos e ideais desconexas por cima de outras. A profissão do protagonista, que é narrada como sendo “um trabalho invisível”, já sugere que o caminho do personagem é observar até não aguentar mais: um vendedor num carrinho que nunca anda, destinado a estacionar eternamente em uma esquina que não para de se mover. Mas nisso não está sozinho, começa a perceber os personagens e padrões que se repetem, as recorrências cotidianas dentro do caótico, narrativas inacabadas do dia a dia. Porém, a observação é diferente do registro, e é aí que a câmera surge. Não seria o bastante para um trabalho como Lost Book Found ter a câmera apenas como mediadora entre a realidade e o filme, portanto ela se torna sua própria realidade porque nunca deixa de acompanhar tanto o fluxo psíquico e poético desse alguém que acompanhamos quanto sua própria andança e visualização de todo aquele espaço (nem sempre a câmera está como o narrador, mas sempre está nos mesmos papéis diante do que filma pois é condenada a se tornar aquela realidade).

O narrador de Lost Book Found mistura-se tanto à filmadora quanto ao seu ambiente pelo tempo em que consegue observar a tudo dentro da lógica das anotações do livro que encontra. Quando você está no processo quase mecânico de seguir pistas absolutamente perdidas dentre avenidas, propagandas gigantescas, telas de televisão, muros de concreto e produtos industriais, a consequência é acabar se tornando uma fração desses códigos que parecem escondidos. Ir atrás de repostas em um universo que, não importa o quanto você filme, o quanto você registre ou escreva, não parece se alinhas de forma alguma, é um pedido para instalar esse caos dentro da sua própria cabeça. No caso de Lost Book Found, dentro da própria câmera.

Cohen registra o cinza e o colorido na mesma intensidade, ambos parecem mórbidos de sua própria forma. Desde seu primeiro curta, This is a History of New York (1987), filmado em preto e branco, a cidade já era vista como fonte de extremos conflitantes, como no plano final que coloca um sem teto e um foguete na mesma imagem (o país da liberdade vai ao espaço mas não vive no chão). Em Lost Book Found, parece que as cores mortas dos incontáveis prédios e as montanhas de produtos em vitrines são acumulações de um vazio transbordante. Para o narrador, presenças banais que tornam-se misteriosas a partir do pressuposto que escondem ideias além-da-imaginação. Sistemas, equilíbrios, leis naturais surgindo no que veio de fábricas. Uma tentativa fracassada de voltar à mistificação de produtos e velhas inovações do que já é ordinário no final do século? O capitalismo parece estar em sua grande crise existencial, em fluxos já recebidos por filmadoras portáteis. Não à toa, um dos personagens que passam pelo narrador é um sujeito que recolhe joias e moedas que caíram em bueiros.

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As conspirações e as investigações cotidianas, no esforço de tentar perceber tudo em seus entornos, parecem querer encontrar qualquer vida que seja dentre a perdição do urbano. Buscando a cidade como uma espécie de museu de peças com prazo de validade. O máximo que Cohen e a câmera encontram são rostos de nova-iorquinos que encaram a lente nos minutos finais de Lost Book Found. Não entende-se o que está por trás das anotações do livro encontrado, mas sua poesia mecanizada pode acabar esbarrando em operários da manutenção do espaço em que habita (os vendedores ambulantes, os varredores, os lixeiros) eles, ainda que sistematizados, são um restante de vida possível.

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A câmera já não acompanha mais o operador, eles são a mesma coisa, são inseparáveis, inconfundíveis. Sua presença não é mais disfarçada, ficcionalizada, ela é a máquina da ficção e é reconhecida durante todo o filme como tal. Por mais que as filmadoras de Vertov já entrassem pelo cérebro e saíssem pelo olho, elas não são mais elementos fantásticos ou revolucionários. Pelo contrário, são agentes passivos do universo que registram tanto quanto qualquer outro civil. Olham para tudo de baixo para cima, em Lost Book Found elas nunca parecem passar da linha do pescoço de ninguém. Parece que sua transfiguração em homem rebaixou toda a sua imposição mágica aos medos e confusões de quem vive abaixo de arranha-céus e viadutos. Inevitável: é abaixo de tudo isso que surgem os grandes registros, é por onde andam todos os olhos que interessam.

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A sincronicidade das sombras

Por Felipe Leal

“A pressão real tem outros resultados: estabelece a concorrência entre os organismos desiguais, e se não podemos dizer como as espécies entraram na dança, podemos dizer o que é a dança”

Georges Bataille, em A Parte Maldita

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A perplexidade suscitada sobre a pergunta “o que é uma máquina?” liga-se de imediato ao porquê da existência do aparato, uma vez que sua configuração, pré-ordenada, se liga por um grosso liame à sua utilidade; ou ainda: “a que fins ele serve?”, o que é o mesmo e está imediatamente conectado à curiosidade, mais resumida ou mais sedenta, sobre o funcional daquilo, como todas as partes vêm a participar do ato integrado, de forma que tanto a cascata de dúvidas, fechaduras e espantos quanto àquela que ultrapassa a superfície do maquínico, adentra seus pormenores e finda, reemergindo, num unívoco sujeito-máquina, ambos os percursos de síntese do pensamento e do dispositivo, pode-se dizer, são circulares e infinitos em suas técnicas, cujo resultado é a sobrevivência da circulação ela mesma. Das milhares de cintilâncias espraiadas pela história como constelações de ideias e dispositivos funcionando indistintos como máquinas, pois, quem (atenção: quem) melhor que o aparato do Partido Nazista para personificar num só homem raça, nação, marcha, estatuto simbólico, filosofia, lei econômica geral, cordão familiar, governo quase total das noções de alteridade, presente, passado e futuro? Quem melhor que a propagandista do Partido, aliás, para fazer de tudo isso um corpo fílmico que é também um corpo maquínico perfeito? – perfeito para seus fins, como numa erótica do convencimento que antedita todo o enlace.

Repensemos Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935) como se o nome-rêmora com que nasce – por encomenda, nada menos –, “filme de propaganda”, antecedesse o caráter de “documento histórico” que marca os letreiros de início. Repensemo-lo em sua curiosa dualidade de adjetivo e de advérbio, assim como as máquinas são apreciadas e avaliadas também pela qualidade de suas tecnologias, refletidas estas nas alterações das formas e intensidades propostas. Estar na ponta tecnológica, desejar ali estar como os nazistas implicaram num dispendioso horror de energia higiênica excedente, requer maestria, supressão, compressão de todas as formas possíveis. Que seus efeitos sejam desejosamente encaixados ao nível de indicialidade mínimo necessário à primeira visão histórica superficial, isto é um resultado naturalmente almejado pela pompa entroncada dos bustos de seu mito e comitê: ser propagandístico porque a completude de sua máquina de gerência e domínio coletivo depende da impressão do Führer, dos corpos cimentados aos de sangue; tudo serve a ele e se solidifica por ele, como a invisível potência das fontes (springs: primaveras, jorros). E, no entanto, o adverbial ricocheteia através dos cantos, anunciado na mais invisível pressurização do manifestado onipresente, porque ser erigido às maneiras do propagandístico é assumir um enlameado de cinema, do que o cinema potencializa na situação-limite em que é necessário mostrar, tornar presente, algo do tudo, tudo de um algo, e recobri-lo com uma sinestesia de desejável, ardente.

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A língua em formato de anel, adiante num estado tautológico, no busto emocionado, artificial e exageradamente hesitante, à beira de uma convulsão apaixonada, de Rudolf Hess, custa a afirmar fingindo o custo afetivo que é a própria afirmação: “Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Hitler”. Que coisa é simultaneamente uma e outra? Entre muitos os exemplos, e quase sempre por apenas um momento, vê-se tal situação dúplice naquilo entre quem ama e quem lhe realiza a ação. O que a publicidade realiza não é tão-somente que um sujeito seja um outro que detém certo artefato ou qualidade, mas que o fetiche persista, que eu persista ‘faltando’. Se a engenhosidade do Partido foi a de ter multiplicado a incondicionalidade do amor ao Estado-Paternal, seu artifício sub-reptício, ardiloso, foi, como o de muitos pais, o de também ditar, como que por uma insígnia inquebrantável, também o que é o amor: explicitamente, as formas possíveis e circunscritas de amar. Fazer propaganda propagandisticamente é o arriscado excedente de deixar a máquina nua, antes exibir a organicidade rígida de suas operações do que esconder o pistilo. Triunfo é a potência desavergonhada da planta enquanto máquina da reprodução de si mesma. Exibir a serialidade da energia dessa potência recortando, com aresta de quadro, as fileiras de trabalhadores tão dispersos quanto conjuntos numa marcha, fazendo-as se mostrar na infinidade não do que realmente são (uma raça autodenominada e louca), mas daquilo em que o partido acredita e em que devem acreditar por espelhamento: uma ordem diluída de um número que parece ser mais do que é, com origem sem ponto de início e futuro como vetor puro de progresso. Vemo-los, a todos os soldados, como o continuum sacrificial, o custo vivo de uma Ideia que, para atingir sua efetivação, deve atentar sobre o desvio de seus meios.

 Seria demasiado histérico, quiçá de uma polissemia empurrada, visualizar algo de fálico na suspensão rija do braço na saudação nazista? Ora, que o peso da inclinação decididamente fique a cargo do dispositivo (textual, chamado argumentação), há algo sobre a constância assinalada do gesto que não podemos ignorar, por vir à tona também pelas políticas que um quadro encerra; interessemo-nos pelo filmado, aqui, e ainda que puramente. Pelos estalos geométricos de Riefenstahl, o Ave! é ora a linha basilar que encabeça o percurso restante ao céu, dividindo homem e o elemento imaterial de sua conquista, ora uma seta que liga o corpo, da maneira que pode, ao imaterial guia, projetando o corpo até Ele; ora a massificação esmagada de espectadores para os quais o rosto pouco importa, ora o preciso e afiado lançamento de uma continência “universalmente” reconhecida como desaguando, pelo ar comum, nele: ele, a válvula; ele, a fonte da convergência da vida inteira.

Não há um segundo no filme disposto a exibir algo da organicidade da vida cotidiana, marginal à dedicação ao Partido, dessas milhares de vidas que seus gerentes enumeram em discurso com fácil disposição, nem mesmo a sucessão de cenários que fabrica o despertar de Nuremberg como uma cidade plácida de muros, bandeirolas e córregos: o elemento humano, pela brevidade de um pinball geográfico-ilustrativo, está ausente e não há um ruído qualquer de presença particular, logo quando o resto do documento filmado é entregue aos olhares difusos, discursos em cusparada, silhuetas conglomeradas e público incitado a permanecer restrito à sua localização nessa monumental arquitetura de um desfile ininterrupto. Até a cidade recende, arquitetonicamente, ao Partido. Está asséptica para ele.

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Nos meados dos anos 30, pensemos no peso, na pouca discrição de um aparato cinematográfico, no articulado arranjo quase inumano dos blocos de figuras dispostas a servir, em numeral e forma apolínea, o Führer, e aos rostos capturados por um close fugaz de Riefenstahl, sobretudo aqueles das crianças, a equivalência será a de um pedido para um cano de escape ou para um botão, uma vez trocados de máquina-mãe, que sorriam diante do intricado jogo de uma totalidade nova a quem devem servir. Nenhum tamborilar homogêneo cúmplice de um maquinário de poder, não importa quão cristalinas sejam as ficções de suas paredes e daquilo que lhes é estranho, “de fora”, pode resistir, absoluto, ao sorriso desviante e fugitivo dos garotinhos, que não deviam estar felizes, mas parecendo felizes, ou mesmo dos soldados de cabeças irresistivelmente para-lá-e-para-cá-, descentrando a sobriedade de uma linha, atentas e autoconscientes ao caráter demonstrativo do próprio desfile, logo quando a total concentração do corpo devia obedecer como uma régua que o olhar de Hitler mede, confere. Não. Não uma máquina: esta não pode conter furos. E, no entanto, quanto mais lustrosa e obediente, mais sua pressão escapa à regra, mais suas partes, inconcebivelmente feitas para desconhecer em totalidade o que ali se passa – esta é a dança, não perguntem mais nada –, rebaterão com um desconhecimento de papel que só aos olhos menos atentos parecerá a humildade que a encomenda e que os princípios demonstrativos exigem. Como são minúsculos, esses que não são seu Guia. Como são simplórios, das terras pré-unificadas de onde vem e pelo desconcerto que seus corpos emanam aqui defronte seu predecessor e enviado.

O que é comum a todos eles, a estes rostos e corpos de uma vez só? Pela perspectiva imperial de um mastro de bandeira flutuando e presidindo os arcos que compõem seu centro, como numa mesa de convidados cuja colocação serve de artéria à festa, pela inclinação dançada das faces e miradas, postas em dança também por aliciamento e por sopro da formação de quadro – tudo olha acima e ao redor de si mesmo e visando o torpor aquilino da voz de seus generais, voz que é única e viaja em círculos, monólogo eterno do totalitarismo. Hitler fala para a Alemanha, mas a Alemanha nunca lhe responde. Uma fábrica “sonhada” reconhecível por seus chiados e pela ordem de colocação de seus elementos. Entre a corporeidade e o maquínico, a história preservou assustadoras tentativas de união. São as brechas desses casamentos que legam as perguntas ocas, ainda que hoje saibamos dos furos e das infiltrações: como pôde, como pôde um povo inteiro e por tanto tempo, digamos, obedecer a um pai? Seus ecos relembram numa atualização que mobiliza algo do ciborgue, pois não confiamos que fossem inteiramente humanos, nem tampouco manejáveis o suficiente para serem peças puras. Logo quando a fórmula fabril residia precisamente lá: são da estirpe de seu pai, e não só Hitler é excessivamente humano: a dedicação de seus filhos à pureza fabricada da Terra-Mãe é o que lhes faz, enquanto peças engenhadas para servir estritamente a seus fins, acrescer à humanidade, talvez de uma vez por todas, um possível maquínico.

Devemos ao engenhoso aparato nazista um alargamento que é produto da mesma duplicidade adjetivo-adverbial, uma vez que “ser humano” passa a ser uma espécie (de categoria) maior quando um fragmento inteiro de história pede licença para devir-máquina. Há alcance e codificação prescritos aos gestos afetivos, encurtamento de mobilidade aos acúmulos e interesses voltados ao futuro (de si), agora todos centrados na Pátria “de lá”; a caracterização constitutiva, familiar, recebe uma cisão de um inquietante e insistente destacamento, ficando a figura do jovem sempre à parte nas menções populares (“uma família e, a seu lado, sua parcela de juventude”, leríamos); a participação nos ensinos e alternâncias morais perpassam as gerações de modo a alinhar qualquer espécie de lei àquelas vindas de mais acima, e as sensações físicas de uma trajetória histórica individual se agarram às propulsões e narrativas da ascensão e vitória do Partido, de seu início minoritário ao inevitável império racial futuro, com a mesma fidelidade que uma planta engenhada deve vir a se materializar em sua complexa montagem. Para acreditar em seu impossível, que o volume de sua pretensão teria a circularidade germinativa de uma gônada e de um útero, Hitler, a metonímia Hitler, precisou esculpir uma ideia maternal-maquinal a partir de uma outra, de Estado. Para veicular os signos de tal gravidez e de uma terra prometida, o triunfo de uma vontade, seguindo no que uma vontade ainda não pôde efetivar no presente, no que ela ainda é, aliás, só mirada, necessita que estejam mais que visíveis as capacidades e leis ordenadoras de sua obtenção.

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Máquinas, se ainda não o sabemos de todo, são tanto uma alquimia da retórica quanto uma da produtividade. Hitler é a Alemanha: confiamos na máquina cujo autor assume suas responsabilidades e porvires. A Alemanha é Hitler: para que a máquina me convença, isto é, me convença a dobrar e me fazer passado diante da aceitação daquilo que me foi feito novo, devo atestar que ela realiza sua função com cada vez menores danos e operando com maior peso sobre si. Mas foi um fardo concentrar para si a Alemanha?, perguntaríamos ao Führer, nós que não temos voz, nós que marchamos, recuamos e acenamos? Máquinas não perguntam; corpos, sim, especialmente quando dançam. Então o que pergunta a distorção imagética encrespada quando, tomadas de certa diagonal, fileiras e colunas de pernas em largas botas pretas desvelam um borrão informe demais para durar? Talvez façam querer saber qual o custo da potência de uma vontade, a nós que já vimos as ruínas futuras? Talvez seu intuito seja mesmo o de uma erótica, e aquele martelar, ainda que serial e simplificado, enfeitice o tempo presente com a majestade de um pavão a mostrar, por disputa amorosa, o dispositivo de corpo mais atraente que aqueles outros, recuados para fora não do que é, mas do que deve parecer ser. Jorge Luís Borges já nos narrou de dois artesãos numa contenda perante o rei, ficando vencedor aquele que, em resposta à magnífica pintura do reino feita por encomenda misturada a duelo, retira de debaixo de um pano um espelho, superfície por excelência do simulacro, e mostra a pintura do reino adiciona de uma cintilância daquilo que é outro.

Um ente outro mais eu que eu mesmo: a mecânica de linguagem do grande pai-patrão é autoexplicativa em sua erótica de ciborgue, pois que subsiste algo em comum entre a permissão do corpo em transitar pelas máquinas e o evento germinativo que lhe deve ser infinito, aqui: a marcha de um partido que vem por detrás – que precede, aliás sempre além do campo de visão possível –, que segue ”através de nós” e que se estica adiante para um Éden esférico, puro. Como um braço estendido, vetorizado para o centro que lhe devolve a certeza de sua funcionalidade recém-descoberta. Como sua arquitetura singular, a rocha sobre rocha cuja periferização, esmiuçada pela propaganda duas vezes nua, diz que, àquela mesa, o pai fala numa altura acima de cada bloco e para os blocos eles mesmos. Ideia desvairada, a de que toda a histeria quase infantilóide daqueles discursos berrados se direcione à arquitetura mais do que ao numeral a quem diz servir? Paga-se o preço do desejo de potência, por vezes, engolindo o excedente de energia de que não se necessitava em primeiro lugar. Entre corpo e máquina, a aparição das veias marca a fome. A máquina fará ruídos estranhos, caóticos ainda que repetitivos. E entendê-la é falar, ainda que por um momento, a língua de sua “maquinicidade”. Muito além das inteligências artificiais, Riefenstahl legou, independentemente de seu patronado, uma imagem do que restaria, do que poderia vir a ser se seu sonho propagandeado tomasse concretude: a exatidão louca, impossível, de nosso momento derradeiro, em que o último homem em pé, circundado pela poeira do que destruiu, findará percebendo que esteve o tempo inteiro falando com rochas. Sua máquina terá falhado, e duplamente, porque há uma intricada maquinação por detrás, atravessando, entre as pedras e seus corpos, falando uma linguagem de “erodição” muito mais antiga que nós.

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Ghost in the Shell e a humanidade negociada

Por Isabel Wittmann

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.[…] Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra (HARAWAY, 2009 p.36-39).

 

O mangá Ghost in the Shell, um marco para o cyberpunk, que já havia sido adaptado em anime com O Fantasma do Futuro, de 1995, foi adaptado para uma versão com atores, A Vigilante do Amanhã, de 2017, protagonizada por Scarlett Johansson. É difícil não analisar ambas as obras em paralelo, já que fazem leituras diferentes de uma mesma fonte comum. Ficção científica com pitadas de ação, a narrativa do filme mais recente trata de um futuro distópico em que a Major (Johansson) possui um corpo cibernético, chamado de concha (shell), especialmente construído para receber seu cérebro após um acidente em que quase morreu. O cérebro, aqui, representa a individualidade do ser humano, sendo entendido como uma espécie de equivalência à alma (ghost). Major é a primeira de seu tipo: uma soldada perfeita para o combate ao crime, com um corpo artificial, mas entendido como humano. Ela encarna o mais próximo que um ciborgue pode chegar de um androide, ou seja um humano híbrido de um humanoide artificial.

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Os aspectos visuais dos filmes se destacam. O anime, especificamente, empresta referências de Blade Runner (1982), tratando-o como um antecessor espiritual e projetando referências a um futuro que é, sim, androide, mas mais que é isso é ciborguizado e conectado em rede. É fácil perceber como a estética foi absorvida pelas irmãs Wachowski, resultando, através da combinação de outros elementos, em Matrix (1999). O filme com atores segue as referências a Blade Runner, mas abstém-se de replicar o que já havia sido digerido por Matrix. Temos uma cidade cosmopolita preenchida com arranha-céus e adornada de neons e hologramas publicitários.

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Ambos os filmes tratam de discutir questões sobre corpo, humanidade e individualidade. Outro ponto forte das adaptações são as discussões pertinentes que suscitam, mas a encarnação de 2017 perde em profundidade ao personalizar as motivações envolvidas na trajetória dos personagens e se afastar não só das maiores reflexões (expostas em diálogos elaborados no anime) sobre os temas citados, como alterando em parte o sentido destas. Entretanto são trabalhados pontos importantes, ainda que de maneira superficial e apressada. A dúvida que norteia o roteiro é, afinal, o que nos define como humanos? O que diferencia um corpo artificial lido como humano e outro que não o é ? Major é confrontada com a casca de uma gueixa-robô agonizante e seu olhar reflete esse questionamento: se aquele mecanismo é tão artificial quanto o seu, porque os outros a tratam como humana? A resposta supostamente reside em sua alma ou seu cérebro, intacto, mas o próprio filme deixa claro que o corpo pode ser curado quantas vezes for necessário, enquanto o cérebro definha, pode ser hackeado e ter memórias manipuladas. Se aquilo que lhe garante a humanidade é justamente o que não pode ser confiado, como ter certeza de seu status de humanidade?  Conforme Donna Haraway, esses limites se apagam:

A cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico (HARAWAY, 2009, p.95).

Mas essa persiste como uma dúvida que atormenta Major, especialmente depois de incentivada a indagar-se a respeito da exclusividade de sua categoria. A versão de 2017 é claramente privada dos monólogos sobre o contexto social do conceito de humanidade focando na individualidade: Major se pergunta “quem sou eu”, não o que ela é, fugindo da noção de coletividade que envolve os indivíduos construídos. Mas de toda forma o que a leva a refletir sobre si é a totalidade artificial de sua corporalidade, uma vez que o aprimoramento cibernético dos corpos é entendido como algo corriqueiro.

Seu parceiro de campo, Batou (interpretado por Pilou Asbæk) perde os olhos em uma explosão e recebe em troca um complexo sistema de lentes muito mais eficiente do que as naturais. A prática da ciborguização leva a uma hierarquização dos corpos apresentados: mesmo que os implantes e próteses sejam melhorias, há um personagem que afirma ter orgulho de ser cem porcento humano. Mais que isso, a hierarquização perpassa a noção de humanidade com que as imagens humanoides são dispostas para o espectador. Não há dúvidas de que os gigantes corpos holográficos projetados nas publicidades não correspondem ao que se entende como humano. Acima deles, em termos de aproximação com o humano, temos os corpos físicos dos robôs, categorizados como seres sem valor, criados para servir. Em seguida viriam os corpos de seres humanos, que se estabelecem em níveis variados de poder e, por fim, os próprios ciborgues, fisicamente melhores que estes, embora com a humanidade possivelmente questionada.

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E nesse momento é importante mencionar a discussão acerca do whitewashing, ou seja, do apagamento das pessoas que não são brancas no filme de 2017. Os principais robôs que aparecem em cena têm a forma de gueixas, em uma problemática representação fetichizada e esterotipicamente submissa de raça, etnia e gênero, relativizada pela percepção de sua não-humanidade, que nesse contexto permitiria sua exploração. A única mulher negra retratada, sem nome, é uma prostituta contratada pela Major, que busca uma forma de tentar se conectar com sua humanidade. No trailer ela beija a mulher, mas a cena foi removida na montagem final. Ainda assim permanece o contexto erotizado, como se a Major buscasse um espelho de si e tentasse encontrar em outro corpo a humanidade que tenta sentir em seu. Além disso, se o ser humano é marcado também pela posse do próprio corpo (já que os corpos ciborgues, robôs e holográficos pertencem a corporações), como se encaixa essa personagem anônima na escala de humanidade? Em ambos os casos robôs e humana não-brancas são apresentadas como instrumento de uma sexualização que não lhes pertence. Isso é agravado no segundo caso pelo uso desse corpo com marcação de raça e etnia específica por uma mulher entendida como humana (embora ciborgue) e branca (contextualizada como ausente da mesma marcação de raça).

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Como o mangá e anime, o filme manteve o cenário e as influências estéticas e culturais da Ásia, mas o protagonismo é de pessoas brancas. Como uma androide com o corpo completamente construído, Major poderia representar qualquer etnia, mas é apresentada como ocidental. O problema, no final das contas, não é o papel ser delegado para Scarlett Johansson especificamente, já que a ficção científica abre margem para essa possibilidade, mas todo o conjunto de representações, contextos e subtextos presentes na obra, que resultam em uma clara percepção de whitewashing. Os entendimentos a respeito de humanidade acabam sendo apresentados de maneira intrinsecamente relacionada a raça e etnia, complexificando involuntariamente a questão principal do filme com a possibilidade de uma leitura racista.

Scarlett Johansson plays The Major in Ghost in the Shell from Paramount Pictures and DreamWorks Pictures in theaters March 31, 2017.

Vestida, ou seja, coberta do que nos é artificial, Major se apresenta, em contraste, como humana. Despida, livre da construção que é o vestuário, com o que parece um corpo nu, mas na verdade coberto por um collant composto de placas que lhe permite camuflagem térmica, ela se aproxima de outras formas humanoides não-humanas. Se por vezes humanizamos as coisas, em outras coisificamos ou objetificamos pessoas. A noção de pessoa e de coisa e as imagens que elas produzem (sejam as que estão sendo captadas nas filmagens, sejam as que são o resultado final da película) são indissociáveis.

 Torna-se assim possível imaginar uma corporalidade que nada tem a ver com as cisões entre interior e exterior, mas sim com estado alternativo de experiência produzido por acoplamentos entre complexidades. Compatibilidade e não-compatibilidade, portanto, seria o desafio em questão; a constituição de um corpo conectivo como modo de afetação entre configurações de mundo distintas e suas distintas produções de sentido (CESARINO, 2017, p.12).

Dessa maneira, A Vigilante do Amanhã não extirpa de todo as questões apresentadas no anime O Fantasma do Futuro, questionando as categorias de humano e não-humano, cujos limites são borrados pela ciborguização, e a relação destas com a corporalidade de seus personagens.

Referências:

CESARINO, Pedro. Conflitos Entre Pressupostos na Antropologia da Arte: Relações entre pessoas, coisas e imagens. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 32 n. 93, fev. 2017.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue- Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – Entrevista com Felipe Bragança e Catarina Wallenstein

Por Pedro Tavares
Traga-me a Cabeça de Carmen M. é uma espécie de intenso filme-reflexo dirigido por Felipe Bragança e Catarina Wallenstein que em tempo hábil registra o Brasil em nova decadência pela relação passado-presente como um corpo, representado com potência pela própria Catarina Wallenstein. O filme passou por Rotterdam, Tiradentes, Indie Lisboa e entre outros relevantes festivais e conversamos com os diretores sobre questões mais pulsantes após a exibição.

Felipe, este é, de longe, o seu filme mais frontal no que diz respeito ao corpo e a cidade, apesar de ser uma matéria presente em todos os seus trabalhos. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre este regime de urgência que o filme explora neste diálogo da personagem com a cidade.

Felipe: Acho que meu impulso de cinema passa muito pela relação dos afetos de personagens com as camadas de tempos históricos acumulados nos territórios geográficos e simbólicos em que vivem. Desde o A Alegria (2010), passando pelo roteiro do Praia do Futuro (2014) e pelo Não Devore Meu Coração (2017). Especialmente cidades, pela sua escala humana e tátil. Aqui, por se tratar da ideia de um olhar sobre um território geográfico e simbólico mais amplo, o Brasil, em processo de destruição e ruína, em desaparecimento, o corpo da personagem surge de forma ainda mais determinante como ponto de sobrevivência possível, como musculatura agindo nesse vazio abismal em que o Brasil estava ameaçando mergulhar enquanto fazíamos o filme. Daí talvez a sua sensação de que o filme é mais determinado nessa relação muscular com a protagonista.

Ainda que seja praticamente impossível fugir desta pauta caótica em que vivemos, é possível dizer que este tipo de abordagem pode se repetir em um próximo filme?

Felipe: Meu próximo longa, em lenta finalização para chegar aos festivais em 2020, se chama Um Animal Amarelo e é também sobre a relação entre os afetos acumulados em um corpo imaginado e as camadas históricas que o atravessam e afetam.

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Através da figura lunar de Carmen Miranda há todo o laço alegórico do filme, que me parece uma saída muito interessante para não-achatamento do tempo pelo diálogo com o passado e também para a construção do conflito, que é um filme que não vê a luz do sol. Por que esta escolha?

Catarina e Felipe: Carmen é mesmo uma lua. Que bela imagem a que você propõe. Carmen moveu a gravidade do panorama cultural brasileiro na década de 30 ao propor de forma intuitiva e genial a antropofagia como gesto do corpo cultural brasileiro. Carmen era esse jogo de máscaras, de invenção em cima de si, de mostrar e esconder, de ir além dos limites de seu pequeno corpo de menina portuguesa de classe média baixa e moradora da Lapa. Carmen, no filme, é assim, não um objeto, mas a nossa máquina do tempo. Talvez uma máquina dos tempos. Não para voltar ao passado, nem prever o futuro, mas pela capacidade que ela tinha e tem de ser uma acumuladora de camadas culturais e históricas que construíram uma utopia de identidade brasileira, que hoje se perde, se perdeu, se liquifez em suas contradições. A Carmen que nos interessa é a devoradora de limites, demolidora de “não podes”, a mulher incrível que nas décadas 20 e 30 desafiou o lugar guetificado que a música negra brasileira tinha, e se propôs a cantar samba na rádio, a gravar samba, a propor um Brasil em que o caos, a cacofonia e a invenção por acumulação seriam o norte. Carmen Miranda foi uma das grandes inventoras do Brasil. Em sua performance de corpo, voz, rosto, foi uma das primeiras performers a construir uma persona pública assumidamente travestida, performática e foi isso que a levou a ser contratada pela Broadway e por Hollywood já na segunda fase de sua carreira, anos 40, quando já era uma figura genial e central no Brasil. Sem o acontecimento Carmen a gente não ouviria samba como ouve hoje em dia. Sem Carmen, não haveria tropicalismo nem Caetano. Sem Carmen, não haveria David Bowie.

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Talvez seja um assunto batido quanto à produção do filme, mas ainda julgo importante já que ele é inerente ao filme em si: o filme foi produzido após o incêndio no Museu Nacional, em época de Copa do Mundo e em pré-campanha para as eleições de 2018. Como equilibrar tudo isso em um filme com rigor artístico tão pulsante?

Felipe e Catarina: Resolvemos fazer o filme num impulso apaixonado de reagir ao mal-estar cultural e político instalado no Brasil ao longo de 2018. Filmamos em Julho, durante a Copa, já antevendo a tragédia política que viria, e ao longo da montagem, que se deu até final de Outubro, fomos acumulando e absorvendo elementos que nos cortavam o cotidiano. A destruição do Museu Nacional foi assim, nos tomou de assalto e foi trazida para o corpo dramático do filme. Então a solução para sua questão era apenas não deixar afetar pelo que estava em torno de nós e ir acumulando no corpo do filme.

O filme viajou por diversos países recentemente e talvez estas chagas do povo brasileiro não sejam tão evidentes para o público estrangeiro, ainda que exista o pensamento do sucesso do brasileiro em outros países e a desgraça do estrangeiro no Brasil, uma terra de eternas promessas. O que reverberou para estes públicos?

Felipe: O mundo inteiro está olhando preocupado para o Brasil e o filme tem tocado fundo nos olhares estrangeiros. Talvez o emaranhado simbólico seja mais denso para eles adentrarem, mas o sentimento de que o Brasil como território simbólico, como linguagem, parece estar se automutilando, é evidente para todos e alvo de espanto e tristeza. O Brasil é uma riqueza planetária. A antropofagia brasileira é um oxigênio de humanidades. Não é apenas uma questão local se o Planeta Terra perde o Brasil, como está perdendo.

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Uma questão mais técnica e de logística: o filme tem 60 minutos e produção independente. Felipe ja passou por modelos diversos de produção e distribuição nos últimos anos. Para “Carmen”, fora as exibições em festivais, como você pensa em chegar até o público?

Catarina e Felipe: Vamos fazer algumas sessões especiais com a nossa presença e estamos pensando em uma pequenina distribuição em algumas capitais no começo de 2020. Mas o que mais queremos agora é fazer sessões com conversas, trocas, pensamentos. Esse filme foi pensado diferente de outros, escrito e produzido em 6 meses, tinha mesmo o intuito de ser emergencial, pequeno, artesanal e humano. Então o que mais nos está interessando agora é a conversa, a escuta. Recuperar o exercício da escuta e da reflexão nesses tempos de reações apressadas, surdas e definitivas sobre tudo. Por isso talvez o filme seja um musical: a primeira coisa que se faz para recuperar ou aprender uma língua, uma linguagem, não é falar. É escutar. É sentir seus sons. Os fascistas puristas em Brasília hoje podem tentar destruir o Brasil da mistura e da bagunça e da incongruência que eles tanto odeiam, mas os sons ficam. E acreditamos que vão ecoar por muito tempo. Como a Carmen.

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Divino Amor: enquadramentos e exclusões de um futuro próximo

Por Kênia Freitas

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Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019) se constrói como uma narrativa de ficção especulativa de futuro próximo. Não há afastamento temporal o bastante para falarmos em distopias ou utopias, e o que se configura é um pequeno deslocamento do presente. Este é grande o suficiente para imaginarmos o declínio do carnaval como a festa mais popular do Brasil (perdendo o posto para uma rave cristã) e o avanço no biocontrole estatal em prol de uma reprodutividade acelerada (dentro da ordem familiar patriarcal), mas pouco significativo em outros aspectos tecnológicos ou ambientais. O 2027 de Divino Amor projeta sobre o Brasil de 2019 intensificações religiosas e políticas que já atravessam o país no momento atual. Se em geral a ficção especulativa aborda essencialmente questões do seu presente, nas ficções de futuro próximo esse vínculo com o agora se torna mais evidente e impactante para o leitor/espectador.

            Nesse sentido, uma das estratégias mais instigantes do filme é a escolha do seu ponto de vista, do seu universo de interesses. Há uma aposta de enquadramento de visão do mundo pelas vivências da protagonista Joana: uma mulher crente em Deus e na burocracia estatal. Casada, frequentadora devota dos encontros do Divino Amor, em contato frequente com o seu pastor (no atendimento via drive-thru), ansiosa por engravidar, funcionária dedicada de um cartório. Joana acredita no projeto de família patriarcal, no direito do Estado de controlar e guiar a vida das pessoas a partir desse projeto cristão-familiar. Joana age nas duas frentes (Estado-Igreja) com a mesma devoção: no cartório, usa a burocracia para dificultar divórcios na tentativa de reconciliação entre os casais; e em seu grupo da igreja, atrai os casais em crise para as práticas religiosas-amorosas-sexuais. A partir do lema “quem ama não trai, quem ama divide”, o grupo pratica um swing abençoado de Deus. Cabe notar como o amor e o sexo, que são pontos fundamentais da experiência religiosa de Joana, são concebidos e vividos a partir de acepções limitadas e orientadas em um sentido produtivista, capitalista, patriarcal. O amor de Joana manifesta-se para Deus, para o seu marido e para o grupo do Divino Amor, mas não estende-se aos filhotes de cachorro, à vizinhança, a uma noção de comunidade, ou às crianças bastardas do orfanato. O sexo do Divino Amor é estritamente reprodutivo, condicionando a temporalidade ao gozo masculino.

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A estratégia de focalização em Joana e na suas vivência cria um jogo instigante na narrativa porque o filme acerta no tom. O adensamento no mundo da personagem não pretende criar um choque cômico ou de repulsa. Ao singularizar um agente do aparato de opressão Estado-Igreja, Mascaro desloca a pergunta de Jean Louis-Comolli “como filmar o inimigo?”, que marca o cinema político contemporâneo. Na construção do filme, Joana não é o inimigo, ainda que haja na manutenção de um aparato de controle religioso e estatal. Porém, Joana acredita no que faz e age com fé. Há na forma de filmar de Mascaro um jogo de aproximação e afastamento da narrativa com essa personagem, com a sua visão de mundo e a sua fé (jogo que se desestabiliza nas sequências finais – junto com a vida e a fé da personagem). Assim, frequentemente, a personagem é enquadrada com alguma distância – de um cômodo para outro, com paredes entre a ação e a câmera. Uma distância que situa Joana nesse futuro próximo com ambientes de cores estranhas (azuis, rosados). Um distanciamento que lembra constantemente de que para além de Joana há uma estrutura maior de mundo, relações, poderes. Uma estrutura que marcaria esse lugar do antagonista oculto, o inimigo, para muito além da personagem.

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            No entanto, esse filtro pela experiência de Joana cria impasses no jogo do filme. Se a focalização funciona para complexificar as vivências da personagem, ela limita o enquadramento da narrativa como um todo. Afinal essa visão de mundo e de futuro próximo é a do filme, a de Joana ou de ambos? Se tudo o que o filme nos mostra é que Joana vive em um mundo sem aparentes conflitos raciais, sociais, de classe e de gênero, isso quer dizer que o futuro próximo do filme é pós-racial, pós-gênero, pós-classe? Ou essa é apenas a experiência singularizada e limitada das vivências e da visão política de Joana? Ao eliminar o conflito da personagem contra uma sociedade opressora e torná-la agente das opressões, como o filme pode dar conta daquilo que Joana não vê? Uma resposta possível é a de que o filme não se interessa pelo que Joana não vê/sente/vivencia. O que resolve a questão da perspectiva fílmica e estrutural, mas o deixa em crise como uma narrativa de futuro próximo feita a partir do Brasil de 2019. Há uma fricção criada pela limitação do enquadramento e o seu desejo especulativo sobre questões políticas, sociais e religiosas nacionais.

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Ao revelar o seu narrador, identificando a voz off metalizada e infantil que conta a história como o filho de Joana, o filme entrega-se à crença e visão do mundo da personagem e se inscreve no regime mitológico cristão do messias salvador. A criança nascida sem um pai identificado (seus genes não são compatíveis nem com o marido, nem com os homens com quem Joana fez sexo no Divino Amor) é vista por Joana como a prova de um milagre divino (um presente de Deus abençoando a sua fé acima da infertilidade do marido). Uma criança não registrada, que encerra o filme nos dizendo que: “quem nasce sem nome, cresce sem medo”.

Ao não se interessar pelo que a personagem não vê, Divino Amor filia-se a um regime de crença no mundo e construção do futuro que só pode se fazer a partir da exclusão. Afinal, se as crianças bastardas do orfanato visitado por Joana (cena que funciona quase como um chiste visual para ela colher a lágrima de um bebê abandonado) também não tem nome e registro, porque apenas o filho de Joana (o escolhido) crescerá sem medo? Na visão de futuro próximo em Divino Amor não parece haver lugar para essas crianças para além de uma piada e um contraponto visual. O enquadramento reforça a visão do mundo dos escolhidos, dos vistos e dos mostrados – que podem até quem sabe rebelar-se e crescer sem medo. O enquadramento reforça o não interesse pelos mostrados mas não vistos. Diante destas imagens de futuro próximo, ficam as questões: quem sumiu junto com o carnaval no universo do Divino Amor? Nesse novo (antigo) projeto de Brasil, essas pessoas foram sumidas para onde? O fora de quadro é imenso demais. E segue crescendo, sem nome, sem narrativa e com medo.

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A trilogia John Wick e o epílogo do homem-resposta

Por Pedro Tavares

Porque acabou a arte de contar histórias? Eis uma pergunta que muitas vezes faço a mim próprio quando me deixo ficar à mesa com os outros convivas, a passar o serão, depois de termos comido. Creio, porém, ter encontrado a resposta certa tarde em que fiquei de pé na coberta do “Bellver” junto à casa do leme, percorrendo com o binóculo o quadro incomparável que Barcelona oferecia, vista de cima do navio.

Walter Benjamin em “O Lenço”

 

Passa-se o serão, come-se à mesa. Olha-se ao redor. Movimentos mecânicos, atitudes entorpecidas como a psique humana. À saturação da análise do homem como um poço de emoções e o cinema como um diagnóstico de reflexos e narrativas, resta um epílogo. Hoje no panteão dos filmes de ação desta década, a – até o presente momento – trilogia de John Wick traça paralelos sobre o fim do homem a fim de refletir os mecanismos em prol de uma resposta imediata.

Um homem de duas demonstrações de vida ante sua palidez emocional: no primeiro filme, a relação com o cachorro – uma demonstração de vida reclusa pós-trauma e na rotina de repetições – e no terceiro filme, quando Wick enfim baixa a guarda para pedir ajuda, quando já se transformara num código sempre monitorado pela máfia. O crível e não-crível, concomitantes em extrema intensidade na trilogia transparecem pela formalidade como Chad Stahelski (em parceria com David Leitch no primeiro filme) faz de John Wick um homem em metamorfose: seus movimentos ligeiros, a falta de empatia e a crueldade como forma de sobrevivência exibem um mundo de lata no qual há outra opção senão adaptar-se.

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Por outro lado, examina-se o epílogo de um homem, da sua humanidade que se esvai em suas costas. Wick está em diversos lugares-chave para este tipo de suposição, pela relação dos humanos-espaço como as boates e festas ou uma megalópole como Nova Iorque no terceiro capítulo. Vive-se e morre sem que os outros percebam – há não ser que você carregue um código de monitoramento. Na ideia de Stahelski como um dublê profissional e que sua concentração para sequências de ação é maior, o que sobressai liricamente no esteticismo da coreografia de corpos a cair, é como incrustrada à violência está o fim destes homens. Usam os corpos com o objetivo de uma máquina.

Quando Aristóteles afirma que os personagens trágicos nos refletem de maneira mais convincente (Faber and Faber, p. 212) por provocar temor e pena, Shakespeare recusa a divisão do homem-personagem; a questão é contemporânea visto que não há um fim para os que agem de maneira programada. Wick obedece ao acaso em prol da vida ou segue um caminho pré-estabelecido para que seu corpo-mecanismo esteja sempre em ação? Em comum, está o cerne das imagens de Stahelski: o mundo entregue a interesses maiores regidos por capangas-robôs. Wick é um sistema avançado na função de aniquilar inimigos, sem esconder a angústia e emoções condensadas, guardadas para si – como se extrapolar os limites de seu programa fosse o bastante para corrompê-lo. Assim, Wick deixaria seu posto de referência para voltar a ser um homem.

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Wick em NYC.

Voltemos à relação de Stahelski aos panos de fundo de sua trilogia. É notório que o diálogo com elas é o de reflexos e de constante diluição. Não surpreenderia caso Wick aportasse em um algum momento em uma sala feita de chroma-key. O que temos até então são os salões espelhados que servem para referenciar Orson Welles e colocar Wick e sua angústia em cheque enquanto os inimigos estão por trás de seu reflexo.

Deleuze diz, a respeito do cinema, que “somente quando o movimento se torna automático que a essência artística da imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações no córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral” (1990, p.189). Traçar o paralelo do automatismo e a percepção do mundo de Wick com seus movimentos a partir destas vibrações – estímulos – que se confundem com disciplina ou com um cavalo com antolhos; o que se tira desta duplicidade cruel é que a beleza do mundo cyberpunk de Stahelski desemboca no pessimismo do que é contemporâneo.

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A casa dos espelhos

Wick, portanto, deixa de ser uma coluna ou puramente um alicerce narrativo em favor da narrativa que levará homens a deitar das mais variadas formas de violência; Wick é a breve metáfora do choque sequencial, da reação imediata e inconsciente. Recebe-se a tarefa-estímulo e ela será executada como um irrefletido ato em um ambiente que passou a barreira do leviano e flutua conscientemente na distopia.

A arte de contar histórias hoje se encontra entre o lamento e a constatação com o prazer acoplado à adaptação: Wick, um homem-resposta é o arquétipo do mundo preso ao gatilho, prestes a ser puxado. A trilogia de John Wick é, portanto, uma história ou a reconstituição voyeurística da queda da máquina como um revés imposto por seu pendurado fio composto por humanidade?

Conclusão nos capítulos a seguir.

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Olhar de Cinema: A Cidade Escondida

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Por Gabriel Papaléo

O preço visual da cidade.

Todo o arco narrativo, não-clássico e que convida aos experimentos imagéticos, se foca na jornada do ambiente abstrato a se tornar palpável diante dos olhos. O primeiro plano do filme já apresenta essa disposição, ao mostrar o céu estrelado que aos poucos se revela um chão molhado, de esgoto. Os operários que ali trabalham andam com lanternas nos capacetes, revelando o ambiente à medida que avançam, e o som cuidadoso do filme aqui só privilegia a respiração desses trabalhadores. Parece uma cena das ficções-científicas que conciliam o horror e a curiosidade pelo desconhecido, como Alien, e o diretor Victor Moreno abraça essa atmosfera no trato estético das tubulações e subterrâneos que filma.

O horror com o desconhecido parece ser a liga que mantém os vinte minutos iniciais, um trato de luzes e sombras misteriosas que aos poucos revelam suas origens. A partir dali, quando reconhecemos o metrô e suas distâncias com a cidade, a narrativa se desvela a partir de como tudo ali debaixo da terra funciona como uma base de estrutura que não encontra uma linguagem comum à sociedade, a cidade à margem que possui imagens deslocadas de contexto, abstratas à seu modo, mas ainda responsáveis pela maquinaria invisível da cidade.

Nessa aproximação entre público e privado, entre os mecanismos do subsolo e o funcionamento civil do solo, existe também encontro das pessoas com o que não está no controle delas. A presença de confronto mais forte que o diretor encontra são os animais do esgoto, hostis e vistos sob os filtros da lente noturna e da baixa resolução, o que aumenta a hostilidade diante deles, e revela trabalhadores sempre tateando aos poucos o terreno deles, como se fosse um território que estamos invadindo enquanto espécie. No debate após a sessão, Moreno disse que entre as inspirações para suas aspirações estéticas estavam os escritos de Asimov, e é notável a disposição de criar atrito ficcional entre os documentos visuais do que está abaixo da terra, e portanto é alienígena como um corpo espacial.

Esse potencial de ficção-científica na forma que aquelas imagens despertam tanto perigo quanto curiosidade, e aos poucos é localizada espacialmente até virar cidade de fato. Não por acaso o interesse em imagens microscópicas no epílogo do filme; é uma narrativa que se desafia a encontrar contos a cada desconhecido, nem sempre bem sucedida nessas aproximações, mas com pique para deixar o movimento de fricção entre mundos respirar na tela.

Por mais que perca um tanto de fôlego no final, quando o jogo de encenação se torna reiterativo, retém a força da mediação e diálogo entre o urbano e o visual rústico do esgoto que constroi a base social que nos parece tão banal. O que mantém a cidade em movimento, a força aparentemente invisível do que rege a civilidade acima, tem desses espaços que contém galáxias encontradas num chão aparentemente banal, por onde passa os dejetos urbanos.

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A Rosa Azul de Novalis (Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro)

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Por Gabriel Papaléo

Em dado momento de A Rosa Azul de Novalis, o protagonista Marcelo diz que o poeta Novalis tinha como grande objetivo de vida achar a tal rosa azul, que era uma busca impossível mas não por isso menos incessante. Para quem entra na projeção se perguntando o porquê do título o filme trata logo de explicá-lo, e ao longo de 71 minutos também se concentra em tentar achar o que move o protagonista, para descobrir a rosa azul, a Rosebud de Marcelo. Sabemos ali que é um homem que gosta de interpretar as próprias palavras, de oferecer uma leitura direta sobre os objetos que mais o interessam: as suas falas. A performance é central aqui, no contexto de que a performance parece central em qualquer filme brasileiro que se propõe observacional nessa década. Como então se oferece algo desse registro da performance?

As imagens que abrem o filme meio que o resumem: um close de um cu piscando, que então revela o corpo contorcido de Marcelo lendo um livro. É a descrição do que se diz banal, um cu, em contraste com algo supostamente não banal, a literatura ali declamada. O teor “revolucionário” do corpo e da existência, e todos os reducionismos que vêm com isso. E Marcelo, um homem com complexidades, as quais raramente acessamos além da capa da referência e da domesticação do corpo.

No encadeamento de cenas, entre entrevistas e observações cotidianas, o interessante narcisismo do personagem perante a imagem que performa fica latente. Esse é bem mais interessante quando mediado pela fala dele mesmo do que quando Vinagre e Carneiro tentam ensaiar uma encenação mais marcada, como o enterro do irmão. A estrutura do filme já abraça esse conceito de que os traumas se reconfiguram em fetiches, é algo afirmado verbalmente pelo protagonista, mas existe uma polidez na encenação que passa longe do sentimento evocado pela fala de Marcelo. É uma encenação marcada que se configura kitsch, exagerada, mas como se sentisse acima do exagero, quase cínica diante daquela formação estética que finge abraçar.

A relação de fetiche com os traumas, exposta especialmente nas cenas mais estilizadas (como a transa simbólica com o carro), coloca a capa de estereótipo homossexual a Marcelo, algo que ele mesmo abraça: quando diz que algum familiar o colocou em algum clichê gay, ele faz questão de abraçar esse clichê, como uma forma de afronte. Na cena em que fala que gostaria de enviar uma sextape para o pai, fica claro a relação traumática que Marcelo tem com sua infância, com sua família, com seu irmão. A oralidade desses contos, mesmo que registrados numa câmera na mão evasiva que geralmente ignora a imagem, cria um panorama emocional e físico do protagonista que é perspicaz muito pela disposição de Marcelo em interpretar a própria imagem que emana o tempo inteiro.

Essa hiperinterpretação de Marcelo por si mesmo fecha as leituras ao filme com recorrência, sempre didático demais no trato do personagem, mas ainda passa suas complexidades com mais afinco que a encenação de Vinagre e Carneiro. As perguntas diretas demais dos diretores acabam por tentar colocar o pensamento de Marcelo em categorias que ele mesmo recusa; quando sugere que ele poderia fazer algo com seu conhecimento acadêmico pouco depois do mesmo afirmar que tudo o que importa é inútil, e não queria seu conhecimento instrumentalizado. E ao longo do filme é o que mais vemos acontecer. Se esse choque causasse alguma fricção criativa entre entrevistador e entrevistado, poderia gerar debate, alguma relação dialética que sangrasse no filme, mas não parece existir um interesse além da superfície, do que Marcelo parece representar para Vinagre com suas referências plásticas e estéticas a Bataille e Hilda Hirst.

Todo a glamurização dessas referências combinadas com as tentativas de choque tão domesticadas limam a complexidade do personagem. Na última cena, com Marcelo com um plug na bunda virada para o espectador, a câmera faz literalmente o movimento de um pau tentando entrar ali, e errando o caminho (fico me perguntando até quando um pau simulando um poder fálico vai soar transgressor para alguém). Até que consegue, e o filme se encerra com a contemplação do vazio dentro do orifício que vimos no início. Parece que o choque basta, parece que o banal basta, a hiperinterpretação diegética de um corpo que não parece feliz em ser reduzido com tal digressão, transformado num confronto inexistente através da violência imagética que também inexiste, a serviço da domesticação que chocaria apenas a família tradicional brasileira que não verá jamais esse filme. Caso se assumisse como a vaidade que é, talvez chegasse a provocar alguma coisa. Do jeito que chega, me passa batido.

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Olhar de Cinema: Família da Madrugada (Luke Lorentzen)

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Gabriel Papaléo

Na Cidade do México, apenas 45 ambulâncias são de fato dos serviços governamentais. Em sua vasta maioria dos casos, o governo contrata ambulâncias terceirizadas para levar os feridos aos hospitais. Família da Madrugada conta a historia da rotina de uma dessas ambulâncias, comandada pela família Uchoa, que vara as madrugadas na rua atendendo e socorrendo desde vítimas de acidente de trânsito até uma mulher agredida pelo namorado. Já por essa contextualização da capital do México se percebe um retrato de mundo cão, por acaso ou não dirigido por um americano, e aqui a cidade está longe da estilização de algo como o Chamas da Vingança de Tony Scott, mas encara aquele espaço sob o mesmo desamparo causado pelo sistema falido.

A escolha do diretor Luke Lorentzen em filmar tudo como um filme de ação, se concentrando nas ações rápidas e localizadas dos homens da família, cria a cidade com luzes múltiplas, muito movimento, palco apropriado para o caos. Essa disposição no entanto por vezes estiliza demais aquele lugar, um encantamento com o potencial visual do dispositivo que não parece comentar algo além do exercício do gênero – o que certamente não é suficiente quando temas delicados vão surgindo na tela e sendo evitados. A interação da família em volta do dinheiro é um desses tópicos, filmado em detalhes por Lorentzen, comenta diretamente cenas como a bizarra corrida na qual ambulâncias disputam adoidadas pelas ruas para saber quem chega primeiro na vítima para faturar o dinheiro. A ética é importante diante da ação, e as consequências aqui nunca são sentidas; as vítimas soam como rotina, os perrengues financeiros também, e o que sobrevive é a ação carente de impacto.

O filho Uchoa é central nesse ínterim. Suas características de liderança e proatividade são vistas com simpatia pela câmera, e colocadas sob um ponto de vista mais frágil apenas quando Lorentzen usa do dispositivo das ligações no celular do filho mais velho, uma forma de exposição de seus sentimentos sobre as situações de estresse nas quais trabalha que fica repetitiva com o tempo, algo estruturado demais para criar mais camadas naquele personagem. O fato do personagem ser o com mais intimidade diante da câmera o deixa mais exposto e sensível a um arco emocional, mas Lorentzen parece mais interessado numa cobertura visual linear das ações, ao invés de coloca-las em alguma perspectiva opinativa.

Isso se reflete também no registro caótico dos pacientes. A preocupação formal em evitar rostos para não expor demais é louvável, mas mesmo com esse cuidado volta e meia o teor gráfico dos relatos soa exploratório, porque não muito é suscitado a partir dessas ações além de um lamento, de um desespero com a falta de trato urbano – crítica unidimensional que parece satisfeita demais consigo mesma. Os dilemas morais da família, que sempre atende os pacientes sem saber se receberá o dinheiro ou não (e por vezes não recebe mesmo), conduz bem a motivação daquelas pessoas nos primeiros minutos de filme, mas logo fica reiterativa.

Caso algo fosse feito com essa dubiedade, especialmente ao relacionar com as contradições nas quais a família tem que lidar ao perpetuar esse estranho sistema predatório de saúde, o filme sugeriria mais leituras do que de fato propõe. Como exercício de gênero diante do filme denúncia de realismo selvagem, se contenta com a força às vezes insuficiente da observação, sendo assim um curioso caso do filme que tem sua câmera à todo tempo perto dos personagens e da ação, mas sempre parece distanciado do que fala.

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Olhar de Cinema: Enquanto Estamos Aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti)

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Por Gabriel Papaléo

Em uma das retrospectivas do Olhar de Cinema, os diálogos à época do exílio entre quem foi deslocado de sua pátria se desdobram nos filmes mais diversos de resistência, algo caro à reação às ditaduras latinoamericanas das décadas de 60 e 70. Como no mundo contemporâneo, globalizado, a ideia de algo próximo ao exílio é estabelecida? Um dos grandes truques do capitalismo é justamente o uso do consumo para atrair os então terceiromundistas ao chamado Primeiro Mundo, e essa imigração mais sutil e reconfigurada para uma contemporaneidade menos direta em suas opressões através de regimes políticos é uma dos temas trabalhados em Enquanto estamos aqui, filme de Clarissa Campolina e Luiz Pretti sobre a vida de ambos em trânsito fora do Brasil natal.

A chegada em Nova York, com a narração em libanês da protagonista feminina do filme, já traz toda uma estrutura à News from Home para construir o cinediário: imagens cotidianas, fragmentos de pessoas comuns à espera no metrô, nas ruas, em movimento constante. No entanto, as intenções narrativas de Campolina e Pretti são menos nos recortes diretos desse cotidiano, como nos filmes de Jem Cohen ou mesmo no filme antes citado de Chantal Akerman; o interesse maior é aproveitar a tapeçaria de imagens diárias para estruturar uma tentativa de ficção mais pesada, um filme de desencontros no qual as pessoas são à parte do quadro, no qual a encenação se mune de imagens típicas de filmes-ensaio.

Os encontros entre a libanesa Lamis e o brasileira Wilson, ela recém-chegada, ele há anos nos Estados Unidos ilegalmente, atravessam as memórias deles na cidade, e como lidar com a distância da família. É nesse fluxo narrado com a solenidade da voz de Grace Passô que percebemos o mundo contemporâneo que aproxima as migrações, a voz libanesa com a Estátua da Liberdade, as questões políticas brasileiras na mesa de bar que em quadro são meras ruas vazias.

Como o excelente A última vez que fui a Macau, que João Pedro Rodrigues fez na China a partir também de suas imagens de viagem, a ficção escorre pelas bordas do quadro, desafiando o ambiente ao redor a contar a historia dos personagens apresentados em off comentando os sentimentos deles, suas angústias e amores diante da cidade, e o que eles como estrangeiros podem comentar algo. Se no filme do português Rodrigues uma reflexão acerca da culpa colonialista estava presente diante da cidade chinesa colonizada pelo seu povo, aqui em Enquanto estamos aqui o palco novaiorquino é focado do ponto de vista dos acossados, das duas pessoas que se aproximaram num lugar que não os quer ali, apesar da capa de metrópole mundial da inclusão e dos sonhos.

Existe um balanço entre os afetos e as contradições que dá ao filme um coração no lugar, com seus personagens profundos apesar de quase nunca visíveis, porque a confiança no que o ambiente tem a dizer é suficiente para abraçar essa historia de conexões em lugares hostis, que apesar da falta de riscos consegue passar sua melancolia do trânsito irrefreável de quem largou sua cidade natal pra trás.

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Olhar de Cinema: Guia de Filmes – Parte #2

Por Pedro Tavares

uma corrente selvagemBANQUETE COUTINHO (Josafá Veloso)

“Eu fumo cigarros e às vezes faço uns filmes”. Coutinho como sempre parte do seu lado depreciativo mas que acha lacunas de admiração sobre seus filmes numa conversa tipicamente Coutiniana entre reclamações e dúvidas. O filme parte da ideia que Coutinho sempre fez o mesmo filme de maneiras diversas e com arquivos muito protocolares. Está longe da descoberta sobre qualquer particularidade do saudoso mestre, mas vê-lo novamente é sempre prazeroso.

uma corrente selvagemDIZ A ELA QUE ME VIU CHORAR (Maíra Buhler)

Buhler emula os filmes sobre instituições a partir de um suposto silêncio em que a presença da câmera não consegue suportar – e isto não levanta em nenhum momento qualquer questão sobre o comportamento de seus objetos de estudo. Não são corpos em performance e sim corpos disfuncionais em uma rotina de autodegradação, o que faz dessa observação um processo aterrorizante.

uma corrente selvagemDOMÍNIOS (Natsuka Kusano)

Filme-processo que cria tensões em ciclos. A cada novo ciclo, uma nova informação para este processo de construção de mise en scène e de uma narrativa. No alto de seus 150 minutos o filme lentamente torna-se um palanque de saturação para o próprio processo.

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A COR BRANCA (Afonso Nunes)

O filme é uma espécie de silogismo composto por distanciamentos incômodos que se justificam como dormência existencial-social num país guiado pela corrupção. Aos poucos Afonso Nunes transparece este raciocínio dialético inchado enquanto julga os limites do filme suficientes para uma crítica previsível.

uma corrente selvagemESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR (Marcelo Gomes)

O filme flutua entre extremos como uma retórica do controle. Há tamanha confiança em seus personagens que Marcelo Gomes entrega seu filme a eles e isso é um gesto e tanto na mesma medida em que o filme se coloca com o passar do tempo numa encruzilhada que se basta no cotidiano de ações modestas e depoimentos elásticos. Este paradoxo caberia numa simples análise de perfeito encaixe, mas há a ciência que em toda ópera há um protagonista e é nele, o diretor, que se hospeda o verdadeiro maestro.

uma corrente selvagemNONA – SE ME MOLHAM EU OS QUEIMO (Camila José Donoso)

Há entre as citações imagéticas a Brakhage um proto-thriller de encaixe de peças que tira a montagem como elemento técnico para entroniza-la como componente filosófico da construção de um estado de espirito da protagonista que reside entre a rebeldia e o pessimismo. Curiosamente ajustá-la à justificativa por um gênero cinematográfico emagrece o discurso de Camila José Donoso, que por alguns momentos toma o caminho da gratuidade e tem respostas mais imediatas.

casa_leticiasimoes-2CASA (Letícia Simões)

Um filme sobre consciência que caberia em diversos formatos – o mais pungente é um drama familiar – que Letícia Simões penetra com noções muito particulares de sua carreira como cineasta e artista, do documentário às artes plásticas. O que está em jogo é como toda frontalidade pode ecoar durante o filme e Casa é muito bem sucedido nos limites da intimidade para amplificar um sentimento geral.

uma corrente selvagem

A MULHER DA LUZ PRÓPRIA (Sinai Sganzerla)

Espécie de filme-antítese involuntário: elucubração em torno da obra e legado de Helena Ignez que não permite o retorno ao passado mesmo com toda chancela dos arquivos e diagnósticos feitos pela própria Ignez em voz off. Há um abismo entre o que é exibido e o que é dito, com franca frieza de Ignez a narrar sua própria vida, o que é um elemento muito curioso e incômodo.

uma corrente selvagemENTRE DUAS ÁGUAS (Isaki Lacuesta)

Amálgama de três personagens – dois em cena e um fantasma – e a total suspensão da tensão sugerida de um possível thriller. O desgaste emocional serve como um córrego muito bem estruturado por Isaki Lacuesta para transformar o filme numa espécie de internalização da moral e o contracampo como extensão de consequências do passado.

uma corrente selvagemINDIANARA (Marcello Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel)

Ainda que todo formalismo genérico do filme se justifique pela urgência do tema, o que realmente há de valor aqui é a força de Indianara como protagonista e como o filme registra esta força além da justificativa de um filme dedicado a tal persona. Outro grande trunfo é como Barbosa e Beaumel fazem do externo um monstro incansável que ganha uma face no terço final do filme.

61337048_2325752854377189_9112645576645672960_oCHÃO (Camila Freitas)

Entre a possibilidade de registro da câmera observadora e a intromissão autoral de um documento didático, residir entre eles não é das melhores ideias. A possível teia política torna-se extensiva quando o filme deixa de ser um retrato das ações – sempre intrinsicamente políticas – do MST para declará-las como atos oficiais, apresentando seus inimigos e seus modus operandi e suas consequências.

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Olhar de Cinema: Uma Noite de Inverno (Jang Woo-jin)

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Por Gabriel Papaléo

O som do táxi é das primeiras coisas que ouvimos, um casal dentro dele, e o marido conversa com o motorista. A esposa perdeu o celular e por isso pede um desvio na rota, tira a conversa do lugar comum, e o carro dá meia volta. Essa situação se repetirá no filme, mas muito antes disso várias outras circularidades são mostradas na estrutura de Uma Noite de Inverno, um realismo fantástico contido, sobre as formas que tomam os relacionamentos amorosos com o tempo, com o contexto, com o lugar no qual eles se inserem.

Os ambientes aqui contam do isolamento desses personagens, dos silêncios, especialmente na figura da pousada na qual os personagens vagueiam. Ao longo dessa noite, visitam os lugares novamente com alguma constância, sempre com cenas pacientes, para entender que o drama daquelas pessoas pode ter ocorrido diversas vezes naqueles mesmos lugares, como se acessando a arquitetura dali, seja dos humanos ou da natureza, algumas respostas poderiam aparecer.

O uso das cores e luzes é importante na assimilação dessa dimensão quase fantástica dessa noite branca. Lembra o cineasta chinês Bi Gan no tratar da locação como um espaço dotado de memórias a ser conjuradas através do tempo, num jogo de cenas longas para reforçar o papel da natureza no quadro, a passagem das coisas comentando diretamente a encenação – mas enquanto Bi se concentra nas especificidades da região na qual filma, sua cidade natal, aqui o diretor Jang Woo-jin abraça ideais mais universais, que ao retirarem contexto do lugar conferem a ele um teor menos realista, mais alegórico, mas não menos dotado de memórias e momentos guardados.

Esse peso da neve e o que esconde é evidenciado no legado da relações com a mulher de branco e o soldado, quase uma versão mais jovem do casal protagonista. Através deles muito da juventude dos mais velhos é intuída e comentada, até em cenas mais didáticas como o diálogo das duas mulheres, perto do final. E assim se ensaia o que despertou a paixão entre aquelas duas pessoas, e a passagem do tempo que as levou à distância que vemos nesse presente. O confronto então é retratado numa cena mais pacata, com a luz vermelha em movimento por conta de um ventilador, um lembrete visual, mesmo que dos menos sutis, de que o tempo sempre está acontecendo e se modificando, e nas relações em crise é preciso pensar nele com carinho e cuidado para o dia amanhã nascer.

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Olhar de Cinema: No Salão Jolie (Rosine Mbakam)

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Por Gabriel Papaléo

Pouco antes do título surgir na tela, alguém passa na frente da câmera e bota as mãos na lente com agressividade, e pede para não ser filmado. Logo depois, a cabeleireira Sabine pede a Rosine, diretora do filme, que entre com a câmera porque “filmar ai fora vai dar problema”. A câmera então entra, pra não sair mais. Em No Salão Jolie o dispositivo observacional é muito claro e é o que conduzirá o filme pelos seus 70 minutos, mas a disposição da diretora Rosine Mbakam em desafiar essa observação teoricamente passiva é estabelecida desde esse início. Os quadros escolhidos por Mbakam, diante dos apenas 8m2 do salão, são surpreendente variados na construção e organização daquele espaço, seja através dos rostos que filma, seja através dos espelhos que ali dilatam.

Nesse contexto dado, a interação entre as mulheres dali gira em torno de assuntos cotidianos ao longo das muitas e muitas horas de trabalho, que revelam pontualmente dados importantes como os detalhes do processo de imigração e a rede de auxílio mantida pelas mulheres dali para pessoas que querem também emigrar. Existe um panorama da relação entre Camarões e Bélgica tratado aqui com afinco, mas através da luta diária de Sabine e suas amigas e funcionárias, representada sutilmente, um dia-a-dia que inevitavelmente sugere lutas diversas. O contexto emocional das consequências desses entraves sociais se dá na atenção de Mbakam também para as pequenas histórias, como a da filha que perde a mãe e enfrenta a burocracia do país, questões elementares no mapear da geopolítica ali discutida.

O lidar com os brancos de Bruxelas que passam pelo salão encarando, com olhos curiosos ou inquisidores (às vezes os dois), estabelece boa parte da tensão racial que parece ficar sempre do lado de fora do salão, o microcosmo que acaba por exemplificar um bastião da sociedade segregada dos imigrantes negros da cidade. Ali os brancos agem como turistas, corroborando o preconceito com atitudes passivo-agressivas sempre à distância, com historias similares sendo apresentadas no cotidiano da porta pra fora – como a da mulher negra cheia de sacolas no metrô, encarada pelos brancos com medo irracional. São contos falados pelas mulheres do salão com naturalidade, certo deboche com os belgas até.

Os relatos passam por exemplos objetificação feminina (é um filme que relata estéticas das mais diversas, afinal), e ao falar da opressão das mulheres negras em outros países, chegam no caso das que procuram (e acham) homens brancos no Canadá, e são sexualizadas sob a promessa de ascensão social. Sabine então fala: “elas queriam achar homens brancos, elas acharam homens brancos”. A violência é a primeira impressão no confronto racial, mesmo – e talvez por causa disso – quando envolve gênero.

Contextualizando por esses tópicos até parece que No Salão Jolie trata com rigor sociológico acadêmico seus temas, mas é um filme de encenação marcada e simples, de cotidiano, de ações repetidas e bom humor, de quem sabe que o contexto será afirmado com o passar do tempo, através da voz de quem luta silenciosamente. Todo esse pano de fundo político se torna palpável de fato no medo da polícia de imigração bater ali, toda a construção da tensão final em volta da correria pontual das fugas discretas de Sabine e as outras ilegais. É nesse final que todo o lastro de combate político é visível, antes tão escondido sob a capa da civilidade europeia, e nos lembramos então que mesmo a rotina trivial comunica bastante sobre nossos tempos.

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Olhar de Cinema: Vaga Carne (Ricardo Alves Jr. e Grace Passô)

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Por Gabriel Papaléo

No circuito de festivais, se tornou constante o uso do cinema como via de resistência diante do momento político de total instabilidade pro audiovisual. Muito dessa resistência se dá de forma direta, sem meias palavras, geralmente pela via do documentário como forma de representar visualmente corpos não-hegemônicos. Por conta desse contexto é muito interessante ver um filme como Vaga Carne, que após ser exibido em Tiradentes agora passa em Curitiba. É um retrato diferenciado porque parte de uma ficção altamente abstrata para organizar um jogo de textura de rostos e luzes que ocultam o entorno pra criar alegorias, presenças intuídas.

A ferramenta de uma suposta voz que toma corpos por possessão é o foco do filme baseado na peça de Grace Passô, e esse conceito pouco corpóreo toma vias palpáveis à medida que a atriz passa a demonstrar os efeitos dessa voz diante do corpo, como uma tomada de consciência de identidade diante do estranho. A violência na qual a voz percebe se deparar ao demonstrar que não consegue lidar com a forma humana de ver seu corpo mantém a urgência durante toda a metragem, num crescendo de percepção das origens dessa violência para desvelar o problema social entranhado nessa dialética.

Quando o filme lida com rumos mais clássicos narrativos em estrutura, organiza seu clímax numa tentativa do expurgo pela fala não alcançado, frustração traduzida no corpo furioso de Passô, explorando a violência do sequestro discursivo através apenas do corpo reagindo à máquina ao redor – alegoria visual explorada justamente para sintetizar figuras cotidianas de opressão que a encenação do filme evita mostrar. Toda a mediação com os rostos espectadores, herança provavelmente da peça de teatro, tenta localizar esse confronto com o sistema social de opressão pela alteridade, como se intuísse que aqueles rostos são afetados diretamente pelo que as abstrações de Passô falam sobre.

É um filme de microcosmo, portanto, em suas escolhas espaciais limitadas ao palco, mas assume essa dimensão política com propriedade e raramente cai na armadilha do simbolismo óbvio. A encenação mínima de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, focada especialmente em closes para transfigurar a peça que originou o filme em um estudo de expressões e conflitos de olhares, calcados nas nuances múltiplas do rosto de Passô, orquestra tudo para traduzir o desespero do vozerio ali sendo acostumado e depois abarrotado do corpo – e parece bastar para as articulações viscerais propostas pelo texto. Não há tempo a se perder em Vaga Carne, filme de verdades diretas e luz e sombra elementares, e seu recado ao acender das luzes é claro.

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Olhar de Cinema: Diz a Ela que me Viu Chorar (Maíra Buhler)

uma corrente selvagemPor Gabriel Papaléo

Na abertura do filme, a cineasta Maíra Buhler falou sobre o desmonte atual dos centros públicos de apoio psiquiátrico no país. Ontem, dia da sessão, foi aprovada uma lei que tira a liberdade de escolha de um dependente químico à internação. O indivíduo mesmo em estado vulnerável perde sua vontade diante da máquina bruta do exercício de poder. A potência de Diz a ela que me viu chorar reverbera desde o primeiro plano, e o retrato de drogas aqui é escasso porque a urgência de um retrato habitacional que busca os contornos do confronto dos abandonados pelo Estado ao mesmo tempo é também o investir de tempo na observação das trocas entre os moradores, o cotidiano formador que humaniza.

O observacional novamente é o formato do dispositivo escolhido, de uma não-interferência que virou regra no documentário contemporâneo brasileiro, e é através da forma que Buhler mapeia o condomínio que o filme tenta se distanciar da distância que marca esses filmes. Nesse apreço pelo geográfico do local, se diz muito sobre a ideia de civilidade que Buhler tenta atribuir àquelas pessoas, dando forma ao lugar para contextualizar com mais responsabilidade os atos que verá.

A força dos personagens transborda na câmera atenciosa aos detalhes, e seus instantes de vulnerabilidades falam sobre desencontros, amores quebrados, problemas de família e a tentativa de lidar com o passado; dilemas quase sempre retratados à margem da dependência química, sem descartar o problema que ela causa mas trazendo motivos mais emocionais, num escopo maior da simples condenação das drogas. Buhler sabe que a humanização reside no cotidiano, nos problemas triviais do dia-a-dia, e não por acaso é tão raro que apareçam personagens consumindo crack.

É nos momentos da câmera como intrusa que o filme enfrenta os dilemas éticos que são comuns ao subgênero do doc observacional, não apenas no princípio de criar uma narrativa de disparidades sociais (entre equipe do filme e personagens filmados, uma diferença irreconciliável na sua base) mas também na dialética com os moradores, nas indisposições que escapam na câmera. No plano que um dos personagens grita com a mulher que ama no telefone, sua explosão emocional revela uma vulnerabilidade desconfortável, às vezes ambígua, suscitando a dúvida se ele está mesmo ciente do alcance dessa filmagem. É uma cena forte e tem seu valor na estrutura de Buhler em estabelecer humanização nos dilemas amorosos de certos personagens, mas até que ponta não expõe demais aquela pessoa. Algo similar acontece quando a câmera no tripé ocupa um grande espaço no elevador. Uma mulher, que o filme não acompanha com frequência, olha para a câmera e a equipe e reclama de ser filmada ali; “vocês não tem educação não?”, ela pergunta. E o plano continua, continua, continua. Soa uma provocação de Buhler diante do próprio dispositivo, como se fosse importante expor que houve resistência diante da filmagem, mas que ao mesmo tempo não obedece o pedido da moradora para parar de gravar naquela hora.

A forma que Buhler constroi atmosfera de um condomínio caótico esquecido no meio de São Paulo, a cidade motor que aqui é uma miragem distante vista de cima e sentida e ouvida apenas pelos trens que passam, cria de forma sucinta a distância que existe entre a cidade vista como civilizada e o condomínio visto como excluído. A cidade funciona assim como reminiscência de passados que não acessamos dos moradores, o que potencializa esse abandono social. É o retrato fílmico como dever cívico de representação, e nisso a ambiguidade da ética do relato aqui visto é colocada novamente.

A força do retrato de algo denso e ambíguo assim dá a relevância e dignidade ao filme, mesmo quando se questiona o que essas imagens de cidadãos vulneráveis e expostos às minúcias pode provocar no público homogêneo de sempre que costuma frequentar os festivais. A distância entre o Hotel São Pedro em São Paulo e a sala 3 do Itaú aqui em Curitiba permanece enorme.

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