Até explodirem os pulmões

Por Felipe Leal

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No labor da conversa infestada de uma práxis do discordante intra-, entre– e além– dos planos de uma comunidade de camponeses sobrevivendo em isolamento da própria história e em regime de sub/autoexistência no pós-guerra italiano e no labor dessas técnicas de vida, de gênero e de relação com a natureza rolando dentro da palavra como infinito dissenso e enquanto razão da própria atividade política comunal. Unidade elementar tanto quanto o grão do alimento, Operários, Camponeses (Operai, Contadini, 2001) foi, para os Straub, a aparição – em hipótese alguma ler: “a origem” – da fala como lugar de desnudamento limítrofe do exercício de mediunidade entre a terra e o valor empregado à existência.

Os cadernos dos atores com o texto original de “Mulheres de Messina”, romance de Elio Vittorini, explicitavam duplamente o caráter de interferência no texto (e do texto) nas atualizações das querelas históricas: rabiscos, setas, círculos, cortes de cor nas palavras acusando mais um trabalho de leitura do que de re-leitura: as frases se interrompiam subitamente, a última sílaba não só parecendo arfar para esperar, como a seguinte colocando os sujeitos do enunciado separadamente de fato; o quadro deslizava como se passasse a vez à réplica e assim “o dissesse”; um olhar desafiando o significado extensivo do horizonte ao mirar para baixo e denunciar a presença de uma página que não sabemos com segurança se está sendo lida. Pois que não nos recatemos em arriscar, essa atenção a um certo paladar do gesto de fala, não sendo apenas uma proliferação das formas que o cinema tem inventado para se elevar ao labor interminável que é reincorporar aquilo do texto que salta o seu (e qualquer) tempo, é também a preservação dessa torção que a palavra pode suscitar quando gira em torno de si mesma, atando poética e política, mas sobretudo, como disse Roland Barthes já ecoando Brecht, o imprescindível matrimônio entre prazer e crítica que, aqui, é passar a fala. E pensando o texto crítico – este, que interpela – como o risco mínimo, ainda que mínimo, de um prazer pela letra, como o invocam os atores, segue adiante um palpite que, em diversos sentidos, tenta prosseguir “a” obra.

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Há sentenças – frases, aqui, mas ainda e decerto enunciados que se gravam como determinações laminadas – que, se bem operadas dentro de um filme, se estalando num timing tão preciso que é capaz de fazê-lo tremer em seu plano quase nos termos propriamente ideológicos da relação de quem vê e participa, há sentenças que, quando proferidas, perfuram dois tempos de existência e funcionam como máximas mitopoéticas: bifurcações automáticas no sentido e que não podem rodar na mente senão como perguntas sem fim. Em Humilhados (Umiliati, 2003), adaptação outra do mesmo romance, mas que centraliza o dissenso entre estado italiano e povo na argumentação assimétrica deste com alguns oficiais “da cidade” de competência institucional, ainda que esse fraseado eventualmente culmine em algo como uma pergunta cuja obviedade interrogativa antes infere sobre a autoinferência mesma da estupidez retrógrada dos camponeses do que abre espaço para uma resposta digna, sua descarga diante dos jogos entre trabalho, valor econômico, progresso e participação nacional é semelhante à subterrânea moral que funciona junto ao fabular quando este eclode.

Quando um dos carabinieri (braço das forças armadas italianas e ramificação das políticas de segurança com aparente e demasiada inclinação judicial, “corretiva”) se encontra em vias de ilustrar o retrocesso, o abismo do valor de peso de trabalho empregado por aquela comuna em relação à quantificação da produção e da subsistência a que assistem em retorno, não apenas estão violentamente introduzidas diante da vida geológica, ancestral e persistentemente reclamada, daqueles trabalhadores as noções de lucro capitalista e de labor como dispêndio máximo e exaustivo de energia, mas também a situação que lhe pede atravessamento para dar significado àquela exclusão é de um grau em que é possível, ainda que trágico, que se veja a humilhação enquanto técnica do apagamento de um povo: quando compara a situação econômico-ética dos camponeses à hipotética preferência de alguém por andar, andar logo quando já existe o trem!, ele não põe o modelo de preferências sob o parâmetro da redução das distâncias de x a y, mas diz, repuxando um estranhamento já integrante ao jogo de linguagem, que aquilo, que a permanência daquela retrogradação, seria “como correr a pé atrás de um trem”. Ante a casca de uma conclusão, sustém-se uma (das) pergunta(s): correr atrás do trem é a imagem do trabalho fútil, tornado inválido quanto mais rápido andar o veículo (que o realiza por mim)?, é a ardilosa arquitetura caricatural do camponês suando, em frangalhos, para alcançar o progresso (que ele supostamente recusa)?, ou seria ainda a mais trêmula prancha de piratas em que se subirá somente para ser empurrado à morte, uma vez que se feriu a moral da embarcação, uma vez que ou se está dentro ou se está fora?

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E uma quarta, que bem recolhe a faísca de todas: ora, em que momento aquele que argumenta simultaneamente impõe – não se diz ‘partilha’, não se diz ‘devolve’ – o escopo a partir do qual é possível, não tão-somente argumentar, como dominar as bordas até as quais a linguagem terá direito ao funcionamento de reinvindicação? Porque é impossível responder a essa pergunta que encerra suas imagens e seus futuros de imagem. E poucas vezes um plano de coletividade terá parecido tão irresponsivo, poucas vezes um quadro aberto contemplará doze corpos como se não fossem nem atores nem aqueles a-pátridas de Vittorini, mas a relação entre sujeitos que beira o silêncio – e que nele cairia, não persistisse a história da Terra ululando a suavidade comunal de sua feitura conjunta à nossa. Porque antes que essa polícia “em nome do que é público” surja, o traço que distingue Operários, Camponeses deste outro (que pouco significaria, se lhe funcionasse só como “continuação”), o traço de uma dobradura da palavra que quer dissenso e conversa de forma ainda mais pujante, espaçada, vibrando em seu próprio intervalo, distingue também para reafirmar a magnitude da política de ameaça à extinção que virá logo em seguida.

O estrangeiro que debaterá antes dos três carabinieri, ele que esteve ali na vila, previamente, em nome de si mesmo, e que agora retorna para que sua ponte de sugestões sirva para provocar e instalar uma crença sub-repticiamente, num dado momento em que sucessivos cortes amalgamam cada elemento do que foi construído pelas mãos dos camponeses na ordem de reclamações seriais em defesa do que será apropriado pelo Estado, finge espantar-se e fala daquela operação – fraturada pela cesura da montagem à maneira de disparos dos lugares de fala – como se eles falassem todo ao mesmo tempo, restando que ninguém pode, afinal, ter seu dizer, e que estão todos fadados à permanência no mesmo lugar. O truque, que almejava interverter a proposição mesma de toda conversa, de uma conversa qualquer, e tentava fazê-los parecer menos comunitários ali mesmo onde a fala seguia a ordem plural de sua argila, é respondido à altura de um acontecimento que devolve à conversa-fiada o tremor daquilo que carrega seu dúplice. Acaso tem proprietários, o deserto que os nômades atravessam?, ao que se segue a interrupção sentencial e ambígua de um senhor sentado, erguendo uma das mãos em palma em direção ao estrangeiro. Que ele agora diga, que ali se cale, que aquilo seja um endereçamento ou um rasgo inevitável entre aqueles, pouco imposta: é a interpelação dizendo que interpela – labuta de quem presencia: ver é convocar(-se) a participar.

Se aos Straub era célebre o fator gestual da contenda entre povos e ideias, aqui ele recai com o invisível peso dos tempos conjuntos e dos tempos intempestivos, tempos sem métricas, tão sociais quanto míticos. Responde sem responder tanto quanto se encarrega de comportar uma ética, uma crença não mais como a solidez encurvada dos saberes restritos àqueles que os detém, mas como a suspensão e o inesgotável que é estar sempre apto a responder à volubilidade dos acontecimentos junto aos outros. É precisamente isto que os soldados não conseguem ver e que assoberba seu leque de “fatos” paradigmáticos que invariavelmente findam com o grande exemplo dos norteamericanos, isto que cimenta a lógica natimorta de suas proporções e faz de “dez operários produzindo em um mês aquilo que ‘eles’ produzem em um ano” a mais mesquinha afronta ao progresso: serão incontornavelmente incapazes de ver que suas condutas são prescritas (limitadas) pelo Estado, que serão pré-escritas (lhes antecederão tanto quanto delas não participam) por ele sem cessar, e que aquilo que lhes convém chamar de justiça, essa ideia sob a qual trajam espingardas e lenços vermelhos como cadetes, estes, sim, humilhados, não contabiliza, sobretudo, aquilo que eles não pararam de colocar como termo do meio: a terra. É-se justo com a terra quando ela é cercada, apropriada, estuprada, justo a terra, a única capaz de suster todos? Sua posse viaja, imantada, até a titulação fixa de “propriedade” somente porque aquele que a utiliza produz mais dela, e dela fabrica a imagem de um jardim? Produz para quem? Sua lógica é o logro da quantidade sobre um outro tipo de propriedade, aquela que distingue as coisas pelas particularidades que lhe dão, por exemplo, motricidade, produção ou função? Passemos ao que não tem tempo.

Conta o mito que Astreia, filha de Zeus e Têmis e marca-passo transicional da Idade de Ouro para as eras de declínio entre os humanos, horrorizada com um evento de roubo promovido por um mercador que visava extrair lucro através do engodo com uma balança, pede ao pai para fincar morada nos céus como estrela, desgostosa com a perversão à sabedoria e aos hábitos coletivos que pregava. O que a maior parte das narrativas, no entanto, relega ao olvido, é o último gesto performativo da chamada “virgem das estrelas”, pois que antes de ascender aos céus Astreia se reúne no cume de uma montanha para repassar toda sua sapiência a quem pudesse interessar-se numa vida simplificada, arranjando uma espécie de séquito de indivíduos dedicados àquilo que há de justo, bem como às atividades de caça e cultivo que garantiam a comunhão minimamente estável com o mundo. Que relação pode haver entre o simples e o justo e que faz a balança das entidades estar costumeiramente acompanhada de uma espada? É que o simples, longe do estigma pejorativo da coisa sem adorno ou limpa do intragável, é menos o oposto do complexo do que o trabalho de encontro com as propriedades mais adequadas, descobertas também por labuta, para tratar do bruto. E é – e será – preciso entrar numa contenda de valores e técnicas com essa ‘coisa bruta’, bruta na medida de sua singularidade mais ou menos velada, de sua particular propriedade, para com ela entoar um justo possível.

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Se numa conta amalucada de transposições fosse possível dizer: é impossível à árvore participar do verbo ‘pedir’, uma vez que tudo que ela extrai inevitavelmente se desdobrará em fruto, em interação contínua com o ‘onde’ de onde ela puxa vida, tão despropositado é o gesto que encerra o filme. Assim como a árvore, ele É. Ele não encerra, não entrega as mãos à humilhação, não abre nem tampouco questiona. É um movimento voltado para si mesmo e cujo significado fê-lo bem não se traduzir, mas do qual não se pode dizer que não faz nada. A camponesa o pronuncia e cai no aparente repouso estatuário de um enigma, o horizonte recortado do quadro recaindo em sequência para mostrar dela o punho fechado e os pés sobre a pedra que inicia devidamente os contornos de sua habitação.

Durante todo o filme, os pássaros, o vento, as árvores e as águas perpetuarão seus cantos, seus ruídos, na intraduzível língua que cinde sujeito e natureza. Ou melhor: repartiria, não fossem gestos como aquele, palavras sacras e secretas que duram o suficiente para sublinhar a fixidez de uma impermanência: entre nós e entre-nós, há relações que não unificam e que não buscam a semelhança. Há aquelas que afastam e reiteram a comunidade daquilo que é fragmentado. Ali, uma mulher. Acolá, uma árvore. Uma fome, um fruto entre eles, mas ainda e sempre: uma mulher, uma árvore, um fruto e uma fome. Um, em seguida, outro. Nem tudo o que é sólido desmancha no ar. Algumas coisas explodirão, como pragueja o presságio do militar sobre os pulmões daqueles trabalhadores exaustos e que, de acordo “com ele”, não sabem sonhar – completamente desavisado de que a distância entre a ricota e aquelas mãos, entre o trigo e a contagem de bocas e estações, entre a energia elétrica produzida e os olhos turvos de labor e alegria, subsiste não uma proximidade que é preciso explorar, mas a mais indubitável das distâncias que eles aprenderam a respeitar e estipular empunhando a justiça com a terra: que cultive e deixe viver aquele cuja sabedoria seja, e não sirva a, ainda que por dez mil anos, o comum. Disparatado, inconcebível, o pensamento que formula a um povo ser necessário produzir mais do que necessita? Inconcebível, decerto, mas vivemos sob seu regime, e a terra também descobre suas maneiras de gritar.

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