Mar calmo não faz bom marinheiro: O Farol (Robert Eggers, 2019)

Por João Pedro Faro

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Algo começou a dar errado a partir da quinta temporada de Bob Esponja (1999-). O criador do desenho, Stephen Hillenburg, deixou o time de roteiristas da série, que pareceu desandar completamente em seus rumos criativos. O que antes era uma das maiores inovações televisivas da época, marcada por personagens originais e um humor único, tornou-se cada vez mais um bizarro exploitation escatológico no pior sentido possível, apelando para episódios onde a única comédia parecia surgir das quão nojentas e violentas eram as situações que a turma da Fenda do Biquíni tinha que enfrentar. Juntando esse mesmo sentimento de uma escatologia pouco recompensadora com as tendências do cinema de horror dessa década, nos aproximamos da experiência de O Farol, segundo longa de Robert Eggers.

As semelhanças do filme de Eggers com as temporadas tardias de Bob Esponja não ficam apenas na tendência pontual pelo gore e pela mitologia marítima: ambos compartilham um mesmo apreço pelo enfadonho. O conto alucinógeno de dois zeladores de um farol numa ilha remota, interpretados por Willem Dafoe e Robert Pattinson, insiste em uma curiosa construção do gênero de horror onde o que prevalece é a exaustão. Tudo começa quando as barrinhas laterais da tela vão se aproximando para formar um reduzidíssimo aspect ratio que, aliado ao preto e branco, emulam algo de um cinema “de outra época”. Não é muito claro, nem para o próprio diretor, o que está por trás desse efeito tão rígido, porque o cinema visto em O Farol é o mais contemporâneo possível, dos movimentos de câmera que acompanham os personagens em seus mínimos gestos até os raccords que colam sequências por movimentos de grua rebuscados. Se essa estética deveria apontar para Lang, Dreyer, Murnau, ou até mesmo, em uma escala ainda mais pop, os mais baratos seriados americanos de terror dos anos 50, ela fracassa e apenas reforça um sentimento de irritação. Sentimento esse que piora toda vez que a genérica trilha sonora transforma algumas cenas possivelmente interessantes em momentos típicos de qualquer teaser trailer.

O jovem faroleiro interpretado por Pattinson é a maior vítima do filme, tanto na narrativa quanto no próprio formalismo rasteiro de Eggers. Seu personagem passa quase duas horas entre vômitos, diarreias, masturbações e possíveis criaturas monstruosas. Pattinson é genial, sempre foi, e seu nível de disposição ao ridículo oferece ao ator momentos fortíssimos em praticamente todo papel que maneja. Aqui não é diferente, consegue bater de cabeça com o Dafoe e ainda ser a melhor presença do filme inteiro. O problema é que o formato 1.19 esmaga parte de seu brilhantismo. Não há espaço para o que Pattinson e Dafoe tem a oferecer, restritos a alguns momentos genuinamente hilários e entregues a outros essencialmente vazios.

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Esse vazio em O Farol não é por sua despreocupação temática, algo que, em princípio, não há problema algum. Por mais que algumas leituras impositivas tenham buscado encontrar qualquer comentário que seja sobre a tal “masculinidade tóxica”, não há nada em O Farol que não reforce seu prazer pelo desprezível (parece não ser mais possível que alguém faça filmes sobre pessoas tenebrosas sem a cobrança de que ocorra um julgamento quase jurídico de seus personagens). Talvez esse total descompromisso com qualquer coisa além do próprio filme seja o fator mais reverenciável de Eggers, Farol tem um financiamento justo pelo já arcaico prazer da narrativa e do absurdo.

O que cai por terra é como Eggers não tem muito interesse em se aprofundar cinematograficamente em suas jornadas de direção até aqui. Assim como em seu primeiro filme, A Bruxa (2015), o diretor trata arquétipos do gênero como teses de conclusão de curso. Para Eggers, o mistério, tão crucial a qualquer incursão pelo horror, é tratado como mero academicismo. Seus títulos já parecem evidenciar uma linha de personas do terror devidamente teorizadas: temos a bruxa, o capeta, o farol, o marinheiro, o cavaleiro… Esse clima de ensaio sobre o que já esperamos de cada uma dessas mitologias vai se confirmando à medida que Eggers vai listando esses arquétipos em cada cena (a sereia, os tentáculos, a maldição, as gaivotas, o navio fantasma) sem uma entrega própria acerca do que joga em tela.

Passando por cima do que O Farol não consegue oferecer, a dupla principal segura o instigante surto cartunesco que o filme converge em ser. Perseguições destrambelhadas, brigas ébrias e escatologia declarada não apenas retornam ao Bob Esponja como também a excelente animação As Trapalhadas de Flapjack (2008-2010). Flapjack, assim como Farol, aposta na perturbação típica da mitologia do marinheiro sujo e no clima de madeira podre de um cais, com incursões hipnóticas que garantem momentos verdadeiramente tenebrosos que duram pouquíssimos segundos mas deixam imagens marcantes (mais tenebrosos em Flapjack do que em Farol, mas tenebrosos de qualquer forma).  A maior surpresa do filme é que Eggers, na tentativa de fazer um revival expressionista, acabou montando um episódio de desenho animado. Por bem ou por mal, isso é ocasionalmente divertido de assistir.

Todas as principais escolhas formais e narrativas de O Farol evidenciam seus próprios limites. No melhor dos casos, é um encontro raro entre dois atores que graciosamente tentam se engolir em cena e escapar dos cantos de seus enquadramentos. No pior, fica apenas como um experimento acadêmico desesperado em deixar sua grife no mundo, não oferecendo muita coisa além de algumas esboçadas e um sentimento de escorbuto no céu da boca.

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