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A lei dos depravados

frePor João Pedro Faro

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Entre 1966 e 1973, os cineastas japoneses Koji Wakamatsu e Masao Adachi colaboraram em mais de 30 projetos. A parceria da dupla só foi quebrada quando Adachi se uniu ao Exército Vermelho Japonês, no início da década de 70. Ele mudou-se para o oriente médio, lutando no grupo armado comunista junto com a Frente Popular Para a Libertação da Palestina, sendo mais tarde deportado do Líbano e acabou preso no Japão por quase 40 anos. A obra de Wakamatsu e Adachi permanece como uma das violentas expressões cinematográficas de sua geração, composta por filmes de baixíssimo orçamento que compartilham a revolta como um estado de existência e a contravenção como base da relação entre o indivíduo e o coletivo.

O princípio dos dois autores é a várzea. Por mais que seus filmes perpassem a história da Nova Onda Japonesa, Wakamatsu e Adachi sempre recusaram qualquer cânone. Em torno do gênero pinku, filmes japoneses de exploitation preenchidos por nudez e violência, feitos com pouco dinheiro e distribuídos no mercado de cinema adulto, os dois fundaram um ideal de cinema que prezava pelo imediato, pela potencialização direta dos meios fílmicos que só poderia ser encontrada dentro do contexto desse tipo de cinema marginalizado. É preciso entender que seus filmes só puderam existir da forma que existiram, do jeito que existiram, por estarem conscientes de seu espaço enquanto subprodutos industriais, por habitarem as bordas de um sistema operacional de estúdios do Japão e reconhecerem esse fator como uma pulsação estética e formal. Se a base da revolta é a negação, esse cinema nasce a partir da vontade pelo contrário.

A primeira parceria dirigida por Wakamatsu e escrita por Adachi feita de forma completamente independente, The Embryo Hunts in Secret (1966), funciona, de forma mais ampla, como uma declaração de interesses que viriam a ser ainda mais estripados nos próximos anos. No filme, um homem prende uma mulher em seu quarto e a submete a todo tipo de tortura física e sexual. O estado de revolta é absoluto em todos os aspectos: o torturador que expressa a misoginia em catarse de tortura, que não aceita a possibilidade de que o corpo da mulher simplesmente exista de outra forma em que não esteja absolutamente dominado. O reflexo do abuso encontra-se na sobreposição das imagens de revolta, como em um momento de tortura que é precedido por imagens sobrepostas do rosto de Maria Antonieta e, logo depois, da ex-mulher do próprio torturador, que não pode lhe dar um filho. A complexificação das estruturas de poder apresentadas impulsiona a justificativa do torturador em torturar: a desestruturação familiar, a impossibilidade da paternidade, é relacionada ao regicídio, ao fim de um estado absoluto de poder. Isso o coloca, ao mesmo tempo, na posição de vítima e de algoz.

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É um abusador que se sente traído pelo tempo em que vive, se sente destituído do poder que revoga e, agora, tenta reestabelecer algum tipo de sentido à sua vida, às custas da extrema violência – um personagem essencial à filmografia de Wakamatsu e Adachi, por ser a figura exemplar do sujeito que precisa destruir todo um espaço por não conseguir viver sob preceitos que não sejam os próprios. Enclausurado entre quatro paredes, onde estupra e chicoteia sua jovem namorada, ele consegue reger um universo particular que esteja de acordo com os ideais que sua revolta reivindica.

No ano seguinte, Wakamatsu dirige Violated Angels, um filme de menos de 60 minutos que acompanha um grupo de enfermeiras feitas de refém por um jovem armado. Voltamos ao filme de espaço único, onde o rapaz mata todas as enfermeiras, uma de cada vez. A ação concentrada dilata o tempo e valoriza cada gesto como um arco dramático: cada interação, verbal ou silenciosa, entre o atirador e alguma das mulheres, se estende por minutos. Em vários momentos, ações se repetem: vítimas aos gritos pedem misericórdia, a arma é usada como mediação fálica entre o homem e a mulher – tudo enquadrado diante à iminência da morte de todas elas. Assim como em Embryo Hunts in Secret, e como viria a ser em filmes futuros, Wakamatsu abusa de característica comum ao pinku, a repetição de atos de violência física e sexual, para transformá-la em aliteração. A mesma situação se repete por muito tempo em tela, transformando o processo de reiterar as mesmas imagens e as mesmas palavras em uma extensão consciente do cinema que ocupa e uma experimentação do extremo, o filme inteiro sendo uma série de ações repetidas e dilatadas que, em outras obras, ocuparia apenas alguns minutos de narrativa. E ainda subverte essa própria aliteração do grotesco em seus momentos finais, quando o toque maternal de uma das enfermeiras consegue desarmar o jovem, contrariando as expectativas do gesto repetido da morte.

O personagem do atirador em Violated Angels é um revoltado peculiar dentro do cinema de Wakamatsu, pois suas ações são extremamente ambíguas, quase aleatórias. Ele surge em tela como um obcecado em acabar com a vida daquelas mulheres, sem antes e depois. Nos últimos segundos de filme, quando a polícia arromba a casa das enfermeiras para buscar o atirador, Wakamatsu sugere um paralelo fundamental entre a violência daquele grupo de agentes estatais com a violência do atirador contra as mulheres desarmadas (paralelo esse que viria a se tornar mais politicamente declarado em seus projetos seguintes com Adachi), mas a motivação básica do jovem continua misteriosa. A resposta pode estar em um dos primeiros momentos do filme: sozinho em uma praia, o rapaz atira freneticamente contra as ondas do mar. A imagem não poderia ser mais direta, mais literal. Atira-se contra a impossibilidade de vitória, contra algo imortal, em constante mudança de forma e tamanho, para se adequar ao que o impacta. Atirar contra a água talvez seja o gesto mais sugestivo possível de um indivíduo em revolta contra as leis de um universo exterior a si próprio, que pode ser atingido, mas nunca derrotado. Matar um grupo de mulheres indefesas é um escape temporário de alívio contra as ondas de fardados que surgem nos últimos momentos do longa.

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Um jovem armado, que atira contra a impossibilidade de vitória que o cerca, surge também na cena final de Sex Jack (1970), escrito por Adachi e dirigido por Wakamatsu. Após todo o seu grupo de amigos, uma gangue de estudantes comunistas, ser preso, um tímido rapaz mata um grupo de policiais, logo antes de sair andando, solitário. Por mais que exista uma certa recompensa no assassinato da polícia, o tom é de melancolia absoluta, de desesperança em qualquer ato revolucionário. É estabelecida a diferença entre a revolta e a revolução. A revolta implica desordem, já a revolução, além da desordem, implica mudança. Em Wakamatsu e Adachi, nunca atingimos a revolução, só interessa filmar a desordem.

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Sex Jack é estruturado no confinamento do grupo de comunistas em um apartamento decadente. Durante o dia, não fazem muita coisa além de transar e brigar. A claustrofobia, obsessão declarada de Wakamatsu, acaba funcionando como propulsora de ações concentradas em seus planos. O longo escopo da câmera de Wakamatsu, uma recorrência visual necessária na maioria de seus filmes, decupa o espaço confinado na alternância entre o plano todo preenchido pela aproximação com os corpos dos personagens transando ou aberto o suficiente para enquadrar diversos personagens em cena. Interessam as imagens dos embates físicos, sejam eles sexuais ou não: todos recebem um mesmo tratamento pelo longo quadro que os abriga.

Em um caso similar, no longa Sensual Games (1969), que Wakamatsu e Adachi dirigiram juntos, o escopo que enquadra o maior número de pessoas em cena serve tanto para filmar uma cena de orgia quanto para filmar um grupo de ativistas políticos em motim. Aliás, essa aproximação sugere tornar as duas coisas inseparáveis. Em dado momento, a cena de uma jovem sendo estuprada é interrompida na montagem por imagens reais da polícia repreendendo violentamente um dos protestos de esquerda realizado por estudantes japoneses. Wakamatsu e Adachi habitavam o ativismo político de esquerda da época, e o registrava como parte de seu cinema, como motor de qualquer outra recorrência temática. Tornam-se princípios similares de brutalização.

Essa percepção é parte da compreensão geral de que o sexo no cinema dos autores, diferente de outras produções do pinku, ou até de filmes de seus colegas da Nova Onda Japonesa, acaba por não ser interesse individual pelo tema em si. São projeções conscientes se utilizando dos signos do pinku, de outras temáticas que cerceiam e ditam os rumos de seus filmes. Em Sensual Games, por exemplo, mesmo que grande parte do tempo de tela seja tomada por cenas de estupro coletivo ou de sexo grupal, o que está realmente em evidência é como essas imagens são articuladas com seus entornos de efervescência social. Como na cena em que uma ativista é levada para uma zona ocupada pela juventude comunista e estuprada por uma gangue de jovens politicamente neutros, que desprezam a revolta ativista e, por sua vez, são revoltados com seus meios individuais de garantir a dominância sexual (antítese do grupo comunista visto em Sex Jack).

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O sexo existe como fim ou como reflexo de um estado de inconformidade constante com o espaço e o tempo habitado, e não simplesmente como sexo. É a violação do corpo, consensual ou não, que cria as imagens necessárias para eletrizar quem está enquadrado em cena. Em 1971, Adachi viria a explorar de forma ainda mais agressiva esse ideal, quando dirigiu Gushing Prayer. No longa, uma adolescente de 15 anos é obrigada por um grupo de amigos a se prostituir, a fim de encontrar qualquer sensação sexual que, até então, não houvesse encontrado, finalmente “derrotando” o sexo, como ela mesma explica. Adachi complexifica a ferramenta do sexo quando a torna uma passagem definitiva para a vida adulta, e, portanto, uma passagem para a percepção do sistema de classes e da exploração laboral. Se o sexo torna a adolescente adulta, e a vida adulta é baseada em trabalho, o sexo só pode existir para a jovem protagonista como outra forma de exploração regida pelo capital, e, para isso, ela precisa subvertê-lo à sua forma. Para o filme de Adachi, a prostituição é o único sexo possível dentro dessa sociedade, e todo sexo acaba, por consequência, sendo uma espécie de prostituição. O sexo pelo sexo, o ato pelo prazer, não existe dentro de um cinema em busca de brutalizar imageticamente seu processo revoltoso de pensamento.

Além do sexo, outra iminência da revolta, para Wakamatsu e Adachi, é o suicídio. Em 1969, Adachi roteiriza e Wakamatsu dirige GO GO, Second Time Virgin. Por mais que o abuso sexual seja constante durante o longa, que abre com uma cena de estupro coletivo contra a protagonista em um terraço, o centro de sua revolta urge da decisão da adolescente em morrer. Após fazer amizade com o filho do zelador do terraço, um jovem matador em série, ela explica: “Desejo morrer porque desejo matar”.  Por mais que esteja sendo violada por todo o seu entorno, ao invés de revoltar-se e negá-lo, a negação se dá contra si mesma. O suicídio é a total destruição de seu vínculo com o mundo, é a revolta contra a própria existência. Junto com seu amigo, que mata a facadas todos os membros da gangue que a estuprou, a menina decide que se jogar do alto do prédio é o regimento máximo de uma moral própria, seu jeito de atentar contra a ebulição desesperadora de inconformidades que sua vivência gera. O suicídio, longe de ser, em si, a concretização de um estado mental destruído, é apenas uma projeção extrema da não-cumplicidade com qualquer fator externo ao indivíduo. Na última imagem do filme, os corpos dos jovens no asfalto encontram algum tipo de estabilidade com o ato de existir.

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Ainda em 69, Adachi dirige o que talvez seja seu projeto mais formalmente ambicioso. AKA Serial Killer parte dos acontecimentos reais de um homem de 19 anos que matou quatro pessoas com a mesma pistola. Uma narração pontual absolutamente apática conta, em resumo, os passos do jovem, desde a sua infância até o dia dos assassinatos, enquanto acompanhamos planos fixos dos espaços em que ele passou ao longo dos anos. Nunca vemos o rosto do atirador ou qualquer imagem de arquivo. É um documentário que surge da articulação dialética entre uma narração distante, objetiva, e as imagens extremamente vívidas de pessoas e espaços que, de um jeito ou de outro, estão em conformidade com os atentados ocorridos. Adachi busca uma não-investigação dos fatos, das motivações ou das influências; concentra-se em simplesmente formular cinematograficamente uma narrativa que torna intrínseco o indivíduo e o coletivo, que mostre ambos como confluentes de existência, mesmo que o indivíduo em questão nunca apareça em tela.

Se temos a informação de que aqueles espaços se relacionaram à vida de um indivíduo assassino, um homem que quebrou o mais básico código da vida em sociedade, todos esses lugares são enquadrados como sendo imagens negadas pela entidade que percorre o filme, que faz com que o filme exista. O atirador existe como entidade de negação em cada imagem, um protagonista invisível. Seja uma imagem do pôr do sol ou de uma marcha militarista, o atirador está presente como contrário absoluto ao que está sendo filmado. Ele é o indivíduo que nega o código, que decidiu, de seu jeito, estabelecer um julgamento próprio de certo e errado, de vida e morte. Ele é um revoltado, quaisquer que sejam suas reais intenções.

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Wakamatsu havia feito algum dinheiro com uma produção no início dos anos 70 e resolveu, junto com Adachi, usar esse dinheiro para filmar em outro país. Acabaram em Beirute, onde filmaram a peça de propaganda terrorista de esquerda Red Army/PFLP- Declaration of World War (1971). Mesmo que seja um projeto propagandístico, ele está em total conformidade com a filmografia da dupla: Red Army é uma declaração de guerra contra o imperialismo, que incentiva meios diretos e objetivos de ação e violência. Como uma voz explica nos momentos iniciais, “as cicatrizes deixadas no poder por nossas ações são a melhor peça de propaganda”. O filme nega o uso de imagens de arquivo, mesmo quando surgem imagens gravadas de noticiários ou qualquer outro meio, elas são vistas através de telas de TV. A câmera se aproxima dos espaços ocupados por guerrilheiros palestinos, de sua rotina de treinamento e seus hábitos de estudo e vivência. Interessa, para Wakamatsu e Adachi, acima de tudo, como aquelas pessoas se relacionam com sua ideologia através da produção de imagens terroristas (a explosão de um avião, uma bomba jogada em território inimigo) e do seu modo de operação discursivo. As imagens finais são compostas simplesmente por palavras como “guerra”, “anti-imperialismo”, “bala”; uma espécie de articulação visual crua de um discurso que prega o ato e o dever de cada soldado na guerra contra um inimigo gigantesco.

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O último grande projeto que uniu Wakamatsu e Adachi, antes que este se dedicasse totalmente à vida de guerrilha comunista que acarretou em sua prisão, foi o longa Ectasy of the Angels (1972). O filme é quase uma apropriação dos típicos filmes de Yakuza para o contexto de facções terroristas anárquicas, com direito a mulheres fatais, cantores de bares, chefões e capangas malvados. Wakamatsu coloca a premissa em um embate de paradoxos, pois enquanto acompanhamos os subalternos de uma facção terrorista explodindo departamentos policiais e atentando contra o sistema hierárquico social vigente, acompanhamos os conflitos de hierarquia que ocorrem dentro da própria organização política. Se, antes, em filmes como Sex Jack e Sensual Game, os grupos terroristas eram simplesmente uma união estabelecida entre jovens, em Ectasy ele existe como perpetuação de todo o sistema que combatem. São traídos e amaldiçoados pela crença no líder e pela fuga do meio em que estão.

Talvez o grande fator que aproxime toda a revolta que Wakamatsu e Adachi registraram e sentiram seja essa contradição da existência do revoltoso. Esses personagens não negam qualquer sistema, qualquer código, eles simplesmente desejam um código que vai violentamente contra o estado atual. Um reflexo tanto da visão de mundo dos dois, que rejeita o poder pela tentativa de um poder próprio, que rejeita o estúdio, os festivais e a crítica, quanto de sua concretização cinematográfica em filmes tão precisos, quase exatos. Poucos cineastas tiveram tanto controle de cena ao filmar as maiores desordens, os maiores gestos de desestruturação da moralidade e do estado político,  ainda mantendo-se fieis a um processo de produção que reverbere esses mesmos ideais.

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O final de Ectasy of the Angels guarda um dos momentos mais especiais de toda a filmografia dos cineastas, certamente em conformidade com seus princípios de sempre. Após uma série de explosões e pequenos atentados, filmados em momentos de absoluto frenesi formal – a câmera de Wakamatsu talvez nunca tenha antes sido tão volátil e tão apta ao caos –, acompanhamos o protagonista abandonando sua vida atual de ação política dentro do sistema de facção, seguindo solitário. Nos segundos finais, esse protagonista, um terrorista que acabou cego após um atentado falho (outra imagem literal poderosíssima que Wakamatsu e Adachi entregam), caminha para fora do quadro enquanto os créditos sobem. Apático, carregado de bombas, se mistura à multidão até que não consigamos mais diferenciá-lo de qualquer outro. O indivíduo retorna ao coletivo, tudo se torna uma coisa só. A aceitação de seu estado de existência como eterno revoltoso trai a revolta original, mas sem deixar também de tornar-se uma outra.

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte 3 – Fim de um século, início de outro

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Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

Fabian: Você fala desse poder da obra de arte. E eu queria voltar a isso. Mas primeiro eu acho impressionante a nossa capacidade de perder a capacidade de se impressionar. A gente tá numa pandemia. Os EUA está efervescente com os protestos decorrentes da morte do George Floyd. O Brasil foi o primeiro país no mundo a tirar a COVID-19 da pauta central, com a saída do Moro, com as questões políticas todas. E aí, tentando atravessar esse momento muito específico com o nosso foco: o lugar da arte e o cinema. Como você enxerga o futuro do cinema a partir de agora? As salas de cinema estão ameaçando não reabrir, já se discute muito essa ideia de que o streaming veio pra ficar e que as pessoas vão se acostumar com essa outra experiência, mas tem esse lugar, onde  a Cinemateca talvez seja esse símbolo maior de ver um filme no seu formato original numa sala escura. Como você vê isso? Começou o século XXI?

Hernani: Bom, pra mim, começou agora. Todos os fundamentos do processo entre o fim da União Soviética, queda do muro de Berlim, etc., ou seja, a consolidação da globalização e de uma certa economia pós-industrial, massivamente ligada ao deslocamento e ao produto físico ela se desfez. Não totalmente, claro, essas coisas não são estanques, mas ela começou a se desfazer a partir da crise de 2008 e agora por completo. Percebe-se que certos arranjos econômicos, sociais, tecnológicos, políticos podem se dar de outra forma.

A pandemia é sobretudo um momento muito mais simbólico do que concreto – não são 2 ou 3 meses que vão sacramentar o processo – de que pode haver outro arranjo de forças, de exploração econômica, outro arranjo político. Ao mesmo tempo que você percebe essa possibilidade de mudança, você percebe que as estruturas anteriores podem se manter se você souber conter essas forças, se você souber absorver, cooptar essas forças. Dar um outro sentido ou simplesmente associá-las ao processo histórico mais amplo, que a gente sabe que é o processo capitalista industrial.

O momento da pandemia cria a dimensão de que o processo anterior tá na bica de se encerrar e provavelmente vai e cria oportunidades. E aí, por mais trágico que isso seja, dentro de uma economia capitalista, aquele empreendedor, empresário, financista, investidor que é esperto o suficiente, ele saca quais são os desdobramentos e vai investir nisso, eventualmente criando um mundo novo.

Vou te dar um exemplo que é histórico: durante a pandemia da gripe espanhola, que foi uma pandemia, inclusive, maior que a atual – estima-se que 50 milhões de pessoas morreram no mundo – houve algumas consequências imediatas e vou dar dois exemplos, um tem a ver com cinema, outro não. A que tem a ver com o cinema é o fato de que aquilo que a gente conhece hoje monoliticamente como Hollywood, em 1918 não estava nem um pouco consolidado, longe disso. Seja porque a maior parte desses filmes feitos nos EUA ainda era feito em NY e não na Califórnia, em Los Angeles, seja porque a maior parte do circuito de salas de cinema dos EUA era pulverizado, tinha milhares de proprietários, não existiam grandes circuitos no sentido que a gente conhece, sobretudo, a partir do final dos anos 1920.

Durante a pandemia, os cinemas fecharam em várias partes do mundo, inclusive no Rio de Janeiro, mas sobretudo no EUA e fecharam dentro de um conflito legal muito grande – não queriam fechar, foram obrigados a fechar pelas autoridades. E óbvio que passou 1, 2, 3 meses, naquela época o capital de giro era muito pequeno, era uma atividade ainda essencialmente popular, você não durava muito tempo com o seu negócio se você não tivesse ele, de fato, funcionando. Logo começou a quebradeira, muitas salas fecharam e aí o Adolph Zukor, que é um daqueles que moldaram a Hollywood tal como conhecemos, daqueles que instituíram as chamadas majors, ele era responsável pela Paramount… até aquele momento, esses embriões dos grandes estúdios, Universal, Warner, Paramount, etc. são basicamente unidades produtoras, não estão ainda totalmente verticalizadas ou na prática, muito longe disso.

Ele cria a grande oportunidade em meio a gripe espanhola: comprar, literalmente, centenas de cinemas que estavam quebrados – os proprietários tinha aberto falência – e unificar isso num grande circuito próprio de circulação de suas mercadorias. É aí que nasce a Hollywood que hoje a gente chama de clássica. E é um fenômeno estritamente ligado a quebradeira propiciada pela gripe espanhola. Isso é história, não uma mera especulação ou hipótese. Você pode perguntar: vai acontecer o mesmo hoje? Não sei. Eu diria que não…

Fabian: O oligopólio hoje é maduro e cresceu…

Hernani: Isso, as famosas cinco, que depois viraram sete que depois ganharam um apêndice da Disney que é a oitava e é a maior e está se expandindo pros streaming com o Netflix da vida [ele fala aqui do “Big Six” – Paramount, Warner, Sony, Universal, Fox, Disney – além das duas de streaming Netflix e Amazon]. E preste atenção: a Netflix está fazendo o que hoje nos EUA nesse momento? Comprando salas de exibição. Acabou de comprar o famoso Egyptian Theatre em Hollywood, que é uma das salas icônicas da era clássica, e comprou outras salas ao redor dos EUA. Não num circuito tão grande quanto lá quando a Paramount comprou em 1919, mas ela tá comprando salas agora que faliram pra ter um espaço de qualificação, de marketing do seu produto. Na percepção de uma empresa como a Netflix não dá pra apostar 100% no streaming. Então as salas vão continuar.

Como existiam anteriormente? Provavelmente não. Seja porque espaços como shoppings vão se tornar inviáveis economicamente, seja porque parte do público, de fato, vai migrar pra casa e pro celular, seja porque você vai redimensionar simbolicamente tudo isso. Eu acho que a questão que surge agora não é tanto qual o grau que o arranjo atual vai ser afetado mas como ele vai ser modificado. Isso implica, inclusive, a ideia que o Walter Benjamin tinha percebido muito bem, que é a ideia de que o cinema é antes de tudo uma arte de massa. Apresentada a milhões de pessoas, fisicamente falando, ao redor do mundo, no mesmo momento, eventualmente no mesmo dia. Isso já vinha se perdendo, não é novo, essa escala diminui estratosfericamente nos últimos 50 anos, mas talvez tenha agora, de fato, sua pá de cal.

O cinema vai desaparecer? Não, isso é bobagem, não tem o menor sentido. Negócios vão ser redimensionados, fechados, comprados? Vão. Isso faz parte do processo. Mas sobretudo, a ideia de cinema vai mudar. E eu acho que taí o grande desafio. A questão é: se o século XX de fato acabou qual é a natureza do século XXI? Se a arte do século XX se esgotou é preciso desenvolver outras formas de arte, com outros arranjos tecnológicos, inclusive, pra esse novo momento.

Então como é que você vai lidar com o desafio? Como é que você vai se encaixar no mundo que surgir adiante? E a gente não pode ser ingênuo né? Os artistas na Hollywood tinham enorme dificuldade de lidar com aquela engrenagem. Poucos, inclusive, conseguiram fazer valer suas prerrogativas artísticas sobre a máquina econômica que aquilo representava. As coisas, os conflitos, as explorações não vão desaparecer, mas você ainda precisa, no sentido humanista do processo, defender a liberdade, a tolerância e todos os valores que se acreditam positivos pra convivência humana, você precisa, de alguma maneira, estar atento ao novo e o novo não é apenas o instrumento novo, o novo é uma vida nova. Você precisa criar novas formas de sensibilidades e sociabilidade.

Precisa, inclusive, talvez recuperar algumas das antigas. Essa dimensão massiva é a mais importante. Boa parte do que houve de positivo ao longo do século XX veio dessa dimensão massiva. Não se pode transformar a vida numa vida de gabinete ou de espaço em frente a uma câmara de rede social, como a gente tá aqui. Isso pra mim é um equívoco. A sobrevivência do cinema aqui no Brasil de forma mais imediata significa, de um lado que a gente mais uma vez vai pegar o nosso dinheiro pra sustentar o prejuízo externo, seja através da dívida externa, seja através de um aporte de emergência pras salas de exibição que são basicamente estrangeiras no Brasil. Quer dizer, a população mal e mal teve R$600 pra sobreviver minimamente durante a pandemia, mas certamente as salas de exibição dos Cinemarks da vida, que apoiou o Jair Bolsonaro, financiou sua campanha, vão receber milhões. Isso é atravessado pelo gesto e pelo direito das pessoas de consumir cinema, de uma maneira ou de outra…

Fabian: O Banco Central já. 

Hernani: É, exatamente. Eu acho que tem uma oportunidade aí, sobretudo pra um cinema que a gente genericamente chama de independente brasileiro, de criar circuitos próprios, de expandir suas formas de contato com a população brasileira, de chegar a um número efetivamente maior de pessoas. A gente menosprezou muito no início a força de instrumentos como You Tube, redes sociais, etc. e se a gente souber explorar isso numa escala mais ampla, mesmo um cinema do passado de repente tá passando aí pra duzentas, quinhentas mil, um milhão de pessoas ao longo de dez anos.

Fabian: Isso implica um pouco abandonar uma certa comodidade do circuito de festivais, né?

Hernani: Sim, totalmente. O foco não pode ser só ganhar dinheiro ou ganhar fama ou ganhar prestígio. O foco primordial tem que ser o contato com as pessoas. Não se acomodar em fazer o seu filme circular pro maior número de pessoas possível. E da melhor forma possível, porque muitas vezes o filme brasileiro circula com uma qualidade técnica pra lá de sofrível, que às vezes, inclusive, joga contra a natureza estética da própria obra. Então é preciso valorizar as pessoas, o momento e inclusive esses instrumentos de circulação e construir uma outra forma de fazer o filme brasileiro existir dentro do Brasil.

Fabian: Por outro lado, sendo advogado do diabo dos dois lados, isso implica uma dificuldade enorme de sustento do artista.

Hernani: Sim, talvez a gente volte àquele momento em que Machado de Assis era funcionário do Ministério da Agricultura.

Fabian: Pois é, você tem uma profissão oficial e a segunda é fazer filmes.

Hernani: Não, ao contrário né? Você, porque quer fazer filmes precisa comer, mas não vai deixar de fazer filmes por causa disso e aí você arruma lá um jeito de comer. A gente não pensa direito: qual era o objetivo de Machado de Assis, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade? Essas pessoas eram funcionárias públicas porque queriam? Não. Eram funcionárias públicas, porque queriam ser artistas.

Eventualmente não dá de um jeito, não tem opção, vai ser do outro, vai ter uma vida muito chata por um lado, mas não vai abrir mão de fazer arte. Não vai abrir mão de pensar, se exprimir, trocar lá uma sensibilidade qualquer com os espectadores que estão por aí. Agora se você tá nisso pelo dinheiro, bom, aí eu recomendo que você vá pra Netflix, pra uma rede de televisão, vá fazer o produto tradicional, porque pelo menos você vai ter um bom salário. Se você vai fazer arte ou não já é outra questão. Então a gente não pode ter a ilusão de achar que porque no século XX os artistas ganharam muito bem, isso foi sempre assim. No século XIX a maior parte dos artistas viveu miseravelmente, quase não ganhou um centavo ao longo da vida.

Fabian: É que também com a “democratização dos meios” há de se pensar na desigualdade desses corres. Lincoln Péricles fala muito sobre isso, por exemplo. Hoje em dia existe uma pluralidade muito maior desse campo artístico não é só elite fazendo ou quem teve uma educação formal completae aí o funcionalismo público do Machado, por ex., envolve um tempo de estudo pra ingressar ali nesse emprego estável que nem sempre é o tempo de quem tá na correria. Acabaria rolando um corre triplo: o tempo de se virar pra sobreviver, o tempo de estudo pra alcançar alguma estabilidade e o tempo de fazer os filmes.

Hernani: Sim… o que eu acho que é importante perceber é a diferença que vai existir na União Europeia e, por exemplo, no Brasil em relação ao socorro do mundo que existia até a pandemia. Por exemplo, o socorro das indústrias cinematográficas nacionais europeias que não podem ser sacrificadas de uma hora pra outra, sejam em termos dos empregos ou dos produtos ou até da geração de renda para essas economias nacionais, etc. e a União Europeia armou um plano que ela vai investir, sei lá, um trilhão de euros a fundo perdido.

Ela não vai obrigar as pessoas a retornar, o que é impossível, sobretudo a juros bancários e vai atuar em todos os níveis da sociedade, vai atuar no empresário de exibição, junto aos produtores, aos espectadores com ingresso subsidiado, vai atuar na cadeia de sustentação, laboratório, pós produção, etc. de uma forma inteligente.

No Brasil, não só não temos um plano como esse, porque o plano é dar dinheiro pros bancos e os bancos cobrarem juros extorsivos, como em relação ao mundo cinematográfico a gente vai funcionar dentro da lógica antiga, ou seja, os EUA fazem pressão por conta de seus negócios no mercado brasileiro, um mercado dominado por eles há mais de um século e quem vai subsidiar isso é o próprio Brasil, não vai ser a Warner que vai lá vir dos EUA pra botar um dinheiro aqui e sustentar parte da atividade. O que você tem de novo nesse sentido foi a Netflix que criou um fundo em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, e distribuiu uma renda mínima pros artistas. E com isso ela teve um gesto de boa vontade, de marketing e, eventualmente, um canal aberto com a própria atividade como um todo. Se ela for reforçar a sua presença via streaming junto ao público brasileiro, ela fez a jogada de marketing perfeita.

Fabian: É um pouco do que já vinha acontecendo antes né? Enquanto a Ancine vem tendo os recursos congelados, a Netflix vem sendo considerada como salvação por uma parcela da comunidade do cinema com uma vasta oferta de empregos. Tá cheio de roteirista feliz com tantas portas se abrindo, todo um novo manancial de oportunidades, mas em termos artísticos (e não só), é de novo um desenho colonial da coisa enquanto antes tínhamos os meios de produção, agora trabalhamos pra eles, para uma empresa estrangeira.

Hernani: Sim. E a gente não pode esquecer com toda essa questão da Ancine que um dos filhos do Bolsonaro numa live elogiou a Netflix. O tipo de cinema que deveríamos ter não era Bruna Surfistinha, mas Netflix. Não podemos esquecer o quanto na composição do conselho superior de cinema do governo Temer, no comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual a Netflix foi cogitada pra ocupar uma cadeira. Então esse é um processo mais amplo, que já vem de algum tempo, que a pandemia pode ter acelerado e que está aí no jogo de xadrez há muito tempo, esse tabuleiro é muito difícil pros brasileiros porque quem conduz os dois lados não somos nós e aí fica muito difícil a gente ter qualquer tipo de atuação mais sensível, coordenada, prática, mais útil e decisiva porque o governo brasileiro, de uma maneira geral, não apoia o audiovisual brasileiro salvo em raros momentos, em raras exceções e quase sempre joga contra utilizando mecanismo de Estado, ou seja, a legislação pra favorecer essas empresas estrangeiras dentro do próprio país, então a gente tem essa situação e ela é muito diferente do resto do mundo. Você pode mudar mais cedo ou mais tarde, mais amplamente ou menos, mais forte ou menos diante da pandemia. A Europa escolheu o caminho da moderação – “vamos sustentar o que já existia, pode ser que venha a mudar, mas também a gente não vai destruir de uma vez só”.

Nos EUA, a quebradeira foi geral, Trump não ajudou e a Netflix, a Amazon, um monte de empresas novas ligadas ao mundo digital tá comprando o velho mundo. Tão comprando por prestígio, simbolicamente, estabelecendo uma jogada de marketing que eles tiveram preocupação em não destruir, mas na verdade foram acentuar o que era novo. Então a escolha de como você vai fazer isso distingue as respostas dentro da pandemia, seja a resposta brasileira, americana, da União Europeia, seja a da Austrália.

É uma corrida sempre né? Você tem diante de si o novo ordenamento do capitalismo. Como você vai se encaixar ou sobreviver dentro dele? Se você está contente em ser ainda e mais uma vez aquele país que tem o papel de produtor de matérias primas agrícolas – vai ficar vendendo soja pro mundo inteiro – é uma opção, claro, mas no meu olhar, é uma opção muito equivocada, muito antiga, muito perversa porque vai significar miséria, aprofundamento das desigualdades, uma dificuldade, inclusive, de você trazer uma expressão como o audiovisual pra todo o país. Se houve algum benefício durante os governos do PT foi a extrema descentralização da produção, a aposta numa geração mais nova, mais independente e radical, foi quando todos os Estados começaram a ter produção, foi a oportunidade mesma de você ter essa distribuição mais bem distribuída pelo país, não concentrada, por exemplo, em Rio e São Paulo. Esses benefícios podem vir a se perder muito rapidamente, muito brevemente, na medida que, por exemplo, a Netflix que já anunciou querer fazer coisas parecidas com as novelas da Globo, venha a adotar o velho padrão de uma produção audiovisual centrado no Rio e São Paulo e que conhece, despreza e ignora completamente o resto da expressão sócio-cultural brasileira. É um grande retrocesso no nosso horizonte.

Por outro lado, eu sei que é difícil ser um Humberto Mauro, um Ary Severo. É difícil ser um cineasta num país onde você não tem nenhuma estrutura pra te sustentar. Aqueles velhos pioneiros faziam cinema de teimosos, não faziam porque iam ganhar dinheiro, ficar ricos ou famosos. Os filmes do ciclo de Recife passaram num cinema de segunda linha e pra um público bastante restrito nos anos 1920. Isso não impediu eles de fazerem, de acharem que era importante e tentar fazer de alguma maneira. Hoje isso é memória, faz parte da história do cinema brasileiro e é isso, cada momento histórico tem suas injunções, suas questões, suas possibilidades.

O que eu acho que existe pra essa geração que tá no Brasil, uma geração muito grande, na verdade não é uma, mas são várias – tem cineasta de 20 a 80 anos – é a possibilidade de você manter um rolo de produção, ainda que não com o dinheiro e os meios que existiam. Mas a expressão audiovisual é isso, ela pode se fazer de N-formas, então o desafio que você tem é o de criar algo de significativo. Se o horizonte for esse, o sombrio, o desafio tá aí. Se for possível lutar pela manutenção por todos os mecanismos anteriores e até aperfeiçoá-los no sentido dele ser mais democrático, menos concentracionista, melhor ainda. Eu acho que não se deve desistir de nada, mas também se deve ter consciência do que o momento histórico está trazendo.

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Thiago:  Retomando algo que você falou, sobre coisas que não fizemos em 2010, 11, 12… 15. Quais são as coisas que não fizemos que atualmente é necessário lembrar e colocar no horizonte?

Hernani: A coisa mais importante que não fizemos nesse período todo foi democratizar o acesso ao Fundo Setorial do Audiovisual. Eu lembro da Folha de São Paulo ter feito um gráfico dos recursos do fundo ao longo de dez anos, e 90% estava concentrado em dez empresas. Isso não é democrático. Muito pelo contrário, isso é um problema sério e que, inclusive, impediu o cinema brasileiro de ter uma repercussão maior junto a sociedade brasileira.

A segunda coisa é que o fundo não era um fundo, eram vários fundos. Era um fundo de distribuição, de exibição e era um fundo de preservação. Por exemplo: ter salas dedicadas e ter mecanismos de distribuição dedicadas ao cinema brasileiro. Nunca houve aporte maior sobre isso e em relação a preservação nunca houve aporte financeiro, ponto.

Dizem sempre que o fundo tem um bilhão de reais ou 800 milhões ou 1.2 bilhão de reais. Dá 5% disso pra preservação e já resolveu o problema dela por décadas. A gente lida com uma demanda, cara, mas não nessa escala. Imagina se a preservação brasileira tivesse 100 milhões de reais por ano. Acho que faltou implementar mecanismos e, na verdade, essa implementação sempre dependeu de falta de decisão política, de você ter uma outra configuração pro cinema feito no Brasil, de você ter uma outra estrutura pra esse cinema e aí, sendo muito franco, não se trata de cantar no quintal alheio – se as empresas estrangeiras querem ter suas próprias estruturas, nada contra, vai lá – mas o dinheiro dos brasileiros tem que ser investido na dimensão brasileira.

Não é nem questão de justiça, é uma questão natural. O dinheiro é da população brasileira. Se você quer realmente ter um campo audiovisual mais equilibrado e produtivo, mais atento às dimensões de passado, presente e futuro, você tem que investir em arquivos de filme, em pequenas e médias empresas, em estruturas de pós-produção, em informação e o dinheiro é suficiente pra tudo isso. Porque se você tá concentrando 90% dos recursos em dez empresas, você tá fazendo alguma coisa errada.

Então não houve condições políticas pra mudar esse desenho. Ele acabou sendo questionado de uma forma absurda pelo atual governo, mas o que aconteceu na prática é que tudo paralisou, o FSA está paralisado há dois anos, e você tem um desafio a frente que é o da pulverização e da acumulação. É preciso entender que não se ganha mais dinheiro lançando filme na semana X e sete dias depois você tem 90% da renda daquele produto. Hoje, você pode ter o produto X e ele render durante 10, 15, 20 anos. Sobretudo se ele é mantido à disposição nas prateleiras, igual a um livro nas livrarias. Tem livro na décima quinta, trigésima edição e por que? É esse tipo de negócio que, na verdade, o digital e sobretudo essa coisa do streaming criou. Você tem agora um outro tipo de relação econômico com seu público consumidor e agora ele se distribui por várias gerações, ele não se volta apenas e somente pra um momento imediato que você vai faturar muito. Esse é um negócio de quem precisa botar 100 bilhões num filme e recuperar 500 em uma semana porque senão vai ter que pagar juros bancários. Porque que a gente tem que reproduzir esse modelo de economia audiovisual? É um modelo pra nós completamente inadequado, se é que ele é adequado pros EUA. Não há capacidade de gerar outro modelos? Temos que nos submeter a esse único modelo e nesse sentido sermos colocados de fora dessa economia? Eu me pergunto porque que a gente insiste em ser tão tacanho, burro, sem capacidade de intervir nesse processo.

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte 2 – Compreender o novo momento

Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

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Thiago: Uma ação como essa de “fechar a cinemateca” é basicamente um “vamos apagar a memória, vamos destruir e só destruir”. Como o setor da preservação, como o da ABPA, como os profissionais estão conseguindo pensar numa ideia de sobrevivência nesse cenário? Porque me parece realmente, como o Fabian falou, a imagem do Museu Nacional em chamas vira uma proto-imagem do encaminhamento do governo Bolsonaro.

Hernani: É uma imagem que passou pela cabeça de todo mundo, passou pela minha cabeça. Não só nessa sexta-feira [29/05/20], mas já há algum tempo, porque pra mim no momento em que você estrangula uma instituição dessa natureza, sobretudo financeiramente, você tá levando ela ao desastre. Então não se pode dizer que isso não seja de caso pensado porque qualquer gestor minimamente informado sabe que instituições dessa natureza, se não tiverem os recursos adequados, elas abrem espaço para o imponderável e o imponderável às vezes termina tragicamente. A área de cinema como um todo reagiu muito rapidamente, mas de forma limitada, seja porque não há interlocução com esse governo, seja porque a gente tá no meio de uma pandemia. Então o poder de reação que quase sempre é simbólico, mas pode ter um impacto político muito grande, está arrefecido nesse momento. Então, lógico, as instituições, as associações, os sindicatos se mobilizam, se troca muita informação, geram-se manifestos, cartas de repúdio, cobranças, aciona-se, na medida do possível, o responsável – a Regina Duarte foi acionada várias vezes nesses dois meses em que ela foi Secretária Especial da Cultura e até onde eu saiba ela nunca respondeu qualquer solicitação de qualquer ente nem só da preservação, mas do campo cultural como um todo. A ABPA enviou um pedido de reunião com a secretária pra tratar da questão da preservação, do Plano Nacional de Cultura. Que eu saiba, nunca foi respondido. Então quando você tem de um lado esse tipo de atitude, esse mutismo, essa ausência, esse absenteísmo total já fica difícil a interlocução, mas pelo menos dizer pra sociedade o que está acontecendo, quais são os riscos envolvidos, o que é necessário fazer e o que é obrigação fazer por parte do Estado, isso tem ocorrido. No próximo dia 04 tem uma manifestação já programada em frente a cinemateca em meio a pandemia [já aconteceu]. As pessoas vão pras ruas, se expor, para tentar defender a razão de ser daquele espaço e cobrar ações concretas por parte do poder público que viabilizem a instituição. Agora tudo isso é muito limitado também por uma cultura política que não vai pro enfrentamento. A essa altura o que a gente tem visto e experienciado é justamente o lado conservador assumir essa cultura de enfrentamento, do confronto e do conflito, uma cultura que ocupa os espaços, que domina a narrativa midiática, que gera as imagens de força – não que tenhamos que trabalhar na dimensão da força, acho que a lucidez, a razão, o argumento apropriado e não a força que vai ajudar os filmes a sobreviverem. É o trabalho técnico adequado, a capacidade de articular uma coisa e outra, de dizer o que tem que ser feito concretamente, como tem que ser feito, mas também dizer em alto e bom som “olha, se não fizer, perde.” E perde desde o filme de família, da família A, B, C, D… até os registros das obras de arte mais importantes que o Brasil fez ao longo de cento e tantos anos. Esse trabalho político tem que subir vários tons, porque a gente não está mais lidando com um governo que queira debater e negociar, mas estamos lidando com um governo que virou as costas. E não só pra preservação, mas pro Brasil. Eles estão lá no castelo em Brasília e o resto do Brasil tá meio assustado e atônito, sem saber o que fazer, mas se não fizer nada, a casa pega fogo e as coisas se perdem.

Thiago: Isso me lembra um pouco da história do Ray Edmondson na Austrália[3]

Hernani: Tem pontos de contato. Houve governos na Austrália, na democracia australiana, que simplesmente olharam pro National Film & Sound Archive e se perguntaram “pra que serve isso? Não tem a menor importância, pode jogar isso fora. Políticas públicas na Austrália que reenquadraram as instituições, que diminuíram as verbas, que questionaram a existência ou parte dos seus acervos e que recomendaram a destruição. Pura e simples. Então nesse sentido o que a gente vive no Brasil não é novo no mundo da preservação. Por mais louco que pareça isso tudo é uma situação que alguns arquivos mundo afora já viveram. Essa ameaça não é uma ameaça localizada. Ela sempre está ali no horizonte daqueles que consideram que o passado e a memória não tem grande função hoje em dia. Há aí uma disputa maior que é o próprio sentido de guardar essas coisas. Pra que guardar essas coisas? No momento em que você gera a ideia de que isso tudo não tem o menor sentido, a menor função e pode ser jogado fora, você perigosamente chega aí nessa dimensão do esquecimento completo ou de amnésia cultural total que vai ter um preço trágico. Nesse sentido, lembrando uma obra de ficção que é o Fahrenheit 451, do Ray Bradbury, o que ele coloca lá é este Estado totalitário reacionário chegando ao ponto de desconfiar de tudo que carregue ideia. Naquele momento para o Ray Bradbury é o livro, mas a gente já não tá mais na civilização do livro, a gente tá na civilização audiovisual e dentro dessa civilização você tem essa dimensão imediata de um conjunto de mecanismos e tecnologias que conecta o mundo inteiro online, em tempo presente, e as coisas se fariam agora dentro dessa dimensão. Então pra que guardar o passado audiovisual? Pra que guardar filmes em papel, filmes em nitrato, filmes em acetato, videoanalógico, fitas VHS, DVDs… Isso não seria mais necessário e pior, aí vem aquele argumento absolutamente tolo e picareta “não, já tá tudo na internet, tá tudo no Google, só chegar lá e acessar”. E nesse momento você tá pondo em risco, mais do que o objeto, uma experiência que a pessoa de hoje ou daqui a dez ou cem anos, possa vir a ter com isso. Mal comparando, é você resolver destruir as pirâmides do Egito porque não tem mais sentido vê-las presencialmente porque elas já estão ali no Google. Há aí toda uma concepção muito equivocada e perversa que quer negar o acesso ao conjunto da população, agora e no futuro, a todo uma série de criações e experiências que o passado nos legou. E que foram conservados por esse tipo de instituição como a Cinemateca Brasileira. Então porque a gente não pode ter direito ao passado? Porque a gente não pode ter direito às várias dimensões do passado, inclusive com todas as suas contradições, em todas as suas dimensões concretas? Porque que a gente não pode saber que existiu direita, esquerda, centro-direita, centro-esquerda, direita radical, esquerda radical e muitas outras coisas? Porque que a gente não pode ter acesso a ideia de que houve momentos na história da humanidade em que as coisas deram certo? E também houve momentos que as coisas deram muito errado, terminaram muito mal, isso custou milhões de vidas e eventualmente destruiu patrimônios inestimáveis que não só faziam parte da vida das pessoas, mas contavam a própria vida da nação como é o caso do Museu Nacional.

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Fabian: Isso que você falou trazendo o Fahrenheit, onde na narrativa “queima-se tudo que contenha ideias”, eu adicionaria uma palavra: num estado totalitário queima-se tudo que contenha ideias contrárias. E isso é um dado importante, porque esse momento atual lida de forma diferente com a oposição de ideias. Não são só conceitos provenientes de perspectivas diferentes, tipo Marx e Adam Smith, paulatina e historicamente fundamentados. Muitas vezes se dá o simples negacionismo absoluto, puro e simples. Uma das muitas coisas que podem chamar a atenção naquele vídeo ministerial é o conceito de liberdade que o Bolsonaro usa. Você se apropria de ideias de superfícies, soltas no ar e as conecta como quiser, no caso ali liberdade era armar a população. Isso não é de agora, nas eleições de 2018 isso ficou mais do que estampado: o argumento racional não convence mais ninguém. Vídeos do Bolsonaro falando que tem que matar mais de 30 mil (e agora conseguindo o feito), que ele era racista e homofóbico, isso não adiantava nada. E hoje estamos acostumados com essa ideia, o que é um pouco assustador, o fato de não nos assustarmos. Estamos caminhando pra “dobrar a meta” dos 30 mil e isso não é mais uma questão, sendo que essa frase em vídeo do Bolsonaro parecia a coisa mais nazista a se temer em 2018.

Mas voltando ao ponto, com outro exemplo: se você não concorda com o Olavo de Carvalho ele te manda estudar, mas se você for realmente ver nas referências que ele indica, você percebe que existe um vazio de ideias, porque o que importa não é a depuração das ideias, mas um punch performático. O meme ganhou, o Iluminismo morreu. E eu tenho a impressão que isso tem a ver com a falta de memória, com a predominância da presentificação absoluta. Tudo hoje vira a-histórico.

Hernani: Eu diria que o maior desafio que a gente tem agora é justamente conhecer profundamente essa construção político-ideológico desse grande agrupamento de direita, desde aqueles que estão ideologicamente engajados até os espertalhões, conhecer isso bem, destrinchar e desmontar isso, revelar onde está o pulo do gato e onde está a construção ideológica pura. As várias coisas que você falou não me parecem a manifestação da mesma coisa.

Fabian: Até porque dentro disso existem as ideias supremacistas, existem as ideias racistas (eugenistas até) e homofóbicas pra caralho, elas estão lá constituídas, mas quando é hora de recriar as ideias importa pouco a procedência, a construção, o background. Na hora de construir algo novo, importa mais o impacto da imagem.

Hernani: Sim, concordo com você. Porque às vezes você tende, muito ingenuamente, a achar que não há ideias do outro lado porque elas são mal conduzidas, mal construídas, mal argumentadas, mal defendidas, mal tudo. É aquele negócio, “porque o Ministro da Educação não sabe falar e escrever isso significa que ele não tem ideias” – não é por aí. É uma dimensão bastante complexa que começa com um sequestro, que é o sequestro dos termos, então como que liberdade é uma bandeira agora dos bolsonaristas e não daquelas pessoas que historicamente lutaram por ela? Como você consegue sequestrar tão facilmente os termos “democracia”, “liberdade”, “justiça”? Se a gente olhar com cuidado os discursos bolsonaristas essas palavras estão lá o tempo todo. E há uma perversidade em inverter a argumentação lógica e política, do tipo: “agora que a gente está sendo perseguido, ninguém levanta a voz pra dizer que os direitos humanos estão em risco, ninguém levanta a voz pra liberdade de imprensa, liberdade de fala, etc”, ou seja, há uma instrumentalização perversa que não se revela por uma argumentação consistente, se revela por um sequestro dos termos chaves do jogo político.

Thiago: Uma fala dessa reunião que eu achei impressionante, nesse sentido de deturpação é o momento em que ele fala que é necessário armar a população pra que não exista uma ditadura.

Hernani: Sim, é o sequestro. São os argumentos clássicos do campo político da esquerda, ou como disse o Fabian é um sequestro dos argumentos clássicos da proposta iluminista, ou seja, de uma democracia liberal burguesa. O Jessé de Souza tem muita razão ao apontar esse aspecto “qual o problema com grande parte da esquerda brasileira?” O problema é que ela não é esquerda, né? Ela é uma democracia liberal burguesa e agora está vendo um sequestro amplo, geral e irrestrito dos seus argumentos clássicos. Da civilidade. O barbarismo e essa coisa da força do bolsonarismo fere a civilidade.

            Um sequestro por exemplo da ideia de democracia, então você tem que obedecer os ritos e aí o Bolsonaro vai lá e diz “eu vou desobedecer justamente pra preservar a democracia”. É uma retórica muito sofisticada. Ela não é descoordenada, aleatória, pontual. Você vê isso na boca de todos os bolsonaristas. O primeiro ponto é esse: o sequestro da dimensão simbólica da vida democrática. E esse sequestro hoje se dá pelas palavras quando no passado significava você se colocar sobre o julgo dos símbolos mais corriqueiros, por exemplo, as estátuas. Porque que quando certos regimes caem você vai lá e destrói as estátuas? Ou destrói os símbolos políticos como o parlamento, ou destrói desde Roma antiga a possibilidade de você ter uma história pregressa, vai lá e queima a biblioteca de Alexandria. Esse sequestro simbólico ele é tão ou mais significativo a essa altura, porque me parece uma coisa muito consciente.

            O segundo aspecto que envolve esse vídeo da reunião ministerial com os ministros. Em tese, não era pra ser veiculado, mas sempre me espantou a pouca resistência que o governo ofereceu em trazer o vídeo a público. No fundo, é claro, eles reviram o vídeo e disseram “bom, quais são os perigos que existem pra nós ao trazer isso a público? E chegaram a conclusão de que nenhum. Pode mostrar. Ainda que a decisão final tenha sido do Supremo, o vídeo foi entregue, não foi manipulado, tinha todas essas características bárbaras e algumas delas foram antecipadas muito sutilmente pela assessoria de comunicação do Planalto por um colunista aqui, um comentarista acolá.

            E foram preparando terreno pra que, quando o vídeo chegasse ele chocasse, mas não chocasse tanto, como o Fabian falou. Não era uma novidade mais. E aí o que me parece é que, como muitas outras questões e situações desse governo e, principalmente, desse universo que emergiu nos últimos anos, eles vão descobrindo aos poucos, e meio que por acaso, certas estratégicas, certos instrumentos e também me parece que toda aquela performance maluca do Bolsonaro em meio à reunião acabou sendo tida como positiva. E aí a gente talvez tenha que entender uma certa performatividade que era muito vista numa dimensão meramente formal, que era “ah, o Bolsonaro usa muito as lives, o Facebook, suas redes sociais, ele tem seus próprios canais de comunicação”, ou seja, tava muito no instrumento e não na performance em si. Essa tentativa de construção simbólica da estátua pública dele que é a palavra “mito”, que é uma palavra que talvez tenha sido a primeira a ganhar uma dimensão simbólica desde a campanha. Qual é a performance do mito? É uma performance calculada – responder certas coisas, não responder outras, colocar ou não palavrões, de inverter argumentos, de jogar justamente com a defesa do Iluminismo por parte dessa democracia liberal burguesa, sobretudo a imprensa representa muito isso e aí brincar com isso.

Fabian: Eu ousaria dizer que existe um estudo muito específico e muito próprio dele com a figura do Lula. Quando ele dá esporro na reunião, falando “em sentir o cheiro de povo”, por exemplo. Acho que existe uma consciência forte ali sobre um vácuo que a ausência do Lula deixou nas classes menos favorecidas.

Hernani: Tem. Ele não é exatamente um político neófito. O cara tá há 30 anos no Congresso. Sabe como funciona aquela loucura, tem aí uma certa leitura do Brasil, um vocabulário, uma retórica própria, uma estratégia de ação política própria, uma estratégia de performance pessoal própria, que a gente vê repetido no vídeo. Não é inocente, nem casual. Pra além da destruição dos antigos símbolos – vão todos arder se depender dele e do universo bolsonarista – você tem aí uma ação política mais consistente e coordenada, ainda que tresloucada e baseada em premissas ideológicas completamente estapafúrdias e aí não adianta fazer o elogio da conversa, do debate tranquilo, equânime e racional porque não se trata mais disso. Uma coisa que me chamou atenção foi uma certa direção de TV no vídeo. De como você cortava do Bolsonaro pra um ministro X ou Y, mesmo sem ele estar falando, ou seja, como se fosse um programa de TV. Fico me perguntando se o vídeo original era assim, se havia essa edição online, ao vivo ou se isso foi preparado a posteriori. Claramente há várias câmeras, um material bruto e uma edição na hora, mas você poderia recorrer tanto ao bruto quanto a edição pra trazer a público a versão oficial do governo. Eu não vi nenhum veículo de imprensa questionando essa forma de fazer. Se você tem vários cortes e planos e ângulos e pontos de vistas, bom houve uma certa estrutura de produção pra fazer e uma estrutura de edição que pode ter se dado naquele momento ou a posteriori e não ter adulteração nenhuma. E é engraçado a disposição de atores naquela mesa quadrada, de embates de pontos de vista, onde é possível tecer de alguma maneira uma espécie de radiografia da própria estrutura interna do poder. Como se dá isso? Como seria isso na Era Lula, na Era Dilma e até mesmo na Era Temer? Como você pode comparar essas formulações e o que isso redunda de discurso para a população? Então tem aí um universo que precisa ser pesquisado e entendido e desmontado nos seus mecanismos de construção discursiva e ideológica e perceber nas entrelinhas aonde ele quer chegar e onde ele não quer chegar.

Fabian: Nessa coisa de entrelinhas, uma das coisas que me impressionou foi a imagem do Power Point na televisão à direita de quadro da mesa quadrada: um grande “Pátria Amada Brasil” com crianças dinamarquesas. Não pelo fato de só haver crianças brancas europeias, porque isso já tinha sido muito debatido nas mídias sociais e na imprensa há uns meses atrás, mas justamente porque eu não sabia que eles ainda usavam esse slogan com essa imagem depois de tanto se falar sobre isso. Ou seja: a imagem do Brasil pra eles são essa turma de crianças brancas, “fofinhas” e não importa se vem a esquerda ou a imprensa e desmascara aquilo em termos práticos, não importa que aquela imagem seja um “ctrl c + ctrl v” de uma campanha publicitária europeia – o que importa, nesse mundo de pós-verdade, é que essa é a verdade deles, o conceito-Brasil é esse. De novo, é a coisa do xingamento do Olavo, é meio “ganhar no grito”, “essa é a Pátria Amada Brasil que nós queremos”.

Hernani: Ou de uma maneira mais analítica, o Iluminismo tem como pedra de toque que qualquer ideia tem que ter como correspondência na Physis, na natureza, você não pode inventar coisas do nada se ela não tem coisas concretas, se ela não é realidade. O que ocorre com o bolsonarismo e esse exemplo das crianças é ótimo, é que o bolsonarismo descolou a substância da matéria. A matéria não interessa. Se elas são nórdicas ou não, não interessa, ela representa uma certa ideia que queremos fazer vingar. Uma ideia eugenista, não por acaso isso voltou de uma maneira muito forte – o desempenho do governo na pandemia foi um desempenho absolutamente eugenista: “Danem-se as pessoas que não tem capacidade pra sobreviver, morram aí. O problema é delas, não é nosso”. E aí você fica com a ideia e não com as ações concretas da liberdade em arte, pra lembrar do Aristóteles. Você fala em nome da liberdade ocamente, por pura retórica e a simples palavra seria evocativo de um estado primeiro do que seria liberdade que jamais é explicado. O sequestro real tá aí, você não vai explicar, você não vai unir a substância à matéria, você não vai pro exemplo concreto, dizer “isso que fizemos aqui representa a liberdade de fato”. E aí vira um jogo de surdos-mudos. Se aquilo que você tá designando como esquerda, que hoje na verdade é um conjunto enorme de segmentos do Brasil, não consegue debate ou diálogo ou enfrentamento com o governo é porque ele ainda pensa de um jeito e o governo já tá pensando de uma maneira completamente diferente e se recusa a encontrar um terreno comum. É um dissenso radical e a radicalidade desse dissenso, como o Thiago falou, é a ruptura. Esse governo busca a ruptura. Estamos numa escalada que de um lado desmonta, destrói, ignora, dá de ombro e do outro lado busca um paraíso terrestre, uma pátria perfeita que é plana e temente a Deus, militarista, que não existe nem existirá nunca, mas que povoa o espaço vazio dentro da cabeça dessas pessoas. O iluminista clássico nem consideraria discutir essa história de terraplana, talvez mandasse botar essas pessoas no hospício e ponto. A gente tá aqui tendo que recuperar toda a história do porquê a Terra é redonda pra combater isso. A essa altura parece um desperdício de tempo e de forças fadado ao fracasso. Porque no fundo não há diálogo com essas pessoas e você fazer o elogio iluminista do fato, da verdade – e por isso que a gente vive num tempo de pós-verdade – perdeu completamente a eficácia. A gente precisa encontrar outros mecanismos pra atuar socialmente porque esse mecanismo da pura e simples verdade já não é mais suficiente. Precisamos de outros mecanismos pra chegar às pessoas e de alguma maneira chamá-las novamente… antigamente a gente diria “chamá-las à razão”, mas chamá-las novamente pra Terra.

Fabian: Chamá-las à sensibilidade.

Thiago: Seguindo um pouco o seu raciocínio, Hernani, trago uma frase que ficou na minha cabeça: porque não podemos ter direito ao passado? Se a gente alia essa ideia de passado a uma ideia de estrutura de formação, se esse passado ao ser acessado, a pessoa pode ter uma leitura e com isso formar-se e, às vezes, até emancipar-se a partir disso, essa possibilidade não está em jogo?

Hernani: Sim. Tudo depende de quem você quer ser. Tudo depende da tolerância com que você considera o outro. Tudo depende do acordo que você estabelece em meio a sociedade. Se quem você quer ser quer eliminar radicalmente qualquer dimensão anterior, até é possível, até em princípio é um direito, mas não pode ser um direito universal. Você não pode simplesmente ignorar tudo isso. Não pautar sua vida pro passado. Mas você não pode estender isso aos outros. Você tem que considerar que o outro pode pensar diferente de você. A tolerância é a base social. Se você não tiver isso, você vai ter que usar força, etc. Então a própria ideia de você descartar o passado é uma ideia que só existe de fato nesse tipo de regime intolerante. Nesse tipo de situação social onde o outro acha que é dono da verdade absoluta.

        Mas eu acho que hoje em dia a gente corre um risco ainda maior. A discussão ideológica em torno do passado, ela às vezes tem essa dimensão semântica: qual a diferença entre antigo e velho? Qual a diferença entre o que é próprio – entre, o que há rigor ainda existe no presente, porque o que veio do passado se foi conservado, existe no presente – e a ideia de que aquilo não tem mais função, não tem mais sentido, não serve pra mais nada, etc. o que levaria a uma ideia (sempre perigosa) que é a ideia do descarte.

       Essa ideia de descarte é uma ideia muito forte nos dias de hoje, porque há um suposto excesso de tudo. Excesso de informação, de produtos, de opções, de mídias, de tudo. Então a vida no presente é uma vida que é atravessada por tantas possibilidades que o sujeito estaria vivendo numa espécie de paralisia, dado a esse excesso. O próprio passado em certa medida pode ser um excesso. Na medida em que você entra numa plataforma de streaming e tem lá 200 filmes, 500, 1.000, 10.000 filmes. Você pegar sua vida e se dedicar a ver filmes, você não vai conseguir ver 10.000 filmes.

            Ou seja, tudo está passando a escala humana e haveria a necessidade de você voltar a uma escala mais adequada de vida e assim você associa esse descarte a uma ação natural de autoproteção. Você precisa fazer uma opção entre um passado enquanto tal e um presente onde você pudesse carregar esse passado de maneira mediada. E aí foi oferecido um serviço que é o que o celular propicia às pessoas de você carregar seus vídeos, fotografias, suas gravações de áudio, seus momentos de vida, sua timeline. Ou seja, todo seu passado está ali no seu lado o tempo todo e pode ser acessado muito prontamente o tempo todo. Então pra que ter, de fato, os signos anteriores? Pra que ter os objetos que marcariam essas vivências anteriores? Pra que ter a expressão mais sofisticada anterior?

            Numa dimensão iluminista, a obra de arte pensa. Mas numa dimensão contemporânea, pós-humana, pós-verdade, pós-moderna, pós-tudo a própria ideia de um passado é um excesso. O que você precisa ter é um presente instrumental onde você possa encaixar o passado de maneira instrumental e não pensar a partir do passado.

            Lembre-se: agora, via internet, via celular nós somos consumidores finais todos. Todo mundo que tem um celular é um consumidor final e pode, inclusive, consumir o passado através desse mecanismo. Por que você precisaria aí de outras dimensões mais sofisticadas, mais complexas, mais propensas a reflexão se você pode dispensá-las, sobretudo em favor de um regime futuro, de um paraíso futuro que é apresentado como mais adequado, como literalmente mais perfeito do que os atuais ou anteriores?

            Qual o discurso do Bolsonaro? Nós vamos consertar o Brasil. Nós vamos salvar o Brasil. Nós vamos fazer o que é correto pelo Brasil. Esse discurso salvacionista se encaixa dentro desse novo contexto em que você tem as redes sociais, celular que não existiam há 30 anos atrás. Então, eu acho que tem aí uma dificuldade nossa de entender o mundo atual, o redesenho da dimensão da política dentro do mundo atual. A ideia de que você possa lidar com a falta de verdade ou com a fake news dentro do mundo atual não é novidade. Documentos falsos sempre fizeram parte da história e seu uso era basicamente político, mas a escala aí, a natureza disso hoje em dia é diferente do uso mais antigo e eu acho que começa a ser diferente porque o substrato ideológico dos termos se esgarçou, se perdeu, se dilui, eventualmente até deixou de existir e a palavra liberdade pode ser empunhada por qualquer um impunemente sem qualquer tipo de confrontação maior.

            Até porque não se busca confrontação – não se pode esquecer que o candidato Jair Bolsonaro não compareceu a quase nenhum debate. Ele fugiu o tempo todo dessa dimensão e um dos gestos antidemocráticos de início da trajetória dele é exatamente esse. Nós temos aí um trabalho a ser feito que é compreender. Como tudo isso está ocorrendo, quais são as implicações. Vai demorar, inclusive, porque não é fácil se jogar nessa seara toda e tentar destrinchá-la pelos vários ângulos que ela tem e ao mesmo tempo, não perder de vista que, independentemente dessa ação é preciso estar atento e forte pro imediato. Se alguém diz que pode fechar a Cinemateca Brasileira, você tem que reagir de alguma maneira. Mesmo que você venha perceber que não era exatamente a maneira correta, isso não interessa; você tem que reagir e eventualmente estar a postos pra reagir àquilo diretamente porque o risco é real e concreto e a gente tem que ter a percepção de o quanto ele avança se, por exemplo, o dinheiro não aparecer, se a instituição ficar num limbo jurídico por mais não sei quanto tempo, se vier uma gestora que não faz nada, etc. Porque o que não pode ocorrer é você simplesmente deixar as coisas de lado, deixar caminharem frouxas, porque aí o desastre vem de uma maneira ou de outra. A gente já tá vivendo o desastre hoje praquilo que não fizemos ali em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018. O mundo correu através desses anos e a gente tava um pouco ausente de tudo isso. Não nos lançamos ao debate público necessário, não lançamos certas questões, fomos muito condescendentes com certos arranjos e o desastre está formado. Então agora não dá pra chorar pelo leite derramado. Agora é o momento seguinte. Agora é o trabalho de zelar de um lado, cuidar do outro e pensar. Não se pode abrir mão de pensar. Nem cair nessa de que o outro lado é só maluco. Mesmo os malucos pensam.

Thiago: Dentro desse presente instrumental em relação ao passado, qual seria o futuro ou o novo papel das cinematecas? E o que nós não fizemos nesse período anterior que precisaremos fazer no futuro?

Hernani: Olha… permanecendo numa dimensão semântica de palavras, acho que a palavra que mais circula hoje no Brasil é “ódio”. E o contraponto a essa palavra só pode ser “tolerância”. Então você tem que utilizar os acervos audiovisuais pra entender as raízes do ódio, a possibilidade da tolerância, pra entender que existem outras formas de viver em sociedade. Pensar isso a partir do audiovisual não só é uma tarefa necessária mas pode ser uma tarefa muito importante porque, usando uma palavra que o Fabian falou, de uma maneira geral, o audiovisual lida com “sensibilidade”. Mais do que com racionalidade.

            Às vezes é muito mais significativo ver o Grande Otelo cantar o Malvadeza Durão no Rio Zona Norte do que assistir um discurso contra o racismo, o que é absolutamente necessário, importante, etc., mas não dá conta da empatia necessária com outro. E um filme como esse dá conta. Eu acho que tem aí uma reserva de valor nos acervos que o Brasil conseguiu salvar e preservar que é justamente reconhecer que existem sensibilidades na nação brasileira que tão sendo postas de lado em função de uma que é muito raivosa, que é muito intolerante e injusta, que é muito, inclusive, eugenista, no pior sentido da palavra e que não nos serve, né?

            O que adianta uma nação conflagrada e baseada no ódio se isso vai significar um inferno de vida pra todo mundo? Não é só pro lado que acha que está por cima da carne seca, que acha que é vitorioso, que está no poder. É infernal pra todo mundo. E outra coisa: o que faz o ser humano, humano? Essa dimensão é alguma que o cinema perseguiu de forma muito forte ao longo do século XX porque ele é contemporâneo das guerras mundiais, dos genocídios, das bombas atômicas, ele é contemporâneo de grandes horrores e de grandes tragédias, então de alguma maneira, o cinema, talvez das artes, foi aquele que mais profundamente tentou lidar com a sensibilidade do seu público.

            Eu acho isso um ativo, pra falar um termo econômico, que foi preservado e que é de um valor incomensurável. Assistir aos filmes mais antigos pode te trazer grandes surpresas e de repente você perceber que a sociedade era conflituosa, sempre foi, mas ela tinha um grau de tolerância que desapareceu por completo nos últimos tempos. Sob esse aspecto é possível caminhar de uma forma consciente, resolvendo conflitos, opressões, intolerâncias, mas também resgatando sensibilidades que unia o sambista branco do asfalto ao sambista negro do morro. Como é que você troca essas divisões de mundo, essas ferramentas de criação? Como você gera uma expressão extraordinária do ser-brasileiro, de viver nesse país, que hoje está muito esquecida ou até mesmo perdida? Tem aí um valor pra esses acervos que não é só o valor instrumental da pesquisa, da história, etc. é o valor da arte. De como a arte pode impactar uma sociedade.

            A gente lembra de como uma reivindicação se torna clara e única quando em vez de ouvir os discursos você ouve uma canção, né? Eu lembro muito da história das Diretas Já e quanto a canção do Wagner Tiso e do Milton Nascimento se transformou de uma canção instrumental, a uma canção com versos, em hino pelo fim da ditadura, pelas Diretas Já, aquela coisa toda… a canção, uma simples canção, foi muito mais potente do que um certo conjunto de discursos que eram necessárias, mas que, eventualmente, eram muito formais ou muito estritamente políticos e não tinham essa dimensão de sensibilidade que a canção trazia, trouxe e se tornou uma peça histórica fundamental nesse sentido e revelou aí o quanto as pessoas, de fato, compreenderam tudo aquilo.

            Então a arte tem esse poder porque joga com as sensibilidades e, nesse sentido, não precisa ser uma arte contemporânea. Você pode ter um filme de 10, 50, 100 anos atrás e ele ter esse mesmo poder, ou até maior, porque ele reencontra ali o seu diálogo, às vezes de maneira mais forte num momento contemporâneo do que lá no seu contexto de criação.

malvadeza durão

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

[3] Em 2003, o governo australiano propôs incorporar a NFSA ao Australian Film Comission, retirando a autonomia do órgão, buscando instrumentalizar o acesso aos arquivos ao mesmo tempo em que colocava o trabalho de preservação em segundo plano. Ray Edmonson escreveu sobre a história do NFSA em sua tese de doutorado. Disponível em: https://www.academia.edu/6375596/National_Film_and_Sound_Archive_the_quest_for_identity

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte I – O Estado das Coisas

Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

O Estado das Coisas

Mais uma vez, eu e Thiago fomos encontrar o Hernani, conservador chefe da cinemateca do MAM, para conversar sobre preservação cinematográfica. O assunto virou mais que corriqueiro entre nós – temos alguns projetos/séries/filmes em desenvolvimento sobre isso – mas da última vez que efetivamente registramos e publicamos um debate sobre o tema foi em julho de 2013, pela Revista Cinética. Lá, como agora, estávamos diante de um período político não só turbulento, mas paradigmático – lá, as ruas que transformariam o reinado democrático institucional num eterno fracasso de governabilidade; agora, uma pandemia mundial que, nacionalmente, começa a naturalizar dezenas de milhares de mortes e conflagra a necropolítica como status quo. Nesse ínterim, a Cinemateca Brasileira e todo o setor viviam um processo de possível reestruturação.

Em 2013, após anos de luta, os profissionais da área de preservação, via Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), finalmente conseguiram estabelecer um canal de diálogo com o Ministério da Cultura, abrindo a perspectiva para a criação real, e efetiva, de uma Política Nacional de Preservação Audiovisual.

Havia ali um aparente “corte histórico”: seguindo um modelo político desenvolvido para a produção de cinema no Brasil que se espraiava fora do eixo Rio-São Paulo, os arquivos menores espalhados pelo país pareciam finalmente ganhar consideração pública. A Cinemateca Brasileira poderia manter sua grandeza, mas a ideia de descentralização – começada pelo ex-ministro Gilberto Gil e fortalecida pela criação da ABPA – parecia ganhar terrenos sólidos.

No entanto, os anos seguintes à nossa entrevista evidenciaram que, muito embora todas as lutas e conquistas obtidas àquela altura, de uma hora para outra, tudo pode se esfacelar ou desmanchar-se no ar. A crise eterna em que o país mergulhou pós-golpe refletiu num descaso evidente em relação às questões culturais e de preservação do país, sendo o incêndio do Museu Nacional certamente o grande símbolo-consequência deste tipo de política do descaso e distanciamento.

Hoje, a Cinemateca Brasileira tem um orçamento anual de R$12 milhões, mas não recebe esse repasse do governo desde o final do ano passado. Os funcionários, que não recebem desde abril deste ano, entraram em greve. Existe um dado material muito elementar em relação a natureza da preservação de filmes: o nitrato de celulose, usado pela indústria até os anos 1950 é um material altamente inflamável e sujeito à autocombustão. A partir do momento em que a conta de energia não é paga e, assim cortada, cada dia sem um incêndio de altas proporções torna-se um pequeno milagre.

Devido à pandemia que nos assola, o encontro dessa vez se deu de forma virtual. Foram quase três horas de um domingo, dia 31 de maio de 2020. Ela será publicada aqui na Multiplot em três partes impressas e em vídeo. Falamos sobre essa situação emergencial específica da cinemateca, sua relação com a história, mas também sobre o século XXI que se reorganiza diante de nossos olhos, além, é claro, do problema da memória, do direito ao passado e de um horizonte amnésico. (Fabian Cantieri)

I – O estado das coisas

Fabian: A ideia de ter essa conversa partiu de uma imagem que me veio há umas semanas e que eu acho que não é só minha: a Cinemateca Brasileira em chamas. Isto se deu por conta da verba anual que não foi repassada à instituição. Ao mesmo tempo, a ideia de crise é algo que permeia a história da Cinemateca. Se não vem desde sua criação, pelo menos desde o incêndio de 57, com um Paulo Emílio Salles Gomes, um dos seus fundadores, já um tanto desanimado, tentando reerguer aquilo de novo até chegar, mais recentemente, em uma entrevista contigo para a Contracampo em julho de 2000, onde você abria com a frase “a cinemateca vive hoje um período delicado”. Queria entender com você qual o grau de possibilidade de um Museu Nacional 2 na Cinemateca Brasileira e a diferença de hoje.

Thiago: Queria apenas complementar que a entrevista que fizemos em 2013 com você, Hernani, se, por um lado, ela marca o início de uma crise dentro da Cinemateca Brasileira que persiste até hoje, do outro, ela apontava para um horizonte até relativamente otimista de uma aproximação da ABPA – e o conjunto de profissionais de preservação – junto ao MinC, terminando até com uma certa ideia de que finalmente teríamos uma Política Pública de Preservação Audiovisual. Então, se de um lado gostaríamos de entender essa história cíclica das crises da Cinemateca, também queríamos entender o que aconteceu de 2013 para cá.

Hernani: Não é pouca coisa que vocês estão colocando já de início. É um assunto que para ser compreendido de uma forma mais adequada precisa ser esmiuçado, tanto historicamente, quanto em termos estruturais, quanto em relação a existência ou ausência de políticas públicas relacionadas com a área de preservação audiovisual, eventualmente com o caso específico da Cinemateca Brasileira. Existe aí um componente chave para se entender tudo isso que é natureza do trabalho de preservação audiovisual e suas implicações, que num primeiro momento aparentemente são meramente técnicas, ou seja, se trata de um trabalho de conservação física de um conjunto de documentos. Este conjunto de documentos, com o tempo, adquire o status de patrimônio histórico, artístico e cultural. Estamos falando aqui do patrimônio audiovisual brasileiro, já que, não só a Cinemateca Brasileira, mas o conjunto dos arquivos audiovisuais brasileiros conseguiram incorporar e conservar uma parcela significativa deste patrimônio. Este patrimônio teve perdas significativas, sobretudo na primeira metade do século XX. Mas conseguiu, em alguma medida, ser conservado – já na segunda metade do século XX – inicialmente, pelo menos, pelas duas cinematecas que apontaram ali, primeiro a Cinemateca Brasileira, surgida em 1946, depois a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, surgida em 1955. E, com o tempo, uma série de outras instituições museológicas, arquivísticas, uma série de outras instituições de guarda de materiais audiovisuais – sejam os próprios filmes, não importando aí o suporte que se esteja considerando, a película, o suporte videomagnético analógico, ou já o eletroeletrônico, que a gente conhece como digital, as mídias óticas. Além dos filmes, considerando que também há uma série enorme de outros materiais relacionados aos filmes e que também precisam ser conservados, por que fazem parte intrínseca deste patrimônio, desta memória, indo desde os roteiros até fotografias, documentos de produção, aos documentos relacionados aos artistas e técnicos, enfim, tudo isso forma um grande patrimônio que foi sendo organizado, acumulado, foi se assentando aí numa série de instituições e que tem, talvez, na Cinemateca Brasileira o maior símbolo, seu maior emblema, porque é a mais antiga, é a mais importante, é a que tem o acervo mais significativo. É aquela inclusive que foi atravessada em sua história por estes momentos delicados que o Fabian mencionou aí em relação à entrevista da Contracampo. Que significa muitas crises, momentos dramáticos e que chegam neste momento de maio passando a junho de 2020 em mais uma situação terrível porque há um conjunto de elementos que colocam em risco novamente a instituição, o acervo e a preservação do que está dentro da instituição.

            Qual é a questão maior? Se num primeiro momento, a questão da preservação é uma questão técnica, ou seja, estes objetos precisam sobreviver fisicamente, e sobreviver por dezenas, centenas de anos, isso implica num investimento que não é pequeno, que não é simples, que é continuado e que, a rigor, se multiplica à medida que os acervos cresçam. São investimentos do ponto de vista da climatização, ou seja, do controle de temperatura e de umidade para que você estabeleça esses materiais, esses suportes, para dar longevidade a eles. Uma película cinematográfica, como era típica no século passado, você precisa às vezes de reservas técnicas que trabalhem próximas do zero grau, tenha uma umidade em torno de 20 a 40 por cento, que tenha toda uma localização geográfica, uma série de estruturas de prevenção, que também não são simples, não são fáceis, que não pode colocar este espaço pendendo para um incêndio ou um alagamento, ou terremoto, ou uma coisa que, enfim, possa colocá-lo em risco e ele ser afetado de forma muito profunda, por algum sinistro que aconteça em função de uma não previsão, de um não investimento correto na manutenção e na conservação de tudo isso.

            Ora, a dimensão disso em si já é muito cara, porque são processos complexos, são processos que eventualmente demandam um tipo de intervenção e de escala muito grandes, as reservas técnicas são muito grandes, a estrutura que tem dentro delas, às vezes, pela vastidão, pelo caráter massivo do acervo são muito caras – coisa óbvia e boba, estantes: as vezes para você, enfim, mobiliar uma reserva técnica de 600 metros quadrados, com uma estanteria adequada que não sofra corrosão, você gasta em torno de 200, 300, 400 mil reais. De uma maneira muito pontual e de uma questão que parece anódina: “ah, estantes”. Mas não é uma estante qualquer, não é uma estante no mercado disponível a baixo custo. Isso para dar um exemplo bobo, na verdade, a estrutura em si é muito maior do que isso e ela acaba se tornando muito cara. E isso significa que, quando você constitui uma instituição desta natureza, você tem que prever aportes financeiros contínuos de grande porte e que tendem a sempre aumentar com o tempo, na medida em que o acervo aumenta, e eventualmente você tem novidades pelo meio do caminho com foi o caso da passagem, por exemplo, do suporte fotoquímico, em película, pro suporte digital. Como os materiais digitais da atualidade não tem uma capacidade intrínseca de durabilidade maior, eles não sobrevivem ao tempo como a película, isso significa ter toda uma outra estratégia de preservação igualmente custosa, que é igualmente complexa, cara, e isso sem falar em aspectos, como, por exemplo, o pessoal, os técnicos treinados, uma infraestrutura de catalogação e conhecimento destes acervos. Enfim, se tudo isso não caminhar junto, você tem um trabalho sempre abreviado, ou aquém, do próprio conhecimento do acervo que a constituição guarda. Dar conta disso num nível adequado é realmente cada vez mais caro. E isso, de uma maneira geral, levou a maior parte das instituições a se colocarem dentro do universo do Estado.

            Estado é aquela instância que, de fato, possui capacidade financeira para sustentar um trabalho continuado em dezenas e dezenas de anos, e eventualmente, digamos assim, absorver melhor os impactos que este universo, que esta atividade tem e conseguir dar respostas mais adequadas e rápidas para isso. Aqui talvez a gente chegue no ponto chave em que as coisas não andam tão bem, apesar de todos os esforços que, sobretudo, as instituições em si e, principalmente seus corpos técnicos, fazem em prol deste trabalho, deste resultado, muitas vezes conquistando ações muito meritórias a despeito das deficiências que, enfim, o trabalho em si carrega, e às vezes até a despeito de investimentos financeiros mais significativos. O ponto chave, o ponto nodal, é esta relação Estado e a atividade, o campo da preservação audiovisual, e o quanto o Estado fez relativamente muito pouco pela atividade, começando pelo reconhecimento dela.

            Você mencionou, Thiago, que em 2013, pela primeira vez chegávamos a uma situação de diálogo com o poder público federal no Brasil, a uma situação que criava ali a possibilidade de você apresentar – vindo da sociedade civil, dos profissionais de preservação audiovisual, através de uma entidade, que é a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) – um Plano Nacional de Preservação Audiovisual. Abria-se um diálogo neste sentido. E, inclusive, a pessoa que encarnou esta abertura faleceu semana passada, o Leopoldo Nunes. Então, ali, na gestão que o Leopoldo teve à frente da Secretaria do Audiovisual – que é uma gestão hoje muito criticada, sobretudo, pelos reflexos em torno da Cinemateca Brasileira – foi uma gestão muito importante para esta abertura de diálogos e para pensar a necessidade, por exemplo, de um instrumento como esse que é um instrumento legislativo a rigor. Quando você de fato incorpora na legislação o reconhecimento do campo, das instituições, dos profissionais, da atividade em si, você cria condições para, no momento seguinte, gerar ações concretas advindas do governo federal, para você, por exemplo, financiar projetos, até financiar as instituições, incorporá-las ao orçamento regular da União, e aí poder dar uma sustentação mais consistente para este trabalho.

            Este contato que aconteceu em 2013, no bojo, inclusive, de um momento de grandes agitações e transformações, não só da preservação, mas da própria vida brasileira, da sociedade brasileira, a partir ali das famosas Jornadas de Junho, significaram em vez da concretização das expectativas que se tinha ali, uma mudança radical no sentido exatamente oposto: a grande maioria dos trabalhos, projetos, discussões, debates, que visavam encaminhar e aprofundar uma certa ideia de sociedade brasileira, uma certa ideia de cultura de patrimônio, uma certa ideia de preservação audiovisual no Brasil, foram caindo em uma espécie de limbo, e foram sendo continuamente colocadas de lado pelos novos donos do poder. A gente sabe que a história brasileira dos últimos cinco anos é uma história marcada por um golpe, no fundo legislativo, por um impeachment da presidente da república, a Dilma Rousseff, por um afastamento radical do Estado Brasileiro do universo da cultura, não só de um reconhecimento formal desse campo, mas de manutenção de instrumentos de fomento, de uma paralisação de uma série de atividades no campo, e a área do cinema foi particularmente muito atingida por isso. E aí nesse processo todo, você pode dizer que esta área – que já tem necessidades muito específicas, que precisa de grandes recursos financeiros, que têm comprometimentos técnicos muito fortes e muito dramáticos – enfrentou um novo contexto que era de simples esvaziamento. Um esvaziamento que às vezes é quase total da relação do Estado com o campo cultural de uma maneira geral e com o campo da preservação audiovisual de uma maneira mais específica.

            Acho que um exemplo maior desta crise que se instaura entre o Estado brasileiro e o campo cultural, pode ser percebido na trajetória e no atual momento da Cinemateca Brasileira. Em que sentido? Em 2013, ela teve a sua direção alterada e nos momentos seguintes teve crescentemente esvaziado as suas condições de trabalho, em especial, o seu corpo de funcionários. Uma das medidas inclusive tomadas no ano passado foi esvaziar os funcionários de carreira, os funcionários concursados da instituição, que foram reenviados para seus órgãos de origem. Então, pessoas que estavam ali há vinte, trinta anos, de uma formação técnica muito específica e de grande experiência, simplesmente foram dispensadas a rigor, de um momento pro outro, sem nenhum tipo de preparação, justificativa. E você ampliou muito fortemente esse esvaziamento, por exemplo, do corpo técnico, que já se fazia sentir desde 2013.

            Para além disso, quando você começa ou a congelar o orçamento de uma instituição desta natureza, ou a diminuir este orçamento de uma forma muito drástica, até pela própria natureza do trabalho, do tamanho que a instituição alcançou, pela dificuldade crescente de ter menos pessoas para fazer certos trabalhos, você vai comprometendo, seguidamente, setores internos, ações específicas, você vai na verdade criando condições para que haja problemas, para que haja estagnação, e, eventualmente, para que haja inclusive, sinistros como o que ocorreu em 2016, quando uma das casinhas de nitrato da Cinemateca acabou pegando fogo e destruindo mil rolos, ou seja, mil títulos, mil obras que desapareceram e, deste montante, relativamente pouco havia sido duplicado ao longo do tempo. Então, é uma perda real e definitiva, principalmente de cine-jornais, pelo que foi noticiado publicamente. Então não adianta fazer mais nada, não tem mais como recuperar esse material, porque ele não se encontrava mais em lugar algum a não ser ali, e isso tem como resultado concreto um apagamento definitivo da memória brasileira, da história brasileira, da expressão cinematográfica brasileira, e deste ponto não há o que fazer mais. Citando a gíria popular, perdeu, perdeu.

            Isso é um espelho de como essas relações com o Estado, se elas entram numa dimensão muito complexa, muito atritada, em uma relação, inclusive, de rejeição por parte do estado desta tarefa, que lhe cabe inclusive constitucionalmente falando, as instituições sofrem de imediato. Elas vão tendo problemas crescentes, elas vão tendo perdas, elas vão tendo uma espécie de paralisia, que pode chegar nesse momento de colocá-las em cheque, ou até mesmo de botá-las a perder em definitivo – batendo na madeira três vezes – por que isso aconteceu recentemente com o caso do Museu Nacional.

            Especificamente falando do caso da Cinemateca Brasileira, esse era um quadro que já existia há alguns anos atrás, a ação do Governo em 2018 foi de propor uma solução que a maior parte das pessoas não acreditava muito que fosse de fato uma solução, mas houve um gesto concreto neste sentido de colocar a instituições sob gerência de uma organização social, uma OS, ou seja, fazer uma parceria público/privada – o estado entra com recursos e uma entidade da sociedade civil entra com a gestão propriamente dita da instituição. Na prática isso é uma passagem de um órgão público à esfera privada. O que sempre foi muito criticado por que na quase totalidade dos casos, aqui no Brasil, isso não deu certo.

Thiago: Você tá falando da ACERP.

Hernani: Isso. Associação Cultural e Educacional Roquette Pinto. A ACERP assumiu a Cinemateca Brasileira dentro de um contrato com o governo federal. Esse contrato previa ali uma série de direitos e obrigações, e previa, sobretudo, um repasse do recurso financeiro específico pra dar conta do gerenciamento concreto da instituição. Com a passagem ao novo governo, esse contrato, a rigor, chegou ao fim em dezembro de 2019. Não foi renovado. Nunca ficou muito claro pra mim o porquê não foi renovado, qual era a questão para não ser renovado. Mas o que é concreto é que ele não foi renovado. E, a partir desta não renovação, você colocou a instituição novamente, de um lado, em um limbo jurídico enorme – por que ela não voltou de imediato à esfera federal, à esfera pública – e, por outro lado, não foi feito um novo contrato com uma nova organização social. Não foi feito nada.

Isso significou, nesses primeiros meses de 2020, com uma pandemia no meio disso tudo, um crescente estrangulamento da instituição, em termos de sua capacidade de gerenciamento interno, provocado pela falta de recursos, até que isso chegou à imprensa, chegou ao grande público, sob a forma de “não tem dinheiro pra pagar a conta de luz, os salários estão atrasados, e isso pode comprometer as unidades fundamentais de conservação do acervo que estão dentro da instituição. Esse momento acabou, ao longo dessa semana que acabou ontem (30/05/20), numa reunião na sexta feira, e nessa reunião, inclusive, a primeira notícia que veio a público já falava até em fechamento da instituição, por conta desse imbróglio – jurídico, político, econômico, etc. Mais pro final da noite, se falou simplesmente que a instituição finalmente voltaria para a esfera federal, para a esfera pública, e eventualmente isso seria uma resposta para essa crise.

            Pra mim, na verdade, isso não é uma resposta, no sentido mais direto e claro, não se fala exatamente em que termos vai se dar essa volta, nem sei exatamente em que termos a Cinemateca saiu da esfera pública para um contrato com uma OS, para ir para uma parceria público/privado, e esse retorno não se sabe ainda em que termos, em que condições técnico/financeiras, e sobretudo em que condições gerenciais.

            O que está anunciado aí, de uma forma muito tresloucada é a ideia que, uma atriz,  , mas isso inclusive, enfim, dado as alterações jurídicas que a instituição sofreu nos últimos anos, não se tem nem clareza se isso é possível, e isso talvez seja o maior indicador do quanto você desfez todo um entendimento anterior do que era uma cinemateca, do que era um arquivo audiovisual, qual seu sentido, qual era a razão de ser de passá-lo – a Cinemateca Brasileira nasceu privado – mas passá-lo à esfera pública… justamente para garantir essa sustentabilidade.

            Tudo isso ficou tão confuso, se perdeu em grande medida, que hoje isso talvez seja o maior indicativo do quanto a falta de interesse geral do Estado brasileiro, e quanto a maluquice total que é esse governo atual, isso tudo atinge diretamente a instituição. Colocou ela em uma  situação muito difícil, muito confusa, muito perigosa inclusive, e o quanto até o momento você não tem clareza quais são as respostas que serão dadas concretamente, diretamente, para estabilizar novamente a instituição, dar a ela condições de trabalho, viabilizar de fato o que é a sua missão, que é a preservação dessa memória audiovisual.

            E isso, se você estender para o campo da cultura ou mesmo o campo da preservação audiovisual, você vai ver que tem outros casos passando pela mesma situação. Por exemplo, a Cinemateca Capitólio, lá em Porto Alegre, embora não seja de dimensão federal, mas de dimensão municipal, ou tudo que perpassou, por exemplo, a Casa Rui Barbosa, que é um órgão federal de cultura e pesquisa, que também esteve aí sob um fogo-cruzado nestes últimos meses, na medida em que várias dessas instituições de cultura estão recebendo novos gestores que não tem a menor relação com o campo, a menor relação com este tipo de trabalho, e a partir de um entendimento que me parece muito equivocado. Que é aquilo que se concretizou também nas últimas semanas: a passagem deste universo todo que a gente chama de cultura para debaixo do guarda-chuva de um ministério que cuida de turismo[3].

Ou seja, que cuida na verdade, da aproximação de um tipo de cidadão, de um tipo de pessoa, no mais das vezes o seu momento de férias, dos aparelhos culturais, dos aparelhos de lazer, dos sítios naturais, né, para que ele possa ali ter momentos de lazer, de felicidade, disso e daquilo. E que nada tem a ver com instituições de conservação, de pesquisa, de memória, que podem ter uma interface, que podem ter um diálogo com o universo turístico, mas que não é a sua finalidade primeira. O turismo é quase que uma consequência e não uma premissa. Essas passagens de todo esse universo para dentro do Ministério do Turismo pode gerar uma incompreensão muito grande da natureza e da função destas instituições, como que levando o grande público, a sociedade, a crer, que tudo está ali já pronto, tudo está ali já bem conservado, tudo está ali já à disposição, é só chegar lá, pegar e usar. Um pouco um pensamento que o universo da internet, em geral, também tem. Que é só pegar as coisas aí e usar.

            As pessoas não tem ideia que para usar tem todo um trabalho anterior e um trabalho que precisa ser qualificado em grande medida porque tem questões, às vezes, muito complexas dentro desse trabalho e, para além do uso imediato, o objeto precisa sobreviver, pra década e pro século seguinte. Então vira quase uma piada, né? Que tipo de turismo você vai fazer com uma biblioteca como a biblioteca nacional? Que tem essa função de ser uma biblioteca e preservação, que faz depósito legal, etc. Ou que tipo de turismo você vai fazer na Cinemateca, quando, por exemplo, ela não tem uma sala de exibição e basicamente faz conservação física dos filmes? Você não pode ali abrir a reserva técnica, para as pessoas entrarem dentro e verem como é que é. Isso não existe. É tecnicamente incorreto.

            Então, há uma série de erros, há uma série de equívocos, e há algo mais profundo, que é a falta de admissão pela sociedade, pelo Estado brasileiro, da necessidade fundamental, a esta altura de você investir na conservação de acervos audiovisuais, de você chegar de fato a constituir uma memória que a sociedade vai poder, e deve, poder usar mais pra frente.

Fabian: Os gestos são simbólicos, e a implosão de um Ministério da Cultura – o governo dizer “acaba com isso”-  isso já demonstrava uma leitura. E o que parecia, com o [Roberto] Alvim, o antigo secretário de cultura, é que existia uma clara veia de guerra cultural, onde eles estavam assumindo ali um lado. Inclusive, e isso saiu na imprensa, que existiam pessoas militares na cúpula da Cinemateca Brasileira, com uma mostra de Cinema Militar que eles pretendiam exibir. O que exemplifica este ataque – que vem de Olavo de Carvalho, vem do Orvil[4] – da teoria de uma esquerdização das instituições culturais e educativas do país. Agora, uma das encenações mais estapafúrdias recentes foi a de umas semanas atrás, aquele vídeo da Regina Duarte com o Bolsonaro, ela falando “não estou sendo fritada, estou indo para perto de minha família em São Paulo”. E que parece fazer uma coisa que eles sempre negaram, que é o fisiologismo. Que é pegar a pessoa e jogar lá na Cinemateca, tampar um buraco. Parece um pouco que não se importam. Se de um lado, eles estão cagando – então, pode queimar a porra toda – por outro, já demonstraram que a instituição pode se revelar um instrumento para eles. Como você enxerga isso?

Hernani: É difícil de enxergar de pronto, de imediato, em uma dimensão mais ampla. Porque quase sempre tudo que a gente fica sabendo vem via imprensa, mídia…

Fabian: Até por que o processo é meio esquizofrênico.

Hernani: Sim, cada hora é uma coisa, uma fala, uma desmentida. A própria situação de sexta-feira (29/05/20) da Cinemateca Brasileira foi louca, porque sai na imprensa que a opção é fechar. Aí, quatro, cinco horas depois sai uma outra indicação de que, não, ela vai voltar pro Estado. É uma esquizofrenia completa e absoluta. Mas olha, de um lado, em princípio, sobretudo esse governo que está aí, ele veio com essa ideologia de combate ao chamado “marxismo cultural”, “comunistas”, ou coisa que o valha. E elegeu o campo cultural para o espaço privilegiado para essa guerra. Quando há uma manifestação concreta, você fica meio em dúvida de qual é exatamente a natureza dessa guerra, quais são os referenciais que estão sendo postos à mesa, apresentados, etc., porque você vai lembrar no ano passado, do presidente falando mal de Bruna Surfistinha, como um exemplo nefasto do que se faz com dinheiro público no Brasil, e o quanto essas instituições que estariam aparelhadas pela esquerda ou coisa que o valha. Desconhecendo, inclusive, que a maior parte destes órgãos, destas agências, tinham renovado suas gestões aí durante o período do Temer, então, já não tinham nenhuma relação à rigor em termos de gestão com os governos de esquerda do PT. Então, por aí já tem um problema.

            Segundo problema é: Bruna Surfistinha é um filme de esquerda? É um manifesto ideológico do marxismo cultural ou coisa que o valha? E, num terceiro momento, para além de um combate ao aparelhamento da estrutura do Estado no campo cultural, ele era muito dúbio ou muito pouco claro, na medida em que – sobretudo para as instituições de preservação, as instituições de memória – você não tinha um grande interesse de fato por um passado remoto, ou um imediato, porque esse governo trabalha sobretudo no campo digital, no campo das redes sociais, no campo de um presente imediato.

            Ele tem um discurso em relação ao passado. Que é um discurso de resgate de valores ou coisa que o valha. Um discurso que mistura tudo, né? Do positivismo mais arraigado ao marxismo mais tresloucado. Então, é muito pouco clara essa dimensão estritamente ideológica neste novo governo. E não é clara não só no governo, mas em suas matrizes mais imediatas, você pensar no Olavo de Carvalho, e no quanto o pensamento dele é um pensamento estritamente católico. Não é nem cristão no sentido mais amplo, mas católico. E o governo Bolsonaro tem grande apoio no universo evangélico. Então, é um saco de gatos monumental. É difícil tentar entender isso, porque não parece ter muita lógica e a primeira impressão é que realmente são só malucos, esquizofrênicos.

            Então, houve o discurso sim de combater o aparelhamento ideológico dentro das instituições de uma maneira geral. E você viu gestos mais lógicos neste sentido quando se trocou a direção da Casa Rui Barbosa. Mas por outro lado, o que me parece estar no horizonte real deste governo, é muito mais do que um combate ao aparelhamento, é um desprezo. No fundo, eles não sabem para que isso serve, não tem grande interesse em utilizar isso e, se num primeiro momento, ao chegar ao poder, eles distribuíram uma série de pessoas ligadas ao governo dentro dessas instituições, como foi o caso do militar que foi trabalhar na Cinemateca Brasileira, que chegou publicamente propor uma mostra de filmes militares como um símbolo dos novos tempos, da nova orientação, de uma agenda que seria uma agenda de fortalecimento ideológico.

Fabian: que não vingou, né…

Hernani: Não, não aconteceu. Por isso que, em parte, eu estou dizendo que se era uma agenda de combate, uma agenda de reaparelhamento, do Estado e de suas instituições, seus órgãos, a certa altura, foram percebendo que não só eles não tinham um projeto real que envolvesse o passado, como não tinham um interesse concreto por ele – já que o desprezo pelo campo cultural era amplo, geral e irrestrito. Era muito mais fácil encerrar certas coisas, suspender a Lei Rouanet, paralisar o Fundo Setorial, sugerir o fechamento desse ou daquele órgão, do que estabelecer uma agenda de trabalho no campo cultural. Essa agenda de trabalho no campo cultural, por mais ideologicamente perversa que ela pudesse ser, no meu olhar ela não existiu, ela não foi construída.

Fabian: Dá trabalho, né? Construir essa história paralela.

Thiago: E a maneira como você fala, Hernani, nos indica que há um corte. Especialmente quando se pensa essa relação entre memória, ou cultura, e turismo. Então, me parece que o caminho que está se dando é um caminho de amnésia. Talvez relativamente suicidário, para usar um termo que tomou fôlego nos últimos meses, um caminho de destruição e isto não me parece que é sem querer.

Hernani: Olha, eu acho que – e isso é uma impressão, falta tempo, falta distanciamento, falta base para uma reflexão maior – mas que esse corte, essa ruptura entre cultura e turismo, entre uma dimensão de formação e uma dimensão de mero uso, sobretudo, digamos assim, financeiro. O turismo é uma grande indústria econômica, mas ele não tem, a não ser de uma maneira muito acessória, um foco maior na formação do cidadão ou coisa que o valha. Então, eu acho que o que se percebe é que a antiga guerra ideológica, ela passava muito por uma instância, por um espaço, por uma instituição, que era a escola. Você tinha sempre muita discussão em torno do que você vai deixar a criança ler, o jovem ler, o universitário ler ou não. E você vai ter exemplo pontuais aí dessa guerra cultural passando por esse espaço. Por exemplo, a coisa do chamado “kit gay”, que seria distribuído pelas escolas, invencionice ali dos setores mais conservadores – você está dentro de uma dimensão clássica de discussão política-ideológica.

            Mas com o tempo, e sobretudo a partir da eleição de 2018, onde a coisa das redes sociais e das fake news funcionaram, elegeram essa galera, eu acho que houve uma percepção que o canal de comunicação não passa mais por uma estrutura formal, por uma estrutura longa, como por exemplo, o trajeto escolar. Se passa agora por uma comunicação imediata.

            Nesse sentido, porque você vai manter estruturas que serviam à escola? Manter documentos que tem que ser pesquisados, pensados e trabalhados num certo discurso publicados em livro e depois oferecer isso a professores e alunos como uma base pra reflexão e formação? Acho que a ruptura é muito mais ampla do que a gente imagina porque a própria ideia de memória no meio disso tudo talvez comece a ser percebida como dispensável por esses grupos, por esse universo conservador.

            E você veja, o pouco empenho em tentar reconstituir alguma coisa que funcionasse de forma semelhante ao Museu Nacional, dispensar alguma preocupação com a perda histórica que ocorreu ali, que pode ter sido uma perda de objetos, mas não exatamente uma perda de informação porque parte da informação que estava lá já havia sido trabalhada, de alguma maneira colocada em outros suportes e lugares, mas a instituição funcionava como um símbolo dessa dimensão histórica brasileira que vinha lá do período colonial, atravessava o período imperial e chegava aqui no presente.

            Tinha uma dimensão que voltava lá para o passado remoto do continente americano, das nações indígenas, com os animais, com todo o trabalho arqueológico que o Museu Nacional desenvolvia… houve algum esforço de você recolocar isso numa dimensão simbólica que mantenha a ideia da história, do passado, da memória pra população em geral? Não. Eu não vi nenhum esforço nesse sentido e quando surgem proposições como essas “não vamos mais fazer cinema no Brasil, pra que? Melhor fechar a Ancine” ou “não, não vamos mais levar uma instituição como a Cinemateca Brasileira adiante, talvez seja melhor fechar”, o simples fato que alguém pensou isso, que colocou isso numa reunião pra mim é indicativo do quanto isto está no horizonte dessa galera, o quanto eles tenham começado a perceber que “não precisa mais reunir o passado e dar uma releitura própria, mesmo que seja uma leitura muito enviesada e equivocada” para eventualmente ter aí um processo de construção de uma identidade nacional mais conservadora, o quanto essa guerra cultural que eles indicaram existir e resolveram fazer há alguns anos, não vem só da eleição pra cá, indica uma necessidade pouco clara de manter essas bases antigas.

            Então se você não precisa das instituições de cultura, se elas são um estorvo, se elas são um antro de comunistas, são sorvedoras de dinheiro, se elas não tem sentido, bom é mais fácil acabar com elas ou o que é menos comprometedor do ponto de vista político, simplesmente deixá-las à própria sorte. Você não fecha a porta oficialmente mas você também não cuida mais dela, não manda os recursos necessários, empurra com a barriga e óbvio que aquilo vai morrendo por inanição ou por falta de ação. O risco que se corre no Brasil atual, não só em relação ao cinema, mas de forma geral é esse: desprezar o valor da cultura, da memória, ter uma política pública que é uma não-política, ou seja, “não vamos fazer nada” e aproveitar isso de uma forma anódina.

            Aquele vídeo da Regina Duarte com o Bolsonaro tem algumas características que revelam aí essa falta de compromisso: primeiro que ele não é uma fala formal num espaço formal – não é dentro do Palácio da Alvorada, é ali na rua, na esquina, como se fosse uma conversa informal… quer dizer, você não está entronizado seu cargo na sua responsabilidade, você tá falando como um amigo, como um conhecido então a atriz pode perguntar: “você tá me fritando ou não?” e ele responder “claro que não, ainda vou te dar um presente – do lado do seu apartamento você vê a Cinemateca Brasileira então ó, é o órgão perfeito pra você ficar ali em São Paulo, na sua casa e não ter muito trabalho e tá tudo bem”. [5]

            Em nenhum momento, se discute o que é cinemateca brasileira, o que implica esse trabalho, qual a responsabilidade envolvida e não se dá a dimensão de seriedade pública que é fazer isso dentro dos rituais e espaços tradicionais, dentro da compreensão de que aquilo ali é uma coisa pública, uma responsabilidade do funcionário público, o presidente e a secretária de cultura são funcionários públicos e, portanto, devem satisfações a sociedade brasileira, eles não podem fazer o que quiserem tirando da cachola se vão ou não cuidar.

            Então o vídeo já é revelador da falta de compromisso. Não há compromisso ali com nada, nem com o país, nem com a memória do país, nem com o trabalho em si. O que rola é algo constrangedor, de alguém que quer desfazer uma imagem pública extremamente negativa mas é evidente que ela não só foi “fritada” como cuspida fora do governo e a partir desse episódio você tem uma apreensão do destino da cinemateca brasileira: se a tentativa de resolução começa dessa maneira, talvez a tentativa seja não resolver. E uma semana depois você chegar nesse comentário de “então fecha” parece o desfecho natural dessa falta de compromisso e do descalabro público que o país vem vivendo.

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

[3] Na última sexta-feira (19 de junho de 2020), o ator Mário Frias foi nomeado para o cargo de Secretário Especial da Cultura, em substituição à atriz Regina Duarte que deixou o cargo há um mês. Com a extinção do Ministério da Cultura, a Secretaria Especial da Cultura atualmente encontra-se incluída dentro da pasta do Ministério do Turismo.

[4] O livro secreto do Exército é uma Doutrina de Segurança Nacional que conta o que seria “a verdade” sobre a luta armada promovida por organizações de esquerda, entre 1967 e 1974 e que traz a ideia interna de que o inimigo deve ser eliminado.

[5]  Na saída de Abraham Weintraub do Ministério da Educação no dia 18/06/20, a encenação já pareceu mais protocolar, filmada dentro do Palácio da Alvorada, com um presidente aéreo provavelmente por conta da outra grande notícia do dia – a prisão de Fabrício Queiróz – e um outro cargo oferecido “de presente: depois da cinemateca, agora o Banco Mundial.

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Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

***

Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

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Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

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O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

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Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

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Pode até ser que isto seja um grito

Por Lucas Saturnino

Saturnino1AntesTexto
Contes de juillet (Guillaume Brac, 2017)

Como imaginar o porvir em um país sem futuro?

(Jean-Pierre Bekolo, Les saignantes)

Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada

(Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento)

 

A linha-mestra de Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar, de Frank Beauvais, 2019) é um monólogo autobiográfico de Frank Beauvais — o narrador, protagonista e diretor. Em tom confessional e memorialístico — procedimentos muito caros à literatura contemporânea —, Beauvais disserta sobre cerca de 7 meses que passou isolado em uma aldeia na Alsácia, para onde havia se mudado com um ex-namorado e onde permaneceu após o término da relação.

Psicologicamente estagnado e vivendo como um ermitão, Beauvais isola-se ao extremo, reduz qualquer possibilidade de contato social ao mínimo e passa a assistir 4, 5 ou mais filmes ao dia, donde são originárias as imagens de Ne croyez…, obra inteiramente composta por excertos dos mais de 400 filmes vistos por ele no período.

Ne croyez… tem sido descrito como um filme sobre cinefilia — sua premissa não é de difícil identificação para uma plateia de cinéfilos, críticos, curadores etc. No entanto, Ne croyez… é tanto uma obra sobre cinefilia quanto sobre tecnologia e isolamento — e individualismo? —: ser capaz de baixar filmes e vê-los a sós em casa, fazer dinheiro vendendo coisas na internet — desempregado, é sua fonte de renda ocasional — e ir vivendo enquanto continua a ignorar os vizinhos e o contato social em geral.

O que fazer — quarentenado — durante uma pandemia? Ver filmes? Ver muitos filmes? Ver não apenas muitos filmes como especificamente os filmes que queres ver, tendo acesso a inesgotáveis bibliotecas — peer-to-peer, em especial — online? Tão óbvio quanto esquecível, isso só é possível com determinada tecnologia. Assim, Ne croyez… é o testemunho duma forma contemporânea de se consumir de arte e entretenimento.

Beauvais retrai-se radicalmente em resposta a — ou como sintoma de — uma sociedade doente. Para além da corrosão generalizada das relações interpessoais, há o preço dos aluguéis em Paris e os ataques terroristas que se sucedem na França entre 2015 e 2016. Longe de tudo, as notícias chegam a Beauvais — e a nós espectadores — com certo ar de irrealidade. Enquanto assistimos às imagens de uma vasta e eclética biblioteca cinematográfica, ouvimos-lhe comentar sobre o ataque terrorista em Nice.

Contudo, sem poder ver para crer, imersos na sedução estética dos excertos que nos sugerem outros filmes e outros mundos, torna-se difícil dimensionar o ataque referido — para os cinéfilos, existe um conforto, uma familiaridade, naquele fluxo visual.

Pensemos em Hanne e o Feriado Nacional, um dos médias-metragens que compõe o belo díptico Contes de juillet (Contos de Julho, de Guillaume Brac, 2017). Num dia vadio de verão — 14 de julho de 2016, Dia da Bastilha e data do ataque em Nice —, os jovens personagens bebem, flertam, divertem-se e fortalecem até que quebram laços de amizade.

No final, Hanne, bêbada, após brigar com a amiga por causa de homem, chora sozinha na cozinha do alojamento universitário. De repente, junto ao cair da noite e aos fogos do 14 de julho, surge o sorrateiro som do noticiário comunicando o ataque terrorista em Nice. Enquanto os personagens gozavam do ócio que dá sabor à vida, a morte dava as caras por aí. A qualquer momento, uma notícia poderá irromper inadvertidamente no cotidiano: um ataque terrorista, um novo vírus, um golpe de estado, uma invasão alienígena. Em 2 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à Rússia e Franz Kafka foi nadar, etc.

Diz a clássica metáfora que o cinema seria capaz de fazer o espectador viajar —transportá-lo-ia para outras realidades, outras peles. Beauvais, porém, compara filmes a curativos, ataduras. Assim são os cinéfilos calejados: entendem demais do riscado para conseguirem vê-lo inocentemente — ora guardiões, ora túmulos de ilusões. Para ele, os filmes, acumulando-se, funcionariam como analgésicos — um cine-narcótico, sedativo e aditivo, frente à nação convulsiva.

Não é uma lógica semelhante — a da saturação — que anestesia o peso das tragédias? Elas vão ocorrendo, sendo noticiadas e se acumulando. Beauvais abre o computador, vê a notícia do ataque terrorista, pondera que não conhece ninguém em Nice e vai dormir.

Ansiando por outra coisa, Beauvais põe-se a assistir antigos filmes da Alemanha Oriental e da URSS à procura de personagens que questionavam seu papel na sociedade, enquanto lutavam para construí-la. O compromisso comunitário: o que terá sido feito dele?

Em decorrência do isolamento autoimposto, ele confessa que pegou o costume de só ir ao supermercado uma vez a cada dois meses. Em 2019, isso soava como um exagero, indício irrefutável de que Beauvais não andava em seu melhor — o brasileiro, por sua vez, talvez se lembrasse do hábito, causado pela inflação, das “compras do mês”.

Cá estamos, entretanto, em 2020, espaçando as idas ao mercado… Terá Ne croyez… adquirido contornos — por que não — singelamente proféticos? O que vem e o que veio é muito pior e incerto, então permitam-me o ensejo para uma digressão cinematográfica ao ocaso de duas sociedades muito diferentes, embora originárias do mesmo lugar:

Há muitas formas de se fazer um filme em uma sociedade prestes a desaparecer, frente a um apocalipse particular iminente. Por exemplo, Veit Harlan fez Kolberg (1945) — o mesmo Harlan que viria a ser julgado por crimes contra a humanidade devido ao seu envolvimento na máquina de propaganda nazista. Kolberg, a última superprodução do Terceiro Reich, narra — manipulando os fatos segundo os ditames da propaganda — a resistência suicida da pequena cidade de Kolberg contra o exército napoleônico.

Imoral ao extremo, o objetivo de Kolberg era convencer os espectadores de que a Alemanha não deveria parar de lutar, mesmo que a guerra parecesse perdida, conclamando-os a perseverarem até morrer, cumprindo assim o desejo/impulso de morte — suicida — que está na base da ideologia nazifascista. Pois o horizonte nazifascista é a aniquilação, nem que seja a autoaniquilação, e daí também o fetiche sacrificial.

Goebbels mobilizou cerca de 187 mil soldados para atuarem como figurantes. E quis realizar a première em La Rochelle, das últimas bases sob controle alemão em uma França em processo de libertação, onde uma cópia do filme teria sido insolitamente jogada de paraquedas. Quando os soviéticos tomaram Kolberg, Goebbels omitiu essa informação do público, temendo que o potencial inspirador do filme fosse prejudicado pela realidade.

Harlan busca transformar a aniquilação da cidade resistindo ao invasor em algo belo — Kristina Söderbaum, embalada por sinos e canhões, acariciando loiros cabelos infantis, enquanto canta e chora a incineração da Heimat —, como se o sacrifício encontrasse sua razão de ser no espetáculo audiovisual do canhoneio e na representação do povo — uma massa magnética e acima de individualidades — como repositório da energia belicamente sexual da nação. A catarse resultante seria a maneira de seduzir o público a aderir a uma luta fadada à morte. A imoralidade no cinema poucas vezes terá ido tão longe.

Os cinemas mantiveram-se abertos até a rendição ou bem perto dela. Goebbels julgava-os essenciais, uma “necessária distração”, pois seria necessário que o povo tivesse onde desanuviar. Conforme os bombardeios iam destruindo o circuito exibidor, teatros e outros estabelecimentos eram transformados em cinemas. O Tauentzienpalast, a primeira sala a exibir Kolberg em Berlim, não terminaria a guerra de pé.

Depois do fim, depois de Kolberg, restam as ruínas. É nas ruínas, das ruínas, que surgirá o cinema da Alemanha Oriental: com narrativas de perda, culpa coletiva e reconstrução nacional como Die Mörder sind unter uns (Os Assassinos Estão Entre Nós, de Wolfgang Staudte, 1946). E o que começa em ruínas morais e concretas, terminará em ruínas simbólicas — retratos de uma sociedade estagnada e estagnante: a utopia fossilizada.

Andreas Voigt documentou, na linha de frente, o colapso do comunismo na Alemanha. Em Leipzig im Herbst (Leipzig no Outono, 1990), realizado em conjunto com Gerd Kroske, Voigt registra as manifestações de massa nos meses que antecederam a queda do Muro, o momento em que o povo vai abandonando o regime e a inépcia do Estado em reestabelecer um diálogo, um pacto de confiança e governança com os cidadãos.

A câmera de Voigt permaneceria em Leipzig nos anos seguintes, documentando a convulsão social subsequente ao fim do comunismo. Glaube, Liebe, Hoffnung (Fé, Amor, Esperança, 1994) é possivelmente o primeiro retrato cinematográfico da ressurgência da extrema-direita na Europa pós-1989. O filme deixa implícito um motivo até simples: a vida dessas pessoas é uma merda e por acaso alguém se importa com elas?

Antes, em Letztes Jahr Titanic (Ano Passado Titanic, 1991), Voigt acompanhara diversos moradores de Leipzig entre os dezembros de 1989 e 1990, ou seja, entre a queda do Muro de Berlim (09/11/89) e a reunificação da Alemanha (03/10/90). Letztes Jahr Titanic retrata um período composto por incerteza, desconfiança e esperança. O tempo parece simultaneamente suspenso e acelerado. Sobre imagens desamparadas — angustiadas, à deriva, esperando —, paira o fantasma do desemprego. O porvir lhes obsoletará, tirando-lhes a subsistência, ou lhes dará oportunidades para melhorar a qualidade de vida?

A jornalista Renate confessa seus sentimentos conflitantes: está alegre em ver renovado o seu horizonte de possibilidades, mas crê não ter futuro profissional ou social, sentindo medo e vontade de desistir. Renate havia colaborado com a Stasi (a polícia política) após ser estuprada e chantageada por um oficial. “Com um passado desses, não há futuro”, diz. Muitos pararam de cumprimentá-la. “Quando deveríamos ou poderíamos ter sido mais espertos lá atrás? O meu ideal de sociedade parecia realizável na Alemanha Oriental”.

A jovem gótica Isabel comprou uma arma após passar a ser constantemente assediada por grupos de extrema-direita. Tentam agredi-la, ameaçam cortar-lhe o cabelo ou queimá-lo. “De onde vem essa violência?”, Voigt pergunta. “De tudo o que aconteceu”, ela responde, “A merda toda. Por conta da reunificação […] As coisas estão ficando mais conservadoras […] Eu terei que me conformar, mudar o meu estilo […] usar roupas normais”.

— “Como você quer viver no futuro?”

— “Não sei. Não faço ideia. Eu tentarei seguir com a minha vida. É isso.”

Perto do final, um dos entrevistados observa que Voigt e sua equipe também ficarão desempregados com o fim da DEFA — o estúdio cinematográfico do regime comunista, o qual, sendo estatal, deixará de existir com o fim desse mesmo Estado — e recomenda-os procurar trabalho no lado ocidental: “Há muita oferta de emprego lá”, ele lhes diz e ri, entre um gole de cerveja e outro. Em seguida, corta para a fachada de um cinema. “Dicas de filme”, lê-se na vitrine — a recomendação é Crocodile Dundee II (John Cornell, 1988). Ao lado, outro cartaz: “Um filme só se torna uma experiência na sala de cinema”.

Um pouco como no mundo todo, a introdução da televisão na Alemanha Oriental provocou uma queda no número de espectadores dos cinemas. E fez diminuir o orçamento da indústria cinematográfica estatal, uma vez que, à nível de produção audiovisual, passou a sofrer a concorrência da televisão também estatal. A competição com a TV era dupla: do lado ocidental, torres de transmissão foram erguidas perto da fronteira, sendo possível sintonizar os canais do vizinho capitalista em quase todo o país — as duas regiões onde o sinal ocidental não pegava ganharam o apelido de “vale dos inocentes”.

Segundo Sabine Hake¹, o declínio no número de espectadores e de produções contribuiu para a crescente marginalização do cinema na vida cultural da Alemanha Oriental, o que transparecia em narrativas menos tradicionalmente politizadas, em contraste ao projeto pedagógico comunista/antifascista que deu origem à DEFA — sinalizando, ela conclui, um tácito reconhecimento de que o “cinema socialista” havia falhado. Por conseguinte, a DEFA desaparecerá porque o mundo a que servia e reportava deixará de existir.

Enquanto a câmera percorre a fachada do cinema, ouvimos a melodia de La Paloma, canção imortalizada na língua alemã por Hans Albers em Große Freiheit Nr. 7 (Grande Liberdade Nº 7, de Helmut Käutner, 1944) — realizada na fase final da guerra, uma obra-prima desesperada e alucinatória, sobre ilusões e frustrações, a instabilidade de promessas portuárias e a desolação decorrente das esperanças estilhaçadas pela liberdade dos outros.

Dentro do cinema, a câmera nos mostra um ambiente completamente destruído. No interior da sala, uma panorâmica revela apenas destroços. Corta e surge uma loja mais moderna. Na fachada, lê-se: “VIDEO–WORLD”. La Paloma ainda está a tocar. Segue-se um skinhead raspando a cabeça de outro — Voigt retrata skinheads de esquerda e de direita em seus filmes, o que causa confusão visual — e, ao som quase inaudível do hino nacional alemão porcamente executado, fogos-de-artifício explodindo colorido no céu.

Letztes Jahr Titanic se inicia com a imagem de um trem chegando na estação e se encerra com a imagem de um trem deixando essa mesma estação. No começo, sabemos que ele está a chegar em Leipzig. Ao final, porém, não conhecemos seu destino. Nesse ínterim, a Alemanha tornou-se novamente uma só. No último plano, a câmera está no mesmo lugar onde se encontrava no primeiro. O início e o fim mostram-nos um mesmo trilho em momentos distintos, cada qual com um trem percorrendo-o em direções opostas. Assim sendo, na nossa perspectiva, a dianteira converte-se na traseira do comboio. E, dessa maneira, a câmera passa a só ser capaz de filmar aquilo que deixa para trás.

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Letztes Jahr Titanic (Andreas Voigt, 1991)

¹ Hake, Sabine. German national cinema. London: Routledge, 2008.

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Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa

Por Diogo Serafim

Eu me sinto sozinho às vezes. Mesmo quando rodeado por pessoas que amo, mesmo quando cercado por pessoas que eu poderia amar, mesmo quando sozinho no meu quarto pensando nas pessoas que amo ou que poderia amar. Quando afirmo que me sinto só, não tenho a intenção de estruturar um relato de mim mesmo enquanto ser solitário, mas sim da condição de solidão que se apresenta no meu espírito. A priori o que pode aparentar um simples jogo retórico é de fato uma concreta alteração analítica do problema: a solidão é uma condição maior, primária, da qual a minha consciência faz uso. A solidão me atravessa – eu estou sozinho, mas nunca sou sozinho. Vista assim, a solidão pertence ao espírito, não à consciência. Empregada essa ótica, a solidão tem pouco a ver com a propriedade de um indivíduo e tem consequentemente muito pouco a ver com o não-ser – o ser é, e sempre será, assim a solidão não é uma condição existencial, mas sim espacial. A solidão não se apresenta como não-ser, e sim como não-estar. E poucas coisas assustam tanto quanto o não-estar.

Eu me sinto só quando o que se apresenta fora da minha consciência me é apreendido como puramente externo, algo do qual eu jamais poderia fazer parte. É o solipsismo puro, o raciocínio cartesiano primário, a ontologia natural da essência humana associada à ideia de propriedade. Hegel apresenta uma solução para lidar com essa problemática: quando eu mesmo me apresento como um elemento a ser reconhecido, o ser sai da sua condição em-si rumo ao para-si. A consciência-de-si se dá quando eu mesmo sou Outro. Quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo.

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Michi trabalha com plantas. Estas são criadas no alto de um edifício em Tóquio, em um escritório, frequentemente cercadas por plástico. Taguchi, um colega seu, não vai ao trabalho há mais de uma semana e com isso o disquete contendo os dados que ele deveria analisar não lhe foram enviados. Michi não entende muito bem como funcionam computadores e disquetes. Ela tem uma televisão em casa, que também não sabe como funciona. Se o virtual é um mistério para ela, o material também, tendo que um dia lhe vem ao espírito uma ideia que a assusta bastante: a de que talvez seja muito fácil se suicidar.

    Ryosuke tem um computador no seu quarto. Na tela, ele vê imagens de pessoas que estão longe dele, também sozinhas nos seus respectivos quartos. As janelas no quarto de Ryosuke estão normalmente fechadas. O seu computador já é uma abertura para o mundo, assim como as suas janelas, mas aqui a questão espacial já não se põe em jogo – no virtual, o espaço é subordinado ao tempo. Ryosuke, assim como Michi, não entende muito bem como funcionam computadores.

Ryosuke, apesar de não ter muitos amigos, gosta bastante de uma estudante de computação chamada Harue. Ela se considera uma amiga de Ryosuke, ou algo próximo disso. Harue, diferentemente de Ryosuke e Michi, entende muito bem de computadores. Apesar de ter alguns amigos, ela se sente muito sozinha e é frequentemente assombrada pela vida que a circunda e os afetos que circulam à sua volta. Ela tem muito medo de morrer sozinha.

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    O fim do mundo em Kairo é a perda da relação do Eu com o mundo. Se eu não estou mais no mundo, ou se ele já não se apresenta mais como algo material para mim, o mundo chegou ao seu fim. Como poderia ele durar mais que eu, sendo que ele estava contido em mim? O apocalipse é a desapropriação epistemológica da experiência com o mundo.

Poderia a solidão ser filmada? Sim, respeitada a condição de que a câmera represente essa solidão ela própria. O dispositivo captura um estado de espírito, se apossa dele, não o descreve. A inteligência formal de Kairo está na maneira como Kurosawa estabelece a própria câmera como um elemento assombrado do filme. A decupagem faz uso da profundidade de campo, de glitches, de diferentes texturas, diferentes ângulos e composições, de variados valores de plano, sempre numa lógica de isolar os personagens dos espaços que eles ocupam. O dispositivo aprisiona esses personagens em um universo em ruínas do qual eles não podem nunca efetivamente fazer parte.

Os espaços em Kairo aparentam quase desprovidos de materialidade. Quando seus personagens fazem um percurso de ônibus, o mundo exterior sempre aparenta desarticulado das suas propriedades, em um estado de desapropriação entre duas abstrações temporais, em certa medida não pertencente ao instante em si. Esse desmembramento se reduz numa dicotomia fundamental entre o movimento e o estático, traduzida em absoluta suspensão, tanto espacial quanto temporal, da experiência. Isso se dá muito pela maneira como Kurosawa usa o digital no seu filme: o avião e a subsequente explosão no fim do filme, a poeira digital de Junko, amiga de Michi, quando esta se desintegra perante seus olhos, os espaços percorridos pelo ônibus efetivamente, tudo é estranhamente texturizado, quase virtual, desarticulado da dramaturgia e dos personagens. Kairo é um filme de pessoas que vivem em um mundo ao qual elas não podem pertencer.

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    Esse conflito entre o movimento e o estático é provavelmente fruto de um embate mais fundamental entre a tradição e a marcha do tempo, a cultura e o progresso, a identidade e a universalização, contradições que vão se estabelecendo cada vez mais claramente em Tóquio, numa lógica de otimização espaço-temporal que acaba por destituir essas propriedades das suas fenomenologias constituintes, alcançando um estágio abstrato de alienação entre o perene e o terminal.

    A construção atmosférica de Kurosawa geralmente se dá por pacientes planos gerais, de uma singular perspicácia composicional, dispondo seus elementos formais de maneira que os traços que remetem ao isolamento de seus personagens coexistam numa paleta monocromática sombria, frequentemente contrastada por elegantes jogos de luz. O diretor faz uso de linhas estruturais que deslocam os elementos centrais de cada cena, conduzindo em seguida o movimento desses elementos em um ritmo hipnótico que dão protagonismo à iconografia desoladora de horror psicológico.

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    Se muitos diretores fazem uso de exposições fugazes e esporádicas dos seus elementos de horror para não os desgastar, Kurosawa parte de uma abordagem oposta, apresentando essa iconografia como subordinada a uma temporalidade que não nos assusta num estado de euforia, mas sim nos aprisiona em um estado constante de agonia e ansiedade. Ele confronta o horror como um verdadeiro elemento a ser internalizado, não apenas um artifício de estimulação sensível. Tudo vale: a suspensão do som, a manipulação do obturador da câmera, o uso do foco e da profundidade de campo, a espacialização, a expectativa, a sugestão – nesse sentido, não seria exagero dizer que Kairo está entre os filmes mais inventivos da história.

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Em Kairo, desaparecer não significa a morte. Um fantasma é só alguém que se sente sozinho. No filme, um programa de computador simula o nosso circuito de afetos: se duas pessoas estão muito próximas, elas morrem. Se elas estão muito longe, elas se atraem. Os fantasmas tentam conversar conosco exatamente por estarem muito longe, presos em um solipsismo existencial, enquanto essa aproximação nos aprofunda progressivamente nesse mesmo solipsismo, até que nós mesmos ou morremos, ou seguimos o resto das nossas vidas sozinhos.

A grande questão é que eu próprio sigo me afastando constantemente de mim mesmo. Mas não sinto uma atração que me chame de volta para a minha fonte própria. Aproximar-me de mim mesmo, um outro muito próximo que se afasta, é um esforço ativo que deve ser exercitado – seria essa então a subversão da morte? Aceitar a si mesmo como algo a ser assimilado e não como algo espontaneamente inexorável seria a etapa final para tornar-si?

    Suicidar-se é sempre tão fácil. Principalmente quando nós estamos todos tão sozinhos, principalmente quando tirar a sua vida só concerne a você próprio. Encontrar a felicidade já não é tão simples assim. É preciso afirmar estar vivo, a vida não é uma propriedade passiva, e sim um enfrentamento ativo face às forças erosivas da existência. No fim de Kairo, a felicidade é encontrada quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo. Isso quando o maior medo que se pode ter é continuar sozinho mesmo após a morte.

Nada muda com a morte. Como agora, para sempre. A morte, como a solidão, não é não-ser, a morte é não-estar. Continuamos seguindo em frente, um navio solitário no meio de um oceano sem cartografia definida. Vento e plástico, água e pó, eu e vocês, nosso circuito.

Referências

Fenomenologia do Espírito – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

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O Sertão como meio e o Sertão como fim

Por João Lucas Pedrosa

O “Apocalipse”, último livro das Sagradas Escrituras, já tornado conhecimento geral, transcreve as revelações (raiz etimológica do título) do que Deus teria guardado para o futuro dos homens. O autor João redigiu o que Jesus Cristo recebia de seu Pai em forma de visões, elementos simbólicos (“em apocalipse tudo ou quase tudo tem valor simbólico”, diz a Bíblia de Jerusalém), sem rigor com a coerência dos efeitos obtidos. O contexto histórico de autoria – pouco antes de 70 d.C. ou em 95 d.C., quando crê-se ter sido escrito[1] – é a violenta perseguição à Igreja pelo Império romano. A necessidade de elevação do ânimo dos fiéis para resistirem à repressão motivou a narrativa de punição e aniquilação dos inimigos adoradores de Satanás (e do próprio) para que, enfim, se estabelecesse a paz e a prosperidade do Reino celeste para todo o sempre.

Uma questão primordial em narrativas apocalípticas é que representação de mundo é esta. Mimesis, de Erich Auerbach, começa dissecando a que é traçada na Bíblia: em seu modelo (que chama de exegese), descrições de espaço e de tempo são sempre vagas. Abraão chega com seu filho Isaac a alguma montanha na terra de Mariá em três dias, e não importa onde ela fica exatamente nem o que se passa na cabeça dos dois nesse tempo, e sim a obediência da ordem divina. O resto é entrelinha, preenche-se no imaginário do leitor. Na representação do sacrifício por Caravaggio, não se vê olhos ou expressão facial no patriarca. A ordem é cega a todo o resto, e seu rosto sequer olha diretamente ao anjo, que precisa impedi-lo fisicamente. Da mesma forma, o mundo varrido por Deus no Apocalipse não conhece os povos ameríndios ou a dinastia chinesa pois se reduz à polarização promessa do Reino de Deus/ameaça satânica (o Império romano). Nosso mundo, na Bíblia, é unicamente campo de guerra para Deus e para o Diabo. A narrativa funciona na chave da falta, ambos de objetivo concreto e de subsistência (como não nos deixa esquecer as provisões divinas no deserto do Êxodo), e faz todo sentido, portanto, que sua verdadeira consistência esteja no plano transcendental.

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No Brasil, esse campo de guerra é representada de forma inigualável pelo Sertão nordestino, e a narrativa cinematográfica que compreende melhor a sobreposição psíquica desse mito sobre uma terra marcada pela falta é provavelmente Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Se o fim do mundo necessita do filtro simbólico nas Escrituras, para o filme é esse mesmo filtro sobre a subjetividade sertaneja que confere a seu povo o eterno estado de fim do mundo. O filme parte da travessia pelo deserto em busca de futuro, o movimento primordial do Êxodo. Como os israelitas no Egito, Manoel era escravizado por seu patrão – a violenta insurgência do protagonista vem ao ser por ele chicoteado -, e sua peregrinação com a esposa Rosa acontece na fuga da reprimenda que matou sua mãe. A busca dos dois é, essencialmente, por um Moisés, por um guia pelo caminho do deserto. Juntam-se ao beato Sebastião (numa mistura de Antônio Conselheiro com Padre Cícero) e depois a Corisco, o Diabo Louro. Os dois funcionam como alusões a figuras históricas que entraram para a mitologia regional, e escolhem derramar sangue até que “o Sertão vire mar e o mar vire Sertão” – em última instância, até que o dilúvio divino chegue para instaurar o Reino celeste depois de aniquilar o grande inimigo sertanejo: a sede. Antes disso, os dois morrem. O religioso pela mão de Rosa, após ele tentar purificá-la com o sangue de um bebê sacrificado nos braços de Manoel, e o cangaceiro por Antônio das Mortes (que alude, por sua vez, ao caçador de cangaceiros José Rufino, que matou Corisco na vida real). O primeiro é motivado pela metafísica e o segundo pela anarquia, mas ambos abraçam a lógica da arbitrariedade idealista, que no plano terrestre se converte em tiros ao céu (como o fim de Paulo Martins em Terra em Transe, Glauber e seus mártires do vazio). Manoel e Rosa terminam ainda correndo a esmo. Ela cai no meio do caminho e ele continua correndo pelo cascalho até chegar numa estrada. Um insert do mar ao som de Villa Lobos fecha o filme como uma meta inatingível, como o petisco pendurado na frente de um cachorro na esteira, e que mantém o nordeste brasileiro afundado em sua miséria alienada.

Como uma das obras que anteciparam um vazio ideológico e político que se estenderia à esquerda intelectual urbana após o Golpe de 1964, o filme estende a expressão da crise de sentido ao uso da linguagem cinematográfica. Essa mesma crise se transforma em quebras de eixo, jumpcuts, métodos contrastantes de direção de atores (Corisco quebra a quarta parede e atua para ela como um personagem brechtiano; Manoel está preso à diegese e à atuação naturalista, sofrendo os impactos mentais de seu entorno), letra da trilha sonora em diálogo com os diálogos proferidos pelas personagens. A quebra de códigos de uma representação de mundo fechada e de referenciais bem definidos (Auerbach chama de diegese, usando a Odisseia como contraponto à Bíblia) cria esse desnorteamento sensorial para expressar o conflito do sistema de signos que move a psiquê nordestina comum. O Sertão em Deus e o Diabo, como lembra Ivana Bentes, opera como espaço do imaginário, não do concreto. É possível, portanto, que nele Canudos e o cangaço se sobreponham temporalmente, pois nele opera o sempre eterno, o tempo de Deus. Na cena final, Corisco é emboscado por Antônio das Mortes ao som da trilha de Sérgio Ricardo. Ele pula para trás em sobressalto, gesto repetido três vezes e ampliado em três diferentes ângulos. O caçador dá três tiros pausados para a frente, e um plano afastado mostra Corisco girando ao invés de cair morto. Ele para, solta sua peixeira, e logo antes de começar a cair, grita – num brado que interrompe a trilha sonora – “mais forte são os poderes do povo!” e um jump cut corta sua queda pelo meio para ele direto já caído no chão. O brado segue em sua duração original, ecoando depois da queda, e só então a música volta. Cristino Gomes da Silva Cleto morreu, mas Corisco jamais. Ele pula, gira e ecoa para sempre. O Sertão, para Glauber, tem o funcionamento da metafísica subjetivista bíblica, onde a terra é zona de conflito para deidades históricas, e onde o homem é nada mais que sujeito paciente de um mundo que não lhe pertence.

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As intervenções musicais no filme quase sempre narram musicalmente momentos de importância, nunca em reiteração das ações exibidas, mas como consumador do tom fantástico, epopeico da narrativa. Pois o que vemos à nossa frente é o desenrolar de um cordel, com direito a moral da história. Durante a corrida final do casal, o cordelista conclui:

Tá contada a minha história
verdade e imaginação
Espero que o Sinhô
tenha tirado uma lição
Que, assim mal dividido,
esse mundo anda errado
Que a terra é do hômi
não é de Deus nem do Diabo!

E enquanto isso não fosse compreendido, o Sertão seria para sempre apocalipse.

* * *

            A obra que aparece como atualização definitiva da relação entre o sertanejo e o apocalipse é Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles. O filme se aproxima de Deus e o Diabo acima de tudo pela oposição perspectiva, como já anuncia a primeira imagem dos créditos iniciais: enquanto Glauber escolhe começar no chão, de cara com o limite, os autores escolhem o céu, dirigindo-se ao infinito. A narrativa de Glauber é a da urgência de voltar-se à terra, de abandonar a transcendência e apropriar-se sobre o concreto. Mendonça Filho e Dornelles, por sua vez, compreendem que a mitologia anda de mãos dadas com a política, e que não pode ser abandonada ou destruída, mas pode e deve ser reconfigurada. Se, nessa escolha inicial, os autores criam o contraste inverso da abertura inicial de Glauber (constelações brancas no preto sideral ao invés dos mato desidratado cinza escuro sobre o branco da terra seca), é porque o projeto de Bacurau é a formulação de uma utopia nordestina.

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            O uso dos créditos iniciais é mais recentemente reconhecido como recurso nostálgico de referência ao cinema de cerca de 30 anos atrás, antes do hábito entrar em desuso. Eles também são ornados por uma canção sessentista, Não Identificado, na voz de Gal Costa. O uso das canções é igualmente relevante aqui, menos na intenção de inventar uma percepção nordestina quintessencial, e mais fazendo referência a uma política de estilo:

Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental
(…)
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer uma canção de amor
Como um objeto não identificado

            Em 1968, começou o movimento tropicalista do qual a canção faz parte. O projeto retomava nas sete artes o princípio antropofágico do modernismo dos anos 1920 numa nova busca da essência brasileira. O resultado digestivo misturaria, além das três culturas que constituem a miscigenação do povo brasileiro, também esse saldo com a pop art e com a cultura de massa hegemônica.. Um iê-iê-iê como dos Beatles, mas nordestino. Que possa voar para o espaço, chegar em outros planetas. Bacurau se apropria de códigos típicos do gênero apocalíptico estadunidense para fazer um filme que converse com a própria massa e também com o planeta que o invade. Após 55 anos de Deus e o Diabo, Dornelles e Mendonça Filho compreendem os erros da primeira fase cinemanovista e os mecanismos da indústria estadunidense, que ainda toma conta do mundo. Não é uma meta trazer à massa a “consciência de sua miséria”, isso já é dado comprovado e reiterado e esvaziado e, não obstante, ainda vivido. Tampouco é diagnosticar a religião e o povo como alienado (traço mal envelhecido no cinema novo). Trata-se de um chamado energizante à luta, erguido pela reapropriação de estruturas narrativas que constituíram ao longo dos anos a mitologia cinematográfica de sustento imperialista.

A trama é simples: o pequeno povoado interiorano de Bacurau, após a morte de sua matriarca, começa a sumir dos mapas virtuais e a ser atacada por um grupo de estadunidenses, europeus e brasileiros sudestinos abastados e armados até os dentes, decididos a exterminá-lo por esporte. Aqui, é retomado o estilo bíblico de narrativa apocalíptica pela ignorância do entorno. O mundo é Bacurau: Não Identificado continua tocando após o fim dos créditos iniciais, e uma pan para a esquerda revela a Terra. Após cruzado por um satélite, o enquadramento se aproxima do nordeste brasileiro até a imagem fundir-se, por um segundo, com o close de Teresa (Bárbara Colen) adormecida e um plano de um céu alaranjado. Então o amálgama dá lugar ao take aéreo de um caminhão de carregamento seguindo em direção à cidade. Se Bacurau é o mundo, os alienígenas são os de fora da cidade, e não à toa os caçadores usam drones em forma de disco voador para vigiar os nativos que lhes são presa. A alienação não mais vem do comportamento do povo, mas é consequência da privação de recursos que o vulnerabiliza e o invisibiliza, e é essa condição mesma que estabelece Bacurau como centro do próprio universo – e que, em última instância, sustenta a associação não nativo/alienígena.

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Essa construção metonímica de mundo é feita de forma involuntária (ou não) há dezenas de anos por narrativas de invasão alienígena no cinema norte americano, iniciadas em tramas-reflexo de conflitos políticos tornados pavores comuns, como o belicismo exponencial em O Dia Em Que A Terra Parou (Robert Wise, 1951), a ameaça comunista em Vampiros de Almas (Don Siegel, 1955), um inimigo maior que a bomba atômica em A Guerra dos Mundos (Byron Haskin, 1953). Entre muitos ecos contemporâneos, algumas particularmente bem sucedidas são narrativas de salvadores norte americanos, como Independence Day (Roland Emmerich, 1996),  – onde o contra-ataque aos alienígenas tem êxito em 4 de julho, pareando a celebração da libertação global à da independência estadunidense -, e na franquia Os Vingadores. Seus heróis são à moda americana, mesmo que não nativos dos EUA ou da Terra, pois operam em prol do status quo americano, portando um irônico domínio inato da língua inglesa. Quando perdem a batalha contra um alienígena portador de uma arma de destruição em massa, metade do Universo é dissolvido. No filme seguinte, eles se apropriam da arma e restituem boa parte do que foi perdido. O arco dos Vingadores é o arco do destino universal, eis o poderio por eles detido. O desenho dessa importância não é menos megalomaníaco que o monopólio concreto da franquia – ou dos demais filmes da Disney – sobre as exibidoras ao redor do mundo, esmagando cinemas nacionais (situação, no Brasil, agravada pelo governo bolsonarista que destrói o que pode do horizonte de produção cultural brasileira). Em Bacurau, os opostos bom/mau, alienado/alienígena, poder em massa/poder regional são reflexo de e referência a esse contexto.

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            O risco de extermínio iminente e a urgência do contra-ataque é onde se aplica o aprendizado de Deus e o Diabo, pois a narrativa parte de um conflito concreto. Há uma mudança essencial, entretanto, no olhar sobre o misticismo, saldo dos 55 anos de evolução antropo e sociológica que separam os dois filmes, e está em sua função de empoderamento e de parte do paradigma que constitui a representação de mundo. No primeiro plano, como comentado, há uma fusão simultânea do take espacial com um close de Teresa adormecida e um plano de um céu alaranjado – o de Bacurau. Entrar na cidade envolve a entrada numa sorte de transe, traço em diálogo com o trabalho fotográfico de Pedro Sotero no qual os focos de luz dissolvem os traços onde batem com força, e garantem na figuração uma presença do abstrato. Assim que Teresa vê Damiano (Carlos Francisco) em sua chegada, antes de cumprimentá-la, ele a manda abrir a boca e receber um comprimido. Sua boca o recebe em plano detalhe, como uma sorte de hóstia. Mais à frente, descobriremos ser esse comprimido um psicotrópico, dado a todos os residentes – homem, mulher, idoso, criança – antes da batalha final, que será vencida pelos residentes. Bacurau é uma terra mística, e nela o transe não aliena, mas finca em si os pés do povo, garantindo vigor na luta e sua posição de agente da própria história. A transcendência, como a alienação no filme, dualmente isola e empodera.

            Acima de tudo, Bacurau é uma obra do contemporâneo. Como tal, se passa num tempo futuro também indefinido, “daqui a alguns anos…”. O contemporâneo globalizado opera numa sorte de amálgama de tempos e de referências concretas de momentos históricos diversos, em que jovens trajados teen à la 1990 escutam discos sessentistas de vinil enquanto usam celulares touch screen. É nesse tipo de contradição que Bacurau opera, trazendo a secular questão da pobreza a um olhar específico do gênero setentista/oitentista, e fazendo ferramentas de ação tanto de tecnologias recentes quanto de antiguidades. O museu de Bacurau aparece como elemento ignorado (os sudestinos, quando passam pela cidade, não fazem questão de visitá-lo) até o momento do embate, quando um dos assassinos, à procura de vítimas, percebe que uma ala destinada a armas antigas contém apenas os selos nas paredes: os cidadãos estão armados. E aí a história vira instrumento de luta, vira via de sobrevivência; o mesmo tratamento tem a educação, que faz, da escola, uma trincheira durante o tiroteio. Na limpeza do sangue dos inimigos no museu, a responsável manda deixar as manchas nas paredes: “Quero que fique assim, exatamente do jeito que tá.”. Nesse jogo de passado e futuro, o presente vira uma feitura consciente da História.

A noção de amálgama, além do de signos geracionais, se aplica a Bacurau em muitas formas, uma outra principal a de atores, à medida que rostos já conhecidos pelo audiovisual brasileiro e mundial se confundem com os dos nativos da cidade da Barra (RN), onde o filme foi produzido. São feitos closes nos rostos familiares como nos anônimos à indústria, e os planos conjuntos e panorâmicas homogeneízam o elenco: em Bacurau não há protagonista. Faz parte da utopia que o herói seja uma massa coletiva e consciente. Uma massa plural, composta por médica, professor, puta, lavrador, matador, fugitivo. E, na sua história, são todos salvadores.

Bacurau é, em última instância, um filme que não existiria sem Deus e o Diabo na Terra do Sol, nem sem o cinema de gênero estadunidense, e nenhum deles existiria sem a Bíblia. O Apocalipse, no fim das contas, é uma narrativa de crise em torno de uma meta para o mundo, podendo ser tanto um encerramento quanto uma possibilidade. No contexto de lançamento, Bacurau é a prova de que o Brasil ainda é capaz de fazer algo que o brasileiro comum havia esquecido que podia: retomar uma mitologia que seu povo e que o resto do mundo possam venerar.

[1] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 1998, p. 2139.

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Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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Godzilla ontem e hoje

Por Flavio C. von Sperling

Seria frágil uma análise de Godzilla (Gojira, 1954, Ishirô Honda) que não levasse em conta o contexto de sua recepção no Japão. A fita foi lançada apenas nove anos depois das explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e do bombardeio de Tóquio em março de 1945 – que destruiu quase metade da cidade, ceifou mais de 100 mil vidas japonesas e alijou milhões de suas casas, apenas dois anos após o fim da ocupação estadunidense no Japão, marcada por estupros e pilhagens, e em pleno preamar dos testes nucleares no Pacífico. Em março de 1954, o barco pesqueiro Lucky Dragon N. 5 foi atingido por poeira radioativa resultante da detonação da bomba estadunidense Castle Bravo, à época a mais potente explosão causada por seres humanos (um erro de cálculo previa 6 megatoneladas, a explosão liberou 15). Toda a tripulação foi contaminada e os atuns pescados chegaram aos mercados de Tóquio. Os Estados Unidos, embora negassem os riscos de consumo destes peixes, suspenderam as importações de atuns japoneses. Concluiu-se que mais de 800 outras embarcações japonesas foram expostas à radiação da explosão e, entre março e dezembro de 1954, as autoridades destruíram dezenas de toneladas de peixes radioativos. É neste contexto apocalíptico que o filme foi lançado em outubro de 1954, um mês após a morte do operador de rádio do Lucky Dragon N. 5, e sua primeira cena faz alusão explícita ao incidente (que seria referenciado em dezenas de outros filmes, e é acontecimento central em pelo menos dois – Daigo Fukuryu-Maru, 1959, de Kaneto Shindô, e O monstro da bomba H, 1958, de Ishirô Honda). Em Godzilla, fatores extra e intra-fílmicos se emaranham de tal maneira que se tornam indissociáveis.

A década de 1950, considerada a era de ouro da ficção científica no cinema, já havia visto o medo e a angústia atômica nas telas, ora de maneira metafórica, ora literal. Embora inspirado em alguns filmes estadunidenses, especialmente O monstro do mar (The beast from 20,000 fathoms, 1953, de Eugène Lourié), Godzilla carrega uma pungência única no cinema.

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Godzilla, encarnação do apocalipse nuclear que para o Japão parecia iminente – se não em curso constante -, transcende a metáfora, e torna-se também símbolo de uma identidade nacional retalhada. O público ainda marcado pela guerra viu-se na pele do monstro, uma pele que, como a de muitos espectadores ali, carrega cicatrizes, queimaduras, deformidades advindas da violência nuclear. Godzilla, ao mesmo tempo em que amedronta, é passível de empatia. Essa ambivalência, esse caráter dual de vítima e algoz, que é da própria ontologia dos monstros, encontra sua potência máxima em Godzilla, talvez comparável apenas ao monstro de Frankenstein, e está impressa inclusive no seu rugido metálico, carregado de dor e raiva. O rugido do monstro, manifestação sonora de um páthos rudimentar, só é menos aterrorizante que seu silêncio, o de uma força descomunal, impassível, inconsciente da destruição que causa. São numerosos os relatos que fazem menção ao silêncio sepulcral que sucede o estouro de uma bomba atômica.

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Godzilla é o mais sombrio dos filmes de ficção científica. Apesar do filme ter seu arcabouço baseado na fantasia e de sua implausibilidade científica (tanto do monstro quanto da arma que o elimina), caros ao gênero, Shindô, veterano da Segunda Guerra, imprime na forma do filme um realismo quase documental, praticamente sem paralelo no gênero até então, distanciando-o de seus contemporâneos estadunidenses e aproximando-o de filmes como Hiroshima (1953, Hideo Sekigawa) e documentários de guerra. As cenas noturnas de destruição parecem filmadas in loco na noite de 9 de março de 1945 – a noite do famigerado bombardeio de Tóquio. As cenas de hospital de Godzilla e, por exemplo, do assustadoramente realista Catástrofe nuclear (Threads, 1984, de Mick Jackson), são mais próximas do que a distância de três décadas entre elas poderia sugerir. Há relatos de que, durante a cena na qual Godzilla destrói o Toho Theater, parte dos espectadores presentes no cinema real tentou fugir da sala, o que nos lembra a anedota do público amedrontado pela vinda do trem dos Lumière, quando o cinema ainda era coisa nova.

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Godzilla é permeado por diversas relações de dualidade, desde a já mencionada ambivalência fulcral do monstro, até a de um Japão tradicional e um Japão moderno, encarnada no dilema de Emiko entre o casamento arranjado com Dr. Serizawa e sua paixão por Ogata. Uma das dualidades mais marcantes do filme é apresentada nas diferenças entre Dr. Serizawa e Dr. Yamane. Este, paleontólogo, representa uma aproximação mais humanista da ciência. Dr. Yamane insiste que Godzilla não deve ser exterminado, mas estudado a fim de mitigar os efeitos oriundos da atividade nuclear. Na última cena do filme, é ele quem nos diz que, caso os testes nucleares não sejam interrompidos, em breve outro Godzilla surgirá, nos admoestando num final típico das cautionary tales – narrativas que nos servem de alerta ou reprimenda. Dr. Serizawa, uma encarnação do trauma da guerra, considera-se mais monstruoso que Godzilla, uma vez que ele criou uma arma que, em mãos erradas, seguramente seria usada para destruição em massa. Serizawa, veterano da guerra, mutilado, com um olho arrancado pela invenção de algum outro cientista, recusa-se veementemente a utilizar o Destruidor de Oxigênio contra Godzilla. No entanto, após ver o rastro de destruição deixado pelo monstro e um coral de garotas cantando em luto na televisão, ele decide destruir sua pesquisa e utilizar o Destruidor de Oxigênio apenas uma vez, para por fim às agruras sofridas pelo seu povo. A cena do coral, das mais poderosas do filme, é uma quase mística evocação de um espírito coletivo japonês que marca o ponto de virada para Dr. Serizawa, a personagem humana mais emblemática de toda a franquia. Serizawa sabe que ele deve morrer junto com sua criação. É seu dever moral sacrificar-se e levar seu conhecimento de potencial destrutivo para o túmulo. Nos filmes de ficção científica, é comum os cientistas morrerem vítimas de sua própria criação, mas o suicídio determinado de Serizawa destaca-se entre os filmes da época.  Em The phantom from 10,000 leagues (1955, de Dan Milner), por exemplo, o cientista mergulha no mar a fim de destruir a arma que criara (numa cena possivelmente inspirada no final de Godzilla) e acaba morto, mas não por algum gesto suicida. O monstro ressurge e o agarra, impedindo-o de fugir da explosão – monstrum ex machina. É possível, nesta comparação, identificar traços culturais diferentes entre os Estados Unidos e o Japão que se evidenciam nestes filmes.

Embora o monstro seja derrotado e haja algum alívio momentâneo, não há nenhum clima de vitória no final de Godzilla. Não há celebração, ao contrário da maioria dos filmes de ficção científica estadunidenses da época. A necessária morte de Godzilla é também a morte de uma vítima, e os testes nucleares, souvenirs da tara bélica americana, continuam acontecendo ali naquele mesmo mar onde estão as personagens.

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Esta ambivalência vítima x algoz de Godzilla praticamente se perde nos demais filmes da franquia, nos quais, a cada um deles, o monstro oscila mais próximo dos extremos desse espectro – embora na maior parte dos filmes ele seja tido como um herói nacional, protetor do Japão, uma figura quase paternal (algo que permanece até hoje na figura de Godzilla como ícone da cultura popular japonesa). Gosto de pensar que estes filmes (1955-2004) formam uma espécie de necrológio em painel do monstro original de 1954, onde a cada hora ele é evocado de uma forma diferente, destacando diferentes características suas.

Em Shin Godzilla (2016, Hideaki Anno e Shinji Higuchi), contudo, há uma forte reaproximação do monstro com sua versão original. É o único dos filmes, depois do primeiro, no qual o Japão ainda não conhece Godzilla, o que faz do filme mais uma refeitura do original do que realmente uma sequência.

Shin Godzilla tem o mesmo tom austero do primeiro filme e resgata vários atributos dele. Após décadas, Godzilla aparece aqui sozinho novamente, sem os demais monstros que povoavam as telas em quase todos os filmes depois de 1955 (a única exceção sendo O retorno de Godzilla, de 1984, pensado como uma continuação do filme de 1954). O realismo do primeiro Godzilla também volta e é marcante o uso de diferentes dispositivos e meios de intermediação de imagens empregados (celulares, câmeras de segurança, computadores, etc). Aqui temos de volta a ”câmera à altura do homem”, enquanto os demais filmes (exceto o primeiro) privilegiavam a “câmera à altura do monstro”.

O trauma coletivo do tsunami de 2011 e do acidente nuclear de Fukushima se soma às feridas ainda abertas da Segunda Guerra e à dominação estadunidense que se articula de outra maneira, muda de forma, mas se perpetua sobre o Japão. “O Japão do pós-guerra é um estado tributário”, comenta uma personagem. “O pós-guerra se estende para sempre”, arremata outra. Pouco mudou no estado de espírito do povo japonês desde o contexto do primeiro filme para Shin Godzilla.

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O filme apresenta uma espécie de protagonismo em painel. É o coletivo e o processo de cooperação que fazem às vezes de protagonista. Após o surgimento do monstro, o poder público é incapaz de oferecer resposta imediata. Não se sabe qual é o departamento responsável pelo inédito aparecimento de um monstro. Especialistas são reticentes em dar diagnósticos e indicar medidas a serem tomadas, com medo de ferir suas reputações e toda determinação passa por três ou quatro pessoas antes de ser posta em prática. Os centros de operação parecem um formigueiro desarticulado, nos planos gerais. Repetições enfadonhas de travellings em reuniões recheadas de desorientados homens velhos trajando ternos iguais sublinham a letargia do Estado. Novos rostos, funções, cargos, comitês e forças-tarefas aparecem a todo momento numa cacofonia que opera na chave da sátira (uma das reuniões é interrompida por uma cartela sobre tela preta que nos indica que fomos poupados de parte dela). Estes ministros, oficiais e funcionários públicos não são, no entanto, vilanizados hora nenhuma; são indivíduos que tentam colaborar para o bem comum, mas são travados pela burocracia do Estado e por alguma inaptidão. O princípio da colaboração é central em Shin Godzilla.

Um comitê paralelo, formado por párias, lobos solitários, nerds, hereges da academia, luta contra o tempo enquanto Godzilla destrói Tóquio e os EUA planejam soltar uma terceira bomba atômica sobre o Japão a fim de dar cabo ao monstro (e, obviamente, lucrar com a reconstrução da cidade). O comitê tem em mãos um enigmático mapa genético do monstro, deixado por um cientista desaparecido, que pode conter informações que levem a uma solução menos trágica do que a proposta pelo País da Liberdade. Este comitê representa uma crença na superioridade do pensamento científico sobre a violência bélica e a aniquilação. É interessante que a solução para decifrar o mapa genético se encontre na milenar arte japonesa do origami, aliando o conhecimento popular japonês ao saber científico e simbolizando um certo espírito nacional que o filme parece querer promover (vale notar que o integrante do grupo de outcasts que indica o origami como solução é representado por Shin’ya Tsukamoto, diretor de Tetsuo, Bullet ballet, entre outros).

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Shin Godzilla é o único filme da franquia no qual o monstro muda de forma. Assim como o Japão no filme, ele também é obrigado a se adaptar a situações adversas. Em sua primeira aparição, de aparência anfíbia, ele se move de maneira caótica pelos rios de Tóquio, arrastando barcos, quebrando pontes e deixando um cenário de destruição muito semelhante ao que o mundo viu e o Japão sentiu após o tsunami de 2011. Quando Godzilla pisa (ou se arrasta) em terra, ele ainda não consegue suportar o próprio peso nas pernas e se debate entre os prédios convulsivamente, em evidente desespero. Seus olhos de peixe, esbugalhados e ainda sem pálpebras, reforçam sua agonia e, como acontece com o monstro de 54, temos franca empatia por ele. Quando Godzilla atinge sua forma terrestre, a rigidez de seu corpo e seus punhos contraídos parecem indicar uma excruciante e constante dor, assim como sua carne exposta, sua pele rasgada, seus dentes deformados – marcas da violência que o originou. É, na história de Godzilla, a representação mais devastadora do monstro como vítima dos pecados humanos.

As sequências externas, salvo as de ataques aéreos, geralmente privilegiam o ponto de vista humano, do nível do chão, exacerbando o aspecto colossal e horrífico do monstro. No entanto, vez ou outra temos uma mudança de perspectiva que nos apresenta um Godzilla diminuto, em planos abertíssimos, em aparente continência perante o cosmos. Estes planos, por sua vez, rimam em sua composição com outros recorrentes planos abertos de seres humanos pequenos e sozinhos em quadro – talvez o que nos distancie dos monstros seja apenas uma questão de escala.

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“A humanidade deve coexistir com Godzilla”, diz uma personagem. O Godzilla congelado ao fim do filme, no meio de Tóquio, talvez seja a imagem mais marcante de Shin Godzilla; é o lembrete de um perigo latente, de natureza cíclica, que nunca será de fato extirpado – memória constante de que o apocalipse não acaba, mas vem em ondas, e é também um monumento de tributo ao Japão e ao viço de seu povo que sobrevive ao longo de uma história maculada por tragédias, de causas humanas e naturais; repetidos “fins do mundo”. Embora este não seja um filme exatamente otimista, ele fecha com a sensação de que se aprendeu algo com a tragédia de hoje, e exalta um espírito coletivo japonês que, embora não sem perdas, conseguiu, dessa vez, transpor suas adversidades. O Japão de Shin Godzilla é agora um país mais seguro de si.

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A festa do fim do mundo e sua nostalgia sexual em Estranhos Prazeres

Por Gabriel Papaléo

“Há uma batida de ritmo de selva embaixo de mim; o som de cassetetes batendo em escudos de choque, tradição da polícia quando a coisa fica feia. (…) Porque vai haver sangue de transientes derramado por todo esse lugar.”

Warren Ellis, Transmetropolitan 3

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Como vivemos no totalitarismo da imagem? O cotidiano pode ser mediado pelo controle absoluto dos dispositivos digitais que nos cercam?

A repressão do governo nas ruas através do uso da força policial como contenção da ebulição de pensamento de descontentamentos é o contexto das ruas de Los Angeles nesse 1999 alternativo cyberpunk concebido por Kathryn Bigelow, em Estranhos Prazeres. A população inflamada apanha sem nem ao menos sabermos o porquê e a indiferença do protagonista Lenny Nero, ao passar pelas ruas na sua Mercedes, parece deixar claro que aquela paisagem há muito é palco de confrontos. Sua jornada é no contrabando de imagens, de um dispositivo chamado SQUID – criado para acessar memórias alheias em primeira pessoa, como um videogame em realidade virtual – e seu contato com a realidade é através dessas imagens alienantes da nostalgia, do gradual descarrilamento do presente como abrigo do pensamento. A televisão mostra o rapper morto misteriosamente, as ruas sangram sua insatisfação, mas, para Lenny, as imagens digitais e seus prazeres bastam nesse estado de letargia desacreditada com o mundo típico dos detetives de noir que o filme dialoga.

Na explosiva cena de abertura, sentimos de imediato o objeto de desejo de tantos personagens ao acompanhar a ação em primeira pessoa do dispositivo, numa perseguição atordoante que termina em morte das muitas pulsões que Lenny almeja aqui. Quando o ex-detetive busca as memórias de sua ex, fica claro que o passado atormentado é sobretudo uma relação desapaixonada com as instituições e é nesse sentimento que Bigelow concentra toda a primeira hora de filme, investindo no pano de fundo, nas interações entre os personagens, em como funciona a máquina cyberpunk do pré-apocalipse da virada do milênio. O conflito racial surge nesse setting como o grande preço que as pessoas pagam ao tentar lutar no tempo presente.

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O estado policial de opressão sentido a cada interação, no abandono das interações sociais, nas vizinhanças sitiadas – devidamente ignorados pela nostalgia digital do protagonista, claro. Essas vizinhanças, por sua vez, só surgem de início em flashback, para apresentar o contato inicial entre ele e Mace, vivida por Angela Bassett. Que Bassett dê uma fisicalidade à Mace que expande cena por cena o papel da personagem é algo perceptível até no olhar da atriz e cabe a essa personagem, bem mais afinada com os dilemas sociais e com a resistência urbana direta diária, a quebra do feitiço digital de Lenny. Que Mace seja uma motorista de limusine dos ricaços, como no Cosmópolis, de Cronenberg, só evidencia seu papel mais íntimo com a cidade, de um conhecimento das ruas pelo dever direto que exerce e observa pela janela.

O conceito de explosão sensorial via realidade virtual é algo que Cronenberg viria a trabalhar diretamente em Existenz, um dos seus melhores filmes, e o título brasileiro do filme de Bigelow chega até a ser o mesmo do Crash do diretor canadense. As perversões da alma sexual do cinema do canadense aqui se tornam ponte para um discurso de privilégios, com foco outro além das inquietudes psicológicas – e aí a comparação mais afinada me parece com o já citado Cosmópolis, um filme que ocorre na pressão entre o ar condicionado da limusine de Robert Pattinson e o ar digital do lado de fora. Aqui em Estranhos Prazeres, o ar não é propriamente digital e as manifestações não exemplificam as virtualidades, as vulnerabilidades e as flutuações delirantes do mercado financeiro; o ar daqui é poluído como a geografia de Los Angeles, a segregação e suas vozes ativas diante das culturas alternativas. O embate do hip hop na televisão, atacado como símbolo político, nas tentativas de despolitizar a cultura de periferia. A motorista dos ricaços numa cidade sitiada e cosmopolita tenta sobreviver com o psicológico intacto à medida que dá, mas sem ignorar os problemas ao redor sob a égide do cinismo e da derrota. É sobretudo um ritual de disciplina, exemplificado na recusa da utilização do SQUID por parte de Mace, que exala da presença da personagem. É da dificuldade em balancear o desejo e o dever, o condicionamento da realidade sob pulsões duvidosas. Escapando de uma premissa reacionária de escapismo, Bigelow no entanto cria a virada da personagem ao fazê-la usar o dispositivo para algo que falaria com seu âmago sob a urgência do levante popular. Mace acessa as imagens, quase com medo, e tem sua realidade aumentada justamente pelo dispositivo que vemos ser anestesiante para o resto dos personagens. É como usar a ferramenta, sobretudo, e sem a inocência de negar o peso rústico do que ela pode causar – e a verdade que Mace vê é filmada como o ataque agressivo aos sentidos que é.

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Conforme a violência vai se tornando mais próxima, mais brutais ficam as cenas que as mostram – e há duas cenas de estupro fortíssimas no filme, em primeira pessoa, abordando diretamente uma questão sensorial da brutalidade superficial da imagem e da linguagem nela inserida. A visão em primeira pessoa nos faz quase cúmplices do crime, e Bigelow sabe disso, mas não na exposição de culpa, o que seria uma iniciativa cínica, e sim de exposição do ponto sem retorno sensorial causado pelo dispositivo. “A paranoia é apenas a realidade numa escala reduzida”, como um personagem diz no filme, e fica difícil estar a par das nuances da realidade quando as imagens obliteram suas córneas. A articulação da conspiração parte então da perversidade explosiva das imagens, do que a memória tornada viva expressa e, com isso, muito da miopia social de Lenny é explicada; é através de Mace, e do snuff da prostituta assassinada, que ele começa a ter relação com aqueles fatos – uma relação moral, de dever ético claro, mas que passa primeiro pelo campo do afeto pessoal, uma vez que é nele que a imagem mais ataca nesse universo.

Talvez por isso a trama de traição importa tão pouco – até mesmo para Bigelow, que encena o clímax no quarto de hotel com cortes bruscos e parecendo mais interessada em experimentar com aquele tempo que de fato resolver dramaticamente aqueles arcos -, porque no limite são atos de crueldade de pessoas ricas e brancas que estão paranoicas porque presenciaram a morte pela primeira vez. Philo Gant, personagem central vivido com a vilania dos gestos calculados e expansivos de Michael Wincott, já servira de bom grado ao papel de homem branco apropriador ao lidar com Jericho One sob o filtro das fortunas, mas é apenas quando se sente ameaçado pela primeira vez pela conspiração em curso que ele se torna não apenas paranóico com seu círculo de influência, como viciado ao extremo no uso das imagens digitais do SQUID. É quase como se a falta de tato ao lidar com situações de pressão e de cerceamento geográfico e social pelas castas mais ricas fosse diretamente culpada pelos grandes atos de destruição e pela proporção inesperada dos movimentos de mudança. Resta a autodestruição, seja na música, seja fritando o cérebro com vídeos.

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Como em um presente de imagens inúmeras, de catalogação complexa e estufada, a paranoia se intensifica e as desconfianças aumentam – as relações perigosas e sexuais surgem exatamente no nível de overdose representativa proposto por Abel Ferrara em outro clássico cyberpunk, Enigma do Poder. Ferrara também lidava com a virada do milênio como dispositivo estrutural para dialogar com videoclipes e a imaterialidade das imagens, a fragilidade da plataforma, refletindo diretamente o psicológico em xeque do triângulo amoroso devido a paranoia de encarar cada representação como a faca de dois gumes da interpretação duvidosa. A espionagem virava intriga sexual, e a perdição nos ambientes exige o total isolamento para alguma organização de pensamento. A diferença central é que, enquanto aquela trama de noir tornava-se a própria overdose de imagens orquestradas por Ferrara na meia-hora final, no confinamento do hotel vertical concebido por William Gibson, aqui em Estranhos Prazeres as imagens nunca dominam inteiramente os heróis tortos. É sobretudo na figura de Mace, sensível ao contexto político que busca as ruas para propor uma mudança significativa, que há o embate contra o império das imagens, imagens a ruir nas manifestações, contra a brutalidade policial, em nada dialogando com intrigas do ego.

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O comentário de ambientação da tensão racial e a trama principal andam sugeridos mas não interligados por mais da metade do filme e, quando eles se atravessam, é culminando todo o ponto de vista estético e emocional que Bigelow vinha conduzindo: a experiência em primeira pessoal da testemunha da brutalidade do Estado, da violência diretamente ligada a uma pulsão sexual do voyeurismo, da importância do combate. As imagens do assassinato de Jericho One surgem com o diálogo direto ao vídeo das agressões sofridas por Rodney King em 1992, que desencadearam nas manifestações pelas ruas de Los Angeles e mostraram o fascismo agindo sobre o homem comum no seu viés mais racista e segregatório. O assunto fora algo amplamente discutido por Bigelow na hora de construir sua distopia, ao aliar essa temática política à intriga romântica do roteiro original de James Cameron e Jay Cocks, e redimensiona de fato os acontecimentos daquele mundo, traz o peso do ambiente interferindo no psicológico de quem há muito luta. Toda representação a partir daí começa a contar e toda a virtualidade dos encontros com o passado de Lenny e seus clientes perdem a força diante do chamado das ruas das palavras de Jericho One, dos punhos cerrados de Mace ao enfrentar quem a persegue. Não por acaso Mace desconfia da integridade do comissário ao lhe entregar as imagens que provam o assassinato de Jericho; os algozes da lei trouxeram esse estado das coisas ao lidar com o presente sob o filtro do afastamento social.

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Ao final, o comissário é inocente e Bigelow propõe que a resistência envolve algum tipo de diálogo, até mesmo de conciliação, e então o roteiro abraça soluções que envolvem a fé na lei e na manutenção das ideias em determinadas situações. No entanto, o que move o policial inocente, no limite, não é sua integridade; é o medo, como Lenny diz, porque a opressão das castas sociais também atinge os empregados mais poderosos do maquinário fascista. As diretrizes ameaçadoras agem no sistema que se deglute pelo estado de opressão e a desconfiança da vigilância. Essa ambiguidade, em uma tentativa de jogar com o medo a seu favor, evita Bigelow de impedir o foco na pulsão pelo revide, das pessoas que aprenderam a estar atentas ao tempo presente, sem esquecer que as resoluções até são possíveis, mas a violência policial é causada por estruturas e não pela galeria de perversos que causam as atrocidades muitas de gênero e raciais. A população se revolta na festa do milênio, enquanto ouve o Skunk Anansie gritar que “Eles estão vendendo Jesus”, porque a pulsão da violência racista dos dois policiais pode ter causado os assassinatos, mas não causou o espancamento de Mace diante da multidão.

A chegada do milênio surge como prenúncio do apocalipse, do grande evento. O principal privilégio cyberpunk é buscar realidades de memórias para fugir do momento à beira do colapso, da tensão das ruas, dos anos 2000 em uma cidade com ânsia pelo fim do mundo. Esse fim do mundo é desejado como um sinal da mudança dos tempos, de que talvez as lutas sejam fortes o suficiente para desafiar e obliterar os sistemas presentes de governo e da economia, mas para as camadas privilegiadas com delírios de grandeza sobre seus problemas emocionais e suas intrigas afetivas, o apocalipse é apenas um desejo cínico de pulsão autodestrutiva de quem não tem o apreço pelo próprio corpo presente, e portanto parece o destino natural da violência, das pistas do crime, da paranoia. Mas como diz o personagem de Tom Sizemore no clímax: “não é nada; nunca é nada”. A grande conspiração megalomaníaca é apenas a forma delirante de auto importância que as camadas de cima veem para fugir da violência policial que os segregados sofrem diariamente.

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Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos

Por Luís Flores

Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.
– Não tenho porta – diz a pedra.

(Wislawa Szymborska)

 

    Na tela, uma pedra. Uma pedra no meio do caminho. Ela encara de frente, ou é antes encarada pelo olhar da câmera, com sua parte humana e sua parte de máquina, crédula de poder perscrutar o conteúdo do universo por completo, conhecer cada partícula que compõe a superfície do visível. A pedra é mostrada de perto, em um close acirrado que não permite identificar seu objeto senão por atributos menos categóricos, como a cor e a textura. Sobre essa pedra planificada, em todo caso, que ocupa a tela sem função aparente, sem fundação, surge a palavra Bassae. Trata-se do título de um curta-metragem de Jean-Daniel Pollet, lançado em 1964, no qual ele realiza justamente uma incursão poética ao templo de Apolo Epicuro no sítio arqueológico de Bassae, na Grécia. Ali, diante dessa edificação em estado de ruínas, são lançadas interrogações teórico-existenciais que tangem o cerne da experiência humana e sua percepção do tempo. O pensamento, ativado sob a forma de imagens, rigorosamente enquadradas, decompõe a matéria em fragmentos elusivos, sondando-a de perto sem jamais tocá-la.

    Ainda que tomando certa liberdade em relação a universos distintos, gostaria de confrontar os escombros do templo em Bassae, abordados por Pollet com ênfase ensaística, a outra aparição das ruínas, bastante diversa, em um filme de origem mbyá-guarani. Duas aldeias, uma caminhada (2009), dirigido por Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e Jorge Ramos Morinico, traz uma concepção imagética aberta, feita em proximidade com os personagens filmados e com o dia-a-dia na aldeia. As mediações técnicas, irredutíveis às convenções usuais do cinema, não coincidem com um discurso narrativo ou ensaístico fechado, estando vinculadas a uma reflexão mitológica que reescreve, cotidianamente, os elementos de ordem histórica. Em dado momento, os indígenas visitam a Tava de São Miguel Arcanjo, espaço sagrado construído por seus ancestrais a pedido da divindade Nhanderu. Mas, diferentemente de Bassae, onde o substrato temporal não abandona o centro humano da razão, as ruínas surgem aí em conexão com uma série de fundamentos cosmológicos que o filme elabora, dando a ver uma maneira alternativa de ordenar o tempo e a imagem.

    Em Bassae, que exibe um forte grau de estilização, a coluna de pedra é mostrada em plano médio, logo após o título, com a paisagem vazando pelas laterais. A câmera se aproxima lentamente do pilar, cujas marcas de desgaste são vistas entrecruzadas às linhas verticais da arquitetura helenística. Quando a coluna ocupa todo o quadro, um plano geral vem situar o conjunto das ruínas no centro da paisagem. Um novo corte, então, traz de volta a pele pétrea da coluna, seguida por um plano ainda mais geral que ressalta a pequenez do templo em meio às montanhas. Pollet alterna entre diferentes escalas, jogando com a percepção do espaço, ao som de uma música metalizada que lembra as badaladas de um sino – como se dessem concretude à passagem do tempo. Finalmente, enquanto a câmera circunda lentamente a coluna, entra em cena a voz over de Jean Negróni (o mesmo narrador da viagem no tempo de La Jetée, 1962, de Chris Marker) lendo um texto escrito por Alexandre Astruc e dando início a um magnífico vai-e-vem entre palavra e imagem.

Fig. 2Fig. 1

Muito se falou desse ensaio fílmico condensado, de nove minutos de duração, como uma simples meditação sobre as ruínas, com perguntas lançadas às vozes do passado que ecoam no presente. Foram raros os pensadores que captaram, para além de uma concepção histórica ou arqueológica, o sentido profundo da reflexão de Bassae sobre o tempo humano. Serge Daney, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinèma, foi um dos poucos que chegou perto de apreender esse gesto: “O que sabemos, nós, das civilizações? Sabemos que são mortais. Pollet nos confirma que estão mortas. (…) O homem talvez seja apenas um acidente da paisagem, bastante imperfeito, vulnerável e provisório”. O crítico francês apresenta Pollet como “o cineasta dos últimos momentos”, que “filma entre a condenação e a morte”. Ele chama atenção para o questionamento do conceito de humano operado ao longo do cinema de Pollet, seja nas ruínas e nos vestígios do Mediterranée (1963), no banimento dos leprosos em L’ordre (1973), co-dirigido com Malo Aguettant e Maurice Born, ou na solidão e no delírio de Le horla. “A loucura de Terzieff é a chegada da Horla e, portanto, a desaparição do Homem. A morte é o melhor álibi”.

    Divisamos, assim, três zonas abissais para a ordenação humana do tempo, não necessariamente segmentadas: a história, a alteridade e a mortalidade. O que Daney tateia, ainda sem chegar às últimas consequências, é o limite físico e conceitual do homem, sua insuficiência no sentido cósmico. Pollet, que tomou conhecimento do templo durante as filmagens de Meditarranée, dizia se interessar principalmente pelo seu duplo caráter de “fim do mundo” e de “centro do mundo”, uma espécie de princípio e limite de tudo, entre criação e destruição. A construção do filme, todavia, não deixa de lançar suspeitas sobre essas próprias noções de fim e de centro, preservando certa zona de opacidade sobre a suposta realidade histórica das ruínas. “Queria fazer um filme sobre esse objeto que perdeu toda a significação, mas possui um potencial misterioso, fantástico”, afirma o diretor.

    Bassae (1964), que não possui, a rigor, objetividade documental, privilegia imagens que flertam com o desconhecido e assumem, como princípio especulativo, um franco desejo de exploração espaço-temporal. Há, na visualidade da câmera, um misto de fascínio e de espanto, resultando em planos fechadíssimos, ávidos por se aproximar da matéria, e também em movimentos de deriva ou recuo, quando o olho parece titubear. Entre planos gerais e close-ups, o filme apreende as ruínas tanto no contexto amplo (paisagem, nuvens, céu do Mediterrâneo, montanhas, pedras ao redor) quanto nas particularidades (chão despedaçado, pilares quebrados, fileiras de colunas), criando contrastes não cartesianos entre o efêmero e o duradouro. Em certos enquadramentos, o templo é excluído do campo de visão, evidenciando a importância do entorno (montanhas, nuvens, pedras). Nessa disputa entre ordem e desordem, entre humano e divino, os fragmentos antes organizados em arquitetura são agora tomados pela relva, e retornam lentamente, “como mastros de um navio fantasma, à sua lenta passagem pelo reino mineral, que em momento algum havia deixado de ser o deles”.

    A multiplicação dos ângulos e pontos de vista reflete, assim, uma tentativa de pensar os fundamentos do visível, sendo complementada, nessa caméra-stylo a quatro mãos, pelos comentários tecidos por Astruc. As peças extraídas filmicamente do espaço já são, de certa forma, “estratos” da antiga ordenação do templo, remetidos agora ao âmbito assombroso de uma pré-história, afinal, “estamos ainda no primeiro dia, antes do começo de tudo”. A natureza retoma seu domínio sobre as coisas, no qual as “árvores petrificadas imitaram a forma clássica de um templo somente pelo tempo de um bocejo”. O homem é devolvido à condição biológica, pois “nada neste cemitério mineral, evoca a possibilidade mesmo acidental em favor da vida humana”. Esse templo, antigamente destinado a um deus antropomórfico, é recapturado pelo “velho deus do tempo, de quando não havia homens e nem mesmo o próprio tempo”. A humanidade, com suas maneiras costumeiras de pensar a história e construir relações temporais, é colocada em questão diante desses pedaços de pedra para os quais, em última instância, “não há história própria. Não há lugar”.

    Bassae introduz fissuras nas cronologias usadas pelo chamado gênero humano para se orientar no tempo, cronologias que privilegiam as bases ontológicas e perceptivas de um sujeito específico, em detrimento de outras formas de vida humanas e não-humanas. Como aponta o filósofo argentino Fabián Romandini, nada garante sequer que o vivente humano seja o limite e o correlato necessário da história, sendo que esta talvez precise ser reformulada de maneira mais aberta, digamos, mais “imprópria”, como a história dos ecossistemas da vida cujas relações com uma história cósmica do Universo antes mesmo de qualquer substrato biológico não devem ser ignoradas. Talvez, afugentados pelo potencial devastador dessa tarefa, muitos filósofos a tenham evitado ao longo dos séculos, preferindo alimentar ilusões mais positivas sobre a humanidade.

Fig. 3 Fig. 4

    A questão da temporalidade, em todo caso, “essa física aparentada com os fenômenos do cosmos”, está inevitavelmente ligada à questão da ontologia da imagem, para além do reflexo no espelho e da insistência narcísica. Na ontologia Yanomami, por exemplo, segundo Davi Kopenawa, ser é imagem, é existir por outrem. Sem dúvida, Bassae é um filme atípico dentro da tradição visual euro-ocidental, na medida em que não reproduz por completo o problema do ser e do tempo, produzindo nele algumas tensões. A câmera, em especial, não tenta estabelecer uma zona de conforto, optando por sublinhar certo estado de desintegração do templo, abandonado, desapossado, desprovido de função. Porém, no tocante ao texto, ainda que reforce frequentemente uma poética das ruínas, ele não deixa de enunciar um “eu” que parece remeter ao cineasta-narrador (“eu multiplico os pontos de vista”), e que se autoproclama, no desfecho da obra, “o Verbo”, tudo leva a crer, na modalidade escrita. Além disso, o aspecto mais enfático e tradicional do comentário de Astruc propicia uma relação de organicidade com as imagens, corroborando uma perspectiva logocêntrica. Algo observável, em menor escala, na utilização da música que, se por um lado cadencia a ideia do tempo, por outro confere ao templo certa ilusão sonora de majestade.

    Correndo o risco de fazer um salto brusco, tento olhar agora para Duas aldeias, uma caminhada, em busca de uma forma de ordenação imagética e temporal não restrita aos estilhaços da tradição eurocêntrica. No começo do filme, uma mulher e uma criança mbyá-guaranis caminham na beira da rodovia, essa via de traslado que, assim como o templo de Bassae, constitui um dos marcos da civilização ocidental. Do asfalto, passando pela estrada de terra, somos levados em deriva até Tekoá Anhetenguá, a “Aldeia Verdadeira”, em Porto Alegre (RS). Nela, acompanhamos homens e mulheres indígenas em atividades cotidianas, como o despertar, a cantoria (de cunho político), a caça, a procura do mel, a roda de chimarrão, a confecção do artesanato, a ida à cidade. Em cada momento, há um ímpeto de reestruturação temporal no qual a imbricação das palavras, dos gestos e dos movimentos de câmera transborda tanto a duração do filme quanto o corte cronológico, abrigando outras relações possíveis.

    Diferentemente de Bassae, onde o tensionamento da história depende dos deslizamentos ensaísticos entre palavra e imagem, a imbricação dos tempos em Duas aldeias se dá na própria cena, como um tipo de cinema direto, não apenas porque o tempo do mito e o de hoje são contemporâneos, mas porque a própria ideia de mundo pressupõe, para citar Viveiros de Castro e Déborah Danowski, “um gigantesco acordo discordante, mutável e contingente das intencionalidades múltiplas e distribuídas por todos os agentes”, humanos e não-humanos. Nesse sentido, as operações fílmicas ressaltam um uma dimensão cosmopolítica que implica, para cada gesto cotidiano, relações latentes com o invisível, de modo que o espírito da humanidade apresenta afinidades significativas com o espírito das abelhas ou dos deuses, em um tipo de “platonismo às avessas”.

    Isso pode ser observado, por exemplo, na cena da busca pelo mel. Após o plano paisagem da aldeia cercada pela cidade em expansão, um garoto mbyá-guarani segura uma colmeia e tenta explicar o motivo das abelhas terem abandonado suas casas. “Algo estava incomodando elas. (…) São que nem os mbyá-guarani. Não foram embora porque queriam. Às vezes, os mbyá-guarani se mudam porque tem alguém incomodando”. A montagem, então, parece ressaltar essa associação, ao conferir agência às abelhas e colocá-los logo após o plano da paisagem, além do mel retornar no mito cosmogônico do filho de deus, Papa Mirĩ. E também a caça, ao longo do filme, acolhe relações que vinculam tempo histórico e tempo cosmológico. O jovem mbyá-guarani conferindo se o gambá está na fissura de um tronco, o buraco do tatu sendo cutucado pelo mesmo jovem, um grupo de indígenas assando passarinho no meio da mata, o garoto fazendo armadilha de pegar passarinho e, por fim, o mbyá-guarani mais velho lamentando a escassez de animais para serem capturados na atualidade. “Se estivéssemos num lugar com mais mata, os deuses teriam muitas coisas para nos dar de comer. (…) O Javali tem um deus, um dono com morada aqui na terra. Se você meditar para esse deus, ele vai permitir que o Javali pise na armadilha para você comer”.

Fig. 5Fig. 6Fig. 7 Fig. 8

    Na parte final do filme, os indígenas vão vender artesanatos na Tava de São Miguel Arcanjo, um espaço sagrado, construído e habitado por seus ancestrais mbyá-guarani a pedido da divindade Nhanderu. De um ponto de vista histórico-político, ela é crucial para a memória e a afirmação da identidade, mas não é nesse aspecto que nos concentraremos. Para além dos limites históricos, a Tava está inserida em uma concepção temporal capaz de abrigar oposições entre os mundos celestes e terrestres, mortais e imortais, imperecíveis e perecíveis. Após uma série de contatos com os brancos, visitantes “espaçosos” que adentram o território com postura turística, fazendo perguntas incômodas ou manifestando preconceitos, um grupo de indígenas começa a caminhar em direção às ruínas. Um deles conta a história das violências que seus antepassados sofriam nas mãos de missionários e colonizadores. Com efeito, para os povos indígenas na pós-colonização ou para negros e negras submetidos à diáspora – como reflete Kênia Freitas – o mundo de certo modo já acabou, o apocalipse aconteceu e eles continuam aqui. Por isso, Ailton Krenak pode dizer com firmeza: “Não é a primeira vez que profetizam nosso fim, já assistimos a várias profecias. Enterramos todos os profetas.”

    Na narrativa mítica da Tava, portanto, um mbyá-guarani teria escapado dos carrascos e voltado depois, quando as coisas estavam mais calmas, sentando-se no pátio com as crianças. “Foi aí que apareceu a Cobra Grande”. Nesse momento, a cena evidencia a importância do invisível, e a força mítico-cosmológica da palavra, de valor predominantemente oral, vem tomar conta das imagens. Como que reforçando o transbordamento do relato, a tela, ocupada até então pelo registro direto da realidade, é tomada por uma série sutil de quatro imagens divergentes – três fotografias quase pictóricas das ruínas e um desenho de ordem “sobrenatural” – sublinhando o rompimento com uma sensibilidade prévia. Esse operação da montagem, que acompanha a oralidade da cena, produz uma conversão imagética tão profunda quanto intangível: ela não abala as aparências do visível, mas desloca contundentemente seus sentidos. Toda a temporalidade do filme, narrativa ou histórica, é como que ressignificada pela força do mito.

Fig. 9Fig. 10Fig. 11Fig. 12

    Nas paredes internas da Tava, o grupo aponta as manchas de sangue e gordura da Cobra Grande, esmagada pela intervenção de Tupã. “Algumas vezes, quando você olha, a gordura fica mais visível”. Algo que o olhar do branco, condicionado por certa formatação da história e por certa recusa da “sobrenatureza”, não logra alcançar. Se até então o filme havia sustentado uma simultaneidade entre o índio e o branco, que partilhariam o mesmo presente no espaço das ruínas, agora, a partir dessa fenda cosmológica, “nós” brancos somos remetidos a um passado fossilizado, enquanto os indígenas ressurgem como o futuro de uma história reescrita, “a contrapelo”, na tessitura do mito. Sem o intuito de generalizar, é curioso notar uma dinâmica semelhante em outro filme mbyá-guarani, Ava Yvy Vera, dirigido por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites. Após operar, por quase 45 minutos, uma documentação atenta da vida em comunidade, atravessada por reencenações do passado recente, o filme é tomado pela energia cósmica dos relâmpagos, que surgem indomáveis em meio à escuridão. “Cheguei no lugar do raio sem fim”, afirma a voz de um dos personagens. “O tempo é assim”.

Fig. 13 Fig. 14

    “Nenhuma história antiga nossa, nenhuma, admite que a gente vai acabar. Temos uma narrativa que é cósmica, uma cosmogonia. Nós não estamos aqui”. Com essas palavras, Ailton Krenak fala a verdade que a filosofia ocidental, aterrorizada pela própria loucura, tentou constantemente ocultar com a falácia da razão: não estamos sozinhos. Estamos, isso sim, ensimesmados em uma perspectiva especista e racista, de um mundo supostamente neutro, pretensamente universal, aniquilando as outras possibilidades de mundo, os mundos dos outros. Não pretendo, com isso, desmerecer o trabalho de Pollet, esse “cineasta dos últimos momentos”, que cumpre renovações estéticas e investigações fundamentais para se repensar criticamente determinada tradição da imagem e da história. Apenas indicar que essa visão, fundada em ontologias eurocêntricas, talvez se beneficie do reconhecimento de pontos de vista discrepantes, como é o caso dos cinemas indígenas. O fim do mundo, afinal, depende de qual mundo falamos, e não passa de um estado provisório para quem entende o cosmos como uma “guerra dos mundos” (indígenas contra brancos, animais contra humanos, Gaia contra a civilização). Guerra essa que, para convocar a noção usada por Bruce Albert ao descrever a politização do xamanismo Yanomami, toma a forma de uma “guerra das imagens”. As imagens, aliás, continuam a viver, especialmente para os que constroem a existência nos reflexos do imperecível e buscam estabelecer, nos limites temporais do mundo visível, abordagens cosmológicas mais porosas.

Fig. 15

Lista de leituras

Ailton Krenak. Entrevista disponível em https://amazoniareal.com.br/nao-e-a-primeira-vez-que-profetizam-nosso-fim-enterramos-todos-os-profetas-diz-ailton-krenak/.

Bruce Albert. “Yanomami : retour sur image(s)”. Publicado em Fondation Cartier Trente ans pour l’art contemporain, vol 2, pp. 237-248. Paris : Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, outubro de 2014.

Daniel Calazans Pierri. O perecível e o imperecível. Livro publicado pela editora Elefante.

Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Livro publicado pela editora Companhia das Letras.

Fabián Ludueña Romandini. A ascenção de Atlas: Glosas sobre Aby Warburg. Livro publicado no Brasil pela editora Cultura e Barbárie.

Serge Daney. “Pollet: Le Horla”. Texto publicado na revista Cahiers du Cinèma, número 188, de março de 1967.

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Um outro destino para o tempo em O sacrifício, de Tarkovski

Por Chico Torres

“Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada”

(Tarkovski, Esculpir o tempo)

(imagem de abertura)

Questões sobre destruição, ruína e catástrofe são constantes na obra de Tarkovski. Como bem apontou Adalberto Müller, em artigo para a revista Cult: “A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício”.

Trago aqui algumas reflexões sobre o tempo no sentido histórico e, mais especificamente, sobre alterações de padrões comportamentais que podem ser concebidos também sob uma mudança (muitas vezes radical) na percepção do tempo e da história. Irresponsavelmente, ponho em diálogo algumas frentes filosóficas antagônicas, como é o caso de Santo Agostinho e Nietzsche. Também estabeleço uma conversa entre Walter Benjamin e Tarkovski, além de trazer algumas concepções sobre a filosofia da história. O que pretendo aqui, através de Tarkovski e da filosofia, é pensar novos modos de vida que podem surgir através de uma outra vivência do tempo histórico e, por que não, subjetivo.

Na Grécia Antiga, o tempo não era concebido de modo linear. Havia uma concepção cosmológica que fazia com que os gregos definissem o Universo (Cosmos) como um processo fechado e interdependente. Essa tendência está muito presente na filosofia pré-socrática, mas temos ideia do seu alcance se observarmos, alguns séculos depois, a noção de causa em Aristóteles, em que todo o processo que constitui isso que chamamos de realidade funciona através de um logos que “orienta” as causas, em que todos os fenômenos estão conectados a uma “causa final” e necessária. No cristianismo e posteriormente no mundo moderno, representado especialmente pela filosofia de Kant, a noção linear do tempo se estabelece, assim como um ideal de progresso humano. O plano iluminista começa a cair por terra no século XIX, mas é no século XX que se desenvolvem críticas consistentes sobre todo o ideário progressista. No cinema, Tarkovski é um de seus críticos mais fervorosos.

Em O sacrifício, o tema do fim do mundo pode ser compreendido sob diversos aspectos, mas pelo menos dois deles me parecem evidentes: uma crítica à sociedade moderna e ao ideal de progresso propalado pela mesma, já que no filme o fim do mundo é produzido pelo avanço técnico responsável, entre tantos outros malefícios, pela bomba nuclear; e o rompimento com essa sociedade através de um ato de fé, um sacrifício de uma vida inteira realizado através da vivência de um milagre. Todos nós sabemos da ligação de Tarkovski com o cristianismo e o modo como ele transporta para a arte seus ideais de fé, moral, verdade e espiritualidade. Apesar disso, Tarkovski nunca produziu obras moralistas, mas sempre polissêmicas e carregadas de um misticismo que está além de algum tipo de cartilha religiosa institucional, pois o olhar místico leva, em última instância, para a salvação pela arte, pela imagem sacralizada.

No início do filme, Tarkovski apresenta o protagonista, Alexander, realizando uma tarefa curiosa: ele planta uma árvore morta, seca. O personagem nos fala, enquanto realiza a atividade, sobre uma fábula oriental na qual um homem faz o mesmo que ele: planta e cuida de uma árvore morta. Depois de três anos fazendo diariamente aquela mesma coisa, o homem da fábula nota que a árvore renasce e dá flores. Após contar essa anedota, Alexander afirma que uma simples ação repetida cotidianamente deve, de algum modo, mudar algo no mundo. Mudança não em sentido metafórico, mas uma mudança concreta, como se houvesse uma força holística a reger os fenômenos. Após essa cena, surge a figura enigmática do carteiro (Otto), que divaga junto a Alexander sobre o conceito nietzschiano do eterno retorno. Penso que toda essa cena inicial, filmada magistralmente em um único plano, abarca significativamente as intenções mais fundamentais do filme, já que todo o seu desenvolvimento terá como princípio esse conflito entre a ordem “natural” das coisas, em sua temporalidade linear, e um tempo que rompe com essa estrutura e transcende os limites do cotidiano.

(imagem I)

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Nietzsche, voltando seu pensamento para a filosofia pré-socrática, considera o universo não como infinito, mas como um sistema fechado, cíclico. Nessa perspectiva, todo o movimento, tudo o que existe e é experienciado, irá se repetir infinitamente, visto que as trocas entre os elementos são limitadas. Além de pensar o eterno retorno como a repetição das forças cósmicas, expressadas em qualquer aspecto da vida, há também a perspectiva de pensar esse conceito como uma nova forma de lidar com a temporalidade, expressa em condutas libertadoras e de desapego. É assim que Otto se expressa a Alexander, afirmando que o mesmo, apesar de todo o seu sucesso como intelectual, ainda é um ser angustiado e cheio de expectativas. Nietzsche possui uma noção na qual presente, passado e futuro são exterminadas em nome de uma vivência mais autêntica no agora (pois apenas o agora existe), em que o esquecimento, e não a memória, tem muito mais forças propulsoras de transformações efetivas. Ironicamente, a mudança parece vir da aceitação de um ciclo que se repete e, consequentemente, tal ideia deve gerar um esvaziamento libertador, quase um estoicismo.

Essa concepção corrobora com a filosofia amoral de Nietzsche e da sua transvaloração dos valores. Se tudo é troca infinita de forças (e nada mais do que isso), então todo o projeto humano calcado no ideal de progresso, evolução e superação precisa ser revisto, assim como todas as instituições, todos os conceitos básicos que constitui isso que chamamos de civilização, incluindo aqui o que entendemos por ciência, arte, técnica, história, etc. Em O sacrifício, a crítica ao progresso é evidente, mas Tarkovski faz também uma reflexão mais profunda sobre outra possibilidade de existência calcada na radicalização da compreensão de um rompimento com a marcha do progresso e das convenções sociais, que no filme se concretiza com o personagem incendiando a própria casa e “abandonando” a família, caindo em processo de enlouquecimento, evidentemente julgado por outrem. Em Agostinho, em suas reflexões sobre o tempo, ainda que se estabeleça um tipo de tempo cronológico, há uma belíssima consideração sobre o “eterno agora”, que seria o “tempo” de Deus, mais precisamente, a Eternidade que antecede qualquer tempo. A meu ver, o eterno retorno nietzschiano se assemelha com esse eterno agora agostiniano, mas a ambição de Nietzsche é muito maior: tirá-lo de Deus e torná-lo humano, ainda que o preço por isso seja alto demais. Não é em vão que Alexander toma atitudes extremas, como tantos outros personagens de Tarkovski que se sacrificaram em nome de uma vivência que “atingiu a transcendência”: basta pensarmos no Stalker e no personagem que incendeia a si mesmo em Nostalgia. A construção temporal de Tarkovski, exposta em sua obra cinematográfica e em seu livro Esculpir o tempo, revelam uma preocupação em capturar o instante em sua pureza, através de uma suspensão do tempo e seus entraves cotidianos. O ideal de Tarkovski é capturar na imagem a eternidade, o agora em sua singularidade, em busca de uma revelação mística através da contemplação do plano.

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Outro pensador, agora contemporâneo, também pensou sobre novas e radicais possibilidades de experiência através de reflexões sobre o tempo. Walter Benjamin, vinculado estreitamente ao aspecto fragmentário e ao poder das imagens e da ruína, cunhou o conceito de tempo-do-agora, nas famosas teses sobre o conceito de história. Uma proposta ousada que une messianismo judaico e marxismo. No judaísmo, esse tempo-do-agora seria uma interrupção do tempo concebido como homogêneo e vazio, para uma reestruturação da vida através de uma noção de redenção. No marxismo, essa interrupção e redenção não se dariam pela volta do Messias, mas pela atividade revolucionária que deve estar atenta as convulsões sociopolíticas provocadas pelo ideal de progresso. É famosa a imagem criada por Benjamin do anjo da história, em que é arrastado por todos os entulhos e ruínas que são o resultado da cultura que “progride” na medida em que acumula injustiças e exploração. Benjamin quer, portanto, acertar contas com o passado, vendo em uma reparação social uma nova maneira de estimular a emancipação humana. Mais uma vez a temporalidade convencional é colocada em cheque em nome de uma vida mais autêntica.

A atitude de Alexander me leva a pensar em semelhanças entre essa concepção de Benjamin e Tarkovski. Em ambos, há uma explícita crítica ao progresso e à técnica usada para fins nefastos. Se em Benjamin há um impulso revolucionário e ao mesmo tempo messiânico de interrupção da história e sua temporalidade tendenciosa, em Tarkovski, há o mesmo impulso, mas sempre manifestado na atitude isolada, deslocada da organização política e, portanto, oprimida e silenciada. O que se vê em Tarkovski é uma utopia que se concentra em apenas um sujeito e se expande, diante de nós, como sonho irrealizável, apenas presente na imagem artística. Se Benjamin acreditava em mudanças concretas, Tarkovski nos diz que é tarde demais, nos restando simplesmente contemplar aquilo que se perdeu.

Eterno retorno; eterno agora; tempo-do-agora; tempo cíclico e interrupção messiânica através da ação política e da arte, não são poucas as perspectivas lançadas por artistas e pensadores para propor novos e desafiadores olhares sobre a cultura ocidental. O sacrifício, com Alexander ateando fogo em sua própria casa, abrindo mão de tudo diante de um novo e redentor significado da vida, acaba por representar, no cinema, uma das mais potentes críticas a uma sociedade há muito adoecida pelo ritmo de Kronos. Ao esculpir outro destino para o tempo, Tarkovski nos mostra o quanto precisamos morrer para que surja, mesmo que em sonho, uma nova vida.

Referências:

Ambiências do sagrado (2017), de Adalberto Müller.

Confissões (2011), de Santo Agostinho;

Assim falou Zaratustra (2011), de Friederich Nietzsche;

Sobre o conceito de história (2012), de Walter Benjamin ;

Esculpir o tempo (2010), de Andrei Tarkovski.

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Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em S/Z, Barthes defende que uma das características do texto clássico é a especificação crescente, em que cada descrição e acontecimento gradualmente limita as possibilidades da narrativa[1]. A progressão do enredo tende a nos fazer esquecer que a história poderia ter seguido rumos diferentes e mesmo as eventuais releituras e revisões acabam sendo condicionadas pelo desenlace já conhecido. Esses aspectos são claramente perceptíveis no cinema de franquias, em que cada nova iteração precisa se ater a um cânone ou incorrer na acusação de heresia. Esse cabresto também é aplicado retroativamente: o primeiro filme de uma série é frequentemente valorizado de acordo com a quantidade de elementos canônicos que prefigura, enquanto os pontos discordantes são ignorados ou menosprezados.

No caso de Mad Max (George Miller, 1979), os pontos discordantes são indisfarçáveis. Enquanto suas três sequências (de 1981, 1985 e 2015) são pós-apocalípticas, ambientadas décadas depois do colapso da civilização, o episódio inaugural se passa em um mundo quase inteiramente familiar. Logo depois dos créditos, há o aviso de que estamos em um futuro próximo (‘A FEW YEARS FROM NOW’), embora boa parte da ambientação pareça simplesmente a Austrália de 1979 em um filme de baixo orçamento. Mesmo a presença de gangues caricatas não serve de índice futurista, considerando quantas vezes o cinema das décadas de 60-80 (pós-contracultura, pós-movimentos pelos direitos civis) representou marginais desgrenhados como a encarnação dos medos conservadores. Nesse mundo, o comércio e a prestação de serviços ainda funcionam: vemos casas noturnas, sorveterias e hospitais. Há um único sinal inequívoco, portanto, de que a Ordem se encontra nos estertores: o prédio-sede da polícia, dilapidado e quase vazio.

Em um momento decisivo da trama, o protagonista se sente afetado pela anarquia crescente e resolve tirar férias com a família. Nesse ponto o filme se transforma: Max, mulher e filho vestem as melhores roupas e viajam para o campo, onde a crise social parece exorcizada. Os partidários dos “roteiros plausíveis” provavelmente considerariam a premissa absurda: que tipo de gente sai de férias em meio ao caos? Penso, contudo, que esse é o elemento mais perceptivo da obra, ilustrando o nível de negacionismo mobilizado por uma sociedade para rejeitar as evidências de que seu modo de vida não é mais sustentável. Mas a ilusão de segurança é frágil e a mesma gangue enfrentada por Max em seu trabalho como policial vêm romper definitivamente o idílio.

Como se demarca um fim de mundo, a transição entre normalidade e a catástrofe? Em Mad Max, assim como na cultura hegemônica do século XXI, a gravidade da crise só se torna clara quando a família branca das nações desenvolvidas é sacudida de sua habitual posição de conforto: para as demais populações, as distopias já começaram muito mais cedo.

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Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) também nos situa “alguns anos no futuro” e, assim como no filme de Miller, apresenta poucas diferenças evidentes entre seu universo ficcional e as representações do presente. Há, no entanto, o detalhe periférico de um televisor ligado, na qual lemos as palavras: “AO VIVO. EXECUÇÕES PÚBLICAS RECOMEÇAM ÀS 14H – VALE DO ANHANGABAÚ”. O prefixo recomeçam – indica uma barbárie já instalada e provoca a pergunta: quando teríamos transposto aquele limite? Considerando que o jornalismo policial clama há décadas pelo extermínio dos “bandidos” e o número efetivo de mortos em “confrontos com a polícia” no Brasil, essa fronteira já não teria sido ultrapassada?

Situar uma narrativa pessimista em um futuro próximo possui, em princípio, uma carga perturbadora, sugerindo que pouco separa a nossa realidade dos piores cenários. Ao mesmo tempo, o expediente interpõe uma distância reconfortante entre o presente e a catástrofe. Resta, dessa forma, uma gama de opções ante os prognósticos adversos, da sensação de urgência ao derrotismo e a negação, escolhas que poderão ser postergadas até que finalmente alcancemos o ponto da irreversibilidade.

P.S.: Agradecimentos a Victor Lopes pelo incentivo, a Juliana Fausto pela ajuda com a redação de um trecho e aos editores da Multiplot pela paciência.

Referências

Roland Barthes, S/Z. Éditions du Seuil, 1970

[1] Éditions du Seuil, 1970. Paráfrase livre do que o autor escreve sobre a redução da pluralidade no texto clássico em várias passagens, como nas seções VI, XV e XL e também sobre a nominação na seção XI. As frases posteriores à referência são extrapolações por minha conta, acreditando que a situação mudou muito desde que Barthes escreveu que “os hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade recomendam que joguemos fora a história uma vez consumida” (seção IX, p.20, tradução própria).

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À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt

Por João Pedro Faro

“Seria esse o objetivo do armagedom? Terminar com ambiguidades, acabar com qualquer dúvida.”

Ruído Branco, de Don Dellilo (trecho).

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Durante décadas, houve incerteza sobre qual seria a real conclusão da sísmica cena final de A morte num beijo (1955, Robert Aldrich). Uma das versões, a mais circulada, encerra o filme com o casal Ralph Meeker e Maximine Cooper presos na casa de praia onde uma bomba atômica acaba de ser acionada. A casa explode e o letreiro “The End” surge por cima da catástrofe nuclear. Uma segunda versão, redescoberta tardiamente, mostra Meeker e Cooper conseguindo fugir de dentro do local e assistindo à explosão caídos na areia. Os dois se beijam e o “The End” aparece na tela em um desfecho menos abrupto. Porém, a real diferença entre os dois finais não está entre a vida e a morte dos protagonistas. Afinal, a bomba atômica explodiu, o apocalipse é iminente e acontece em ambas as versões. Os amantes vão morrer de qualquer jeito. O que muda no segundo final é que Aldrich permite ao casal um último beijo desesperado antes do fim do mundo.

Miracle Mile (1988, Steve De Jarnatt) funciona como uma expansão do que foi proposto por Aldrich 30 anos antes: a iminência da fatalidade em uma última chance de entrega ao outro. O romance de paranoia nuclear que acompanha Harry (Anthony Edwards) noite adentro, tentando fugir com sua recém-conhecida amada Julie (Mare Winnigham) nos 70 minutos restantes antes da chegada dos mísseis soviéticos que apagarão Los Angeles do mapa, torna um ideal típico de paixão perfeita em um inevitável refúgio por uma morte menos solitária.

Em seu monólogo inicial, Harry esclarece que passou toda sua vida atrás de alguém como Julie. É um discurso de sentimentos fatalistas, da certeza de que encontrou uma companheira ideal. O que funciona, em um primeiro momento, como uma banalidade sentimental que preza pela estabilidade dos desejos, retorna posteriormente como a totalidade das impressões de um indivíduo que vê o fim da própria vida. Harry nunca desiste de tentar achar um meio de sair da cidade com Julie antes da chegada do míssil, mas a cada tentativa tudo parece estar mais próximo de acabar. É desse efeito de exaustão, de sobrevivência falida, que o romance vivido pelo casal vai se concretizando do jeito mais essencial: através da desesperança de que a vida possa continuar e sua intrínseca energia para consumir tudo que resta, no tempo que resta.

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Existe uma sensação totalizadora em Miracle Mile quando Jarnatt apresenta o último momento da vida na terra como um filme que corre em círculos. Harry passa grande parte da projeção perseguindo objetivos mínimos que acredita que possam salvá-los, sendo essa busca incessante por salvação cada vez mais desacreditada. Ele nem parece conseguir sair do mesmo quarteirão durante todo o tempo. Portanto, Miracle Mile acaba sendo a mais enérgica obra sobre melancolia de sua geração – tudo parece tão gritante, tão histérico e, ao mesmo tempo, tão inútil e tão impossível. Essa sensação culmina na sequência mais destrutiva do longa: Harry, descendo pelos esgotos e saindo pelo bueiro, sobe em cima de um carro em uma avenida, podendo ver as consequências totais que o anúncio televisivo do apocalipse trouxe à população. Carros se acumulam em um trânsito inconcebível, não sobra espaço no asfalto, tomado tanto pelos automóveis empilhados quanto por corpos que se esbarram, correm e gritam. Casais fazem sexo em frente às lojas, saqueadas e destruídas por uma multidão sem propósito de existência além do consumo final de tudo aquilo que está em sua frente. O fim do mundo não é triste, é apenas excessivo.

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Essa sequência pode ser também considerada a única resposta no cinema americano ao trânsito de Week-End à Francesa (1967, Jean-Luc Godard). Enquanto o armagedom godardiano é repleto de tédio, do esvaziamento intelectual na existência francesa, o grande apocalipse americano é constituído pela inexistência de limites entre o consumidor e o consumo, tudo em tela se devora, tudo em tela precisa ser associado, tomado para o indivíduo antes que não exista mais o que consumir ou quem consuma. Enquanto os burgueses de Godard definham até serem canibalizados pelos mais jovens, os personagens de Miracle Mile aproveitam o tempo que sobra para se comerem. Não à toa, o trânsito apocalíptico de Week-End acontece em uma sequência de 8 minutos, sem corte, enquanto o de Miracle Mile pertence a um plano de pouco mais de 30 segundos.

Nada tão certeiro quanto o responsável por um longa tão definidor ser Jarnatt, um diretor sem carreira, autor de uma só obra, que atualmente vive em sua casa no interior, ao lado de um bunker que ele mesmo construiu. Miracle Mile parece um expurgo de alguém sem muito mais a dizer, que, assim como seus personagens, apenas pôde aproveitar o pouco que tinha em mãos. Segundo o próprio Jarnatt, toda a ideia surgiu a partir de paranoias próprias sobre o seu estado presente, portanto é mais do que justo que um filme tão fechado em si mesmo possa querer ser tão totalizador sobre o estado de espírito de um humano em completo desespero com o tempo em que vive.

O anseio de Jarnatt por temas e ideias maiores do que o próprio filme (difícil pensar outra coisa de um longa que abre com uma narração de museu sobre o início da vida na terra) funciona pelo afunilamento, narrativo e visual, que Jarnatt atinge ao focar no casal de protagonistas. Enquanto tudo se encaixa para que a câmera só consiga enquadrar o rosto de Harry e Julie se encarando em desespero, recorda-se o aspecto clássico do romance de acaso que inicia a jornada dos dois. Nos minutos finais, que acompanham os amantes prestes a morrer, tão próximos que parecem um só, a carga de um universo gigantesco e caótico, exterior aos dois, mostra-se essencial para que haja a potência nos últimos close-ups do beijo antes da morte; justamente porque faz tudo parecer tão pequeno diante da necessidade daqueles rostos em encontrar-se fisicamente até os limites do próprio corpo. Não há como ficar sozinho, não há como não querer ao outro quando tudo está para sumir.

A única forma que Jarnatt encontra para que qualquer ideal romântico exista naquele espaço e naquele tempo, do consumo banalizado como único motivo de existência, é que ele aconteça pelos meios mais primitivos da necessidade de se ter alguém próximo enquanto aguarda o juízo final. Harry e Julie são apresentados como o último casal da humanidade, unindo-se cada vez mais enquanto chega o fim do mundo. Simplesmente porque não resta fuga, não resta sobrevivência, resta apenas o que está ao seu alcance. No caso, resta a Harry estar com Julie, e resta à Julie estar com Harry. São pessoas com sentimentos, fruto de um desespero, como quaisquer outras, porém contempladas pela troca genuína de necessidades mútuas enquanto afundam para tornarem-se fósseis. O acaso do encontro perfeito só é possível às vésperas do colapso da terra, e só é completo quando tudo acaba.

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