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Contra o silêncio do amor, a poesia e a revolta: Um olhar sobre Tongues Untied de Marlon Riggs

 

Por Chico Torres

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Quero agradecer a contribuição de Janderson Felipe e Lucas Litrento. Ambos me abriram os olhos para o cinema e para a literatura negras. Dedico este texto a eles.

 

Sou uma máquina de escrever excitada. Egoísta, sábia, um soneto, um beatbox (…) Molhe-me com a língua seguinte, com um coro ressoante de homens adultos apaixonados” (trecho de um poema lido por Essex Hemphill em Tongues Untied).

 

Uma língua desatada está disposta tanto à fala quanto ao prazer. Uma língua liberta clama por palavra e saliva, mas quando está presa o que se ouve é apenas o silêncio. Tongues Untied (1989), de Marlon Riggs, é sobre quebrar esse silêncio através da língua em sua mais alta potência. A obra põe em diálogo elementos que, em um mundo cartesiano, podem ser vistos como antagônicos, mas que lá coexistem perfeitamente simbolizados por aquilo que a língua pode suscitar: sexo e razão, política e poesia, corpo e alma, som e silêncio.

O filme pode ser classificado de diversas formas: documentário, ensaio, manifesto, mas tudo isso sob um elemento norteador: o relato autobiográfico. Seguimos as memórias de Marlon Riggs, monólogos sobre experiências e traumas de um norte-americano negro e homossexual durante a década de 1980. Sua expressão física e intelectual é uma mistura de ancestralidade, raiva e melancolia. Riggs mostra através do seu corpo e de seu texto a exata proposta do filme: denúncia e valor documental sobrepujados pela poesia, pelo poder da voz, do som, da liberdade da mente e do corpo. Ele não está sozinho em seus monólogos, há uma série de personagens que o representam: homossexuais, poetas, artistas, mas também homens raivosos. É dá boca de Essex Hemphill, a voz responsável por todas as intervenções poéticas do filme, que ouvimos que “é mais fácil ficar furioso do que se emocionar”. Aqueles homens compartilham da mesma dor e do mesmo desejo de viver plenamente seus talentos e sentimentos, mas que são impedidos pelo racismo e homofobia cotidianas. Antes de panfletário, Tongues Untied é um filme sobre a possibilidade de amar.

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Vivendo de amor, texto de Bell Hooks, desenvolve um olhar sobre como o racismo em toda a sua complexa estrutura é responsável pela falta de expressão de afeto entre pessoas negras, sobretudo mulheres, já que, para o racismo, elas são estereotipadas como “mulheres fortes”, enquanto os homens negros como engraçados e infantiloides. Segundo Hooks, expressar afeto se torna uma tarefa árdua quando o que sempre se impõe é a noção de sobrevivência. Como amar se o tempo todo se viveu violência e perseguição? “Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.” Amor como ato de resistência, não há melhor expressão para definir as intenções de Riggs e todos aqueles que o acompanham enfrentando a câmera. Ao olhar retrospectivamente, não é exagero dizer que esse tipo de problematização faz parte de uma tradição artística produzida por pessoas negras, basta pensarmos em Alice Walker e James Baldwing, ambos escreveram livros que tratam das dores e superações de personagens que estão em busca da compreensão e da realização do amor.

“Não importa quão bem construída a casa, não importa quão alta se eleve, ela precisa estar apoiada em algo” (provérbio africano citado em Black is Black Ain´t)

Em sua complexidade discursiva, Tongues Untied dá conta de temas centrais que se relacionam ao que é ser um homem negro e homossexual nos EUA: racismo em suas expressões físicas e verbais; a violência das ruas e a policial; preconceitos com soropositivos; opressão religiosa. De modo mais profundo, é igualmente sobre questões sutis que estão no âmago do ser complexo de Marlon Riggs. Por exemplo, a imposição ideológica e estética que se manifesta no próprio Riggs, quando revela que  desejava apenas homens brancos em sua juventude. Há também o desmascaramento da homofobia dentro da própria comunidade negra, e Riggs exemplifica isso com ícones do entretenimento (Eddie Murphy e Laurence Fishburne) para mostrar o quanto esses sujeitos perpetuam o preconceito em seus shows.

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Todas essas coisas são a faceta do silêncio. A obra tem uma carga pessimista e trágica, não estamos olhando para outra coisa que não a realidade desses homens, suas histórias, seus dilemas e todo o silenciamento que os cercam. Mas esses aspectos estão sempre sendo confrontados através da poesia, da linguagem corporal e da vivência do amor entre esses homens. “brother to brother” é repetido como um mantra no início e no final do filme, afirmando a vontade de criar e expressar afeto, música e palavra de ordem. A língua desatada que faz versos e constrói o rap; línguas e dedos que estalam para expressar pertencimento e linguagem corpot; o canto e a dança que ressaltam a beleza da linguagem artística e corporal daqueles homens tão guetificados. Todos esses elementos se reúnem como modos de resistência sob um olhar poético penetrante, como se suas vozes estivessem sendo sussurradas em nossos ouvidos, mas que na verdade são gritos de revolta.

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Então você pega um pouco de cor. Pode ser uma pitadinha ou uma colherona, não importa. Aí você mistura com um monte de características físicas que reflitam todos os rostos que existem nesse mundão. Misture tudo isso com uma cultura que simplesmente ama improvisar, dar significado, reivindicar, renovar e ler. E aí está a receita para fazer o povo negro” (Angela Davis em Black is Black Ain´t).

Em Black is Black Ain´t (1994), último filme de Riggs, assistimos comovidos, tanto a sua luta contra a AIDS como o seu empenho para quebrar novamente o silêncio, trazendo a questão da negritude em um sentido mais abrangente e afirmativo. Sua busca neste filme, diferentemente do que acontece em Tongues Untied, é mais propositiva e dialoga diretamente com questões internas das comunidades afro-americanas, mas sem perder o olhar reflexivo e poético característicos do diretor, que nesse filme conta com contribuições de nomes como o de Angela Davis, Bell Hooks, Michele Wallace e Cornel West. Compreendemos a luta, a beleza e a inteligência de Marlon Riggs, seu desejo pela palavra, pela imagem, pelo som, pelo amor. Com sua curtíssima obra, me parece ter conseguido ser um dos mais sofisticados documentaristas e ensaístas do cinema negro de todos os tempos. Foi poeta e sabia que o amor é um ato revolucionário.

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Anotações sobre o grau zero da diferença: o cinema de Apichatpong Weerasethakul e curadoria como cura (e como isso tudo se aproxima de uma ideia de revolta)

Por Geo Abreu

Era um dia de isolamento social e eu voltei ao cinema de Apichatpong Weerasethakul na tentativa de explicar aos alunos de iniciação ao vídeo os motivos e temas do cinema de fluxo. O filme era Tropical Malady, do qual eu pouco lembrava. Esse reencontro com o filme de 2004 me levou também ao cinema contemporâneo brasileiro, que há décadas parece girar num movimento de sempre-retorno macunaímico, cinema de índio, de preto, de arigó, de favelado, na tentativa de se afirmar nacional e universal, de se conectar com cinemas semelhantes, encontrar uma voz perdida que conte histórias de maneira desregulada, mística e doente.

Abraçar essa pecha de doença tropical, de sub-bactéria infernal, é algo que o Apichatpong faz e com doçura. Primeiro achei que tinha me conectado a obra dele porque a cor dos filmes e das pessoas [entre amarelo, preto e marrom, com muito verde de fundo] me lembrava a Amazônia. Fantasmas (aka visagens), onças, macacos e xamãs, a testa ensebada dos protagonistas, os dentes desalinhados, o sorriso infantil, as casas de madeira, distante do cinema comercial comédia-de-shopping, e próximo de quando abro qualquer janela pra rua de casa.

Em maio acompanhei as discussões entre curadores do Cachoeira Doc, a edição online realizada em meio a pandemia e que se autodenominou Festival Impossível com uma Curadoria Provisória & Filmes para se estar junto nesse período de confinamento. Nessa aposta de curadoria a conectividade entre os filmes se dava pelo entendimento da ação curatorial como cura; a curadoria como constelação de possibilidades de imagens que gostaríamos de ver e das quais precisamos – sem saber – para entrarmos num processo de libertação de tantos anos de apagamentos e silenciamentos em certa produção cinematográfica. É libertador demais pra um realizador de periferia assistir a Relatos Tecnopobres[1], de João Batista Silva, e finalmente encontrar eco num festival de cinema. Se procurarmos bem, a ideia de revolta que liga essas minhas anotações a proposta do dossiê da Multiplot está entre isso e a antipropaganda das comédias-de-shopping.

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Ainda sobre o cinema de Apichatpong, alguns estudos[2] apontam nele aspectos do perspectivismo ameríndio, esse modelo filosófico baseado em traduções de cosmologias indígenas que operam numa lógica relacional de predação e da centralidade do corpo como materialidade fundamental de expressão da cultural, e lendo algumas entrevistas do diretor, sabemos que há menos de filosófico que de intuitivo na abordagem dos personagens em seus filmes. Aqui cabe mencionar que cada vez mais teóricos indígenas têm sido chamados a dar opiniões sobre um mundo que se acaba, como naquela letra do Caetano em que um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e aquilo que ele dirá surpreenderá a todos, não pelo exótico, mas pelo óbvio no fim de tudo.

As florestas tailandesas ganham estatuto de pessoa nos filmes do Apichatpong, assim como as montanhas do Vale do Rio Doce conseguem se comunicar com os Krenak, como diz o Aílton. Parece tão difícil pra nós, criaturas urbanas, voltar a esse grau zero da diferença e imaginar que estejamos mesmo todos conectados e que performar identidades fixas não faça sentido num jogo de perspectivas mutáveis, que variam de acordo com as trocas de cenários e dos atores em cena. Em estado de vigília permanente acreditamos que trocar a casa de taipa pelo prédio de concreto traz segurança e nos tornamos cínicos ao descobrir que deus não existe quando as notas do caixa eletrônico acabam bem na nossa vez.

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Aproximar esse cinema e essa teoria antropológica baseada no erro comunicativo e na necessidade da tradução diplomática de conflitos – você também vive com a sensação de que uma palavra infeliz pode virar literalmente uma arma apontada pra sua cara? – é interessante pra mim e pros meus porque fortalece – atenção pro óbvio – a nossa existência como pessoas, valida nossas/outras perspectivas, e nos permite uma aproximação precária a esse sistema excludente: o cinema (eu poderia ter escrito capitalismo aqui, mas como não há fora, resolvi assim). Aqui vai um beijo pro meu amigo André Sandino que um dia me disse que a gente trabalhava com um negócio que não foi feito pra gente, sabe Geo?

Se há uma revolta aqui é com protocolos de cinema comercial que excluem modelos precários de contar histórias e suprimem diversos relatos tecnopobres de avançar e encontrar com seus públicos. E a escolha por filtrar o mundo através do perspectivismo pode ser entendido como um motim programático contra a narratividade comercial. Assumir que o corpo seja a única máquina e a única câmera possível, saudar a centralidade desses corpos invisíveis e elaborar suas histórias é uma das armas que devemos forjar para recomeçar o mundo.

Curar festivais de rua e montar um telão no meio da praça e elaborar pensamentos difusos sobre o mundo entre o barulho da Baía do Guajará ou da Guanabara, tiros, gritos, co(r)pos tilintando e uma imagem enorme, um frame do filme, do qual só lembraremos do essencial amanhã. Esse modus operandi Exu, de conexão e fruição, de estabelecimento de ligações entre sentidos dispersos, como partículas de saliva que a gente tem precisado evitar é o que forma o melhor do pensamento macunaímico. Já que a tranquilidade agitada dos filmes do tailandês Apichatpong parece difícil de alcançar por aqui é preciso abordar a realidade como possível.

 

[1] http://www.cachoeiradoc.com.br/festivalimpossivel/relatos-tecnopobres/

[2] https://www.redalyc.org/jatsRepo/814/81457433002/html/index.html

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A revolta das opacidades, ou o pop e a ultraviolência na virada do milênio japonês

 

por João Lucas Pedrosa

Perfect Blue mostra pela primeira vez o rosto de sua protagonista por volta de 2min40s de filme. Formas desfocadas que sugerem um túnel correm para a direita para revelar uma ampla visão em movimento da cidade. O enquadramento recua e revela o semblante de Mima Kirigoe refletido no vidro de uma janela. Nosso primeiro contato com os traços pelos quais a identificaremos ao longo do filme – e que, portanto, supostamente representam sua identidade – é por um reflexo sobreposto à concretude do espaço externo. Mima está do lado de dentro, apartada, e a barreira entre esta e aquele não é apenas o vidro, mas a sua própria imagem, que dificulta uma visão clara da vista. Apenas o plano seguinte localiza a cena dentro de um vagão de trem, de forma que, antes do corte, existe apenas a personagem, o mundo, e uma impossibilidade relacional.

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Parte respondendo a tendências da época, parte estranhamente premonitório de um zeitgeist vindouro, o primeiro longa de Satoshi Kon lançou em festivais num ano peculiar da história japonesa recente. Uma bolha financeira e imobiliária inflacionada que estourou em 1991 levou, enfim no ano de 1997, à falência em série grandes instituições bancárias que equivocadamente investiram em seus ativos ao longo dos anos.[1] É também o ano em que Shinichiro Azuma, 14 anos, assassinou duas crianças de 10 e de 11 anos, respectivamente. Deixou a cabeça da última, o menino Jun Hase, em frente a uma escola secundária com um bilhete enfiado na boca. Nele, ameaça continuar matando para se vingar do “sistema educacional compulsório”. Azuma é preso após mandar uma carta para um jornal local: “Eu só consigo me libertar do ódio e me sentir em paz quando estou matando alguém. Só vendo outros sentindo dor, eu consigo aliviar a minha.”.[2]

Ele é o marco inicial de uma feroz onda de delinquência juvenil que marcaria a virada do milênio japonês. As oportunidades de emprego continuam diminuindo e a excelência acadêmica é essencial para a definição de um futuro. O rigor das escolas é mantido, mas os alunos nunca foram tão frustrados, desrespeitosos ou violentos. Agressões físicas a professores não são mais inconcebíveis, e o bullying institui na adolescência comum o direito do mais forte, levando à introversão exponencial dos alunos abusados. O alheamento causado pela televisão e pelo computador é eleito culpado direto segundo comentaristas e políticos conservadores nacionais, já que não tão raramente crimes partem de jovens retraídos e famintos por evasão. A maioridade penal desce de 16 para 14 anos. O comportamento predominante da juventude é a alienação e a ultraviolência.[3]

A protagonista de Perfect Blue está abandonando a carreira musical como líder do grupo j-pop CHAM para investir na atuação televisiva. Ela deixará de ser uma idealização feminina de pureza e alegria para incorporar papéis difíceis e violentos. Sua imagem é violada por dentro (num dos papéis, ela assassina alguém como consequência de um transtorno dissociativo) e por fora (noutro, ela é uma stripper que sofre estupro coletivo sobre o palco em que dançava[4]). Essa maculação gera atentados e assassinatos contra seu agente, contra o roteirista de sua série e contra o fotógrafo de seu ensaio nu. Mas a ameaça não é só externa. Mima perde vertiginosamente noção do limite entre real, interpretação e alucinação, uma difusão que se prenunciava desde a montagem paralela em que integra o plano revelador de seu rosto: por meio de um falso raccord, seu balançar de braço no vagão torna-se o mesmo movimento feito sobre o palco em sua apresentação de despedida. Procedimentos formais similares se dão quando falas se repetem em diferentes circunstâncias, circunstâncias se repetem em diferentes ambientes, ambientes se alteram num piscar de olhos, encenações e acontecimentos se espelham e se sobrepõem. Ao longo do filme, essas falsas continuidades e familiaridades viram reflexos da moribunda lucidez da protagonista, jogando-nos no abismo ao confiar por instinto numa sugestão de linearidade.

Desenfreadamente, a subjetividade de Mima se desfaz – desfaz-se sua condição de sujeito. Ela não sabe se é Mima Kirigoe, atriz, personagem, cantora, e até mesmo se inocente ou culpada das mortes à sua volta. Em dado momento, a Mima-virtual (seu primeiro produto em imagem, das tevês e monitores) afronta a Mima-sujeito de dentro do computador, dizendo ser a “verdadeira Mima”. Ela sai da tela e pula janela afora, após a promessa de retomar seu lugar. A imagem não mais é apenas uma barreira na relação entre Mima e o espaço, mas é quem exerce a função de agente dentro dele, no mundo concreto.

A bidimensionalidade opaca das figuras animadas, assim como próprio o formato animado, têm peso discursivo, autoral. Kon percebe que a potência da animação está no traço que compartilha com o cinema filmado: a ilusão de movimento. Ilusão, esta, que rivaliza o real e o simulacro, tornando a obra um quebra cabeça de (i)materialidades. Faz também parte da ludibriação dos estímulos o número de frames usados por segundo em cada personagem ou momento de filme. Cenas animadas a 10FPS, principalmente as de cotidiano, são alternadas com ou justapostas a movimentos mais cadentes e palpáveis, geralmente feitos com apoio de rotoscopia (animação pelo contorno direto de um corpo/objeto filmado). A técnica, além de copiar para o traço o movimento, reproduz em sua opacidade plástica a ação da gravidade sobre os corpos, conferindo às cenas uma mistura entre familiaridade e estranhamento (o famoso uncanny valley). A cadência dos corpos é particularmente hipnótica e flerta com o fetichismo quando Mima performa sobre palco ou sobre tela, e é particularmente assombrosa na cena do assassinato do fotógrafo, em que tudo exala uma corporalidade cruamente agressiva e responde ao fetiche com o horror. Os ápices sensoriais do filme se dão, assim, no encantamento do simulacro e na fisicalidade da violência: as reações conseguintes da juventude pós-estouro da bolha.

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Se a animação ganha involuntariamente tom premonitório, é principalmente pela rica formulação de um descolamento subjetivo com a realidade urbana concreta. Decerto que o simulacro não opera como gatilho da violência, mas de vertiginosa sublimação individual num sistema social de severa contenção física e subjetiva em prol da produtividade, na época em decadência. O funcionamento nipônico usual é o do sacrifício. Pelo bem maior, pela manutenção do ritmo coletivo (que, em última instância, é o da economia nacional). Mas a crise de uma ideologia da unidade corpórea e mental entre indivíduo e nação, iniciada com a derrota na Segunda Guerra e aprofundada com a modernização econômica conseguinte (mote central da filmografia de Ozu), esgarçou-se com o tempo e desembocou na violência anárquica como resposta extrema.

É partindo das reconfigurações dessa relação que o horror satírico de Sion Sono, O Pacto (2002), opera. Na cena de abertura, cinquenta alunas secundaristas se jogam, de mãos dadas e cantando em gracejo até três, nos trilhos do trem. A sequência é frenética e ironicamente ornada por uma trilha folk alegre e dançante, enquanto os passageiros horrorizados à plataforma são banhados por violentos jatos de sangue. Apenas um plano mostra uma jovem tendo sua cabeça esmagada de forma cartunesca pela roda do trem, todo o resto é o devastador efeito: uma surreal chuva vermelha, tão poderosa que cobre tudo e todos no local e quebra o vidro da janela de um dos vagões. O passar do trem gera um jorro tão forte que obstrui a objetiva da câmera – uma resposta ácida a L’Arrivée d’un train à La Ciotat (1895), dos irmãos Lumiére, símbolo da modernidade e do advento do cinema: o sangue faz irrefreável o andar maquínico, que por sua vez só gera ainda mais sangue. A sanguinolência cumulativa representa o peso social massivo do acontecimento que, como no caso dos crimes de Azuma, será o primeiro de uma onda suicida no país.

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Os suicídios que se dão, entretanto, são expressivos exatamente pelo seu teor anti-sacrificial. A fracassada busca policial pelo suposto “culpado” do ocorrido é, em última instância, uma busca pelo seu sentido. Ela parte, certamente, de algumas evidências que sugerem conexão entre os eventos (como os rolos de pele deixados nas cenas “de crime”), mas também da lógica cultural que gerou o seppuku, esse gesto final de honra e dignidade por samurais e ronins após serem capturados por inimigos ou terem seus senhores feudais mortos. Porém, os gestos, se entendidos enquanto “movimentos expressivos a um interlocutor”, são nada confiáveis neste filme: os suicidas são sorridentes e jocosos[5], e a escolha pela autodestruição parece nada além de um paradoxo. Uma enfermeira, ao abrir a janela e sentir o vento pelos cabelos, diz ao segurança do hospital que se sente ótima num tom satisfeito consigo mesma logo antes de se jogar pela abertura. Uma dona de casa, no imparável cortar de um legume, fatia junto seus próprios dedos em frente à filha pequena (formando um riacho de sangue pela pia, o movimento automático sempre a vazar um abundante vermelho) sem abalar o sorriso ou a serenidade de seu semblante. O indivíduo se faz opaco, ilegível ao coletivo, pois o seu gesto traz uma camuflagem automática, cuja espontaneidade verdadeira surge com a violência autoinfligida. Qualquer pessoa, a qualquer momento e em qualquer lugar, sem qualquer sinal prévio, pode vir a brutalmente se matar. A opacidade social faz das reais intenções de cada um uma completa incógnita, até o corpo que a performa entrar em combustão.

Se apenas o suicida sabe o porquê do suicídio, é porque, a priori, ele é um ato individual, cujas motivações podem nascer e morrer dentro da subjetividade que por ele decidiu. Se ele é um ato individual, descolado e independente do coletivo que o corpo como agregado, tem potencial subversivo. À medida em que é feito em grupo, torna-se um ato anárquico. Mas à medida em que é ferramenta de um gracejo jovem, torna-se entretenimento. O caso das jovens ganha grande atenção e, em consequência, inspira ecos performáticos. Na manhã seguinte ao incidente das secundaristas na estação, estudantes no terraço de uma escola brincam incitando o suicídio uns dos outros. Uma moça, a fim de atenção e instigada pelos colegas, se posta à beira do terraço, ameaçando fazê-lo para fundar o “Clube do Suicídio”. Uma outra se posta a seu lado, falando que faria de verdade, diferente dela. Cerca de 10 alunos se juntam no total. Dão as mãos, contam até três e pulam… mas três sobram. Nem todos levaram de fato a sério. Uma das que sobrou vai até um rapaz catatônico e o puxa junto consigo para baixo, contra a vontade dele (“Temos que morrer”, ela diz). Alunos e professores correm para salvar a única que ainda não pulou: a primeira a subir na beira do terraço. Ela incitou todos, agora não pode ser a única a viver. Ela se vira para trás e diz: “Clube do Suicídio. Nós somos os fundadores do Clube do Suicídio.” e pula.

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A cena se destaca no filme sem fugir de seu tom geral por desenhar complexidades e contradições que surgem da opacidade comportamental, e por ela se sabotam. O tortuoso encontro entre inconsequência pueril (lidar com o suicídio como um jogo adolescente), joguete performático (fingir querer se suicidar até que seja verdade), coerção do coletivo (não poder voltar atrás quando todos os outros já seguiram em frente) e desejo de status (querer impressionar os colegas seguindo com a ideia errada e, em última instância, ser marcado como “fundador” da mórbida associação) explica a morte de outro número significativo de estudantes, nuances que apenas existem pela hesitação dos três adolescentes. Um evento deslocado do primeiro, mas que será tomado pela polícia e pelos jornais como a formação de uma tendência. Eis, então, que o “Clube do Suicídio”, ao partir de diferentes grupos jovens e sob a alcunha de “clube”, torna-se uma sorte de moda, aderida em massa. Sequências de violência como a cena de abertura são guiadas pela trilha, num conjunto que flerta ironicamente com o formato de videoclipe. O pop japonês, também aqui, se sobrepõe à ultraviolência anárquica, mas no que tange sua fome de potência performática e de produção de seguidores. Numa cena, Gênesis, o líder de uma gangue de assassinos seriais (interpretado pelo músico Rolly Teranishi) canta e toca guitarra para uma informante da polícia que sequestrou, enquanto um de seus capangas estupra e mata uma moça a facadas. Ele a deixa entregá-lo e ser falsamente culpado pela histórica onda de suicídios mídia nacional afora: o que ele queria era ser um ícone pop, o rosto por trás da moda da morte (sua falsa Gênese). Mais uma vez, as instituições do coletivo caem nas pistas fajutas da performance.

Sono demoniza menos o pop que o sistema subjetivo em que ele é ferramenta. A raiz de tudo está, ironicamente, numa banda adolescente de j-pop chamada Dessert. A namorada de um fã que se jogou do alto de um prédio encontra pistas que a levam aos bastidores do próximo show da banda, onde descobre um culto presidido por crianças. Sobre um palco, e com um holofote sobre sua cabeça (o teste final da integridade se dá no lar da performance, do distanciamento do si intrínseco), os menores, no auge da idade curiosa, atiram, da platéia, perguntas de fervor existencialista: “Você veio refazer a conexão consigo mesma? Ou veio destruí-la? (…) Está conectada consigo mesma como eu e você, como você e seu namorado?”. Ela responde com um impaciente e seguro sim. O questionário do culto punha em cheque única e simplesmente o quanto o ser é sujeito e o quanto é dependente do outro – em última instância, se existe além da opacidade que usa para funcionar em coletivo. Sob a salva de palmas da plateia, cai um pano com alegres desenhos infantis coloridos. Era redescobrir a existência no mundo com os sentidos mais primários a resposta de tudo?

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Mima também só triunfa com a autoafirmação em meio à anarquia dos sentidos. Ela descobre que sua gerente, a ex-pop idol Rumi Hidaka, teve um surto psicótico e assumia a personalidade da Mima-virtual, sob a qual cometeu os crimes. Tudo culmina num embate final entre a Mima-sujeito e sua imagem, corporificada em Rumi. Em fuga, ela pula da janela de seu apartamento e corre pelas ruas gritando por ajuda, sangrando com a facada que tomou no ombro. Ela restabelece o contato com o concreto à sua volta, com o concreto de seu corpo.

Tempos depois, saindo do centro psiquiátrico em que Rumi está internada, nossa protagonista tem outra identidade visual. Duas enfermeiras se perguntam se era de fato a Mima Kirigoe ou alguém parecido. Dentro do carro, no banco do motorista (ela não mais é levada por um trem – talvez o sob o qual as secundaristas se jogaram – mas agora guia o próprio deslocamento), Mima quebra a quarta parede no plano final do filme, olhando-nos pelo retrovisor e proferindo num sorriso: “Não, eu sou a real!”. O jogo entre imagem e realidade não vai terminar, e, mesmo que não saibamos onde ir, a capacidade do movimento é segura com a certeza do existir.

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[1] “Japan’s Financial Crises and Lost Decades – Federal Reserve ….” https://www.dallasfed.org/assets/documents/institute/wpapers/2014/0220.pdf. Acessado em 17 jun.. 2020.

[2] “14-Year-Old Arrested in Japan for the Brutal Slaying of a Child ….” 29 jun.. 1997, https://www.nytimes.com/1997/06/29/world/14-year-old-arrested-in-japan-for-the-brutal-slaying-of-a-child.html. Acessado em 17 jun.. 2020.

[3] “Violent juvenile crimes in Japan point to a deeper social crisis ….” 18 out.. 2000, https://www.wsws.org/en/articles/2000/10/jap-o18.html. Acessado em 18 jun.. 2020.

[4] A representação do corpo violado (em predominância o feminino) é particularmente simbólica na cultura japonesa, frequentemente retomada em momentos de turbulência sociopolítica. É expressivo, portanto, que no filme as vítimas sejam os homens produtores dessa imagem. Sobre o assunto, há a tese de doutorado de Marcia Regina Casturino, Autonomia e sujeição na aporia da modernidade japonesa: Representações do corpo violado como expressão política. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1211382_2017_completo.pdf

[5] O suicídio sorridente é, interessantemente, uma imagem que aparece em trabalhos de Satoshi Kon: a corrente de executivos risonhos que se jogam em mergulho sincronizado do topo de um prédio corporativo em Paprika (2006), e a abertura de Paranoia Agent (2004), com seus personagens gargalhando em cenários de desolação. A primeira é a protagonista, rindo descalça do topo de um prédio.

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Entrevista: Luiz Pretti

Por Pedro Tavares

Coletivo-Alumbramento
Estrada Para Ythaca

Junho, 2020. Pouco mais de dez anos do prêmio dado para Estrada Para Ythaca na Mostra Aurora dentro da 13ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conversar com Luiz Pretti que, à época, junto de Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti dirigiu, produziu e escreveu o filme e compunha a Alumbramento. Muita coisa aconteceu para a Alumbramento desde então, inclusive o encerramento de suas atividades oficialmente como um coletivo, ainda que seus integrantes colaborem uns com os outros em seus respectivos filmes. Para o cinema brasileiro, na última década, o turbilhão foi ainda mais intenso. Da ascensão da produção de filmes independentes, cursos e mostras de cinema ao declínio que chega à máxima intensidade em plena pandemia. O que naturalmente serviria como um papo-celebração sobre o trabalho de um modelo-chave de produção independente nos últimos dez anos virou um diagnóstico sobre como a união e poesia trazem a mínima sensação de liberdade em tempos de revolta.

Começo pulando algumas etapas na linha do tempo falar sobre um momento muito simbólico para a carreira da Alumbramento que é a cena-motim final d’Os Monstros. A cena do free jazz, especificamente. Gostaria que você falasse um pouco sobre a criação e a sensação sugerida por ela.

Luiz: Cara, a palavra motim a princípio me remete a algum tipo de relação com uma força maior, geralmente representado pelo Estado, pelo exército. Nesse sentido específico, acho que não tem nenhum filme da Alumbramento com esse tipo de relação, talvez Com os Punhos Cerrados. Mas a ideia de unir forças para enfrentar os desafios impostos pelo capital, por exemplo, são o cerne do cinema feito pela Alumbramento. Tudo que foi feito lá, em alguma medida, era um pequeno levante frente à certas regras impostas pelo mainstream do cinema, como ele é financiado, etc. Todos os filmes ali têm a sua parcela e sua forma particular de fazer esse levante. Agora, sobre essa cena d’Os Monstros, é uma cena que eu tenho um carinho especial. Acho que a música de improviso, pra mim com certeza, foi uma referência muito forte sobre o que poderia ser esse coletivo. Na música a gente via uma forma de co-existir, com vozes vindas de diferentes culturas, com visões de mundo diferentes e que se encontram através da música e conseguem formar esse coletivo provisório de uma força incrível.

E o free jazz faz parte do seu processo de criação? Pois acredito que ele incita algum tipo de ordem numa segunda camada.

Luiz: Sempre conversamos muito sobre como traduzir o improviso livre musical (que é misto de espontaneidade e composição) para o cinema. Não acho que conseguimos, mas a cena final d’Os Monstros é debitaria das inúmeras ideias e tentativas. E mesmo hoje é um desafio que continua me interessando.

Os Monstros - Improviso
Improviso em Os Monstros

A Alumbramento começou em 2006, certo? Se me recordo vocês fizeram um longa-metragem filmado no Leblon…

Luiz: Sim, mas isso foi antes de irmos para Fortaleza. Ainda não existia a Alumbramento. Foi bem antes, na verdade, e se chamava A Estética da Solidão e só foi exibido na Mostra do Filme Livre em 2000. A gente conseguiu uma mini-DV emprestada com um amigo e testamos algumas coisas. É um filme muito mais de exercício, de rascunho do que exatamente um filme…

Um detalhe que lembrei agora e que acho importante mencionar, é que o site da Alumbramento, que também é um gesto de preocupação com a memória, disponibilizou os filmes do coletivo e também de realizadores do mesmo círculo. Agora com o fim do coletivo, como vocês pretendem manter a memória viva? Existe essa intenção?

Luiz: Existe, demais. O site infelizmente não está no seu melhor, precisamos atualizar alguns links antigos. O site é dividido em três seções: os filmes, os textos e uma parte de memórias, com fotos de making of, fotos da galera. O site foi criado justamente pra resguardar a memória da Alumbramento. Lá tem um link que leva para três textos diferentes, um de 2006 que escrevi para simbolizar o início do coletivo e falar sobre nossas motivações naquele momento. Um segundo texto que eu escrevi quando o coletivo passou por uma transformação com a saída de algumas pessoas e a entrada de outras, diminuindo o seu tamanho. Tentei colocar ali quais seriam as motivações dessa segundo fase da Alumbramento. E tem um terceiro texto escrito pelo Ricardo uns dois anos após o fim da Alumbramento e se esforça em fechar os trabalhos relembrando pontos chaves na história do coletivo. Os textos nunca vão dar conta do que foi a Alumbramento, mas é um desejo de guardar uma parcela dessa memória, mesmo sabendo que parte de pontos de vista específicos que não necessariamente representam os vários outros pontos de vista. Dentro do coletivo cada qual tem sua história pra contar. Eu adoraria ver essas histórias contadas, compartilhadas e preservadas.

Já que falamos de memória…há um filme inicial oficial da Alumbramento?

Luiz: A gente considera que o primeiro filme da Alumbramento é o Sábado à Noite do Ivo Lopes Araújo, lançado em 2007. Sem dúvida alguma é o ponto de partida do que veio a ser a Alumbramento. Todas as pessoas que trabalham nele fizeram parte do coletivo diretamente ou eram muito próximas, envolvidas. Sábado à noite é muito importante, pois uniu pessoas em torno de um projeto cinematográfico que buscava uma relação intensa com a cidade de Fortaleza, que era uma das questões primordiais do coletivo. Perguntas como: a gente como artista consegue intervir na cidade, criar relações entre o que a gente faz e as pessoas que habitam a cidade? Outros filmes nossos partiram desse interesse, como o Praia do Futuro…são filmes que desejavam se colocar em relação ou em conflito com a cidade. Geralmente exibíamos os filmes no São Luiz, um cinema da região central da cidade. Teve uma sessão histórica do Sábado à noite, com pessoas que embarcaram no filme, outras que detestaram, mas tinham pessoas de todos os cantos da cidade, do entorno, que entraram lá pra assistir.

Coletivo-Alumbramento
Sábado à Noite

Outro ponto importante é o Estrada Para Ythaca. Já havia uma movimentação para um “novo cinema” com a criação da Mostra Aurora, a sessão do Novíssimo cinema brasileiro que posteriormente virou a Semana dos Realizadores no Rio, mas o Estrada para Ythaca passou do circuito dos festivais e chegou ao circuito. É um marco muito importante. 

Luiz: Sim, ele foi lançado na Sessão Vitrine.  Só para não perder o fio, os primeiros quatro anos da Alumbramento foram essenciais para que o Estrada Para Ythaca pudesse existir. Foi o momento que começamos a realizar um cinema que conseguia quebrar com certas estruturas opressoras, que geralmente aceitamos de cabeça baixa, que determinam as regras para ser um cineasta…

O cinema da retomada.

Luiz: A retomada não retomou porra nenhuma. O cinema brasileiro continuou muito restrito a uma elite que já estava segurando o dinheiro, era detentora do poder em relação ao cinema brasileiro. Não foi nada democrática essa retomada. Em 2006 começa uma reação a isso, com o entendimento que o Brasil é algo muito maior que Rio de Janeiro e São Paulo. O que parece hoje óbvio, não era nada óbvio. Quando eu e Ricardo decidimos sair do Rio para ir para Fortaleza, nós éramos ridicularizados. O preconceito que existia…e eu tô falando de gente do cinema, progressista. Tinha muito preconceito mesmo. Esse movimento que a gente fez teve muita reação de piada. Bem, a gente era visto como uma piada. E falavam que a gente ia sair do Rio, onde acontece tudo…não acontece porra nenhuma! No Rio, só se você trabalhar na Globo ou na Conspiração. E eu não queria entrar no esquemão. Eu não julgo ninguém que trabalha para lá, mas acho estranho considerarem isso um grande acontecimento, um plano de vida. Eu tive sorte de ir para Fortaleza na época do governo Lula, pois permitiu que o Brasil como um todo entendesse que o país é maior que o sudeste. Em Fortaleza a gente começou a realizar filmes independentes, da nossa maneira e quebrando a lógica estabelecida. Começamos a ter alguma atenção, tinha algum desejo de conhecer o cinema fora do eixo Rio-São Paulo. E eles começaram a serem vistos nos festivais. Quando a gente lançou parecia que as pessoas se perguntavam o que tinha acontecido em Fortaleza, de repente, e achavam que o Estrada Para Ythaca era o início da Alumbramento, mas não é.

E isso ficou com claro com o interesse pelo cinema mineiro, especificamente, e pelo diálogo de vocês com os autores mineiros.

Luiz: Sim, total. A [produtora] Teia era uma referência pra gente, uma galera de BH. Isso começou com o Ivo [Lopes Araújo], o primeiro filme que ele fez por lá acho que foi O Céu Sobre os Ombros do Sérgio Borges. Depois ele fez A Falta que Me Faz da Marília Rocha, Girimunho da Clarissa Campolina…ele ficou muito empolgado com o pessoal de BH, mostrou os filmes da galera pra gente, do Dellani [Lima].

E vocês já mensuraram o tamanho dessa ação que de certa forma é contrária ao cinema da retomada? 

Luiz: Pra mim é um pouco difícil mensurar. Uma coisa que o Estrada Para Ythaca fez que eu acho muito importante, mais que conquistar circuito, foi abrir a porta do “podemos fazer filmes”. Sem precisar fazer no sistema tradicional. Acho que a nossa geração e a seguinte foi muito influenciada por esse gesto. O Ythaca, em alguma medida, empolgou a galera a fazer cinema, fazer bons filmes, sem precisar passar por todo o processo habitual. Ao invés de esperar dez anos pra fazer seu primeiro longa, essa geração esperou dois, três anos. E em muitos dos casos feito com espírito coletivo, com orçamento de curta, ou nenhum orçamento. Isso é uma quebra de paradigma. Mas não chegamos a um circuito maior, estamos num nicho. O circuito de cinema é dominado pelo mainstream e furar isso é muito difícil, ainda mais com esse cinema que fazemos.

E nos tempos de streaming a internet é um bom lugar para distribuição? Como falamos, o site de vocês sempre disponibilizou por tempo limitado os filmes…

Luiz: A gente sempre quis abrir pra internet. É um campo fértil para alcançar as pessoas. Agora tão na moda, em tempos de pandemia, mas sempre fizemos sessões virtuais. Em 2012 fizemos com os curtas. A ideia de um curta-metragem ficar preso aos festivais é muito estranha. A gente deixava por uma semana porque o tempo limitado faz as pessoas não perderem os filmes no oceano de informações. Colocamos o Não Estamos Sonhando, Dizem que os cães veem coisas, Retratos de uma paisagem. Aí notamos que seria legal ter filmes de outros realizadores com dificuldade de distribuição. Aí nós exibimos filmes do Ricardo Miranda, da Helena Ignez, Luis Alberto Rocha Melo, Paula Gaitán, Flora Dias…foi um momento ótimo. E também convidamos pessoas para escreverem sobre os filmes, tipo o Hernani Heffner escreveu sobre o filme da Flora Dias. É a ideia de criar uma cultura ao redor desses filmes. E recentemente colocamos o Estrada Para Ythaca online. O Guto me mandou uma crítica de um usuário do Letterboxd sobre o filme que é super sincera e direta, e esse tipo de retorno é o mais legal. Digo isso sem demagogia. É mais importante que o reconhecimento do festival X ou Y. No fundo o que dá sentido ao que fazemos é a troca com as pessoas, seja em pequena escala ou grande.

Sobre isso, lembro-me da primeira vez que vi o filme na mostra dedicada à primeira década dos anos 2000 curada pelo Eduardo Valente. Preciso revisitá-lo, mas lembro de referências claras ao Glauber ali.

Luiz: Sim, tem a cena do Glauber no Vento do Leste. A gente faz uma citação a essa cena.

E depois do Ythaca como foi o fluxo de produção de vocês? Havia algum tipo de planejamento “de carreira” para os longas? Visto que todos eles de alguma forma rodaram em festivais e foram lançados no circuito.

Luiz: Não, isso não era planejado. A gente nem sabia da possibilidade de carreira pra filmes. Depois do Estrada Para Ythaca a gente começou a entender que haviam espaços pra passar os filmes. A gente mandou o Ythaca pra Tiradentes meio que rezando pra passar, já preparados pra levar um não. Como depois o filme teve alguma reverberação, a gente começou a conhecer alguns festivais, outras pessoas tiveram interesse em assistir os nossos filmes, tanto aqui quanto lá fora…

E como foi essa chance de intercâmbio com o público e realizadores internacionais? 

Luiz: Uma sessão muito legal foi no BAFICI. Marcou a gente na época, abriu uma possibilidade de diálogo com o pessoal da América Latina. A gente não tem muito ainda, é uma pena. Depois da exibição a gente teve uma conversa longa, fomos pro bar com uma galera jovem, todos realizadores. E abriu-se ali uma possibilidade de intercâmbio, ideias de fazer filmes. Acabou que não rolou nada, mas no ano seguinte quando voltamos com Os Monstros, o pessoal também estava lá exibindo um filme novo chamado Hoje eu não tive Medo, que era claramente um gesto de libertação e que dialogava com Ythaca. O diretor desse filme já havia até passado um filme em Cannes. Ele se chama Ivan Fund.

E com os festivais de fora, havia um trabalho concentrado nas burocracias de inscrições? 

Luiz: Na verdade ninguém queria fazer nada disso! O Guto tinha mais paciência, chegou a fazer uma planilha com uma lista de festivais que nós exibimos os filmes, pra facilitar. Mas na hora de mandar era sempre uma bagunça…Aí gente tentou fazer da Alumbramento uma produtora respeitável, contratamos uma estagiária, a Amanda Pontes (que hoje é ótima produtora e diretora e continua trabalhando com Carol e Pedro), e ela fazia esse trabalho de organizar melhor os festivais e contatos.

E depois da Alumbramento, cada um foi fazer o seu projeto solo. O Ricardo fez um filme para a trilogia Sonia Silk com o Bruno [Safadi], o Guto fez o Doce Amianto, você se concentrou no trabalho de montador…

Luiz: É, eu sou montador. O Bruno fez o Uivo da Gaita, o Ricardo fez O Rio Nos Pertence e tem o Fim de uma Era, que é dirigido pelos. E é isso, o Guto fez o Doce Amianto com o Uirá [dos Reis] e A Misteriosa Morte de Pérola com a Tici [Ticiana Augusto Lima], fez o Inferninho com o Pedrinho [Pedro Diógenes] e com o grupo de teatro Bagaceira. Você falou em projeto solo, mas é curioso porque a maior parte dos filmes depois da Alumbramento foi feita em parceria com alguém. O Guto fez sozinho  O Curioso Caso de Ezequiel e o Clube dos Canibais, o Ricardo fez O Rio nos Pertence sozinho também, eu fiz o Enquanto Estamos Aqui com a Clarissa [Campolina], fizemos O Porto, eu, Ricardo [Pretti], Júlia [de Simone] e Clarissa. Tem um tanto de filmes…eu tenho prazer nessa troca. É um desejo de continuar fazendo filmes onde minhas ideias podem ser confrontadas com as ideias do outro. As ideias fundadoras do filme, sabe?

Coletivo-Alumbramento
A Misteriosa Morte de Pérola

E houve um fator decisivo para esse distanciamento de vocês como um coletivo?

Luiz: Acho que um fator foi a intensidade que a gente se jogou nessa parceria. Não há relação que aguente. É muita intensidade. O Guto foi o primeiro a sacar que as ideias que ele tinha não ia…ia ser demais. Ele tinha um desejo de pesquisa de cinema que dentro do nosso coletivo não tinha espaço e naturalmente foi encontrando o seu lugar para realizar sua pesquisa. A gente fez cinco longas em conjunto e vários curtas-metragens em que participávamos como equipe, mas chegou a um certo esgotamento. Ia implodir. Precisávamos extravasar para outros lados.

Há um caso interessante nessa trajetória que é o de Com os Punhos Cerrados, considerado como um comentário imediato sobre as manifestações de 2013…

Luiz: Acho que é um filme que a cada dia que passa fica mais como um reflexo do nosso tempo. Eu gostaria de aproveitar para tentar consertar certos equívocos. As pessoas acham que é uma reação às jornadas de junho e na verdade não é. A gente filmou aquilo antes, mas ele foi exibido depois. Estreou em agosto de 2013 em Locarno e a reação em torno dele foi instantânea: um filme que respondendo à 2013. Mas ele foi concebido em 2012, em dezembro. Acho interessante que a gente fez esse filme antes de tudo ficar uma merda. Quando a gente lançou o filme ainda não tinha o golpe, mas sabíamos que as manifestações não tinham dado certo. Já se via a ascensão de figuras como o Marco Feliciano, essa galera que tomou o poder aos poucos…e quanto mais eles apareciam, mais absurdo o Brasil parecia. E com isso mais sentido o filme fazia. Uma das críticas que o filme teve é que ele era muito caricato. Porque a figura do vilão, ele ficava de costas com um discurso reacionário exagerado…e logo depois disso apareceu esse pessoal com discursos semelhantes, à la tradição família propriedade. Nesse momento, o filme parecia uma reprodução fiel do que a gente vivia no Brasil. E ainda vive. Esse embate dos discursos da extrema direita aos discursos anarquistas do filme é o nosso dia-a-dia, de certa forma. Seja no jornal, nas mídias sociais…e no filme a gente dizia que a batalha estava perdida. Ao mesmo tempo insistíamos na ideia de movimento, de continuar se movimentando, como forma de continuar vivo. Eu gostaria de revê-lo para saber como ele bate hoje em dia. Acho que isso está na cena final d’Os Monstros que você comentou. A gente entendeu por via do anarquismo que a primeira transformação é a do eu. Acredito que assa transformação possa se dar pela poesia, no sentido amplo, como uma experiência poética de vida, que qualquer ser humano pode ter, uma experiência de transformação, maior…que acabar por transformar a sociedade.

Coletivo-Alumbramento
Com os Punhos Cerrados

Então temos um certo complemento ao comentário inicial dessa cena.

Luiz: Sim, e acho que o Estrada Para Ythaca também tem um pouco disso. É uma coisa muito forte que a gente tinha nessa época. É conseguir ver a arte num lugar cotidiano. Não fazer uma diferenciação da expressão artística com a vida cotidiana. Quebrar essas barreiras e é por isso que eu falo “poética” e com isso, por exemplo, viver o tempo de uma forma particular. Por exemplo, no Ythaca, viver o tempo pleno do luto. Não deixar que a máquina do capital atropele o tempo do luto. O Ythaca é basicamente sobre isso e no filme tem uma fusão entre vida e arte nesse sentido.

Como o poder da música pra sintetizar tudo isso também.

Luiz: O caso da música sempre traz isso pra mim também. Ela tem o poder…é uma coisa que eu gostaria de estudar um pouco mais.  A relação entre a música de improviso negra vinda dos anos 60 e 70 e o ativismo político da mesma época. Vejo nessa música uma forma de ação direta. É pra mim entrar em contato direto com isso que eu chamo de vida poética. Acho que não dá pra desassociar o que Malcom-X e Martin Luther King faziam na luta política daquilo que John Coltrane estava fazendo na música. E acho que isso ainda pode ser uma chave de entendimento para nós, de como podemos agir no mundo atual. Perder um pouco o sentimento de impotência. Na sessão de curtas da Sarah Maldoror, a Janaína Oliveira fez uma associação da obra da Sarah com a do o Zózimo Bulbul e ela relacionou o Art Ensemble of Chicago na obra da Maldoror com o Coltrane no filme do Zózimo [Alma no Olho, 1974]. Ela percebe um ponto de conexão entre esses filmes, realizados por dois cineastas da diáspora africana, através da música. Acho isso muito bonito. A música como um elo, como aproximação das diferentes lutas.

Isso me remete ao movimento No Wave de Nova York, que tinha ligação direta com a música de improviso e o cinema de improviso. Os filmes do Amos Poe, da Beth B…filmes sem orçamento e músicos que tinham carreiras baseadas no underground.

Luiz: Essa cultura do do it yourself conecta com certeza. O movimento punk, o movimento free jazz, o reggae na Jamaica, o funk no Brasil…

E sobre o tempo de produção/filmagem/montagem? Geralmente quando duas ou mais pessoas estão na direção a diferença de ritmo cria algumas dificuldades…

No caso do Com Punhos Cerrados, a pré, ou uma espécie de pré, foi em dezembro de 2012 e já tinha uma espécie de equipe formada. As filmagens foram no final de dezembro e começo de janeiro. Os Monstros passamos três semanas filmando. O Ivo fotografou uma parte e o Vitinho de Melo fotografou outra parte. O No Lugar Errado foi super rápido porque o grupo tinha uma janela de uma semana de ensaio da peça e a gente foi lá e filmou nessa semana. O que a gente conseguiu filmar virou o filme. O Estrada Para Ythaca foi uma semana também, uma semana na estrada, filmando direto. À noite a gente decupava, de dia a gente filmava, foi um trabalho insano. A gente editava tudo junto…passamos um tempo montando, tivemos duas ou três etapas de montagem. A gente tinha treze horas de material bruto. A primeira cena, a do bar, foi a mais difícil pra montar. A gente voltou várias vezes nessa cena. Já Os Monstros foi ao contrário, a gente montou em uma semana, pois tinha uma narrativa simples e trabalhamos com planos-sequência. Foi bem rápido.

E nessa época você começou a montar mais filmes, inclusive de outras pessoas…

Luiz: Por mim poderia ser de mais pessoas até. Eu adoro montar filmes, tenho um prazer enorme. Adoro entrar e participar de universos novos e sinto que contribuo bastante.

E aquela pergunta cliché de quarentena: conseguiu produzir alguma coisa nesse tempo?

Luiz: Sim, eu estou finalizando um curta novo chamado Jogo de Sete Lances (Perdido No Fabuloso Universo Dos Fragmentos). Eu comecei em pré-quarentena, ainda estou mexendo um pouco na imagem e no som. É um filme que fiz a partir de arquivos pessoais, dos últimos sete, seis anos. Ele tem uns vinte minutos.

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Crônica de uma Criança Solitária: A balada de Leonardo Favio

Por Daniel Dalpizzolo

Entre cigarros, bofetadas e castigos, um grupo de garotos atravessa os dias em um reformatório na Argentina. Não sabemos quem são ou o que passaram até chegarem ali, mas as cenas introdutórias revelam um núcleo de personagens ao mesmo tempo homogêneo e singular. Embora eleja entre os garotos um protagonista para acompanhar no restante da narrativa (Polín), o olhar lançado por Leonardo Favio para aquele ambiente é preciso ao estabelecer seu contexto, instaurando, por meio de poucos e elaborados planos, um cenário sombrio habitado por múltiplas almas solitárias, moleques errantes cujas trajetórias de vida os levaram para trás das mesmas grades e muros, de onde expressam sua inquietação provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou curtindo o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti.

As sequências iniciais inserem Crônica de uma Criança Solitária entre as grandes obras que exploram a juventude em conflito com os limites da ordem social, a exemplo de clássicos europeus como Zero de Conduta, de Jean Vigo, e Os Incompreendidos, de François Truffaut. Entretanto, se existem óbvios pontos de conexão temática entre essas obras, todas elas debruçadas sobre um mesmo recorte de final da infância de seus personagens, o que imediatamente salta aos olhos na estreia de Favio são os elementos que exaltam suas singularidades: os ambientes decrépitos do reformatório, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes descascadas; os brinquedos singelos ou imaginários; as fardas militares; os olhares duplamente tristes dos garotos; as sombras preponderantes no quadro; o ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no fluxo de um pesadelo.

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Estamos, enfim, na América Latina dos regimes fascistas, na qual, entre golpes militares e governos provisórios, crescia uma juventude periférica apartada dos principais avanços da modernidade. Se os jovens de Truffaut rebelavam-se contra as autoridades matando aula para frequentarem casas de jogos e salas de cinema parisienses, aos de Favio resta a crua dimensão da realidade das ruas, percorrendo becos das periferias argentinas, espiando atentamente sobre o ombro antes de virarem a esquina para desviarem de desafetos ou da polícia. Celebrado como uma das mais importantes vozes da geração do cinema argentino que despontou na década dos Cinemas Novos, Favio aproxima sua obra do que Glauber Rocha nomearia como Estética da Fome, filmando em diálogo com mestres do cinema europeu, porém dando forma a uma estética que assimilava a realidade latino-americana e a representava em tela por meio de uma assinatura urgente, autoral e singular.

A assimilação dessas influências torna o trabalho de Favio ainda mais notável. É possível pensar em Vigo e Truffaut, mas também em Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, com os quais a relação se constrói às vezes simultaneamente, em uma mesma cena, na transição de um plano para outro. Cineastas formalmente muito distintos, mas que compartilhavam um mesmo anseio por materializar em suas imagens as inquietações existenciais e sociais da Europa pós-guerras, e que aqui tornam-se somente um ponto de partida para estabelecer um conjunto de referências que serão ressignificadas pelo modo como Favio articula a ação com o cenário filmado. Por essa perspectiva, é possível pensar que trata-se de um dos trabalhos mais complexos e ricos realizados na América Latina durante a década de 1960, a década em que, até então, com maior atenção se olhou para a história do cinema, propondo a partir dessa autoconsciência a construção de um novo marco revolucionário na cinematografia mundial.

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Como os filmes anteriormente mencionados, Crônica de uma Criança Solitária retrata uma juventude em revolta com o meio que habita. Mas a revolta, aqui, possui uma dimensão de tristeza e desconsolo. Relembro o filme com uma frase na cabeça: “A revolta é uma forma de impotência diante de uma situação de desespero”. A sentença é verbalizada por uma presa política recém libertada da prisão, durante uma conversa documentada por Pere Portabella em El Sopar, e revela uma perspectiva possível para dar conta das experiências representadas por Favio (por sinal, autobiográficas). Os garotos de Favio não escolhem a errância, são escolhidos por ela em razão da realidade que os circunda. Jovens desamparados, perseguidos pelo mesmo Estado que ignora sua existência enquanto não se tornam assunto das páginas policiais, mantendo esses garotos em um looping infinito entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas.

Por esse contexto é que a fuga da prisão, o ímpeto que materializa a revolta de Polín logo no primeiro terço da obra, é das mais tristes cenas de fuga já filmadas, lembrando uma versão ainda mais desolada do bressoniano Um Condenado à Morte Escapou. Ambos os registros compartilham um interesse pelo silêncio e pelo tempo dilatado da ação, que transcorre vagarosamente e acompanha com esmero os movimentos empreendidos pelo fugitivo – aqui, ao longo de mais de 10 minutos de um silêncio absoluto e ensurdecedor. Entretanto, enquanto em Bresson a fuga é o apogeu da narrativa, culminando no triunfo da ação prometido pelo título da obra (o condenado à morte escapa, afinal), em Favio a fuga de Polín é um recurso com o qual o diretor convoca o espectador não a desfrutar da sensação de liberdade com seu protagonista, mas sim a conhecer, ao seu lado, a dura realidade do meio em que sobrevive, a respirar o mesmo ar e mergulhar na mesma água condenada.

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O filme se divide entre o dentro e o fora da prisão. Entretanto, as sensações provocadas pelas imagens, seja em cenários abertos ou fechados, podem coexistir em um único plano. Estão no dentro e no fora os mesmos ambientes decrépitos, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes velhas e descascadas; os mesmos brinquedos singelos ou imaginários; as mesmas fardas militares habitando cada esquina; os mesmos olhares duplamente tristes dos garotos; as mesmas sombras preponderantes no quadro; o mesmo ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no decurso de um pesadelo, mesmo quando ambientadas à luz do dia, mesmo quando parecem romper a regra à beira de um rio, numa tarde ensolarada de verão; uma tarde de liberdade que culmina na violação do corpo, no choro, grito, dor, silêncio, desespero, o desespero de lidar com a impotência que convoca à revolta.

A estética de Favio, que sustenta essa angústia pelos breves 75 minutos, é construída com um trabalho fascinante na condução da câmera, desde os inúmeros movimentos aos jump cuts da montagem, criando imagens ambivalentes e misteriosas, que flertam com o testemunhal, com a crueza do registro realista, ao mesmo tempo em que compartilham uma dimensão quase onírica. Uma explicação possível para o estilo elaborado de Favio talvez seja sua relação com a música, ofício que exercia ao lado de suas aventuras no cinema (onde, além de cineasta, também era ator). A impressão é de que Favio extrai musicalidade de suas imagens, as encadeia e as monta como quem combina notas e acordes para a composição de uma canção – cujos tons variam ao longo de sua obra, do dedilhado solitário de um violão em Crônica de uma Criança Solitária até chegar ao psicodelismo de um Nazareno Cruz e Lobo.

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Como uma balada tocada em repeat, o garoto solitário de Favio transita entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas, idas e vindas para dentro e fora das grades, numa canção cujos versos conduzem sempre a um mesmo e melancólico refrão. O semblante desolado testemunhado em Polín ao longo do filme, a farda e as mãos autoritárias que sempre o espreitam, retornam mais uma vez à imagem final da obra, mas agora não somos somente nós que olhamos Polín. Polín também nos olha. O choro, a dor, o silêncio, o desespero, a revolta. Na última nota tocada, a criança desaparece na penumbra do quadro enquanto, com a quebra da quarta parede, nos convida a segui-la, para quem sabe, junto dela, atravessar os dias em uma cela, uma delegacia, um reformatório na Argentina, entre cigarros contrabandeados, bofetadas e castigos, provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou gozando o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti, até que a balada recomece mais uma vez.

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O complô dos inocentes — notas irresponsáveis sobre a criança no cinema

por Bernardo Oliveira

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1.

As representações da criança no cinema resultam de diversas concepções científicas e correntes relativas à educação e ao crescimento humano, com enfoque nos aspectos subjetivos (psicológicos) e sociais (sociológicos), que resultaram na instauração da ciência pedagógica e, como consequência, na invenção da sala de aula no século XIX. Buscando na história dos conceitos os elementos, acontecimentos e ideias que circunscreveram a emergência da sala de aula global e sua centralidade característica na educação moderna, percebemos que é neste período que o campo semântico da educação se estrutura. Primeiramente, segundo Philippe Ariès, através da ideia de passagem entre o mundo da criança e o mundo dos adultos. Depois, em termos de construção de ferramentas teóricas e institucionais que promovem termos como formação, transmissão, emancipação e autonomia. O que se observa, entretanto, é que como o peixe cai na rede, a criança entra no balaio da reprodução social, através de processos intensivos de formação e disciplinarização. “O grande tema da pedagogia que surge e se desenvolve no século 16” é o governo das crianças, escreve Foucault. Capturada por uma reforma do “ensigno”, a criança foi “ensignada” — (observação mental: ensinar, isto é, entranhar um signo).

2.

E é fácil notar como o cinema absorveu de diversas maneiras, algumas sem eira nem beira, não somente a criança enquanto corpo expressivo, como também enquanto significação de cunho social, cultural e político. Em relação à criança, a associação entre a escola e família encarna na maioria das vezes um poder de intransigência social, por vezes autoritário, a ser ultrapassado, ridicularizado ou destinado a servir como foco e motivo de resistência. A criança no contexto moderno/liberal/eurocêntrico: tanto a imagem “fofinha”, edulcorada e vulnerável de bochechas carnudas e rosadas, como o sujeito psicológico e social a ser educado (produção do comportamento) e ensinado (transmissão do conhecimentos) pela própria vontade do estado e da sociedade, dentro de estabelecimentos controlados e aptos a criarem força de trabalho e sociabilidade. A educação obrigatória emerge como um novo dispositivo para produzir obediência em massa, no contexto de migrações forçadas, cidades crescendo descontroladamente e ritmo frenético de crescimento em todas as ordens.

3.

Todavia essa estrutura que vai se formando ao longo do século XIX para ser plasmada sobre o corpo infantil, na maioria das vezes, não explica por si só a solidariedade da visão moderna “progressista” e seu diálogo direto e indireto com o senso comum: a criança apresenta, como a mulher e o escravo, um risco permanente de insurreição contrária à estabilidade social. Para que o perigo seja neutralizado ou domesticado, é preciso estabelecer um modelo através do qual as ferramentas disciplinares possam produzir um corpo dócil e moldável. Desde o século XVIII, com Kant, torna-se central a noção de que a criança deve ser educada e ensinada, visão esta que contrasta com as reais necessidades de controle. Não parece de todo absurda a mítica dickensiana acerca dos bandos que aterrorizam com saques e demais delitos as primeiras cidades erigidas pelo capitalismo fabril europeu do XIX, bandos de crianças esquecidas, insubmissas aos novos códigos e a marra das novas instituições.

4.

Nasce então a apologia da imagem de uma criança indefesa e inocente, que carece de cuidados e nada sabe da vida e do mundo. Aliás, sob esse ponto de vista, a criança não é bem um “ser”; como a mulher e o escravo diz-se dela que não possui densidade ontológica, que precisa ser controlada ou que deve vir-a-ser, “tornar-se” humana. Algumas crenças começam a ganhar forma: a disciplina, a economia do silêncio e da postura podem preparar esse corpo rebelde para assimilar palavras de ordem e conhecimento. A criança é mais um dos corpos a serem estratificados e sobrecodificados pelas instituições discriminatórias que nascem com a nova ordem. O século XX, o século da família e da conveniência, o século dos produtos “para todas as faixas etárias”, consolida-se a consciência de que produtos culturais específicos devem ser adaptados e traduzidos para uma suposta linguagem mais acessível ao “público infantil”. Materializa-se o fenômeno da infantilização da infância, do nivelamento arbitrário das crianças para fins de reprodução. É neste momento que, para uma sociedade, torna-se plausível adaptar, por exemplo, um disco dos Beatles para arranjos musicais considerados aceitáveis do ponto de vista de uma dita “música infantil”. É nesse panorama que o problema da criança e da infância é como que apreendido única e exclusivamente sob a ótica da infantilização familial-institucional.

5.

Nesse processo, generaliza-se a concepção de que a criança não é um adulto em miniatura, que a criança deve ser contida, educada e ensignada (como diz o outro, a escola provê as “coordenadas semióticas” que ensignam todas as “bases duais da gramática”…). No cinema, amplas representações da criança e da infância que se aproximam e distanciam do primado pedagógico moderno. Em sua base genealógica, nos séculos XVI e XVII, a Educação Moderna encontra o método mecânico-catecista dos Jesuítas, um dos primeiros experimentos concretos e exitosos de processamento didático coletivo (vale perguntar “exitoso para quem ?”, mas essa é outra história…). A criança é representada sob o duplo signo de uma representação estática e pueril e de, outra, a possibilidade de uma coletividade ameaçadora. A imagem da pureza absoluta se coaduna com a necessidade de produzir uma obediência coletiva, revelando um cotidiano brutal, através do qual se deseja criar um tipo de comportamento. Daí que algumas representações oscilam no mais das vezes entre a romantização da infância — o aspecto lúdico dos “anjinhos” ou o aspecto pitoresco dos “pestinhas” — e os enfrentamentos reais ocasionados pelo complô dos inocentes.

6.

Acerca do “pestinha”, os anos 90 trouxeram sua versão edulcorada por criancinhas loiras e sapecas através de filmes como “Esqueceram de mim” (1990), de Chris Columbus e “Dennis, o pimentinha” (1993), de Nick Castle. Já a relação entre a figuração da inocência e o chamado à responsabilidade como um fator de mediação, surge décadas antes, por exemplo em ”O Garoto“ (1921), de Charles Chaplin  — a infância romantizada, infantilizada, a celebração da inocência, a ética da empatia. Tomado pela ternura e vivendo nas condições que prenunciam a Grande Depressão, o Vagabundo recebe um chamado à responsabilidade: encontra um bebê órfão chorando no chão da rua. Imediatamente se vê compelido a participar da criação, do crescimento desta criança, pois, diz o senso comum, a criança é um ser indefeso que precisa ser protegido, educado e ensinado. A concessão do vagabundo à nobreza desse chamado corresponde a uma concessão que ele faz contra si mesmo. São conhecidas as sequências em que ambos, criança e vagabundo, se completam, sentados na beira da calçada ou dobrando uma esquina, como que exibindo a materialização de uma necessidade de acolhimento que se impõe. As crianças em “tempos interessantes”, retratadas pelo Neorealismo, são personagens inspiradas no garoto de Chaplin, como em “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica. O impressionante personagem Bruno Ricci (Enzo Staiola), é forçado a adotar uma postura adulta e tomar iniciativa diante dos problemas, encarnando uma infância cuja representação fora atualizada pelas necessidades trazidas pelo contexto do Pós-Guerra. “Pixote, a lei do mais fraco” (1981), de Hector Babenco, esgarça ainda mais o tecido da infância destruída pelas condições políticas e sociais, exibindo o cotidiano escabroso de um menor abandonado de 11 anos nas periferias do Brasil.

The Kid 2 The Kid

7.

Nos sécs XVII e XVIII, a pedagogia do detalhe de La Salle institui o chamado Método global, seguido dos conteúdos normativos no “aprender a pensar” de Trapp e na humanização dos humanos de Kant no XVIII. A sala de aula prussiana, conhecida como a primeira experiência organizada de educação pública coletiva, representa o coroamento dessas tendências disciplinares e normativas, transformando o grupo de crianças em rebanho e ligando seu controle a um poder pastoral. “A escola é uma cultura coercitiva”, escreve Kant em seu conjunto de anotações posteriormente intituladas “Sobre a Pedagogia”, postulando a vigilância e a correção como tarefas da educação. Para aprender a pensar, para manejar os códigos civilizacionais e participar da sociedade, o corpo da criança deve ser controlado, calado e, daí sim, ensinado.

8.

Nos anos 30, surge um filme de revolta infantil coletiva, que bota abaixo o otimismo rousseuaniano: “Zero de Conduta” (1933), de Jean Vigo expõe os perigosos e contraditórios códigos do complô infantil. A criança isolada, enquanto modelo conceitual, remete à puerilidade, mas em grupo, organizados e agindo coletivamente, a potência pueril se desdobra em características capazes de desordenar os espaços disciplinares, como as guerras que ocorrem no refeitório e no dormitório. A ação coletiva desse corpo rebelde requer todo um aparelho de vigilância que, contudo, falha. Usando as penas dos travesseiros e a câmera lenta, Vigo, então, converte o corpo coletivo rebelde em uma ordem angelical, expondo a ironia ambígua de uma oscilação que é marcada no próprio projeto de controle do corpo infantil. Alguns filmes manifestam essas relações ambivalentes entre o aspecto pueril e a maldade latente ao complô dos inocentes: a obra-prima “Bom dia” (1959), de Yasujiro Ozu, “A Aldeia dos amaldiçoados” (1960), de Wolf Rilla, e sua refilmagem, “Cidade dos Amaldiçoados”, por John Carpenter em 1995.

Zero de conduta 2 Zero de Conduta

Cidade dos Condenados

9.

Com a consolidação de uma ampla zona de correntes  pedagógicas modernas nos sistemas de educação pública do XIX e do XX, de Pestalozzi a Herbart, as representações da infância coletiva passaram a atender às necessidades e protocolos impostos por uma pedagogia psicossocial. “Fanny & Alexander” (1983), de Ingmar Bergman, narra a história de duas crianças a quem o complô fora negado, construindo-se como uma espécie de corolário da interpretação psicológica. Quando todas as forças disciplinares conseguem calar os códigos do complô, enclausurando o poder desordenador das crianças, o filme abre espaço para uma representação romântica da clausura. O diretor parece assistir, até mesmo com certa nostalgia, seu duplo infantil se desdobrando para resistir e superar os conflitos e a opressão.

Fanny Alexander 2 Fanny Alexander

10.

Na oscilação entre o senso comum e a psicologização da pedagogia, o cinema investe muitas vezes em uma exploração banal da criança no drama e no terror. A criança representa algo da ordem do não-natural, de um acesso perigoso ao insconsciente, àquilo que “ainda não é”, que ainda carece de vir-a-ser. O cinema instala uma tensão sobrenatural nesse vão entre o ser e o não-se, o meio termo entre o natural e o sobrenatural. No drama, o cinema usa a Inocência para gerar a piedade. No terror, porém, partindo da criança como meio despersonalizado, suspensa entre o inconsciente e a vigília, e, portanto, aberta às possessões e à mediunidade, chovem exemplos: desde filmes como “A Profecia” (1976), de Richard Donner, e, mais tarde, “O sexto sentido” (1999), de M. Night Shyamalan, até as franquias de terror como as do boneco Chucky — a propósito, noto que as motivações adultas que sustentam a insustentável visão de um “brinquedo assassino” parecem revelar algo de uma significação coletiva muito particular, de uma uma perversidade assentada sobre algumas visões coletivas da criança e da infância. Tem que ver isso aí.

11.

Há os exemplos mais complexos como “Um mundo perfeito” (1993), de Clint Eastwood, que se apresentam como ramificações moderadas da infância infantilizada, estipulando uma inocência básica, um tipo de comportamento parece atender às expectativas do senso comum, porém abrindo espaço para modos de existência divergentes, agentes de rupturas e gestos imprevistos. De formas diferentes, “Os Incompreendidos” (1959), de François Truffaut, “Mouchette, a virgem possuída“ (1967) de Robert Bresson, “As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marcos Dutra, e ”En Rachâchant” (1982), de Danièle Huillet, são exemplos que manifestam o inconveniente da criança singular, que reage à brutalidade. Um passo adiante, pois aqui não há redenção. A criança como um não-destino, a captura de um aqui-e-agora puro, a criança liberada da infância e aberta para as potências e descaminhos da vida.

12.

É neste ponto que entramos nos casos problemáticos, como o do professor e pedagogo Fernand Deligny e “O Mínimo Gesto” (1971), filme que realizou com seus pacientes autistas na Instituição La Grande Cordée entre os anos de 1962 e 1965. Para Deligny, a carga de controle dos afetos que é despejada sobre a criança, com o intuito de produzir uma estabilização psicossocial, mata boa parte do élan vital e criativo. É preciso recuperá-los através de uma outra educação, outros ritos de passagem, outras maneiras de “tornar-se quem se é”. Assim, contra a infância inadaptada preconizada pelo governo francês, Deligny e seus parceiros autistas opunham uma “pedagogia da revolta”, a única resposta possível à violência institucional. Ao lado de Yves Guignard, criança autista considerada “ineducável”, Deligny se lança em uma viagem que os levará para fora da instituição através de situações aparentemente sem sentido, como cair em um buraco. Nem a grandiloquência luxuosa de “Satyricon”, nem a “descida aos infernos” de Dante, Deligny simplesmente abandona o sanatório junto com seus colegas. O mínimo gesto é o gesto de grandeza, devir minoritário, salto de banda.

O Minimo Gesto

13.

Dentre os contextos mais radicais, em que as crianças se encontram expostas a uma experiência pedagógica particular e até mesmo ao perigo, vale lembrar o caso controverso de Otto Muehl. Integrante ativo do Acionismo Vienense, inspirado pelas ideias de Wilhelm Reich, Muehl fundou a Comuna Friedrichshof (1972–90) e, com Therese Schulmeister e as crianças da comuna, realizou os “Friedrichshofer Kinderfilme”. Nos anos 80, a comuna comprou equipamento de vídeo e, entre 1985 e 1987, produziu filmes de curta e média-metragem encenados e realizados pelas crianças, jogando com a história e a biografia de personagens como Stálin, Hitler, Picasso e Colombo. Em 1991, Muehl foi condenado a sete anos de prisão por pedofilia e por incitar as crianças a usarem drogas. Depois de pagar a pena, sua visão do processo oscilou entre pedir desculpas e relativizar as acusações até morrer em maio de 2013. No quesito “infância e perigo”, recordo também das crianças delirantes em “Trás-os-Montes” (1976), de Margarida Cordeiro e António Reis, sobretudo na primeira parte em que as crianças recaem em uma espiral do tempo que os leva a encontrarem-se, bem mais velhos, consigo mesmos.

Friedrichshofer Kinderfilme

Trás os montes

14.

Há também um cinema que, partindo de um legado não-eurocêntrico, despreza as pedagogias modernas ocidentais e aposta em outras possibilidades, como a de uma “pedagogia da estratégia” — isto é, um outro sentidos de “autoridade” através da qual a desobediência é calculada e até mesmo esperada. Último filme do senegalês Djibril Diop Mambéty, lançado após sua morte em 1998, “A pequena vendedora de Sol” (1999) é um média-metragem impressionante pela sensibilidade com que expõe um cotidiano marcado pela miséria, por relações de poder injustas e pela vontade inexorável de resistir a todo um ambiente atravessado pela opressão. O filme narra as desventuras de Sili Laam, personagem principal desempenhada pela incrível Lissa Balera, uma menina com deficiência motora nas pernas e muita personalidade para encarar a violência, o machismo e a polícia. Sili sai de sua casa no bairro pobre de Tomates em busca de comida e acaba descolando um trabalho como distribuidora do Soleil, jornal da região. A menina enfrenta o machismo dos patrões (“as mulheres também podem fazer o que os homens fazem”), a desconfiança dos distribuidores, a arbitrariedade da polícia e as ameaças do grupo de pequenos vendedores do Soleil. Contudo, vende todos os jornais a bom preço e, com o dinheiro recebido, tenta comprar uma sombrinha para a avó, mas um policial desconfia da nota de dinheiro alta e lhe dá voz de prisão. Sili responde com convicção: “só se for agora”. Chega na delegacia, mostra o recibo de vendedora, dá um pito no policial e no delegado e, para completar, questiona o aprisionamento de outra mulher que, aos gritos, alega sua inocência. Livre, comemora com amigos dançando ao som do boombox de um cadeirante desempenhado por Moussa Balde, que cobra por música tocada e que a observa durante toda a jornada. O cerco dos meninos jornaleiros cresce, eles agridem Sili, mas surge Babou Seck, um amigo que lhe salva de apanhar. Com ele, tem um diálogo esclarecedor de sua posição enquanto uma criança capaz de uma estratégia e de um sentimento ético superior em relação a sua comunidade:

— Por que o Sud vende mais do que o Soleil?

— Porque o Sud é do povo e Soleil é do governo.

— Então continuarei a vender Soleil, assim o governo se aproximará do povo…

As sequências finais são incríveis: o bando de meninos jornaleiros vendendo jornal (“África sai da zona do franco!”), roubam as muletas de Sili, ela sobe nas costas de Babou e prosseguem por um corredor escuro: “quem respirar primeiro vai ao paraíso”. Mambéty dedicou o filme “à coragem das crianças de rua”, o que de certa maneira vai direto ao ponto: sobreviver com coragem a uma situação de acentuada pobreza, repressão e divisão de classe é também o papel a ser cumprido por muitas crianças que não cabem nos códigos pedagógicos hegemônicos.

vendedora do sol

15.

Da mesma forma que reconhecemos e identificamos a criança pueril e nos emocionamos com sua aparente fragilidade, portadora do aspecto cativante de um indivíduo em crescimento, assim também nos é verossímil a representação de uma criança que, como no filme de Mambéty, demonstra uma razão superior. Uma criança que nem sempre maneja seus sentimentos com inocência e ingenuidade, algumas possuindo desde cedo o sentido da responsabilidade, da força, da resistência e da estratégia, seja mediante a ameaça do castigo, ou mesmo dos constrangimentos políticos e sociais. Novamente Bruno Ricci, o menino de “Ladrão de Bicicleta”, mas também Ahmad, a criança em “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987), de Abbas Kiarostami. Ahmad leva o caderno de turma do colega Nematzadeh para casa e sabe que isto lhes renderá castigo. Ele se arrisca a levar possíveis palmadas do pai e da mãe e parte para o vilarejo próximo de Poshteh, onde se encontra seu amigo. Ao longo da jornada, Kiarostami vai construindo paulatinamente um personagem que tateia o mundo e utiliza seus poucos conhecimento para fazer cumprir o destino ético. Ahmad pergunta para os habitantes do vilarejo, entra nas casas, verifica a umidade da calça no varal em uma quintal, pergunta novamente, escuta atentamente os sons dos animais e das conversas ao longe, rastreia o percurso da água nos encanamentos para descobrir a presença humana e, quem sabe, encontrar seu objetivo. O medo do castigo que o professor severo impõe à desobediência faz coro com o que o avô afirma para um amigo: “é preciso dar umas palmadas para que ele não seja preguiçoso”, associando castigo físico e disciplina. Visando o nivelamento do comportamento e o fortalecimento do sentimento de responsabilidade, as crianças são submetidas a humilhações e ameaças violentas. O medo do castigo queima sua alma sem que os arautos do castigo, os adultos, facilitem ou ajudem em sua empreitada. Aliás, é na conversa entre os adultos que percebemos os motivos pelos quais uma sombra de desconfiança paira sobre as crianças. Pois conforme a fala de seu avô e dos amigos adultos de seu avô, percebe-se o quão desrespeitosos e indisciplinados são os adultos que preconizam palmadas para que as crianças não sejam desrespeitosas e indisciplinadas. O avô faz apologia da obediência ao contar uma história da época em que trabalhava como engenheiro, quando recebia pela metade por não assimilar o trabalho a ser realizado desde a primeira ordem. E completa: “temos que lhes dar disciplina para que obedeçam às ordens e recebam o salário completo.” Durante todo o filme, Ahmad defenderá justamente a “primeira ordem” sem que os adultos sequer lhes dê ouvidos. A lógica da disciplina e do castigo imposta pela escola e pela família contrasta com a atitude civilizadora de Ahmad. E, por fim, Kiarostami introduz a percepção de que crianças oprimidas pela escola mantém entre si relações solidárias e, ao contrário dos adultos, ajudam-se umas às outras.

Title: KHANE-YE DOUST KODJAST? / WHERE IS THE FRIEND'S HOME ¥ Pers: POOR, BABEK AHMED ¥ Year: 1987 ¥ Dir: KIAROSTAMI, ABBAS ¥ Ref: KHA004AB ¥ Credit: [ INSTITUTE FOR THE INTELLECTUAL DEVELOPMENT OF CHILDREN AND YOUNG ADULTS / THE KOBAL COLLECTION ]

16.

Nota conclusiva: por que irresponsáveis? Ora, Lili e Ahmad são crianças que encarnam a razão superior da infância, na infância. As representações comuns do cinema norte-americano exibem o corpo infantil como o espaço de tudo aquilo que escapa ao racional e ao compreensível: a compreensão vital, o terror, a mediunidade, a desordem absoluta, a empatia natural pela ausência de civilidade, de responsabilidade… É evidente que a heterogeneidade das representações da criança e da infância no cinema me obriga a assumir uma postura modesta, pé-no-chão, beirando a irresponsabilidade: não tenho qualquer pretensão de esgotar o tema, sequer de apontar uma interpretação geral. Também estou ciente de que misturo criança e infância, educação e pedagogia de modo demasiado ambivalente. Ok, ciente. Trata-se de uma delimitação primeira, que toma como ponto de partida um conjunto limitadíssimo de filme, um enquadramento tão breve quanto possível. Filmes e abordagens que ficaram de fora e poderiam ter entrado: “O Balão Branco”, “Boyhood”, “A infância de Ivan”, “Meninos de Tóquio”, “Aniki Bobó”, “Pather Panchali”, uma análise mais densa para “Bom dia”, os filmes de Tatit (Sr. Hulot era uma espécie de criança…), “Criança cega” do grande Van Der Keuken, “Um dia quente de verão” e “Yi Yi” de Edward Yang, “Jacquot de Nantes”…não foi possível. Sinto muito.

 

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A lei dos depravados

frePor João Pedro Faro

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Entre 1966 e 1973, os cineastas japoneses Koji Wakamatsu e Masao Adachi colaboraram em mais de 30 projetos. A parceria da dupla só foi quebrada quando Adachi se uniu ao Exército Vermelho Japonês, no início da década de 70. Ele mudou-se para o oriente médio, lutando no grupo armado comunista junto com a Frente Popular Para a Libertação da Palestina, sendo mais tarde deportado do Líbano e acabou preso no Japão por quase 40 anos. A obra de Wakamatsu e Adachi permanece como uma das violentas expressões cinematográficas de sua geração, composta por filmes de baixíssimo orçamento que compartilham a revolta como um estado de existência e a contravenção como base da relação entre o indivíduo e o coletivo.

O princípio dos dois autores é a várzea. Por mais que seus filmes perpassem a história da Nova Onda Japonesa, Wakamatsu e Adachi sempre recusaram qualquer cânone. Em torno do gênero pinku, filmes japoneses de exploitation preenchidos por nudez e violência, feitos com pouco dinheiro e distribuídos no mercado de cinema adulto, os dois fundaram um ideal de cinema que prezava pelo imediato, pela potencialização direta dos meios fílmicos que só poderia ser encontrada dentro do contexto desse tipo de cinema marginalizado. É preciso entender que seus filmes só puderam existir da forma que existiram, do jeito que existiram, por estarem conscientes de seu espaço enquanto subprodutos industriais, por habitarem as bordas de um sistema operacional de estúdios do Japão e reconhecerem esse fator como uma pulsação estética e formal. Se a base da revolta é a negação, esse cinema nasce a partir da vontade pelo contrário.

A primeira parceria dirigida por Wakamatsu e escrita por Adachi feita de forma completamente independente, The Embryo Hunts in Secret (1966), funciona, de forma mais ampla, como uma declaração de interesses que viriam a ser ainda mais estripados nos próximos anos. No filme, um homem prende uma mulher em seu quarto e a submete a todo tipo de tortura física e sexual. O estado de revolta é absoluto em todos os aspectos: o torturador que expressa a misoginia em catarse de tortura, que não aceita a possibilidade de que o corpo da mulher simplesmente exista de outra forma em que não esteja absolutamente dominado. O reflexo do abuso encontra-se na sobreposição das imagens de revolta, como em um momento de tortura que é precedido por imagens sobrepostas do rosto de Maria Antonieta e, logo depois, da ex-mulher do próprio torturador, que não pode lhe dar um filho. A complexificação das estruturas de poder apresentadas impulsiona a justificativa do torturador em torturar: a desestruturação familiar, a impossibilidade da paternidade, é relacionada ao regicídio, ao fim de um estado absoluto de poder. Isso o coloca, ao mesmo tempo, na posição de vítima e de algoz.

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É um abusador que se sente traído pelo tempo em que vive, se sente destituído do poder que revoga e, agora, tenta reestabelecer algum tipo de sentido à sua vida, às custas da extrema violência – um personagem essencial à filmografia de Wakamatsu e Adachi, por ser a figura exemplar do sujeito que precisa destruir todo um espaço por não conseguir viver sob preceitos que não sejam os próprios. Enclausurado entre quatro paredes, onde estupra e chicoteia sua jovem namorada, ele consegue reger um universo particular que esteja de acordo com os ideais que sua revolta reivindica.

No ano seguinte, Wakamatsu dirige Violated Angels, um filme de menos de 60 minutos que acompanha um grupo de enfermeiras feitas de refém por um jovem armado. Voltamos ao filme de espaço único, onde o rapaz mata todas as enfermeiras, uma de cada vez. A ação concentrada dilata o tempo e valoriza cada gesto como um arco dramático: cada interação, verbal ou silenciosa, entre o atirador e alguma das mulheres, se estende por minutos. Em vários momentos, ações se repetem: vítimas aos gritos pedem misericórdia, a arma é usada como mediação fálica entre o homem e a mulher – tudo enquadrado diante à iminência da morte de todas elas. Assim como em Embryo Hunts in Secret, e como viria a ser em filmes futuros, Wakamatsu abusa de característica comum ao pinku, a repetição de atos de violência física e sexual, para transformá-la em aliteração. A mesma situação se repete por muito tempo em tela, transformando o processo de reiterar as mesmas imagens e as mesmas palavras em uma extensão consciente do cinema que ocupa e uma experimentação do extremo, o filme inteiro sendo uma série de ações repetidas e dilatadas que, em outras obras, ocuparia apenas alguns minutos de narrativa. E ainda subverte essa própria aliteração do grotesco em seus momentos finais, quando o toque maternal de uma das enfermeiras consegue desarmar o jovem, contrariando as expectativas do gesto repetido da morte.

O personagem do atirador em Violated Angels é um revoltado peculiar dentro do cinema de Wakamatsu, pois suas ações são extremamente ambíguas, quase aleatórias. Ele surge em tela como um obcecado em acabar com a vida daquelas mulheres, sem antes e depois. Nos últimos segundos de filme, quando a polícia arromba a casa das enfermeiras para buscar o atirador, Wakamatsu sugere um paralelo fundamental entre a violência daquele grupo de agentes estatais com a violência do atirador contra as mulheres desarmadas (paralelo esse que viria a se tornar mais politicamente declarado em seus projetos seguintes com Adachi), mas a motivação básica do jovem continua misteriosa. A resposta pode estar em um dos primeiros momentos do filme: sozinho em uma praia, o rapaz atira freneticamente contra as ondas do mar. A imagem não poderia ser mais direta, mais literal. Atira-se contra a impossibilidade de vitória, contra algo imortal, em constante mudança de forma e tamanho, para se adequar ao que o impacta. Atirar contra a água talvez seja o gesto mais sugestivo possível de um indivíduo em revolta contra as leis de um universo exterior a si próprio, que pode ser atingido, mas nunca derrotado. Matar um grupo de mulheres indefesas é um escape temporário de alívio contra as ondas de fardados que surgem nos últimos momentos do longa.

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Um jovem armado, que atira contra a impossibilidade de vitória que o cerca, surge também na cena final de Sex Jack (1970), escrito por Adachi e dirigido por Wakamatsu. Após todo o seu grupo de amigos, uma gangue de estudantes comunistas, ser preso, um tímido rapaz mata um grupo de policiais, logo antes de sair andando, solitário. Por mais que exista uma certa recompensa no assassinato da polícia, o tom é de melancolia absoluta, de desesperança em qualquer ato revolucionário. É estabelecida a diferença entre a revolta e a revolução. A revolta implica desordem, já a revolução, além da desordem, implica mudança. Em Wakamatsu e Adachi, nunca atingimos a revolução, só interessa filmar a desordem.

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Sex Jack é estruturado no confinamento do grupo de comunistas em um apartamento decadente. Durante o dia, não fazem muita coisa além de transar e brigar. A claustrofobia, obsessão declarada de Wakamatsu, acaba funcionando como propulsora de ações concentradas em seus planos. O longo escopo da câmera de Wakamatsu, uma recorrência visual necessária na maioria de seus filmes, decupa o espaço confinado na alternância entre o plano todo preenchido pela aproximação com os corpos dos personagens transando ou aberto o suficiente para enquadrar diversos personagens em cena. Interessam as imagens dos embates físicos, sejam eles sexuais ou não: todos recebem um mesmo tratamento pelo longo quadro que os abriga.

Em um caso similar, no longa Sensual Games (1969), que Wakamatsu e Adachi dirigiram juntos, o escopo que enquadra o maior número de pessoas em cena serve tanto para filmar uma cena de orgia quanto para filmar um grupo de ativistas políticos em motim. Aliás, essa aproximação sugere tornar as duas coisas inseparáveis. Em dado momento, a cena de uma jovem sendo estuprada é interrompida na montagem por imagens reais da polícia repreendendo violentamente um dos protestos de esquerda realizado por estudantes japoneses. Wakamatsu e Adachi habitavam o ativismo político de esquerda da época, e o registrava como parte de seu cinema, como motor de qualquer outra recorrência temática. Tornam-se princípios similares de brutalização.

Essa percepção é parte da compreensão geral de que o sexo no cinema dos autores, diferente de outras produções do pinku, ou até de filmes de seus colegas da Nova Onda Japonesa, acaba por não ser interesse individual pelo tema em si. São projeções conscientes se utilizando dos signos do pinku, de outras temáticas que cerceiam e ditam os rumos de seus filmes. Em Sensual Games, por exemplo, mesmo que grande parte do tempo de tela seja tomada por cenas de estupro coletivo ou de sexo grupal, o que está realmente em evidência é como essas imagens são articuladas com seus entornos de efervescência social. Como na cena em que uma ativista é levada para uma zona ocupada pela juventude comunista e estuprada por uma gangue de jovens politicamente neutros, que desprezam a revolta ativista e, por sua vez, são revoltados com seus meios individuais de garantir a dominância sexual (antítese do grupo comunista visto em Sex Jack).

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O sexo existe como fim ou como reflexo de um estado de inconformidade constante com o espaço e o tempo habitado, e não simplesmente como sexo. É a violação do corpo, consensual ou não, que cria as imagens necessárias para eletrizar quem está enquadrado em cena. Em 1971, Adachi viria a explorar de forma ainda mais agressiva esse ideal, quando dirigiu Gushing Prayer. No longa, uma adolescente de 15 anos é obrigada por um grupo de amigos a se prostituir, a fim de encontrar qualquer sensação sexual que, até então, não houvesse encontrado, finalmente “derrotando” o sexo, como ela mesma explica. Adachi complexifica a ferramenta do sexo quando a torna uma passagem definitiva para a vida adulta, e, portanto, uma passagem para a percepção do sistema de classes e da exploração laboral. Se o sexo torna a adolescente adulta, e a vida adulta é baseada em trabalho, o sexo só pode existir para a jovem protagonista como outra forma de exploração regida pelo capital, e, para isso, ela precisa subvertê-lo à sua forma. Para o filme de Adachi, a prostituição é o único sexo possível dentro dessa sociedade, e todo sexo acaba, por consequência, sendo uma espécie de prostituição. O sexo pelo sexo, o ato pelo prazer, não existe dentro de um cinema em busca de brutalizar imageticamente seu processo revoltoso de pensamento.

Além do sexo, outra iminência da revolta, para Wakamatsu e Adachi, é o suicídio. Em 1969, Adachi roteiriza e Wakamatsu dirige GO GO, Second Time Virgin. Por mais que o abuso sexual seja constante durante o longa, que abre com uma cena de estupro coletivo contra a protagonista em um terraço, o centro de sua revolta urge da decisão da adolescente em morrer. Após fazer amizade com o filho do zelador do terraço, um jovem matador em série, ela explica: “Desejo morrer porque desejo matar”.  Por mais que esteja sendo violada por todo o seu entorno, ao invés de revoltar-se e negá-lo, a negação se dá contra si mesma. O suicídio é a total destruição de seu vínculo com o mundo, é a revolta contra a própria existência. Junto com seu amigo, que mata a facadas todos os membros da gangue que a estuprou, a menina decide que se jogar do alto do prédio é o regimento máximo de uma moral própria, seu jeito de atentar contra a ebulição desesperadora de inconformidades que sua vivência gera. O suicídio, longe de ser, em si, a concretização de um estado mental destruído, é apenas uma projeção extrema da não-cumplicidade com qualquer fator externo ao indivíduo. Na última imagem do filme, os corpos dos jovens no asfalto encontram algum tipo de estabilidade com o ato de existir.

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Ainda em 69, Adachi dirige o que talvez seja seu projeto mais formalmente ambicioso. AKA Serial Killer parte dos acontecimentos reais de um homem de 19 anos que matou quatro pessoas com a mesma pistola. Uma narração pontual absolutamente apática conta, em resumo, os passos do jovem, desde a sua infância até o dia dos assassinatos, enquanto acompanhamos planos fixos dos espaços em que ele passou ao longo dos anos. Nunca vemos o rosto do atirador ou qualquer imagem de arquivo. É um documentário que surge da articulação dialética entre uma narração distante, objetiva, e as imagens extremamente vívidas de pessoas e espaços que, de um jeito ou de outro, estão em conformidade com os atentados ocorridos. Adachi busca uma não-investigação dos fatos, das motivações ou das influências; concentra-se em simplesmente formular cinematograficamente uma narrativa que torna intrínseco o indivíduo e o coletivo, que mostre ambos como confluentes de existência, mesmo que o indivíduo em questão nunca apareça em tela.

Se temos a informação de que aqueles espaços se relacionaram à vida de um indivíduo assassino, um homem que quebrou o mais básico código da vida em sociedade, todos esses lugares são enquadrados como sendo imagens negadas pela entidade que percorre o filme, que faz com que o filme exista. O atirador existe como entidade de negação em cada imagem, um protagonista invisível. Seja uma imagem do pôr do sol ou de uma marcha militarista, o atirador está presente como contrário absoluto ao que está sendo filmado. Ele é o indivíduo que nega o código, que decidiu, de seu jeito, estabelecer um julgamento próprio de certo e errado, de vida e morte. Ele é um revoltado, quaisquer que sejam suas reais intenções.

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Wakamatsu havia feito algum dinheiro com uma produção no início dos anos 70 e resolveu, junto com Adachi, usar esse dinheiro para filmar em outro país. Acabaram em Beirute, onde filmaram a peça de propaganda terrorista de esquerda Red Army/PFLP- Declaration of World War (1971). Mesmo que seja um projeto propagandístico, ele está em total conformidade com a filmografia da dupla: Red Army é uma declaração de guerra contra o imperialismo, que incentiva meios diretos e objetivos de ação e violência. Como uma voz explica nos momentos iniciais, “as cicatrizes deixadas no poder por nossas ações são a melhor peça de propaganda”. O filme nega o uso de imagens de arquivo, mesmo quando surgem imagens gravadas de noticiários ou qualquer outro meio, elas são vistas através de telas de TV. A câmera se aproxima dos espaços ocupados por guerrilheiros palestinos, de sua rotina de treinamento e seus hábitos de estudo e vivência. Interessa, para Wakamatsu e Adachi, acima de tudo, como aquelas pessoas se relacionam com sua ideologia através da produção de imagens terroristas (a explosão de um avião, uma bomba jogada em território inimigo) e do seu modo de operação discursivo. As imagens finais são compostas simplesmente por palavras como “guerra”, “anti-imperialismo”, “bala”; uma espécie de articulação visual crua de um discurso que prega o ato e o dever de cada soldado na guerra contra um inimigo gigantesco.

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O último grande projeto que uniu Wakamatsu e Adachi, antes que este se dedicasse totalmente à vida de guerrilha comunista que acarretou em sua prisão, foi o longa Ectasy of the Angels (1972). O filme é quase uma apropriação dos típicos filmes de Yakuza para o contexto de facções terroristas anárquicas, com direito a mulheres fatais, cantores de bares, chefões e capangas malvados. Wakamatsu coloca a premissa em um embate de paradoxos, pois enquanto acompanhamos os subalternos de uma facção terrorista explodindo departamentos policiais e atentando contra o sistema hierárquico social vigente, acompanhamos os conflitos de hierarquia que ocorrem dentro da própria organização política. Se, antes, em filmes como Sex Jack e Sensual Game, os grupos terroristas eram simplesmente uma união estabelecida entre jovens, em Ectasy ele existe como perpetuação de todo o sistema que combatem. São traídos e amaldiçoados pela crença no líder e pela fuga do meio em que estão.

Talvez o grande fator que aproxime toda a revolta que Wakamatsu e Adachi registraram e sentiram seja essa contradição da existência do revoltoso. Esses personagens não negam qualquer sistema, qualquer código, eles simplesmente desejam um código que vai violentamente contra o estado atual. Um reflexo tanto da visão de mundo dos dois, que rejeita o poder pela tentativa de um poder próprio, que rejeita o estúdio, os festivais e a crítica, quanto de sua concretização cinematográfica em filmes tão precisos, quase exatos. Poucos cineastas tiveram tanto controle de cena ao filmar as maiores desordens, os maiores gestos de desestruturação da moralidade e do estado político,  ainda mantendo-se fieis a um processo de produção que reverbere esses mesmos ideais.

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O final de Ectasy of the Angels guarda um dos momentos mais especiais de toda a filmografia dos cineastas, certamente em conformidade com seus princípios de sempre. Após uma série de explosões e pequenos atentados, filmados em momentos de absoluto frenesi formal – a câmera de Wakamatsu talvez nunca tenha antes sido tão volátil e tão apta ao caos –, acompanhamos o protagonista abandonando sua vida atual de ação política dentro do sistema de facção, seguindo solitário. Nos segundos finais, esse protagonista, um terrorista que acabou cego após um atentado falho (outra imagem literal poderosíssima que Wakamatsu e Adachi entregam), caminha para fora do quadro enquanto os créditos sobem. Apático, carregado de bombas, se mistura à multidão até que não consigamos mais diferenciá-lo de qualquer outro. O indivíduo retorna ao coletivo, tudo se torna uma coisa só. A aceitação de seu estado de existência como eterno revoltoso trai a revolta original, mas sem deixar também de tornar-se uma outra.

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte 3 – Fim de um século, início de outro

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Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

Fabian: Você fala desse poder da obra de arte. E eu queria voltar a isso. Mas primeiro eu acho impressionante a nossa capacidade de perder a capacidade de se impressionar. A gente tá numa pandemia. Os EUA está efervescente com os protestos decorrentes da morte do George Floyd. O Brasil foi o primeiro país no mundo a tirar a COVID-19 da pauta central, com a saída do Moro, com as questões políticas todas. E aí, tentando atravessar esse momento muito específico com o nosso foco: o lugar da arte e o cinema. Como você enxerga o futuro do cinema a partir de agora? As salas de cinema estão ameaçando não reabrir, já se discute muito essa ideia de que o streaming veio pra ficar e que as pessoas vão se acostumar com essa outra experiência, mas tem esse lugar, onde  a Cinemateca talvez seja esse símbolo maior de ver um filme no seu formato original numa sala escura. Como você vê isso? Começou o século XXI?

Hernani: Bom, pra mim, começou agora. Todos os fundamentos do processo entre o fim da União Soviética, queda do muro de Berlim, etc., ou seja, a consolidação da globalização e de uma certa economia pós-industrial, massivamente ligada ao deslocamento e ao produto físico ela se desfez. Não totalmente, claro, essas coisas não são estanques, mas ela começou a se desfazer a partir da crise de 2008 e agora por completo. Percebe-se que certos arranjos econômicos, sociais, tecnológicos, políticos podem se dar de outra forma.

A pandemia é sobretudo um momento muito mais simbólico do que concreto – não são 2 ou 3 meses que vão sacramentar o processo – de que pode haver outro arranjo de forças, de exploração econômica, outro arranjo político. Ao mesmo tempo que você percebe essa possibilidade de mudança, você percebe que as estruturas anteriores podem se manter se você souber conter essas forças, se você souber absorver, cooptar essas forças. Dar um outro sentido ou simplesmente associá-las ao processo histórico mais amplo, que a gente sabe que é o processo capitalista industrial.

O momento da pandemia cria a dimensão de que o processo anterior tá na bica de se encerrar e provavelmente vai e cria oportunidades. E aí, por mais trágico que isso seja, dentro de uma economia capitalista, aquele empreendedor, empresário, financista, investidor que é esperto o suficiente, ele saca quais são os desdobramentos e vai investir nisso, eventualmente criando um mundo novo.

Vou te dar um exemplo que é histórico: durante a pandemia da gripe espanhola, que foi uma pandemia, inclusive, maior que a atual – estima-se que 50 milhões de pessoas morreram no mundo – houve algumas consequências imediatas e vou dar dois exemplos, um tem a ver com cinema, outro não. A que tem a ver com o cinema é o fato de que aquilo que a gente conhece hoje monoliticamente como Hollywood, em 1918 não estava nem um pouco consolidado, longe disso. Seja porque a maior parte desses filmes feitos nos EUA ainda era feito em NY e não na Califórnia, em Los Angeles, seja porque a maior parte do circuito de salas de cinema dos EUA era pulverizado, tinha milhares de proprietários, não existiam grandes circuitos no sentido que a gente conhece, sobretudo, a partir do final dos anos 1920.

Durante a pandemia, os cinemas fecharam em várias partes do mundo, inclusive no Rio de Janeiro, mas sobretudo no EUA e fecharam dentro de um conflito legal muito grande – não queriam fechar, foram obrigados a fechar pelas autoridades. E óbvio que passou 1, 2, 3 meses, naquela época o capital de giro era muito pequeno, era uma atividade ainda essencialmente popular, você não durava muito tempo com o seu negócio se você não tivesse ele, de fato, funcionando. Logo começou a quebradeira, muitas salas fecharam e aí o Adolph Zukor, que é um daqueles que moldaram a Hollywood tal como conhecemos, daqueles que instituíram as chamadas majors, ele era responsável pela Paramount… até aquele momento, esses embriões dos grandes estúdios, Universal, Warner, Paramount, etc. são basicamente unidades produtoras, não estão ainda totalmente verticalizadas ou na prática, muito longe disso.

Ele cria a grande oportunidade em meio a gripe espanhola: comprar, literalmente, centenas de cinemas que estavam quebrados – os proprietários tinha aberto falência – e unificar isso num grande circuito próprio de circulação de suas mercadorias. É aí que nasce a Hollywood que hoje a gente chama de clássica. E é um fenômeno estritamente ligado a quebradeira propiciada pela gripe espanhola. Isso é história, não uma mera especulação ou hipótese. Você pode perguntar: vai acontecer o mesmo hoje? Não sei. Eu diria que não…

Fabian: O oligopólio hoje é maduro e cresceu…

Hernani: Isso, as famosas cinco, que depois viraram sete que depois ganharam um apêndice da Disney que é a oitava e é a maior e está se expandindo pros streaming com o Netflix da vida [ele fala aqui do “Big Six” – Paramount, Warner, Sony, Universal, Fox, Disney – além das duas de streaming Netflix e Amazon]. E preste atenção: a Netflix está fazendo o que hoje nos EUA nesse momento? Comprando salas de exibição. Acabou de comprar o famoso Egyptian Theatre em Hollywood, que é uma das salas icônicas da era clássica, e comprou outras salas ao redor dos EUA. Não num circuito tão grande quanto lá quando a Paramount comprou em 1919, mas ela tá comprando salas agora que faliram pra ter um espaço de qualificação, de marketing do seu produto. Na percepção de uma empresa como a Netflix não dá pra apostar 100% no streaming. Então as salas vão continuar.

Como existiam anteriormente? Provavelmente não. Seja porque espaços como shoppings vão se tornar inviáveis economicamente, seja porque parte do público, de fato, vai migrar pra casa e pro celular, seja porque você vai redimensionar simbolicamente tudo isso. Eu acho que a questão que surge agora não é tanto qual o grau que o arranjo atual vai ser afetado mas como ele vai ser modificado. Isso implica, inclusive, a ideia que o Walter Benjamin tinha percebido muito bem, que é a ideia de que o cinema é antes de tudo uma arte de massa. Apresentada a milhões de pessoas, fisicamente falando, ao redor do mundo, no mesmo momento, eventualmente no mesmo dia. Isso já vinha se perdendo, não é novo, essa escala diminui estratosfericamente nos últimos 50 anos, mas talvez tenha agora, de fato, sua pá de cal.

O cinema vai desaparecer? Não, isso é bobagem, não tem o menor sentido. Negócios vão ser redimensionados, fechados, comprados? Vão. Isso faz parte do processo. Mas sobretudo, a ideia de cinema vai mudar. E eu acho que taí o grande desafio. A questão é: se o século XX de fato acabou qual é a natureza do século XXI? Se a arte do século XX se esgotou é preciso desenvolver outras formas de arte, com outros arranjos tecnológicos, inclusive, pra esse novo momento.

Então como é que você vai lidar com o desafio? Como é que você vai se encaixar no mundo que surgir adiante? E a gente não pode ser ingênuo né? Os artistas na Hollywood tinham enorme dificuldade de lidar com aquela engrenagem. Poucos, inclusive, conseguiram fazer valer suas prerrogativas artísticas sobre a máquina econômica que aquilo representava. As coisas, os conflitos, as explorações não vão desaparecer, mas você ainda precisa, no sentido humanista do processo, defender a liberdade, a tolerância e todos os valores que se acreditam positivos pra convivência humana, você precisa, de alguma maneira, estar atento ao novo e o novo não é apenas o instrumento novo, o novo é uma vida nova. Você precisa criar novas formas de sensibilidades e sociabilidade.

Precisa, inclusive, talvez recuperar algumas das antigas. Essa dimensão massiva é a mais importante. Boa parte do que houve de positivo ao longo do século XX veio dessa dimensão massiva. Não se pode transformar a vida numa vida de gabinete ou de espaço em frente a uma câmara de rede social, como a gente tá aqui. Isso pra mim é um equívoco. A sobrevivência do cinema aqui no Brasil de forma mais imediata significa, de um lado que a gente mais uma vez vai pegar o nosso dinheiro pra sustentar o prejuízo externo, seja através da dívida externa, seja através de um aporte de emergência pras salas de exibição que são basicamente estrangeiras no Brasil. Quer dizer, a população mal e mal teve R$600 pra sobreviver minimamente durante a pandemia, mas certamente as salas de exibição dos Cinemarks da vida, que apoiou o Jair Bolsonaro, financiou sua campanha, vão receber milhões. Isso é atravessado pelo gesto e pelo direito das pessoas de consumir cinema, de uma maneira ou de outra…

Fabian: O Banco Central já. 

Hernani: É, exatamente. Eu acho que tem uma oportunidade aí, sobretudo pra um cinema que a gente genericamente chama de independente brasileiro, de criar circuitos próprios, de expandir suas formas de contato com a população brasileira, de chegar a um número efetivamente maior de pessoas. A gente menosprezou muito no início a força de instrumentos como You Tube, redes sociais, etc. e se a gente souber explorar isso numa escala mais ampla, mesmo um cinema do passado de repente tá passando aí pra duzentas, quinhentas mil, um milhão de pessoas ao longo de dez anos.

Fabian: Isso implica um pouco abandonar uma certa comodidade do circuito de festivais, né?

Hernani: Sim, totalmente. O foco não pode ser só ganhar dinheiro ou ganhar fama ou ganhar prestígio. O foco primordial tem que ser o contato com as pessoas. Não se acomodar em fazer o seu filme circular pro maior número de pessoas possível. E da melhor forma possível, porque muitas vezes o filme brasileiro circula com uma qualidade técnica pra lá de sofrível, que às vezes, inclusive, joga contra a natureza estética da própria obra. Então é preciso valorizar as pessoas, o momento e inclusive esses instrumentos de circulação e construir uma outra forma de fazer o filme brasileiro existir dentro do Brasil.

Fabian: Por outro lado, sendo advogado do diabo dos dois lados, isso implica uma dificuldade enorme de sustento do artista.

Hernani: Sim, talvez a gente volte àquele momento em que Machado de Assis era funcionário do Ministério da Agricultura.

Fabian: Pois é, você tem uma profissão oficial e a segunda é fazer filmes.

Hernani: Não, ao contrário né? Você, porque quer fazer filmes precisa comer, mas não vai deixar de fazer filmes por causa disso e aí você arruma lá um jeito de comer. A gente não pensa direito: qual era o objetivo de Machado de Assis, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade? Essas pessoas eram funcionárias públicas porque queriam? Não. Eram funcionárias públicas, porque queriam ser artistas.

Eventualmente não dá de um jeito, não tem opção, vai ser do outro, vai ter uma vida muito chata por um lado, mas não vai abrir mão de fazer arte. Não vai abrir mão de pensar, se exprimir, trocar lá uma sensibilidade qualquer com os espectadores que estão por aí. Agora se você tá nisso pelo dinheiro, bom, aí eu recomendo que você vá pra Netflix, pra uma rede de televisão, vá fazer o produto tradicional, porque pelo menos você vai ter um bom salário. Se você vai fazer arte ou não já é outra questão. Então a gente não pode ter a ilusão de achar que porque no século XX os artistas ganharam muito bem, isso foi sempre assim. No século XIX a maior parte dos artistas viveu miseravelmente, quase não ganhou um centavo ao longo da vida.

Fabian: É que também com a “democratização dos meios” há de se pensar na desigualdade desses corres. Lincoln Péricles fala muito sobre isso, por exemplo. Hoje em dia existe uma pluralidade muito maior desse campo artístico não é só elite fazendo ou quem teve uma educação formal completae aí o funcionalismo público do Machado, por ex., envolve um tempo de estudo pra ingressar ali nesse emprego estável que nem sempre é o tempo de quem tá na correria. Acabaria rolando um corre triplo: o tempo de se virar pra sobreviver, o tempo de estudo pra alcançar alguma estabilidade e o tempo de fazer os filmes.

Hernani: Sim… o que eu acho que é importante perceber é a diferença que vai existir na União Europeia e, por exemplo, no Brasil em relação ao socorro do mundo que existia até a pandemia. Por exemplo, o socorro das indústrias cinematográficas nacionais europeias que não podem ser sacrificadas de uma hora pra outra, sejam em termos dos empregos ou dos produtos ou até da geração de renda para essas economias nacionais, etc. e a União Europeia armou um plano que ela vai investir, sei lá, um trilhão de euros a fundo perdido.

Ela não vai obrigar as pessoas a retornar, o que é impossível, sobretudo a juros bancários e vai atuar em todos os níveis da sociedade, vai atuar no empresário de exibição, junto aos produtores, aos espectadores com ingresso subsidiado, vai atuar na cadeia de sustentação, laboratório, pós produção, etc. de uma forma inteligente.

No Brasil, não só não temos um plano como esse, porque o plano é dar dinheiro pros bancos e os bancos cobrarem juros extorsivos, como em relação ao mundo cinematográfico a gente vai funcionar dentro da lógica antiga, ou seja, os EUA fazem pressão por conta de seus negócios no mercado brasileiro, um mercado dominado por eles há mais de um século e quem vai subsidiar isso é o próprio Brasil, não vai ser a Warner que vai lá vir dos EUA pra botar um dinheiro aqui e sustentar parte da atividade. O que você tem de novo nesse sentido foi a Netflix que criou um fundo em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, e distribuiu uma renda mínima pros artistas. E com isso ela teve um gesto de boa vontade, de marketing e, eventualmente, um canal aberto com a própria atividade como um todo. Se ela for reforçar a sua presença via streaming junto ao público brasileiro, ela fez a jogada de marketing perfeita.

Fabian: É um pouco do que já vinha acontecendo antes né? Enquanto a Ancine vem tendo os recursos congelados, a Netflix vem sendo considerada como salvação por uma parcela da comunidade do cinema com uma vasta oferta de empregos. Tá cheio de roteirista feliz com tantas portas se abrindo, todo um novo manancial de oportunidades, mas em termos artísticos (e não só), é de novo um desenho colonial da coisa enquanto antes tínhamos os meios de produção, agora trabalhamos pra eles, para uma empresa estrangeira.

Hernani: Sim. E a gente não pode esquecer com toda essa questão da Ancine que um dos filhos do Bolsonaro numa live elogiou a Netflix. O tipo de cinema que deveríamos ter não era Bruna Surfistinha, mas Netflix. Não podemos esquecer o quanto na composição do conselho superior de cinema do governo Temer, no comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual a Netflix foi cogitada pra ocupar uma cadeira. Então esse é um processo mais amplo, que já vem de algum tempo, que a pandemia pode ter acelerado e que está aí no jogo de xadrez há muito tempo, esse tabuleiro é muito difícil pros brasileiros porque quem conduz os dois lados não somos nós e aí fica muito difícil a gente ter qualquer tipo de atuação mais sensível, coordenada, prática, mais útil e decisiva porque o governo brasileiro, de uma maneira geral, não apoia o audiovisual brasileiro salvo em raros momentos, em raras exceções e quase sempre joga contra utilizando mecanismo de Estado, ou seja, a legislação pra favorecer essas empresas estrangeiras dentro do próprio país, então a gente tem essa situação e ela é muito diferente do resto do mundo. Você pode mudar mais cedo ou mais tarde, mais amplamente ou menos, mais forte ou menos diante da pandemia. A Europa escolheu o caminho da moderação – “vamos sustentar o que já existia, pode ser que venha a mudar, mas também a gente não vai destruir de uma vez só”.

Nos EUA, a quebradeira foi geral, Trump não ajudou e a Netflix, a Amazon, um monte de empresas novas ligadas ao mundo digital tá comprando o velho mundo. Tão comprando por prestígio, simbolicamente, estabelecendo uma jogada de marketing que eles tiveram preocupação em não destruir, mas na verdade foram acentuar o que era novo. Então a escolha de como você vai fazer isso distingue as respostas dentro da pandemia, seja a resposta brasileira, americana, da União Europeia, seja a da Austrália.

É uma corrida sempre né? Você tem diante de si o novo ordenamento do capitalismo. Como você vai se encaixar ou sobreviver dentro dele? Se você está contente em ser ainda e mais uma vez aquele país que tem o papel de produtor de matérias primas agrícolas – vai ficar vendendo soja pro mundo inteiro – é uma opção, claro, mas no meu olhar, é uma opção muito equivocada, muito antiga, muito perversa porque vai significar miséria, aprofundamento das desigualdades, uma dificuldade, inclusive, de você trazer uma expressão como o audiovisual pra todo o país. Se houve algum benefício durante os governos do PT foi a extrema descentralização da produção, a aposta numa geração mais nova, mais independente e radical, foi quando todos os Estados começaram a ter produção, foi a oportunidade mesma de você ter essa distribuição mais bem distribuída pelo país, não concentrada, por exemplo, em Rio e São Paulo. Esses benefícios podem vir a se perder muito rapidamente, muito brevemente, na medida que, por exemplo, a Netflix que já anunciou querer fazer coisas parecidas com as novelas da Globo, venha a adotar o velho padrão de uma produção audiovisual centrado no Rio e São Paulo e que conhece, despreza e ignora completamente o resto da expressão sócio-cultural brasileira. É um grande retrocesso no nosso horizonte.

Por outro lado, eu sei que é difícil ser um Humberto Mauro, um Ary Severo. É difícil ser um cineasta num país onde você não tem nenhuma estrutura pra te sustentar. Aqueles velhos pioneiros faziam cinema de teimosos, não faziam porque iam ganhar dinheiro, ficar ricos ou famosos. Os filmes do ciclo de Recife passaram num cinema de segunda linha e pra um público bastante restrito nos anos 1920. Isso não impediu eles de fazerem, de acharem que era importante e tentar fazer de alguma maneira. Hoje isso é memória, faz parte da história do cinema brasileiro e é isso, cada momento histórico tem suas injunções, suas questões, suas possibilidades.

O que eu acho que existe pra essa geração que tá no Brasil, uma geração muito grande, na verdade não é uma, mas são várias – tem cineasta de 20 a 80 anos – é a possibilidade de você manter um rolo de produção, ainda que não com o dinheiro e os meios que existiam. Mas a expressão audiovisual é isso, ela pode se fazer de N-formas, então o desafio que você tem é o de criar algo de significativo. Se o horizonte for esse, o sombrio, o desafio tá aí. Se for possível lutar pela manutenção por todos os mecanismos anteriores e até aperfeiçoá-los no sentido dele ser mais democrático, menos concentracionista, melhor ainda. Eu acho que não se deve desistir de nada, mas também se deve ter consciência do que o momento histórico está trazendo.

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Thiago:  Retomando algo que você falou, sobre coisas que não fizemos em 2010, 11, 12… 15. Quais são as coisas que não fizemos que atualmente é necessário lembrar e colocar no horizonte?

Hernani: A coisa mais importante que não fizemos nesse período todo foi democratizar o acesso ao Fundo Setorial do Audiovisual. Eu lembro da Folha de São Paulo ter feito um gráfico dos recursos do fundo ao longo de dez anos, e 90% estava concentrado em dez empresas. Isso não é democrático. Muito pelo contrário, isso é um problema sério e que, inclusive, impediu o cinema brasileiro de ter uma repercussão maior junto a sociedade brasileira.

A segunda coisa é que o fundo não era um fundo, eram vários fundos. Era um fundo de distribuição, de exibição e era um fundo de preservação. Por exemplo: ter salas dedicadas e ter mecanismos de distribuição dedicadas ao cinema brasileiro. Nunca houve aporte maior sobre isso e em relação a preservação nunca houve aporte financeiro, ponto.

Dizem sempre que o fundo tem um bilhão de reais ou 800 milhões ou 1.2 bilhão de reais. Dá 5% disso pra preservação e já resolveu o problema dela por décadas. A gente lida com uma demanda, cara, mas não nessa escala. Imagina se a preservação brasileira tivesse 100 milhões de reais por ano. Acho que faltou implementar mecanismos e, na verdade, essa implementação sempre dependeu de falta de decisão política, de você ter uma outra configuração pro cinema feito no Brasil, de você ter uma outra estrutura pra esse cinema e aí, sendo muito franco, não se trata de cantar no quintal alheio – se as empresas estrangeiras querem ter suas próprias estruturas, nada contra, vai lá – mas o dinheiro dos brasileiros tem que ser investido na dimensão brasileira.

Não é nem questão de justiça, é uma questão natural. O dinheiro é da população brasileira. Se você quer realmente ter um campo audiovisual mais equilibrado e produtivo, mais atento às dimensões de passado, presente e futuro, você tem que investir em arquivos de filme, em pequenas e médias empresas, em estruturas de pós-produção, em informação e o dinheiro é suficiente pra tudo isso. Porque se você tá concentrando 90% dos recursos em dez empresas, você tá fazendo alguma coisa errada.

Então não houve condições políticas pra mudar esse desenho. Ele acabou sendo questionado de uma forma absurda pelo atual governo, mas o que aconteceu na prática é que tudo paralisou, o FSA está paralisado há dois anos, e você tem um desafio a frente que é o da pulverização e da acumulação. É preciso entender que não se ganha mais dinheiro lançando filme na semana X e sete dias depois você tem 90% da renda daquele produto. Hoje, você pode ter o produto X e ele render durante 10, 15, 20 anos. Sobretudo se ele é mantido à disposição nas prateleiras, igual a um livro nas livrarias. Tem livro na décima quinta, trigésima edição e por que? É esse tipo de negócio que, na verdade, o digital e sobretudo essa coisa do streaming criou. Você tem agora um outro tipo de relação econômico com seu público consumidor e agora ele se distribui por várias gerações, ele não se volta apenas e somente pra um momento imediato que você vai faturar muito. Esse é um negócio de quem precisa botar 100 bilhões num filme e recuperar 500 em uma semana porque senão vai ter que pagar juros bancários. Porque que a gente tem que reproduzir esse modelo de economia audiovisual? É um modelo pra nós completamente inadequado, se é que ele é adequado pros EUA. Não há capacidade de gerar outro modelos? Temos que nos submeter a esse único modelo e nesse sentido sermos colocados de fora dessa economia? Eu me pergunto porque que a gente insiste em ser tão tacanho, burro, sem capacidade de intervir nesse processo.

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte 2 – Compreender o novo momento

Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

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Thiago: Uma ação como essa de “fechar a cinemateca” é basicamente um “vamos apagar a memória, vamos destruir e só destruir”. Como o setor da preservação, como o da ABPA, como os profissionais estão conseguindo pensar numa ideia de sobrevivência nesse cenário? Porque me parece realmente, como o Fabian falou, a imagem do Museu Nacional em chamas vira uma proto-imagem do encaminhamento do governo Bolsonaro.

Hernani: É uma imagem que passou pela cabeça de todo mundo, passou pela minha cabeça. Não só nessa sexta-feira [29/05/20], mas já há algum tempo, porque pra mim no momento em que você estrangula uma instituição dessa natureza, sobretudo financeiramente, você tá levando ela ao desastre. Então não se pode dizer que isso não seja de caso pensado porque qualquer gestor minimamente informado sabe que instituições dessa natureza, se não tiverem os recursos adequados, elas abrem espaço para o imponderável e o imponderável às vezes termina tragicamente. A área de cinema como um todo reagiu muito rapidamente, mas de forma limitada, seja porque não há interlocução com esse governo, seja porque a gente tá no meio de uma pandemia. Então o poder de reação que quase sempre é simbólico, mas pode ter um impacto político muito grande, está arrefecido nesse momento. Então, lógico, as instituições, as associações, os sindicatos se mobilizam, se troca muita informação, geram-se manifestos, cartas de repúdio, cobranças, aciona-se, na medida do possível, o responsável – a Regina Duarte foi acionada várias vezes nesses dois meses em que ela foi Secretária Especial da Cultura e até onde eu saiba ela nunca respondeu qualquer solicitação de qualquer ente nem só da preservação, mas do campo cultural como um todo. A ABPA enviou um pedido de reunião com a secretária pra tratar da questão da preservação, do Plano Nacional de Cultura. Que eu saiba, nunca foi respondido. Então quando você tem de um lado esse tipo de atitude, esse mutismo, essa ausência, esse absenteísmo total já fica difícil a interlocução, mas pelo menos dizer pra sociedade o que está acontecendo, quais são os riscos envolvidos, o que é necessário fazer e o que é obrigação fazer por parte do Estado, isso tem ocorrido. No próximo dia 04 tem uma manifestação já programada em frente a cinemateca em meio a pandemia [já aconteceu]. As pessoas vão pras ruas, se expor, para tentar defender a razão de ser daquele espaço e cobrar ações concretas por parte do poder público que viabilizem a instituição. Agora tudo isso é muito limitado também por uma cultura política que não vai pro enfrentamento. A essa altura o que a gente tem visto e experienciado é justamente o lado conservador assumir essa cultura de enfrentamento, do confronto e do conflito, uma cultura que ocupa os espaços, que domina a narrativa midiática, que gera as imagens de força – não que tenhamos que trabalhar na dimensão da força, acho que a lucidez, a razão, o argumento apropriado e não a força que vai ajudar os filmes a sobreviverem. É o trabalho técnico adequado, a capacidade de articular uma coisa e outra, de dizer o que tem que ser feito concretamente, como tem que ser feito, mas também dizer em alto e bom som “olha, se não fizer, perde.” E perde desde o filme de família, da família A, B, C, D… até os registros das obras de arte mais importantes que o Brasil fez ao longo de cento e tantos anos. Esse trabalho político tem que subir vários tons, porque a gente não está mais lidando com um governo que queira debater e negociar, mas estamos lidando com um governo que virou as costas. E não só pra preservação, mas pro Brasil. Eles estão lá no castelo em Brasília e o resto do Brasil tá meio assustado e atônito, sem saber o que fazer, mas se não fizer nada, a casa pega fogo e as coisas se perdem.

Thiago: Isso me lembra um pouco da história do Ray Edmondson na Austrália[3]

Hernani: Tem pontos de contato. Houve governos na Austrália, na democracia australiana, que simplesmente olharam pro National Film & Sound Archive e se perguntaram “pra que serve isso? Não tem a menor importância, pode jogar isso fora. Políticas públicas na Austrália que reenquadraram as instituições, que diminuíram as verbas, que questionaram a existência ou parte dos seus acervos e que recomendaram a destruição. Pura e simples. Então nesse sentido o que a gente vive no Brasil não é novo no mundo da preservação. Por mais louco que pareça isso tudo é uma situação que alguns arquivos mundo afora já viveram. Essa ameaça não é uma ameaça localizada. Ela sempre está ali no horizonte daqueles que consideram que o passado e a memória não tem grande função hoje em dia. Há aí uma disputa maior que é o próprio sentido de guardar essas coisas. Pra que guardar essas coisas? No momento em que você gera a ideia de que isso tudo não tem o menor sentido, a menor função e pode ser jogado fora, você perigosamente chega aí nessa dimensão do esquecimento completo ou de amnésia cultural total que vai ter um preço trágico. Nesse sentido, lembrando uma obra de ficção que é o Fahrenheit 451, do Ray Bradbury, o que ele coloca lá é este Estado totalitário reacionário chegando ao ponto de desconfiar de tudo que carregue ideia. Naquele momento para o Ray Bradbury é o livro, mas a gente já não tá mais na civilização do livro, a gente tá na civilização audiovisual e dentro dessa civilização você tem essa dimensão imediata de um conjunto de mecanismos e tecnologias que conecta o mundo inteiro online, em tempo presente, e as coisas se fariam agora dentro dessa dimensão. Então pra que guardar o passado audiovisual? Pra que guardar filmes em papel, filmes em nitrato, filmes em acetato, videoanalógico, fitas VHS, DVDs… Isso não seria mais necessário e pior, aí vem aquele argumento absolutamente tolo e picareta “não, já tá tudo na internet, tá tudo no Google, só chegar lá e acessar”. E nesse momento você tá pondo em risco, mais do que o objeto, uma experiência que a pessoa de hoje ou daqui a dez ou cem anos, possa vir a ter com isso. Mal comparando, é você resolver destruir as pirâmides do Egito porque não tem mais sentido vê-las presencialmente porque elas já estão ali no Google. Há aí toda uma concepção muito equivocada e perversa que quer negar o acesso ao conjunto da população, agora e no futuro, a todo uma série de criações e experiências que o passado nos legou. E que foram conservados por esse tipo de instituição como a Cinemateca Brasileira. Então porque a gente não pode ter direito ao passado? Porque a gente não pode ter direito às várias dimensões do passado, inclusive com todas as suas contradições, em todas as suas dimensões concretas? Porque que a gente não pode saber que existiu direita, esquerda, centro-direita, centro-esquerda, direita radical, esquerda radical e muitas outras coisas? Porque que a gente não pode ter acesso a ideia de que houve momentos na história da humanidade em que as coisas deram certo? E também houve momentos que as coisas deram muito errado, terminaram muito mal, isso custou milhões de vidas e eventualmente destruiu patrimônios inestimáveis que não só faziam parte da vida das pessoas, mas contavam a própria vida da nação como é o caso do Museu Nacional.

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Fabian: Isso que você falou trazendo o Fahrenheit, onde na narrativa “queima-se tudo que contenha ideias”, eu adicionaria uma palavra: num estado totalitário queima-se tudo que contenha ideias contrárias. E isso é um dado importante, porque esse momento atual lida de forma diferente com a oposição de ideias. Não são só conceitos provenientes de perspectivas diferentes, tipo Marx e Adam Smith, paulatina e historicamente fundamentados. Muitas vezes se dá o simples negacionismo absoluto, puro e simples. Uma das muitas coisas que podem chamar a atenção naquele vídeo ministerial é o conceito de liberdade que o Bolsonaro usa. Você se apropria de ideias de superfícies, soltas no ar e as conecta como quiser, no caso ali liberdade era armar a população. Isso não é de agora, nas eleições de 2018 isso ficou mais do que estampado: o argumento racional não convence mais ninguém. Vídeos do Bolsonaro falando que tem que matar mais de 30 mil (e agora conseguindo o feito), que ele era racista e homofóbico, isso não adiantava nada. E hoje estamos acostumados com essa ideia, o que é um pouco assustador, o fato de não nos assustarmos. Estamos caminhando pra “dobrar a meta” dos 30 mil e isso não é mais uma questão, sendo que essa frase em vídeo do Bolsonaro parecia a coisa mais nazista a se temer em 2018.

Mas voltando ao ponto, com outro exemplo: se você não concorda com o Olavo de Carvalho ele te manda estudar, mas se você for realmente ver nas referências que ele indica, você percebe que existe um vazio de ideias, porque o que importa não é a depuração das ideias, mas um punch performático. O meme ganhou, o Iluminismo morreu. E eu tenho a impressão que isso tem a ver com a falta de memória, com a predominância da presentificação absoluta. Tudo hoje vira a-histórico.

Hernani: Eu diria que o maior desafio que a gente tem agora é justamente conhecer profundamente essa construção político-ideológico desse grande agrupamento de direita, desde aqueles que estão ideologicamente engajados até os espertalhões, conhecer isso bem, destrinchar e desmontar isso, revelar onde está o pulo do gato e onde está a construção ideológica pura. As várias coisas que você falou não me parecem a manifestação da mesma coisa.

Fabian: Até porque dentro disso existem as ideias supremacistas, existem as ideias racistas (eugenistas até) e homofóbicas pra caralho, elas estão lá constituídas, mas quando é hora de recriar as ideias importa pouco a procedência, a construção, o background. Na hora de construir algo novo, importa mais o impacto da imagem.

Hernani: Sim, concordo com você. Porque às vezes você tende, muito ingenuamente, a achar que não há ideias do outro lado porque elas são mal conduzidas, mal construídas, mal argumentadas, mal defendidas, mal tudo. É aquele negócio, “porque o Ministro da Educação não sabe falar e escrever isso significa que ele não tem ideias” – não é por aí. É uma dimensão bastante complexa que começa com um sequestro, que é o sequestro dos termos, então como que liberdade é uma bandeira agora dos bolsonaristas e não daquelas pessoas que historicamente lutaram por ela? Como você consegue sequestrar tão facilmente os termos “democracia”, “liberdade”, “justiça”? Se a gente olhar com cuidado os discursos bolsonaristas essas palavras estão lá o tempo todo. E há uma perversidade em inverter a argumentação lógica e política, do tipo: “agora que a gente está sendo perseguido, ninguém levanta a voz pra dizer que os direitos humanos estão em risco, ninguém levanta a voz pra liberdade de imprensa, liberdade de fala, etc”, ou seja, há uma instrumentalização perversa que não se revela por uma argumentação consistente, se revela por um sequestro dos termos chaves do jogo político.

Thiago: Uma fala dessa reunião que eu achei impressionante, nesse sentido de deturpação é o momento em que ele fala que é necessário armar a população pra que não exista uma ditadura.

Hernani: Sim, é o sequestro. São os argumentos clássicos do campo político da esquerda, ou como disse o Fabian é um sequestro dos argumentos clássicos da proposta iluminista, ou seja, de uma democracia liberal burguesa. O Jessé de Souza tem muita razão ao apontar esse aspecto “qual o problema com grande parte da esquerda brasileira?” O problema é que ela não é esquerda, né? Ela é uma democracia liberal burguesa e agora está vendo um sequestro amplo, geral e irrestrito dos seus argumentos clássicos. Da civilidade. O barbarismo e essa coisa da força do bolsonarismo fere a civilidade.

            Um sequestro por exemplo da ideia de democracia, então você tem que obedecer os ritos e aí o Bolsonaro vai lá e diz “eu vou desobedecer justamente pra preservar a democracia”. É uma retórica muito sofisticada. Ela não é descoordenada, aleatória, pontual. Você vê isso na boca de todos os bolsonaristas. O primeiro ponto é esse: o sequestro da dimensão simbólica da vida democrática. E esse sequestro hoje se dá pelas palavras quando no passado significava você se colocar sobre o julgo dos símbolos mais corriqueiros, por exemplo, as estátuas. Porque que quando certos regimes caem você vai lá e destrói as estátuas? Ou destrói os símbolos políticos como o parlamento, ou destrói desde Roma antiga a possibilidade de você ter uma história pregressa, vai lá e queima a biblioteca de Alexandria. Esse sequestro simbólico ele é tão ou mais significativo a essa altura, porque me parece uma coisa muito consciente.

            O segundo aspecto que envolve esse vídeo da reunião ministerial com os ministros. Em tese, não era pra ser veiculado, mas sempre me espantou a pouca resistência que o governo ofereceu em trazer o vídeo a público. No fundo, é claro, eles reviram o vídeo e disseram “bom, quais são os perigos que existem pra nós ao trazer isso a público? E chegaram a conclusão de que nenhum. Pode mostrar. Ainda que a decisão final tenha sido do Supremo, o vídeo foi entregue, não foi manipulado, tinha todas essas características bárbaras e algumas delas foram antecipadas muito sutilmente pela assessoria de comunicação do Planalto por um colunista aqui, um comentarista acolá.

            E foram preparando terreno pra que, quando o vídeo chegasse ele chocasse, mas não chocasse tanto, como o Fabian falou. Não era uma novidade mais. E aí o que me parece é que, como muitas outras questões e situações desse governo e, principalmente, desse universo que emergiu nos últimos anos, eles vão descobrindo aos poucos, e meio que por acaso, certas estratégicas, certos instrumentos e também me parece que toda aquela performance maluca do Bolsonaro em meio à reunião acabou sendo tida como positiva. E aí a gente talvez tenha que entender uma certa performatividade que era muito vista numa dimensão meramente formal, que era “ah, o Bolsonaro usa muito as lives, o Facebook, suas redes sociais, ele tem seus próprios canais de comunicação”, ou seja, tava muito no instrumento e não na performance em si. Essa tentativa de construção simbólica da estátua pública dele que é a palavra “mito”, que é uma palavra que talvez tenha sido a primeira a ganhar uma dimensão simbólica desde a campanha. Qual é a performance do mito? É uma performance calculada – responder certas coisas, não responder outras, colocar ou não palavrões, de inverter argumentos, de jogar justamente com a defesa do Iluminismo por parte dessa democracia liberal burguesa, sobretudo a imprensa representa muito isso e aí brincar com isso.

Fabian: Eu ousaria dizer que existe um estudo muito específico e muito próprio dele com a figura do Lula. Quando ele dá esporro na reunião, falando “em sentir o cheiro de povo”, por exemplo. Acho que existe uma consciência forte ali sobre um vácuo que a ausência do Lula deixou nas classes menos favorecidas.

Hernani: Tem. Ele não é exatamente um político neófito. O cara tá há 30 anos no Congresso. Sabe como funciona aquela loucura, tem aí uma certa leitura do Brasil, um vocabulário, uma retórica própria, uma estratégia de ação política própria, uma estratégia de performance pessoal própria, que a gente vê repetido no vídeo. Não é inocente, nem casual. Pra além da destruição dos antigos símbolos – vão todos arder se depender dele e do universo bolsonarista – você tem aí uma ação política mais consistente e coordenada, ainda que tresloucada e baseada em premissas ideológicas completamente estapafúrdias e aí não adianta fazer o elogio da conversa, do debate tranquilo, equânime e racional porque não se trata mais disso. Uma coisa que me chamou atenção foi uma certa direção de TV no vídeo. De como você cortava do Bolsonaro pra um ministro X ou Y, mesmo sem ele estar falando, ou seja, como se fosse um programa de TV. Fico me perguntando se o vídeo original era assim, se havia essa edição online, ao vivo ou se isso foi preparado a posteriori. Claramente há várias câmeras, um material bruto e uma edição na hora, mas você poderia recorrer tanto ao bruto quanto a edição pra trazer a público a versão oficial do governo. Eu não vi nenhum veículo de imprensa questionando essa forma de fazer. Se você tem vários cortes e planos e ângulos e pontos de vistas, bom houve uma certa estrutura de produção pra fazer e uma estrutura de edição que pode ter se dado naquele momento ou a posteriori e não ter adulteração nenhuma. E é engraçado a disposição de atores naquela mesa quadrada, de embates de pontos de vista, onde é possível tecer de alguma maneira uma espécie de radiografia da própria estrutura interna do poder. Como se dá isso? Como seria isso na Era Lula, na Era Dilma e até mesmo na Era Temer? Como você pode comparar essas formulações e o que isso redunda de discurso para a população? Então tem aí um universo que precisa ser pesquisado e entendido e desmontado nos seus mecanismos de construção discursiva e ideológica e perceber nas entrelinhas aonde ele quer chegar e onde ele não quer chegar.

Fabian: Nessa coisa de entrelinhas, uma das coisas que me impressionou foi a imagem do Power Point na televisão à direita de quadro da mesa quadrada: um grande “Pátria Amada Brasil” com crianças dinamarquesas. Não pelo fato de só haver crianças brancas europeias, porque isso já tinha sido muito debatido nas mídias sociais e na imprensa há uns meses atrás, mas justamente porque eu não sabia que eles ainda usavam esse slogan com essa imagem depois de tanto se falar sobre isso. Ou seja: a imagem do Brasil pra eles são essa turma de crianças brancas, “fofinhas” e não importa se vem a esquerda ou a imprensa e desmascara aquilo em termos práticos, não importa que aquela imagem seja um “ctrl c + ctrl v” de uma campanha publicitária europeia – o que importa, nesse mundo de pós-verdade, é que essa é a verdade deles, o conceito-Brasil é esse. De novo, é a coisa do xingamento do Olavo, é meio “ganhar no grito”, “essa é a Pátria Amada Brasil que nós queremos”.

Hernani: Ou de uma maneira mais analítica, o Iluminismo tem como pedra de toque que qualquer ideia tem que ter como correspondência na Physis, na natureza, você não pode inventar coisas do nada se ela não tem coisas concretas, se ela não é realidade. O que ocorre com o bolsonarismo e esse exemplo das crianças é ótimo, é que o bolsonarismo descolou a substância da matéria. A matéria não interessa. Se elas são nórdicas ou não, não interessa, ela representa uma certa ideia que queremos fazer vingar. Uma ideia eugenista, não por acaso isso voltou de uma maneira muito forte – o desempenho do governo na pandemia foi um desempenho absolutamente eugenista: “Danem-se as pessoas que não tem capacidade pra sobreviver, morram aí. O problema é delas, não é nosso”. E aí você fica com a ideia e não com as ações concretas da liberdade em arte, pra lembrar do Aristóteles. Você fala em nome da liberdade ocamente, por pura retórica e a simples palavra seria evocativo de um estado primeiro do que seria liberdade que jamais é explicado. O sequestro real tá aí, você não vai explicar, você não vai unir a substância à matéria, você não vai pro exemplo concreto, dizer “isso que fizemos aqui representa a liberdade de fato”. E aí vira um jogo de surdos-mudos. Se aquilo que você tá designando como esquerda, que hoje na verdade é um conjunto enorme de segmentos do Brasil, não consegue debate ou diálogo ou enfrentamento com o governo é porque ele ainda pensa de um jeito e o governo já tá pensando de uma maneira completamente diferente e se recusa a encontrar um terreno comum. É um dissenso radical e a radicalidade desse dissenso, como o Thiago falou, é a ruptura. Esse governo busca a ruptura. Estamos numa escalada que de um lado desmonta, destrói, ignora, dá de ombro e do outro lado busca um paraíso terrestre, uma pátria perfeita que é plana e temente a Deus, militarista, que não existe nem existirá nunca, mas que povoa o espaço vazio dentro da cabeça dessas pessoas. O iluminista clássico nem consideraria discutir essa história de terraplana, talvez mandasse botar essas pessoas no hospício e ponto. A gente tá aqui tendo que recuperar toda a história do porquê a Terra é redonda pra combater isso. A essa altura parece um desperdício de tempo e de forças fadado ao fracasso. Porque no fundo não há diálogo com essas pessoas e você fazer o elogio iluminista do fato, da verdade – e por isso que a gente vive num tempo de pós-verdade – perdeu completamente a eficácia. A gente precisa encontrar outros mecanismos pra atuar socialmente porque esse mecanismo da pura e simples verdade já não é mais suficiente. Precisamos de outros mecanismos pra chegar às pessoas e de alguma maneira chamá-las novamente… antigamente a gente diria “chamá-las à razão”, mas chamá-las novamente pra Terra.

Fabian: Chamá-las à sensibilidade.

Thiago: Seguindo um pouco o seu raciocínio, Hernani, trago uma frase que ficou na minha cabeça: porque não podemos ter direito ao passado? Se a gente alia essa ideia de passado a uma ideia de estrutura de formação, se esse passado ao ser acessado, a pessoa pode ter uma leitura e com isso formar-se e, às vezes, até emancipar-se a partir disso, essa possibilidade não está em jogo?

Hernani: Sim. Tudo depende de quem você quer ser. Tudo depende da tolerância com que você considera o outro. Tudo depende do acordo que você estabelece em meio a sociedade. Se quem você quer ser quer eliminar radicalmente qualquer dimensão anterior, até é possível, até em princípio é um direito, mas não pode ser um direito universal. Você não pode simplesmente ignorar tudo isso. Não pautar sua vida pro passado. Mas você não pode estender isso aos outros. Você tem que considerar que o outro pode pensar diferente de você. A tolerância é a base social. Se você não tiver isso, você vai ter que usar força, etc. Então a própria ideia de você descartar o passado é uma ideia que só existe de fato nesse tipo de regime intolerante. Nesse tipo de situação social onde o outro acha que é dono da verdade absoluta.

        Mas eu acho que hoje em dia a gente corre um risco ainda maior. A discussão ideológica em torno do passado, ela às vezes tem essa dimensão semântica: qual a diferença entre antigo e velho? Qual a diferença entre o que é próprio – entre, o que há rigor ainda existe no presente, porque o que veio do passado se foi conservado, existe no presente – e a ideia de que aquilo não tem mais função, não tem mais sentido, não serve pra mais nada, etc. o que levaria a uma ideia (sempre perigosa) que é a ideia do descarte.

       Essa ideia de descarte é uma ideia muito forte nos dias de hoje, porque há um suposto excesso de tudo. Excesso de informação, de produtos, de opções, de mídias, de tudo. Então a vida no presente é uma vida que é atravessada por tantas possibilidades que o sujeito estaria vivendo numa espécie de paralisia, dado a esse excesso. O próprio passado em certa medida pode ser um excesso. Na medida em que você entra numa plataforma de streaming e tem lá 200 filmes, 500, 1.000, 10.000 filmes. Você pegar sua vida e se dedicar a ver filmes, você não vai conseguir ver 10.000 filmes.

            Ou seja, tudo está passando a escala humana e haveria a necessidade de você voltar a uma escala mais adequada de vida e assim você associa esse descarte a uma ação natural de autoproteção. Você precisa fazer uma opção entre um passado enquanto tal e um presente onde você pudesse carregar esse passado de maneira mediada. E aí foi oferecido um serviço que é o que o celular propicia às pessoas de você carregar seus vídeos, fotografias, suas gravações de áudio, seus momentos de vida, sua timeline. Ou seja, todo seu passado está ali no seu lado o tempo todo e pode ser acessado muito prontamente o tempo todo. Então pra que ter, de fato, os signos anteriores? Pra que ter os objetos que marcariam essas vivências anteriores? Pra que ter a expressão mais sofisticada anterior?

            Numa dimensão iluminista, a obra de arte pensa. Mas numa dimensão contemporânea, pós-humana, pós-verdade, pós-moderna, pós-tudo a própria ideia de um passado é um excesso. O que você precisa ter é um presente instrumental onde você possa encaixar o passado de maneira instrumental e não pensar a partir do passado.

            Lembre-se: agora, via internet, via celular nós somos consumidores finais todos. Todo mundo que tem um celular é um consumidor final e pode, inclusive, consumir o passado através desse mecanismo. Por que você precisaria aí de outras dimensões mais sofisticadas, mais complexas, mais propensas a reflexão se você pode dispensá-las, sobretudo em favor de um regime futuro, de um paraíso futuro que é apresentado como mais adequado, como literalmente mais perfeito do que os atuais ou anteriores?

            Qual o discurso do Bolsonaro? Nós vamos consertar o Brasil. Nós vamos salvar o Brasil. Nós vamos fazer o que é correto pelo Brasil. Esse discurso salvacionista se encaixa dentro desse novo contexto em que você tem as redes sociais, celular que não existiam há 30 anos atrás. Então, eu acho que tem aí uma dificuldade nossa de entender o mundo atual, o redesenho da dimensão da política dentro do mundo atual. A ideia de que você possa lidar com a falta de verdade ou com a fake news dentro do mundo atual não é novidade. Documentos falsos sempre fizeram parte da história e seu uso era basicamente político, mas a escala aí, a natureza disso hoje em dia é diferente do uso mais antigo e eu acho que começa a ser diferente porque o substrato ideológico dos termos se esgarçou, se perdeu, se dilui, eventualmente até deixou de existir e a palavra liberdade pode ser empunhada por qualquer um impunemente sem qualquer tipo de confrontação maior.

            Até porque não se busca confrontação – não se pode esquecer que o candidato Jair Bolsonaro não compareceu a quase nenhum debate. Ele fugiu o tempo todo dessa dimensão e um dos gestos antidemocráticos de início da trajetória dele é exatamente esse. Nós temos aí um trabalho a ser feito que é compreender. Como tudo isso está ocorrendo, quais são as implicações. Vai demorar, inclusive, porque não é fácil se jogar nessa seara toda e tentar destrinchá-la pelos vários ângulos que ela tem e ao mesmo tempo, não perder de vista que, independentemente dessa ação é preciso estar atento e forte pro imediato. Se alguém diz que pode fechar a Cinemateca Brasileira, você tem que reagir de alguma maneira. Mesmo que você venha perceber que não era exatamente a maneira correta, isso não interessa; você tem que reagir e eventualmente estar a postos pra reagir àquilo diretamente porque o risco é real e concreto e a gente tem que ter a percepção de o quanto ele avança se, por exemplo, o dinheiro não aparecer, se a instituição ficar num limbo jurídico por mais não sei quanto tempo, se vier uma gestora que não faz nada, etc. Porque o que não pode ocorrer é você simplesmente deixar as coisas de lado, deixar caminharem frouxas, porque aí o desastre vem de uma maneira ou de outra. A gente já tá vivendo o desastre hoje praquilo que não fizemos ali em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018. O mundo correu através desses anos e a gente tava um pouco ausente de tudo isso. Não nos lançamos ao debate público necessário, não lançamos certas questões, fomos muito condescendentes com certos arranjos e o desastre está formado. Então agora não dá pra chorar pelo leite derramado. Agora é o momento seguinte. Agora é o trabalho de zelar de um lado, cuidar do outro e pensar. Não se pode abrir mão de pensar. Nem cair nessa de que o outro lado é só maluco. Mesmo os malucos pensam.

Thiago: Dentro desse presente instrumental em relação ao passado, qual seria o futuro ou o novo papel das cinematecas? E o que nós não fizemos nesse período anterior que precisaremos fazer no futuro?

Hernani: Olha… permanecendo numa dimensão semântica de palavras, acho que a palavra que mais circula hoje no Brasil é “ódio”. E o contraponto a essa palavra só pode ser “tolerância”. Então você tem que utilizar os acervos audiovisuais pra entender as raízes do ódio, a possibilidade da tolerância, pra entender que existem outras formas de viver em sociedade. Pensar isso a partir do audiovisual não só é uma tarefa necessária mas pode ser uma tarefa muito importante porque, usando uma palavra que o Fabian falou, de uma maneira geral, o audiovisual lida com “sensibilidade”. Mais do que com racionalidade.

            Às vezes é muito mais significativo ver o Grande Otelo cantar o Malvadeza Durão no Rio Zona Norte do que assistir um discurso contra o racismo, o que é absolutamente necessário, importante, etc., mas não dá conta da empatia necessária com outro. E um filme como esse dá conta. Eu acho que tem aí uma reserva de valor nos acervos que o Brasil conseguiu salvar e preservar que é justamente reconhecer que existem sensibilidades na nação brasileira que tão sendo postas de lado em função de uma que é muito raivosa, que é muito intolerante e injusta, que é muito, inclusive, eugenista, no pior sentido da palavra e que não nos serve, né?

            O que adianta uma nação conflagrada e baseada no ódio se isso vai significar um inferno de vida pra todo mundo? Não é só pro lado que acha que está por cima da carne seca, que acha que é vitorioso, que está no poder. É infernal pra todo mundo. E outra coisa: o que faz o ser humano, humano? Essa dimensão é alguma que o cinema perseguiu de forma muito forte ao longo do século XX porque ele é contemporâneo das guerras mundiais, dos genocídios, das bombas atômicas, ele é contemporâneo de grandes horrores e de grandes tragédias, então de alguma maneira, o cinema, talvez das artes, foi aquele que mais profundamente tentou lidar com a sensibilidade do seu público.

            Eu acho isso um ativo, pra falar um termo econômico, que foi preservado e que é de um valor incomensurável. Assistir aos filmes mais antigos pode te trazer grandes surpresas e de repente você perceber que a sociedade era conflituosa, sempre foi, mas ela tinha um grau de tolerância que desapareceu por completo nos últimos tempos. Sob esse aspecto é possível caminhar de uma forma consciente, resolvendo conflitos, opressões, intolerâncias, mas também resgatando sensibilidades que unia o sambista branco do asfalto ao sambista negro do morro. Como é que você troca essas divisões de mundo, essas ferramentas de criação? Como você gera uma expressão extraordinária do ser-brasileiro, de viver nesse país, que hoje está muito esquecida ou até mesmo perdida? Tem aí um valor pra esses acervos que não é só o valor instrumental da pesquisa, da história, etc. é o valor da arte. De como a arte pode impactar uma sociedade.

            A gente lembra de como uma reivindicação se torna clara e única quando em vez de ouvir os discursos você ouve uma canção, né? Eu lembro muito da história das Diretas Já e quanto a canção do Wagner Tiso e do Milton Nascimento se transformou de uma canção instrumental, a uma canção com versos, em hino pelo fim da ditadura, pelas Diretas Já, aquela coisa toda… a canção, uma simples canção, foi muito mais potente do que um certo conjunto de discursos que eram necessárias, mas que, eventualmente, eram muito formais ou muito estritamente políticos e não tinham essa dimensão de sensibilidade que a canção trazia, trouxe e se tornou uma peça histórica fundamental nesse sentido e revelou aí o quanto as pessoas, de fato, compreenderam tudo aquilo.

            Então a arte tem esse poder porque joga com as sensibilidades e, nesse sentido, não precisa ser uma arte contemporânea. Você pode ter um filme de 10, 50, 100 anos atrás e ele ter esse mesmo poder, ou até maior, porque ele reencontra ali o seu diálogo, às vezes de maneira mais forte num momento contemporâneo do que lá no seu contexto de criação.

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[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

[3] Em 2003, o governo australiano propôs incorporar a NFSA ao Australian Film Comission, retirando a autonomia do órgão, buscando instrumentalizar o acesso aos arquivos ao mesmo tempo em que colocava o trabalho de preservação em segundo plano. Ray Edmonson escreveu sobre a história do NFSA em sua tese de doutorado. Disponível em: https://www.academia.edu/6375596/National_Film_and_Sound_Archive_the_quest_for_identity

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Entrevista com Hernani Heffner: Parte I – O Estado das Coisas

Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

O Estado das Coisas

Mais uma vez, eu e Thiago fomos encontrar o Hernani, conservador chefe da cinemateca do MAM, para conversar sobre preservação cinematográfica. O assunto virou mais que corriqueiro entre nós – temos alguns projetos/séries/filmes em desenvolvimento sobre isso – mas da última vez que efetivamente registramos e publicamos um debate sobre o tema foi em julho de 2013, pela Revista Cinética. Lá, como agora, estávamos diante de um período político não só turbulento, mas paradigmático – lá, as ruas que transformariam o reinado democrático institucional num eterno fracasso de governabilidade; agora, uma pandemia mundial que, nacionalmente, começa a naturalizar dezenas de milhares de mortes e conflagra a necropolítica como status quo. Nesse ínterim, a Cinemateca Brasileira e todo o setor viviam um processo de possível reestruturação.

Em 2013, após anos de luta, os profissionais da área de preservação, via Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), finalmente conseguiram estabelecer um canal de diálogo com o Ministério da Cultura, abrindo a perspectiva para a criação real, e efetiva, de uma Política Nacional de Preservação Audiovisual.

Havia ali um aparente “corte histórico”: seguindo um modelo político desenvolvido para a produção de cinema no Brasil que se espraiava fora do eixo Rio-São Paulo, os arquivos menores espalhados pelo país pareciam finalmente ganhar consideração pública. A Cinemateca Brasileira poderia manter sua grandeza, mas a ideia de descentralização – começada pelo ex-ministro Gilberto Gil e fortalecida pela criação da ABPA – parecia ganhar terrenos sólidos.

No entanto, os anos seguintes à nossa entrevista evidenciaram que, muito embora todas as lutas e conquistas obtidas àquela altura, de uma hora para outra, tudo pode se esfacelar ou desmanchar-se no ar. A crise eterna em que o país mergulhou pós-golpe refletiu num descaso evidente em relação às questões culturais e de preservação do país, sendo o incêndio do Museu Nacional certamente o grande símbolo-consequência deste tipo de política do descaso e distanciamento.

Hoje, a Cinemateca Brasileira tem um orçamento anual de R$12 milhões, mas não recebe esse repasse do governo desde o final do ano passado. Os funcionários, que não recebem desde abril deste ano, entraram em greve. Existe um dado material muito elementar em relação a natureza da preservação de filmes: o nitrato de celulose, usado pela indústria até os anos 1950 é um material altamente inflamável e sujeito à autocombustão. A partir do momento em que a conta de energia não é paga e, assim cortada, cada dia sem um incêndio de altas proporções torna-se um pequeno milagre.

Devido à pandemia que nos assola, o encontro dessa vez se deu de forma virtual. Foram quase três horas de um domingo, dia 31 de maio de 2020. Ela será publicada aqui na Multiplot em três partes impressas e em vídeo. Falamos sobre essa situação emergencial específica da cinemateca, sua relação com a história, mas também sobre o século XXI que se reorganiza diante de nossos olhos, além, é claro, do problema da memória, do direito ao passado e de um horizonte amnésico. (Fabian Cantieri)

I – O estado das coisas

Fabian: A ideia de ter essa conversa partiu de uma imagem que me veio há umas semanas e que eu acho que não é só minha: a Cinemateca Brasileira em chamas. Isto se deu por conta da verba anual que não foi repassada à instituição. Ao mesmo tempo, a ideia de crise é algo que permeia a história da Cinemateca. Se não vem desde sua criação, pelo menos desde o incêndio de 57, com um Paulo Emílio Salles Gomes, um dos seus fundadores, já um tanto desanimado, tentando reerguer aquilo de novo até chegar, mais recentemente, em uma entrevista contigo para a Contracampo em julho de 2000, onde você abria com a frase “a cinemateca vive hoje um período delicado”. Queria entender com você qual o grau de possibilidade de um Museu Nacional 2 na Cinemateca Brasileira e a diferença de hoje.

Thiago: Queria apenas complementar que a entrevista que fizemos em 2013 com você, Hernani, se, por um lado, ela marca o início de uma crise dentro da Cinemateca Brasileira que persiste até hoje, do outro, ela apontava para um horizonte até relativamente otimista de uma aproximação da ABPA – e o conjunto de profissionais de preservação – junto ao MinC, terminando até com uma certa ideia de que finalmente teríamos uma Política Pública de Preservação Audiovisual. Então, se de um lado gostaríamos de entender essa história cíclica das crises da Cinemateca, também queríamos entender o que aconteceu de 2013 para cá.

Hernani: Não é pouca coisa que vocês estão colocando já de início. É um assunto que para ser compreendido de uma forma mais adequada precisa ser esmiuçado, tanto historicamente, quanto em termos estruturais, quanto em relação a existência ou ausência de políticas públicas relacionadas com a área de preservação audiovisual, eventualmente com o caso específico da Cinemateca Brasileira. Existe aí um componente chave para se entender tudo isso que é natureza do trabalho de preservação audiovisual e suas implicações, que num primeiro momento aparentemente são meramente técnicas, ou seja, se trata de um trabalho de conservação física de um conjunto de documentos. Este conjunto de documentos, com o tempo, adquire o status de patrimônio histórico, artístico e cultural. Estamos falando aqui do patrimônio audiovisual brasileiro, já que, não só a Cinemateca Brasileira, mas o conjunto dos arquivos audiovisuais brasileiros conseguiram incorporar e conservar uma parcela significativa deste patrimônio. Este patrimônio teve perdas significativas, sobretudo na primeira metade do século XX. Mas conseguiu, em alguma medida, ser conservado – já na segunda metade do século XX – inicialmente, pelo menos, pelas duas cinematecas que apontaram ali, primeiro a Cinemateca Brasileira, surgida em 1946, depois a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, surgida em 1955. E, com o tempo, uma série de outras instituições museológicas, arquivísticas, uma série de outras instituições de guarda de materiais audiovisuais – sejam os próprios filmes, não importando aí o suporte que se esteja considerando, a película, o suporte videomagnético analógico, ou já o eletroeletrônico, que a gente conhece como digital, as mídias óticas. Além dos filmes, considerando que também há uma série enorme de outros materiais relacionados aos filmes e que também precisam ser conservados, por que fazem parte intrínseca deste patrimônio, desta memória, indo desde os roteiros até fotografias, documentos de produção, aos documentos relacionados aos artistas e técnicos, enfim, tudo isso forma um grande patrimônio que foi sendo organizado, acumulado, foi se assentando aí numa série de instituições e que tem, talvez, na Cinemateca Brasileira o maior símbolo, seu maior emblema, porque é a mais antiga, é a mais importante, é a que tem o acervo mais significativo. É aquela inclusive que foi atravessada em sua história por estes momentos delicados que o Fabian mencionou aí em relação à entrevista da Contracampo. Que significa muitas crises, momentos dramáticos e que chegam neste momento de maio passando a junho de 2020 em mais uma situação terrível porque há um conjunto de elementos que colocam em risco novamente a instituição, o acervo e a preservação do que está dentro da instituição.

            Qual é a questão maior? Se num primeiro momento, a questão da preservação é uma questão técnica, ou seja, estes objetos precisam sobreviver fisicamente, e sobreviver por dezenas, centenas de anos, isso implica num investimento que não é pequeno, que não é simples, que é continuado e que, a rigor, se multiplica à medida que os acervos cresçam. São investimentos do ponto de vista da climatização, ou seja, do controle de temperatura e de umidade para que você estabeleça esses materiais, esses suportes, para dar longevidade a eles. Uma película cinematográfica, como era típica no século passado, você precisa às vezes de reservas técnicas que trabalhem próximas do zero grau, tenha uma umidade em torno de 20 a 40 por cento, que tenha toda uma localização geográfica, uma série de estruturas de prevenção, que também não são simples, não são fáceis, que não pode colocar este espaço pendendo para um incêndio ou um alagamento, ou terremoto, ou uma coisa que, enfim, possa colocá-lo em risco e ele ser afetado de forma muito profunda, por algum sinistro que aconteça em função de uma não previsão, de um não investimento correto na manutenção e na conservação de tudo isso.

            Ora, a dimensão disso em si já é muito cara, porque são processos complexos, são processos que eventualmente demandam um tipo de intervenção e de escala muito grandes, as reservas técnicas são muito grandes, a estrutura que tem dentro delas, às vezes, pela vastidão, pelo caráter massivo do acervo são muito caras – coisa óbvia e boba, estantes: as vezes para você, enfim, mobiliar uma reserva técnica de 600 metros quadrados, com uma estanteria adequada que não sofra corrosão, você gasta em torno de 200, 300, 400 mil reais. De uma maneira muito pontual e de uma questão que parece anódina: “ah, estantes”. Mas não é uma estante qualquer, não é uma estante no mercado disponível a baixo custo. Isso para dar um exemplo bobo, na verdade, a estrutura em si é muito maior do que isso e ela acaba se tornando muito cara. E isso significa que, quando você constitui uma instituição desta natureza, você tem que prever aportes financeiros contínuos de grande porte e que tendem a sempre aumentar com o tempo, na medida em que o acervo aumenta, e eventualmente você tem novidades pelo meio do caminho com foi o caso da passagem, por exemplo, do suporte fotoquímico, em película, pro suporte digital. Como os materiais digitais da atualidade não tem uma capacidade intrínseca de durabilidade maior, eles não sobrevivem ao tempo como a película, isso significa ter toda uma outra estratégia de preservação igualmente custosa, que é igualmente complexa, cara, e isso sem falar em aspectos, como, por exemplo, o pessoal, os técnicos treinados, uma infraestrutura de catalogação e conhecimento destes acervos. Enfim, se tudo isso não caminhar junto, você tem um trabalho sempre abreviado, ou aquém, do próprio conhecimento do acervo que a constituição guarda. Dar conta disso num nível adequado é realmente cada vez mais caro. E isso, de uma maneira geral, levou a maior parte das instituições a se colocarem dentro do universo do Estado.

            Estado é aquela instância que, de fato, possui capacidade financeira para sustentar um trabalho continuado em dezenas e dezenas de anos, e eventualmente, digamos assim, absorver melhor os impactos que este universo, que esta atividade tem e conseguir dar respostas mais adequadas e rápidas para isso. Aqui talvez a gente chegue no ponto chave em que as coisas não andam tão bem, apesar de todos os esforços que, sobretudo, as instituições em si e, principalmente seus corpos técnicos, fazem em prol deste trabalho, deste resultado, muitas vezes conquistando ações muito meritórias a despeito das deficiências que, enfim, o trabalho em si carrega, e às vezes até a despeito de investimentos financeiros mais significativos. O ponto chave, o ponto nodal, é esta relação Estado e a atividade, o campo da preservação audiovisual, e o quanto o Estado fez relativamente muito pouco pela atividade, começando pelo reconhecimento dela.

            Você mencionou, Thiago, que em 2013, pela primeira vez chegávamos a uma situação de diálogo com o poder público federal no Brasil, a uma situação que criava ali a possibilidade de você apresentar – vindo da sociedade civil, dos profissionais de preservação audiovisual, através de uma entidade, que é a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) – um Plano Nacional de Preservação Audiovisual. Abria-se um diálogo neste sentido. E, inclusive, a pessoa que encarnou esta abertura faleceu semana passada, o Leopoldo Nunes. Então, ali, na gestão que o Leopoldo teve à frente da Secretaria do Audiovisual – que é uma gestão hoje muito criticada, sobretudo, pelos reflexos em torno da Cinemateca Brasileira – foi uma gestão muito importante para esta abertura de diálogos e para pensar a necessidade, por exemplo, de um instrumento como esse que é um instrumento legislativo a rigor. Quando você de fato incorpora na legislação o reconhecimento do campo, das instituições, dos profissionais, da atividade em si, você cria condições para, no momento seguinte, gerar ações concretas advindas do governo federal, para você, por exemplo, financiar projetos, até financiar as instituições, incorporá-las ao orçamento regular da União, e aí poder dar uma sustentação mais consistente para este trabalho.

            Este contato que aconteceu em 2013, no bojo, inclusive, de um momento de grandes agitações e transformações, não só da preservação, mas da própria vida brasileira, da sociedade brasileira, a partir ali das famosas Jornadas de Junho, significaram em vez da concretização das expectativas que se tinha ali, uma mudança radical no sentido exatamente oposto: a grande maioria dos trabalhos, projetos, discussões, debates, que visavam encaminhar e aprofundar uma certa ideia de sociedade brasileira, uma certa ideia de cultura de patrimônio, uma certa ideia de preservação audiovisual no Brasil, foram caindo em uma espécie de limbo, e foram sendo continuamente colocadas de lado pelos novos donos do poder. A gente sabe que a história brasileira dos últimos cinco anos é uma história marcada por um golpe, no fundo legislativo, por um impeachment da presidente da república, a Dilma Rousseff, por um afastamento radical do Estado Brasileiro do universo da cultura, não só de um reconhecimento formal desse campo, mas de manutenção de instrumentos de fomento, de uma paralisação de uma série de atividades no campo, e a área do cinema foi particularmente muito atingida por isso. E aí nesse processo todo, você pode dizer que esta área – que já tem necessidades muito específicas, que precisa de grandes recursos financeiros, que têm comprometimentos técnicos muito fortes e muito dramáticos – enfrentou um novo contexto que era de simples esvaziamento. Um esvaziamento que às vezes é quase total da relação do Estado com o campo cultural de uma maneira geral e com o campo da preservação audiovisual de uma maneira mais específica.

            Acho que um exemplo maior desta crise que se instaura entre o Estado brasileiro e o campo cultural, pode ser percebido na trajetória e no atual momento da Cinemateca Brasileira. Em que sentido? Em 2013, ela teve a sua direção alterada e nos momentos seguintes teve crescentemente esvaziado as suas condições de trabalho, em especial, o seu corpo de funcionários. Uma das medidas inclusive tomadas no ano passado foi esvaziar os funcionários de carreira, os funcionários concursados da instituição, que foram reenviados para seus órgãos de origem. Então, pessoas que estavam ali há vinte, trinta anos, de uma formação técnica muito específica e de grande experiência, simplesmente foram dispensadas a rigor, de um momento pro outro, sem nenhum tipo de preparação, justificativa. E você ampliou muito fortemente esse esvaziamento, por exemplo, do corpo técnico, que já se fazia sentir desde 2013.

            Para além disso, quando você começa ou a congelar o orçamento de uma instituição desta natureza, ou a diminuir este orçamento de uma forma muito drástica, até pela própria natureza do trabalho, do tamanho que a instituição alcançou, pela dificuldade crescente de ter menos pessoas para fazer certos trabalhos, você vai comprometendo, seguidamente, setores internos, ações específicas, você vai na verdade criando condições para que haja problemas, para que haja estagnação, e, eventualmente, para que haja inclusive, sinistros como o que ocorreu em 2016, quando uma das casinhas de nitrato da Cinemateca acabou pegando fogo e destruindo mil rolos, ou seja, mil títulos, mil obras que desapareceram e, deste montante, relativamente pouco havia sido duplicado ao longo do tempo. Então, é uma perda real e definitiva, principalmente de cine-jornais, pelo que foi noticiado publicamente. Então não adianta fazer mais nada, não tem mais como recuperar esse material, porque ele não se encontrava mais em lugar algum a não ser ali, e isso tem como resultado concreto um apagamento definitivo da memória brasileira, da história brasileira, da expressão cinematográfica brasileira, e deste ponto não há o que fazer mais. Citando a gíria popular, perdeu, perdeu.

            Isso é um espelho de como essas relações com o Estado, se elas entram numa dimensão muito complexa, muito atritada, em uma relação, inclusive, de rejeição por parte do estado desta tarefa, que lhe cabe inclusive constitucionalmente falando, as instituições sofrem de imediato. Elas vão tendo problemas crescentes, elas vão tendo perdas, elas vão tendo uma espécie de paralisia, que pode chegar nesse momento de colocá-las em cheque, ou até mesmo de botá-las a perder em definitivo – batendo na madeira três vezes – por que isso aconteceu recentemente com o caso do Museu Nacional.

            Especificamente falando do caso da Cinemateca Brasileira, esse era um quadro que já existia há alguns anos atrás, a ação do Governo em 2018 foi de propor uma solução que a maior parte das pessoas não acreditava muito que fosse de fato uma solução, mas houve um gesto concreto neste sentido de colocar a instituições sob gerência de uma organização social, uma OS, ou seja, fazer uma parceria público/privada – o estado entra com recursos e uma entidade da sociedade civil entra com a gestão propriamente dita da instituição. Na prática isso é uma passagem de um órgão público à esfera privada. O que sempre foi muito criticado por que na quase totalidade dos casos, aqui no Brasil, isso não deu certo.

Thiago: Você tá falando da ACERP.

Hernani: Isso. Associação Cultural e Educacional Roquette Pinto. A ACERP assumiu a Cinemateca Brasileira dentro de um contrato com o governo federal. Esse contrato previa ali uma série de direitos e obrigações, e previa, sobretudo, um repasse do recurso financeiro específico pra dar conta do gerenciamento concreto da instituição. Com a passagem ao novo governo, esse contrato, a rigor, chegou ao fim em dezembro de 2019. Não foi renovado. Nunca ficou muito claro pra mim o porquê não foi renovado, qual era a questão para não ser renovado. Mas o que é concreto é que ele não foi renovado. E, a partir desta não renovação, você colocou a instituição novamente, de um lado, em um limbo jurídico enorme – por que ela não voltou de imediato à esfera federal, à esfera pública – e, por outro lado, não foi feito um novo contrato com uma nova organização social. Não foi feito nada.

Isso significou, nesses primeiros meses de 2020, com uma pandemia no meio disso tudo, um crescente estrangulamento da instituição, em termos de sua capacidade de gerenciamento interno, provocado pela falta de recursos, até que isso chegou à imprensa, chegou ao grande público, sob a forma de “não tem dinheiro pra pagar a conta de luz, os salários estão atrasados, e isso pode comprometer as unidades fundamentais de conservação do acervo que estão dentro da instituição. Esse momento acabou, ao longo dessa semana que acabou ontem (30/05/20), numa reunião na sexta feira, e nessa reunião, inclusive, a primeira notícia que veio a público já falava até em fechamento da instituição, por conta desse imbróglio – jurídico, político, econômico, etc. Mais pro final da noite, se falou simplesmente que a instituição finalmente voltaria para a esfera federal, para a esfera pública, e eventualmente isso seria uma resposta para essa crise.

            Pra mim, na verdade, isso não é uma resposta, no sentido mais direto e claro, não se fala exatamente em que termos vai se dar essa volta, nem sei exatamente em que termos a Cinemateca saiu da esfera pública para um contrato com uma OS, para ir para uma parceria público/privado, e esse retorno não se sabe ainda em que termos, em que condições técnico/financeiras, e sobretudo em que condições gerenciais.

            O que está anunciado aí, de uma forma muito tresloucada é a ideia que, uma atriz,  , mas isso inclusive, enfim, dado as alterações jurídicas que a instituição sofreu nos últimos anos, não se tem nem clareza se isso é possível, e isso talvez seja o maior indicador do quanto você desfez todo um entendimento anterior do que era uma cinemateca, do que era um arquivo audiovisual, qual seu sentido, qual era a razão de ser de passá-lo – a Cinemateca Brasileira nasceu privado – mas passá-lo à esfera pública… justamente para garantir essa sustentabilidade.

            Tudo isso ficou tão confuso, se perdeu em grande medida, que hoje isso talvez seja o maior indicativo do quanto a falta de interesse geral do Estado brasileiro, e quanto a maluquice total que é esse governo atual, isso tudo atinge diretamente a instituição. Colocou ela em uma  situação muito difícil, muito confusa, muito perigosa inclusive, e o quanto até o momento você não tem clareza quais são as respostas que serão dadas concretamente, diretamente, para estabilizar novamente a instituição, dar a ela condições de trabalho, viabilizar de fato o que é a sua missão, que é a preservação dessa memória audiovisual.

            E isso, se você estender para o campo da cultura ou mesmo o campo da preservação audiovisual, você vai ver que tem outros casos passando pela mesma situação. Por exemplo, a Cinemateca Capitólio, lá em Porto Alegre, embora não seja de dimensão federal, mas de dimensão municipal, ou tudo que perpassou, por exemplo, a Casa Rui Barbosa, que é um órgão federal de cultura e pesquisa, que também esteve aí sob um fogo-cruzado nestes últimos meses, na medida em que várias dessas instituições de cultura estão recebendo novos gestores que não tem a menor relação com o campo, a menor relação com este tipo de trabalho, e a partir de um entendimento que me parece muito equivocado. Que é aquilo que se concretizou também nas últimas semanas: a passagem deste universo todo que a gente chama de cultura para debaixo do guarda-chuva de um ministério que cuida de turismo[3].

Ou seja, que cuida na verdade, da aproximação de um tipo de cidadão, de um tipo de pessoa, no mais das vezes o seu momento de férias, dos aparelhos culturais, dos aparelhos de lazer, dos sítios naturais, né, para que ele possa ali ter momentos de lazer, de felicidade, disso e daquilo. E que nada tem a ver com instituições de conservação, de pesquisa, de memória, que podem ter uma interface, que podem ter um diálogo com o universo turístico, mas que não é a sua finalidade primeira. O turismo é quase que uma consequência e não uma premissa. Essas passagens de todo esse universo para dentro do Ministério do Turismo pode gerar uma incompreensão muito grande da natureza e da função destas instituições, como que levando o grande público, a sociedade, a crer, que tudo está ali já pronto, tudo está ali já bem conservado, tudo está ali já à disposição, é só chegar lá, pegar e usar. Um pouco um pensamento que o universo da internet, em geral, também tem. Que é só pegar as coisas aí e usar.

            As pessoas não tem ideia que para usar tem todo um trabalho anterior e um trabalho que precisa ser qualificado em grande medida porque tem questões, às vezes, muito complexas dentro desse trabalho e, para além do uso imediato, o objeto precisa sobreviver, pra década e pro século seguinte. Então vira quase uma piada, né? Que tipo de turismo você vai fazer com uma biblioteca como a biblioteca nacional? Que tem essa função de ser uma biblioteca e preservação, que faz depósito legal, etc. Ou que tipo de turismo você vai fazer na Cinemateca, quando, por exemplo, ela não tem uma sala de exibição e basicamente faz conservação física dos filmes? Você não pode ali abrir a reserva técnica, para as pessoas entrarem dentro e verem como é que é. Isso não existe. É tecnicamente incorreto.

            Então, há uma série de erros, há uma série de equívocos, e há algo mais profundo, que é a falta de admissão pela sociedade, pelo Estado brasileiro, da necessidade fundamental, a esta altura de você investir na conservação de acervos audiovisuais, de você chegar de fato a constituir uma memória que a sociedade vai poder, e deve, poder usar mais pra frente.

Fabian: Os gestos são simbólicos, e a implosão de um Ministério da Cultura – o governo dizer “acaba com isso”-  isso já demonstrava uma leitura. E o que parecia, com o [Roberto] Alvim, o antigo secretário de cultura, é que existia uma clara veia de guerra cultural, onde eles estavam assumindo ali um lado. Inclusive, e isso saiu na imprensa, que existiam pessoas militares na cúpula da Cinemateca Brasileira, com uma mostra de Cinema Militar que eles pretendiam exibir. O que exemplifica este ataque – que vem de Olavo de Carvalho, vem do Orvil[4] – da teoria de uma esquerdização das instituições culturais e educativas do país. Agora, uma das encenações mais estapafúrdias recentes foi a de umas semanas atrás, aquele vídeo da Regina Duarte com o Bolsonaro, ela falando “não estou sendo fritada, estou indo para perto de minha família em São Paulo”. E que parece fazer uma coisa que eles sempre negaram, que é o fisiologismo. Que é pegar a pessoa e jogar lá na Cinemateca, tampar um buraco. Parece um pouco que não se importam. Se de um lado, eles estão cagando – então, pode queimar a porra toda – por outro, já demonstraram que a instituição pode se revelar um instrumento para eles. Como você enxerga isso?

Hernani: É difícil de enxergar de pronto, de imediato, em uma dimensão mais ampla. Porque quase sempre tudo que a gente fica sabendo vem via imprensa, mídia…

Fabian: Até por que o processo é meio esquizofrênico.

Hernani: Sim, cada hora é uma coisa, uma fala, uma desmentida. A própria situação de sexta-feira (29/05/20) da Cinemateca Brasileira foi louca, porque sai na imprensa que a opção é fechar. Aí, quatro, cinco horas depois sai uma outra indicação de que, não, ela vai voltar pro Estado. É uma esquizofrenia completa e absoluta. Mas olha, de um lado, em princípio, sobretudo esse governo que está aí, ele veio com essa ideologia de combate ao chamado “marxismo cultural”, “comunistas”, ou coisa que o valha. E elegeu o campo cultural para o espaço privilegiado para essa guerra. Quando há uma manifestação concreta, você fica meio em dúvida de qual é exatamente a natureza dessa guerra, quais são os referenciais que estão sendo postos à mesa, apresentados, etc., porque você vai lembrar no ano passado, do presidente falando mal de Bruna Surfistinha, como um exemplo nefasto do que se faz com dinheiro público no Brasil, e o quanto essas instituições que estariam aparelhadas pela esquerda ou coisa que o valha. Desconhecendo, inclusive, que a maior parte destes órgãos, destas agências, tinham renovado suas gestões aí durante o período do Temer, então, já não tinham nenhuma relação à rigor em termos de gestão com os governos de esquerda do PT. Então, por aí já tem um problema.

            Segundo problema é: Bruna Surfistinha é um filme de esquerda? É um manifesto ideológico do marxismo cultural ou coisa que o valha? E, num terceiro momento, para além de um combate ao aparelhamento da estrutura do Estado no campo cultural, ele era muito dúbio ou muito pouco claro, na medida em que – sobretudo para as instituições de preservação, as instituições de memória – você não tinha um grande interesse de fato por um passado remoto, ou um imediato, porque esse governo trabalha sobretudo no campo digital, no campo das redes sociais, no campo de um presente imediato.

            Ele tem um discurso em relação ao passado. Que é um discurso de resgate de valores ou coisa que o valha. Um discurso que mistura tudo, né? Do positivismo mais arraigado ao marxismo mais tresloucado. Então, é muito pouco clara essa dimensão estritamente ideológica neste novo governo. E não é clara não só no governo, mas em suas matrizes mais imediatas, você pensar no Olavo de Carvalho, e no quanto o pensamento dele é um pensamento estritamente católico. Não é nem cristão no sentido mais amplo, mas católico. E o governo Bolsonaro tem grande apoio no universo evangélico. Então, é um saco de gatos monumental. É difícil tentar entender isso, porque não parece ter muita lógica e a primeira impressão é que realmente são só malucos, esquizofrênicos.

            Então, houve o discurso sim de combater o aparelhamento ideológico dentro das instituições de uma maneira geral. E você viu gestos mais lógicos neste sentido quando se trocou a direção da Casa Rui Barbosa. Mas por outro lado, o que me parece estar no horizonte real deste governo, é muito mais do que um combate ao aparelhamento, é um desprezo. No fundo, eles não sabem para que isso serve, não tem grande interesse em utilizar isso e, se num primeiro momento, ao chegar ao poder, eles distribuíram uma série de pessoas ligadas ao governo dentro dessas instituições, como foi o caso do militar que foi trabalhar na Cinemateca Brasileira, que chegou publicamente propor uma mostra de filmes militares como um símbolo dos novos tempos, da nova orientação, de uma agenda que seria uma agenda de fortalecimento ideológico.

Fabian: que não vingou, né…

Hernani: Não, não aconteceu. Por isso que, em parte, eu estou dizendo que se era uma agenda de combate, uma agenda de reaparelhamento, do Estado e de suas instituições, seus órgãos, a certa altura, foram percebendo que não só eles não tinham um projeto real que envolvesse o passado, como não tinham um interesse concreto por ele – já que o desprezo pelo campo cultural era amplo, geral e irrestrito. Era muito mais fácil encerrar certas coisas, suspender a Lei Rouanet, paralisar o Fundo Setorial, sugerir o fechamento desse ou daquele órgão, do que estabelecer uma agenda de trabalho no campo cultural. Essa agenda de trabalho no campo cultural, por mais ideologicamente perversa que ela pudesse ser, no meu olhar ela não existiu, ela não foi construída.

Fabian: Dá trabalho, né? Construir essa história paralela.

Thiago: E a maneira como você fala, Hernani, nos indica que há um corte. Especialmente quando se pensa essa relação entre memória, ou cultura, e turismo. Então, me parece que o caminho que está se dando é um caminho de amnésia. Talvez relativamente suicidário, para usar um termo que tomou fôlego nos últimos meses, um caminho de destruição e isto não me parece que é sem querer.

Hernani: Olha, eu acho que – e isso é uma impressão, falta tempo, falta distanciamento, falta base para uma reflexão maior – mas que esse corte, essa ruptura entre cultura e turismo, entre uma dimensão de formação e uma dimensão de mero uso, sobretudo, digamos assim, financeiro. O turismo é uma grande indústria econômica, mas ele não tem, a não ser de uma maneira muito acessória, um foco maior na formação do cidadão ou coisa que o valha. Então, eu acho que o que se percebe é que a antiga guerra ideológica, ela passava muito por uma instância, por um espaço, por uma instituição, que era a escola. Você tinha sempre muita discussão em torno do que você vai deixar a criança ler, o jovem ler, o universitário ler ou não. E você vai ter exemplo pontuais aí dessa guerra cultural passando por esse espaço. Por exemplo, a coisa do chamado “kit gay”, que seria distribuído pelas escolas, invencionice ali dos setores mais conservadores – você está dentro de uma dimensão clássica de discussão política-ideológica.

            Mas com o tempo, e sobretudo a partir da eleição de 2018, onde a coisa das redes sociais e das fake news funcionaram, elegeram essa galera, eu acho que houve uma percepção que o canal de comunicação não passa mais por uma estrutura formal, por uma estrutura longa, como por exemplo, o trajeto escolar. Se passa agora por uma comunicação imediata.

            Nesse sentido, porque você vai manter estruturas que serviam à escola? Manter documentos que tem que ser pesquisados, pensados e trabalhados num certo discurso publicados em livro e depois oferecer isso a professores e alunos como uma base pra reflexão e formação? Acho que a ruptura é muito mais ampla do que a gente imagina porque a própria ideia de memória no meio disso tudo talvez comece a ser percebida como dispensável por esses grupos, por esse universo conservador.

            E você veja, o pouco empenho em tentar reconstituir alguma coisa que funcionasse de forma semelhante ao Museu Nacional, dispensar alguma preocupação com a perda histórica que ocorreu ali, que pode ter sido uma perda de objetos, mas não exatamente uma perda de informação porque parte da informação que estava lá já havia sido trabalhada, de alguma maneira colocada em outros suportes e lugares, mas a instituição funcionava como um símbolo dessa dimensão histórica brasileira que vinha lá do período colonial, atravessava o período imperial e chegava aqui no presente.

            Tinha uma dimensão que voltava lá para o passado remoto do continente americano, das nações indígenas, com os animais, com todo o trabalho arqueológico que o Museu Nacional desenvolvia… houve algum esforço de você recolocar isso numa dimensão simbólica que mantenha a ideia da história, do passado, da memória pra população em geral? Não. Eu não vi nenhum esforço nesse sentido e quando surgem proposições como essas “não vamos mais fazer cinema no Brasil, pra que? Melhor fechar a Ancine” ou “não, não vamos mais levar uma instituição como a Cinemateca Brasileira adiante, talvez seja melhor fechar”, o simples fato que alguém pensou isso, que colocou isso numa reunião pra mim é indicativo do quanto isto está no horizonte dessa galera, o quanto eles tenham começado a perceber que “não precisa mais reunir o passado e dar uma releitura própria, mesmo que seja uma leitura muito enviesada e equivocada” para eventualmente ter aí um processo de construção de uma identidade nacional mais conservadora, o quanto essa guerra cultural que eles indicaram existir e resolveram fazer há alguns anos, não vem só da eleição pra cá, indica uma necessidade pouco clara de manter essas bases antigas.

            Então se você não precisa das instituições de cultura, se elas são um estorvo, se elas são um antro de comunistas, são sorvedoras de dinheiro, se elas não tem sentido, bom é mais fácil acabar com elas ou o que é menos comprometedor do ponto de vista político, simplesmente deixá-las à própria sorte. Você não fecha a porta oficialmente mas você também não cuida mais dela, não manda os recursos necessários, empurra com a barriga e óbvio que aquilo vai morrendo por inanição ou por falta de ação. O risco que se corre no Brasil atual, não só em relação ao cinema, mas de forma geral é esse: desprezar o valor da cultura, da memória, ter uma política pública que é uma não-política, ou seja, “não vamos fazer nada” e aproveitar isso de uma forma anódina.

            Aquele vídeo da Regina Duarte com o Bolsonaro tem algumas características que revelam aí essa falta de compromisso: primeiro que ele não é uma fala formal num espaço formal – não é dentro do Palácio da Alvorada, é ali na rua, na esquina, como se fosse uma conversa informal… quer dizer, você não está entronizado seu cargo na sua responsabilidade, você tá falando como um amigo, como um conhecido então a atriz pode perguntar: “você tá me fritando ou não?” e ele responder “claro que não, ainda vou te dar um presente – do lado do seu apartamento você vê a Cinemateca Brasileira então ó, é o órgão perfeito pra você ficar ali em São Paulo, na sua casa e não ter muito trabalho e tá tudo bem”. [5]

            Em nenhum momento, se discute o que é cinemateca brasileira, o que implica esse trabalho, qual a responsabilidade envolvida e não se dá a dimensão de seriedade pública que é fazer isso dentro dos rituais e espaços tradicionais, dentro da compreensão de que aquilo ali é uma coisa pública, uma responsabilidade do funcionário público, o presidente e a secretária de cultura são funcionários públicos e, portanto, devem satisfações a sociedade brasileira, eles não podem fazer o que quiserem tirando da cachola se vão ou não cuidar.

            Então o vídeo já é revelador da falta de compromisso. Não há compromisso ali com nada, nem com o país, nem com a memória do país, nem com o trabalho em si. O que rola é algo constrangedor, de alguém que quer desfazer uma imagem pública extremamente negativa mas é evidente que ela não só foi “fritada” como cuspida fora do governo e a partir desse episódio você tem uma apreensão do destino da cinemateca brasileira: se a tentativa de resolução começa dessa maneira, talvez a tentativa seja não resolver. E uma semana depois você chegar nesse comentário de “então fecha” parece o desfecho natural dessa falta de compromisso e do descalabro público que o país vem vivendo.

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

[3] Na última sexta-feira (19 de junho de 2020), o ator Mário Frias foi nomeado para o cargo de Secretário Especial da Cultura, em substituição à atriz Regina Duarte que deixou o cargo há um mês. Com a extinção do Ministério da Cultura, a Secretaria Especial da Cultura atualmente encontra-se incluída dentro da pasta do Ministério do Turismo.

[4] O livro secreto do Exército é uma Doutrina de Segurança Nacional que conta o que seria “a verdade” sobre a luta armada promovida por organizações de esquerda, entre 1967 e 1974 e que traz a ideia interna de que o inimigo deve ser eliminado.

[5]  Na saída de Abraham Weintraub do Ministério da Educação no dia 18/06/20, a encenação já pareceu mais protocolar, filmada dentro do Palácio da Alvorada, com um presidente aéreo provavelmente por conta da outra grande notícia do dia – a prisão de Fabrício Queiróz – e um outro cargo oferecido “de presente: depois da cinemateca, agora o Banco Mundial.

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Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

***

Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

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Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

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O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

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Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

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Pode até ser que isto seja um grito

Por Lucas Saturnino

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Contes de juillet (Guillaume Brac, 2017)

Como imaginar o porvir em um país sem futuro?

(Jean-Pierre Bekolo, Les saignantes)

Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada

(Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento)

 

A linha-mestra de Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar, de Frank Beauvais, 2019) é um monólogo autobiográfico de Frank Beauvais — o narrador, protagonista e diretor. Em tom confessional e memorialístico — procedimentos muito caros à literatura contemporânea —, Beauvais disserta sobre cerca de 7 meses que passou isolado em uma aldeia na Alsácia, para onde havia se mudado com um ex-namorado e onde permaneceu após o término da relação.

Psicologicamente estagnado e vivendo como um ermitão, Beauvais isola-se ao extremo, reduz qualquer possibilidade de contato social ao mínimo e passa a assistir 4, 5 ou mais filmes ao dia, donde são originárias as imagens de Ne croyez…, obra inteiramente composta por excertos dos mais de 400 filmes vistos por ele no período.

Ne croyez… tem sido descrito como um filme sobre cinefilia — sua premissa não é de difícil identificação para uma plateia de cinéfilos, críticos, curadores etc. No entanto, Ne croyez… é tanto uma obra sobre cinefilia quanto sobre tecnologia e isolamento — e individualismo? —: ser capaz de baixar filmes e vê-los a sós em casa, fazer dinheiro vendendo coisas na internet — desempregado, é sua fonte de renda ocasional — e ir vivendo enquanto continua a ignorar os vizinhos e o contato social em geral.

O que fazer — quarentenado — durante uma pandemia? Ver filmes? Ver muitos filmes? Ver não apenas muitos filmes como especificamente os filmes que queres ver, tendo acesso a inesgotáveis bibliotecas — peer-to-peer, em especial — online? Tão óbvio quanto esquecível, isso só é possível com determinada tecnologia. Assim, Ne croyez… é o testemunho duma forma contemporânea de se consumir de arte e entretenimento.

Beauvais retrai-se radicalmente em resposta a — ou como sintoma de — uma sociedade doente. Para além da corrosão generalizada das relações interpessoais, há o preço dos aluguéis em Paris e os ataques terroristas que se sucedem na França entre 2015 e 2016. Longe de tudo, as notícias chegam a Beauvais — e a nós espectadores — com certo ar de irrealidade. Enquanto assistimos às imagens de uma vasta e eclética biblioteca cinematográfica, ouvimos-lhe comentar sobre o ataque terrorista em Nice.

Contudo, sem poder ver para crer, imersos na sedução estética dos excertos que nos sugerem outros filmes e outros mundos, torna-se difícil dimensionar o ataque referido — para os cinéfilos, existe um conforto, uma familiaridade, naquele fluxo visual.

Pensemos em Hanne e o Feriado Nacional, um dos médias-metragens que compõe o belo díptico Contes de juillet (Contos de Julho, de Guillaume Brac, 2017). Num dia vadio de verão — 14 de julho de 2016, Dia da Bastilha e data do ataque em Nice —, os jovens personagens bebem, flertam, divertem-se e fortalecem até que quebram laços de amizade.

No final, Hanne, bêbada, após brigar com a amiga por causa de homem, chora sozinha na cozinha do alojamento universitário. De repente, junto ao cair da noite e aos fogos do 14 de julho, surge o sorrateiro som do noticiário comunicando o ataque terrorista em Nice. Enquanto os personagens gozavam do ócio que dá sabor à vida, a morte dava as caras por aí. A qualquer momento, uma notícia poderá irromper inadvertidamente no cotidiano: um ataque terrorista, um novo vírus, um golpe de estado, uma invasão alienígena. Em 2 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à Rússia e Franz Kafka foi nadar, etc.

Diz a clássica metáfora que o cinema seria capaz de fazer o espectador viajar —transportá-lo-ia para outras realidades, outras peles. Beauvais, porém, compara filmes a curativos, ataduras. Assim são os cinéfilos calejados: entendem demais do riscado para conseguirem vê-lo inocentemente — ora guardiões, ora túmulos de ilusões. Para ele, os filmes, acumulando-se, funcionariam como analgésicos — um cine-narcótico, sedativo e aditivo, frente à nação convulsiva.

Não é uma lógica semelhante — a da saturação — que anestesia o peso das tragédias? Elas vão ocorrendo, sendo noticiadas e se acumulando. Beauvais abre o computador, vê a notícia do ataque terrorista, pondera que não conhece ninguém em Nice e vai dormir.

Ansiando por outra coisa, Beauvais põe-se a assistir antigos filmes da Alemanha Oriental e da URSS à procura de personagens que questionavam seu papel na sociedade, enquanto lutavam para construí-la. O compromisso comunitário: o que terá sido feito dele?

Em decorrência do isolamento autoimposto, ele confessa que pegou o costume de só ir ao supermercado uma vez a cada dois meses. Em 2019, isso soava como um exagero, indício irrefutável de que Beauvais não andava em seu melhor — o brasileiro, por sua vez, talvez se lembrasse do hábito, causado pela inflação, das “compras do mês”.

Cá estamos, entretanto, em 2020, espaçando as idas ao mercado… Terá Ne croyez… adquirido contornos — por que não — singelamente proféticos? O que vem e o que veio é muito pior e incerto, então permitam-me o ensejo para uma digressão cinematográfica ao ocaso de duas sociedades muito diferentes, embora originárias do mesmo lugar:

Há muitas formas de se fazer um filme em uma sociedade prestes a desaparecer, frente a um apocalipse particular iminente. Por exemplo, Veit Harlan fez Kolberg (1945) — o mesmo Harlan que viria a ser julgado por crimes contra a humanidade devido ao seu envolvimento na máquina de propaganda nazista. Kolberg, a última superprodução do Terceiro Reich, narra — manipulando os fatos segundo os ditames da propaganda — a resistência suicida da pequena cidade de Kolberg contra o exército napoleônico.

Imoral ao extremo, o objetivo de Kolberg era convencer os espectadores de que a Alemanha não deveria parar de lutar, mesmo que a guerra parecesse perdida, conclamando-os a perseverarem até morrer, cumprindo assim o desejo/impulso de morte — suicida — que está na base da ideologia nazifascista. Pois o horizonte nazifascista é a aniquilação, nem que seja a autoaniquilação, e daí também o fetiche sacrificial.

Goebbels mobilizou cerca de 187 mil soldados para atuarem como figurantes. E quis realizar a première em La Rochelle, das últimas bases sob controle alemão em uma França em processo de libertação, onde uma cópia do filme teria sido insolitamente jogada de paraquedas. Quando os soviéticos tomaram Kolberg, Goebbels omitiu essa informação do público, temendo que o potencial inspirador do filme fosse prejudicado pela realidade.

Harlan busca transformar a aniquilação da cidade resistindo ao invasor em algo belo — Kristina Söderbaum, embalada por sinos e canhões, acariciando loiros cabelos infantis, enquanto canta e chora a incineração da Heimat —, como se o sacrifício encontrasse sua razão de ser no espetáculo audiovisual do canhoneio e na representação do povo — uma massa magnética e acima de individualidades — como repositório da energia belicamente sexual da nação. A catarse resultante seria a maneira de seduzir o público a aderir a uma luta fadada à morte. A imoralidade no cinema poucas vezes terá ido tão longe.

Os cinemas mantiveram-se abertos até a rendição ou bem perto dela. Goebbels julgava-os essenciais, uma “necessária distração”, pois seria necessário que o povo tivesse onde desanuviar. Conforme os bombardeios iam destruindo o circuito exibidor, teatros e outros estabelecimentos eram transformados em cinemas. O Tauentzienpalast, a primeira sala a exibir Kolberg em Berlim, não terminaria a guerra de pé.

Depois do fim, depois de Kolberg, restam as ruínas. É nas ruínas, das ruínas, que surgirá o cinema da Alemanha Oriental: com narrativas de perda, culpa coletiva e reconstrução nacional como Die Mörder sind unter uns (Os Assassinos Estão Entre Nós, de Wolfgang Staudte, 1946). E o que começa em ruínas morais e concretas, terminará em ruínas simbólicas — retratos de uma sociedade estagnada e estagnante: a utopia fossilizada.

Andreas Voigt documentou, na linha de frente, o colapso do comunismo na Alemanha. Em Leipzig im Herbst (Leipzig no Outono, 1990), realizado em conjunto com Gerd Kroske, Voigt registra as manifestações de massa nos meses que antecederam a queda do Muro, o momento em que o povo vai abandonando o regime e a inépcia do Estado em reestabelecer um diálogo, um pacto de confiança e governança com os cidadãos.

A câmera de Voigt permaneceria em Leipzig nos anos seguintes, documentando a convulsão social subsequente ao fim do comunismo. Glaube, Liebe, Hoffnung (Fé, Amor, Esperança, 1994) é possivelmente o primeiro retrato cinematográfico da ressurgência da extrema-direita na Europa pós-1989. O filme deixa implícito um motivo até simples: a vida dessas pessoas é uma merda e por acaso alguém se importa com elas?

Antes, em Letztes Jahr Titanic (Ano Passado Titanic, 1991), Voigt acompanhara diversos moradores de Leipzig entre os dezembros de 1989 e 1990, ou seja, entre a queda do Muro de Berlim (09/11/89) e a reunificação da Alemanha (03/10/90). Letztes Jahr Titanic retrata um período composto por incerteza, desconfiança e esperança. O tempo parece simultaneamente suspenso e acelerado. Sobre imagens desamparadas — angustiadas, à deriva, esperando —, paira o fantasma do desemprego. O porvir lhes obsoletará, tirando-lhes a subsistência, ou lhes dará oportunidades para melhorar a qualidade de vida?

A jornalista Renate confessa seus sentimentos conflitantes: está alegre em ver renovado o seu horizonte de possibilidades, mas crê não ter futuro profissional ou social, sentindo medo e vontade de desistir. Renate havia colaborado com a Stasi (a polícia política) após ser estuprada e chantageada por um oficial. “Com um passado desses, não há futuro”, diz. Muitos pararam de cumprimentá-la. “Quando deveríamos ou poderíamos ter sido mais espertos lá atrás? O meu ideal de sociedade parecia realizável na Alemanha Oriental”.

A jovem gótica Isabel comprou uma arma após passar a ser constantemente assediada por grupos de extrema-direita. Tentam agredi-la, ameaçam cortar-lhe o cabelo ou queimá-lo. “De onde vem essa violência?”, Voigt pergunta. “De tudo o que aconteceu”, ela responde, “A merda toda. Por conta da reunificação […] As coisas estão ficando mais conservadoras […] Eu terei que me conformar, mudar o meu estilo […] usar roupas normais”.

— “Como você quer viver no futuro?”

— “Não sei. Não faço ideia. Eu tentarei seguir com a minha vida. É isso.”

Perto do final, um dos entrevistados observa que Voigt e sua equipe também ficarão desempregados com o fim da DEFA — o estúdio cinematográfico do regime comunista, o qual, sendo estatal, deixará de existir com o fim desse mesmo Estado — e recomenda-os procurar trabalho no lado ocidental: “Há muita oferta de emprego lá”, ele lhes diz e ri, entre um gole de cerveja e outro. Em seguida, corta para a fachada de um cinema. “Dicas de filme”, lê-se na vitrine — a recomendação é Crocodile Dundee II (John Cornell, 1988). Ao lado, outro cartaz: “Um filme só se torna uma experiência na sala de cinema”.

Um pouco como no mundo todo, a introdução da televisão na Alemanha Oriental provocou uma queda no número de espectadores dos cinemas. E fez diminuir o orçamento da indústria cinematográfica estatal, uma vez que, à nível de produção audiovisual, passou a sofrer a concorrência da televisão também estatal. A competição com a TV era dupla: do lado ocidental, torres de transmissão foram erguidas perto da fronteira, sendo possível sintonizar os canais do vizinho capitalista em quase todo o país — as duas regiões onde o sinal ocidental não pegava ganharam o apelido de “vale dos inocentes”.

Segundo Sabine Hake¹, o declínio no número de espectadores e de produções contribuiu para a crescente marginalização do cinema na vida cultural da Alemanha Oriental, o que transparecia em narrativas menos tradicionalmente politizadas, em contraste ao projeto pedagógico comunista/antifascista que deu origem à DEFA — sinalizando, ela conclui, um tácito reconhecimento de que o “cinema socialista” havia falhado. Por conseguinte, a DEFA desaparecerá porque o mundo a que servia e reportava deixará de existir.

Enquanto a câmera percorre a fachada do cinema, ouvimos a melodia de La Paloma, canção imortalizada na língua alemã por Hans Albers em Große Freiheit Nr. 7 (Grande Liberdade Nº 7, de Helmut Käutner, 1944) — realizada na fase final da guerra, uma obra-prima desesperada e alucinatória, sobre ilusões e frustrações, a instabilidade de promessas portuárias e a desolação decorrente das esperanças estilhaçadas pela liberdade dos outros.

Dentro do cinema, a câmera nos mostra um ambiente completamente destruído. No interior da sala, uma panorâmica revela apenas destroços. Corta e surge uma loja mais moderna. Na fachada, lê-se: “VIDEO–WORLD”. La Paloma ainda está a tocar. Segue-se um skinhead raspando a cabeça de outro — Voigt retrata skinheads de esquerda e de direita em seus filmes, o que causa confusão visual — e, ao som quase inaudível do hino nacional alemão porcamente executado, fogos-de-artifício explodindo colorido no céu.

Letztes Jahr Titanic se inicia com a imagem de um trem chegando na estação e se encerra com a imagem de um trem deixando essa mesma estação. No começo, sabemos que ele está a chegar em Leipzig. Ao final, porém, não conhecemos seu destino. Nesse ínterim, a Alemanha tornou-se novamente uma só. No último plano, a câmera está no mesmo lugar onde se encontrava no primeiro. O início e o fim mostram-nos um mesmo trilho em momentos distintos, cada qual com um trem percorrendo-o em direções opostas. Assim sendo, na nossa perspectiva, a dianteira converte-se na traseira do comboio. E, dessa maneira, a câmera passa a só ser capaz de filmar aquilo que deixa para trás.

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Letztes Jahr Titanic (Andreas Voigt, 1991)

¹ Hake, Sabine. German national cinema. London: Routledge, 2008.

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Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa

Por Diogo Serafim

Eu me sinto sozinho às vezes. Mesmo quando rodeado por pessoas que amo, mesmo quando cercado por pessoas que eu poderia amar, mesmo quando sozinho no meu quarto pensando nas pessoas que amo ou que poderia amar. Quando afirmo que me sinto só, não tenho a intenção de estruturar um relato de mim mesmo enquanto ser solitário, mas sim da condição de solidão que se apresenta no meu espírito. A priori o que pode aparentar um simples jogo retórico é de fato uma concreta alteração analítica do problema: a solidão é uma condição maior, primária, da qual a minha consciência faz uso. A solidão me atravessa – eu estou sozinho, mas nunca sou sozinho. Vista assim, a solidão pertence ao espírito, não à consciência. Empregada essa ótica, a solidão tem pouco a ver com a propriedade de um indivíduo e tem consequentemente muito pouco a ver com o não-ser – o ser é, e sempre será, assim a solidão não é uma condição existencial, mas sim espacial. A solidão não se apresenta como não-ser, e sim como não-estar. E poucas coisas assustam tanto quanto o não-estar.

Eu me sinto só quando o que se apresenta fora da minha consciência me é apreendido como puramente externo, algo do qual eu jamais poderia fazer parte. É o solipsismo puro, o raciocínio cartesiano primário, a ontologia natural da essência humana associada à ideia de propriedade. Hegel apresenta uma solução para lidar com essa problemática: quando eu mesmo me apresento como um elemento a ser reconhecido, o ser sai da sua condição em-si rumo ao para-si. A consciência-de-si se dá quando eu mesmo sou Outro. Quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo.

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Michi trabalha com plantas. Estas são criadas no alto de um edifício em Tóquio, em um escritório, frequentemente cercadas por plástico. Taguchi, um colega seu, não vai ao trabalho há mais de uma semana e com isso o disquete contendo os dados que ele deveria analisar não lhe foram enviados. Michi não entende muito bem como funcionam computadores e disquetes. Ela tem uma televisão em casa, que também não sabe como funciona. Se o virtual é um mistério para ela, o material também, tendo que um dia lhe vem ao espírito uma ideia que a assusta bastante: a de que talvez seja muito fácil se suicidar.

    Ryosuke tem um computador no seu quarto. Na tela, ele vê imagens de pessoas que estão longe dele, também sozinhas nos seus respectivos quartos. As janelas no quarto de Ryosuke estão normalmente fechadas. O seu computador já é uma abertura para o mundo, assim como as suas janelas, mas aqui a questão espacial já não se põe em jogo – no virtual, o espaço é subordinado ao tempo. Ryosuke, assim como Michi, não entende muito bem como funcionam computadores.

Ryosuke, apesar de não ter muitos amigos, gosta bastante de uma estudante de computação chamada Harue. Ela se considera uma amiga de Ryosuke, ou algo próximo disso. Harue, diferentemente de Ryosuke e Michi, entende muito bem de computadores. Apesar de ter alguns amigos, ela se sente muito sozinha e é frequentemente assombrada pela vida que a circunda e os afetos que circulam à sua volta. Ela tem muito medo de morrer sozinha.

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    O fim do mundo em Kairo é a perda da relação do Eu com o mundo. Se eu não estou mais no mundo, ou se ele já não se apresenta mais como algo material para mim, o mundo chegou ao seu fim. Como poderia ele durar mais que eu, sendo que ele estava contido em mim? O apocalipse é a desapropriação epistemológica da experiência com o mundo.

Poderia a solidão ser filmada? Sim, respeitada a condição de que a câmera represente essa solidão ela própria. O dispositivo captura um estado de espírito, se apossa dele, não o descreve. A inteligência formal de Kairo está na maneira como Kurosawa estabelece a própria câmera como um elemento assombrado do filme. A decupagem faz uso da profundidade de campo, de glitches, de diferentes texturas, diferentes ângulos e composições, de variados valores de plano, sempre numa lógica de isolar os personagens dos espaços que eles ocupam. O dispositivo aprisiona esses personagens em um universo em ruínas do qual eles não podem nunca efetivamente fazer parte.

Os espaços em Kairo aparentam quase desprovidos de materialidade. Quando seus personagens fazem um percurso de ônibus, o mundo exterior sempre aparenta desarticulado das suas propriedades, em um estado de desapropriação entre duas abstrações temporais, em certa medida não pertencente ao instante em si. Esse desmembramento se reduz numa dicotomia fundamental entre o movimento e o estático, traduzida em absoluta suspensão, tanto espacial quanto temporal, da experiência. Isso se dá muito pela maneira como Kurosawa usa o digital no seu filme: o avião e a subsequente explosão no fim do filme, a poeira digital de Junko, amiga de Michi, quando esta se desintegra perante seus olhos, os espaços percorridos pelo ônibus efetivamente, tudo é estranhamente texturizado, quase virtual, desarticulado da dramaturgia e dos personagens. Kairo é um filme de pessoas que vivem em um mundo ao qual elas não podem pertencer.

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    Esse conflito entre o movimento e o estático é provavelmente fruto de um embate mais fundamental entre a tradição e a marcha do tempo, a cultura e o progresso, a identidade e a universalização, contradições que vão se estabelecendo cada vez mais claramente em Tóquio, numa lógica de otimização espaço-temporal que acaba por destituir essas propriedades das suas fenomenologias constituintes, alcançando um estágio abstrato de alienação entre o perene e o terminal.

    A construção atmosférica de Kurosawa geralmente se dá por pacientes planos gerais, de uma singular perspicácia composicional, dispondo seus elementos formais de maneira que os traços que remetem ao isolamento de seus personagens coexistam numa paleta monocromática sombria, frequentemente contrastada por elegantes jogos de luz. O diretor faz uso de linhas estruturais que deslocam os elementos centrais de cada cena, conduzindo em seguida o movimento desses elementos em um ritmo hipnótico que dão protagonismo à iconografia desoladora de horror psicológico.

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    Se muitos diretores fazem uso de exposições fugazes e esporádicas dos seus elementos de horror para não os desgastar, Kurosawa parte de uma abordagem oposta, apresentando essa iconografia como subordinada a uma temporalidade que não nos assusta num estado de euforia, mas sim nos aprisiona em um estado constante de agonia e ansiedade. Ele confronta o horror como um verdadeiro elemento a ser internalizado, não apenas um artifício de estimulação sensível. Tudo vale: a suspensão do som, a manipulação do obturador da câmera, o uso do foco e da profundidade de campo, a espacialização, a expectativa, a sugestão – nesse sentido, não seria exagero dizer que Kairo está entre os filmes mais inventivos da história.

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Em Kairo, desaparecer não significa a morte. Um fantasma é só alguém que se sente sozinho. No filme, um programa de computador simula o nosso circuito de afetos: se duas pessoas estão muito próximas, elas morrem. Se elas estão muito longe, elas se atraem. Os fantasmas tentam conversar conosco exatamente por estarem muito longe, presos em um solipsismo existencial, enquanto essa aproximação nos aprofunda progressivamente nesse mesmo solipsismo, até que nós mesmos ou morremos, ou seguimos o resto das nossas vidas sozinhos.

A grande questão é que eu próprio sigo me afastando constantemente de mim mesmo. Mas não sinto uma atração que me chame de volta para a minha fonte própria. Aproximar-me de mim mesmo, um outro muito próximo que se afasta, é um esforço ativo que deve ser exercitado – seria essa então a subversão da morte? Aceitar a si mesmo como algo a ser assimilado e não como algo espontaneamente inexorável seria a etapa final para tornar-si?

    Suicidar-se é sempre tão fácil. Principalmente quando nós estamos todos tão sozinhos, principalmente quando tirar a sua vida só concerne a você próprio. Encontrar a felicidade já não é tão simples assim. É preciso afirmar estar vivo, a vida não é uma propriedade passiva, e sim um enfrentamento ativo face às forças erosivas da existência. No fim de Kairo, a felicidade é encontrada quando o meu último amigo no mundo sou eu mesmo. Isso quando o maior medo que se pode ter é continuar sozinho mesmo após a morte.

Nada muda com a morte. Como agora, para sempre. A morte, como a solidão, não é não-ser, a morte é não-estar. Continuamos seguindo em frente, um navio solitário no meio de um oceano sem cartografia definida. Vento e plástico, água e pó, eu e vocês, nosso circuito.

Referências

Fenomenologia do Espírito – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

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O Sertão como meio e o Sertão como fim

Por João Lucas Pedrosa

O “Apocalipse”, último livro das Sagradas Escrituras, já tornado conhecimento geral, transcreve as revelações (raiz etimológica do título) do que Deus teria guardado para o futuro dos homens. O autor João redigiu o que Jesus Cristo recebia de seu Pai em forma de visões, elementos simbólicos (“em apocalipse tudo ou quase tudo tem valor simbólico”, diz a Bíblia de Jerusalém), sem rigor com a coerência dos efeitos obtidos. O contexto histórico de autoria – pouco antes de 70 d.C. ou em 95 d.C., quando crê-se ter sido escrito[1] – é a violenta perseguição à Igreja pelo Império romano. A necessidade de elevação do ânimo dos fiéis para resistirem à repressão motivou a narrativa de punição e aniquilação dos inimigos adoradores de Satanás (e do próprio) para que, enfim, se estabelecesse a paz e a prosperidade do Reino celeste para todo o sempre.

Uma questão primordial em narrativas apocalípticas é que representação de mundo é esta. Mimesis, de Erich Auerbach, começa dissecando a que é traçada na Bíblia: em seu modelo (que chama de exegese), descrições de espaço e de tempo são sempre vagas. Abraão chega com seu filho Isaac a alguma montanha na terra de Mariá em três dias, e não importa onde ela fica exatamente nem o que se passa na cabeça dos dois nesse tempo, e sim a obediência da ordem divina. O resto é entrelinha, preenche-se no imaginário do leitor. Na representação do sacrifício por Caravaggio, não se vê olhos ou expressão facial no patriarca. A ordem é cega a todo o resto, e seu rosto sequer olha diretamente ao anjo, que precisa impedi-lo fisicamente. Da mesma forma, o mundo varrido por Deus no Apocalipse não conhece os povos ameríndios ou a dinastia chinesa pois se reduz à polarização promessa do Reino de Deus/ameaça satânica (o Império romano). Nosso mundo, na Bíblia, é unicamente campo de guerra para Deus e para o Diabo. A narrativa funciona na chave da falta, ambos de objetivo concreto e de subsistência (como não nos deixa esquecer as provisões divinas no deserto do Êxodo), e faz todo sentido, portanto, que sua verdadeira consistência esteja no plano transcendental.

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No Brasil, esse campo de guerra é representada de forma inigualável pelo Sertão nordestino, e a narrativa cinematográfica que compreende melhor a sobreposição psíquica desse mito sobre uma terra marcada pela falta é provavelmente Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Se o fim do mundo necessita do filtro simbólico nas Escrituras, para o filme é esse mesmo filtro sobre a subjetividade sertaneja que confere a seu povo o eterno estado de fim do mundo. O filme parte da travessia pelo deserto em busca de futuro, o movimento primordial do Êxodo. Como os israelitas no Egito, Manoel era escravizado por seu patrão – a violenta insurgência do protagonista vem ao ser por ele chicoteado -, e sua peregrinação com a esposa Rosa acontece na fuga da reprimenda que matou sua mãe. A busca dos dois é, essencialmente, por um Moisés, por um guia pelo caminho do deserto. Juntam-se ao beato Sebastião (numa mistura de Antônio Conselheiro com Padre Cícero) e depois a Corisco, o Diabo Louro. Os dois funcionam como alusões a figuras históricas que entraram para a mitologia regional, e escolhem derramar sangue até que “o Sertão vire mar e o mar vire Sertão” – em última instância, até que o dilúvio divino chegue para instaurar o Reino celeste depois de aniquilar o grande inimigo sertanejo: a sede. Antes disso, os dois morrem. O religioso pela mão de Rosa, após ele tentar purificá-la com o sangue de um bebê sacrificado nos braços de Manoel, e o cangaceiro por Antônio das Mortes (que alude, por sua vez, ao caçador de cangaceiros José Rufino, que matou Corisco na vida real). O primeiro é motivado pela metafísica e o segundo pela anarquia, mas ambos abraçam a lógica da arbitrariedade idealista, que no plano terrestre se converte em tiros ao céu (como o fim de Paulo Martins em Terra em Transe, Glauber e seus mártires do vazio). Manoel e Rosa terminam ainda correndo a esmo. Ela cai no meio do caminho e ele continua correndo pelo cascalho até chegar numa estrada. Um insert do mar ao som de Villa Lobos fecha o filme como uma meta inatingível, como o petisco pendurado na frente de um cachorro na esteira, e que mantém o nordeste brasileiro afundado em sua miséria alienada.

Como uma das obras que anteciparam um vazio ideológico e político que se estenderia à esquerda intelectual urbana após o Golpe de 1964, o filme estende a expressão da crise de sentido ao uso da linguagem cinematográfica. Essa mesma crise se transforma em quebras de eixo, jumpcuts, métodos contrastantes de direção de atores (Corisco quebra a quarta parede e atua para ela como um personagem brechtiano; Manoel está preso à diegese e à atuação naturalista, sofrendo os impactos mentais de seu entorno), letra da trilha sonora em diálogo com os diálogos proferidos pelas personagens. A quebra de códigos de uma representação de mundo fechada e de referenciais bem definidos (Auerbach chama de diegese, usando a Odisseia como contraponto à Bíblia) cria esse desnorteamento sensorial para expressar o conflito do sistema de signos que move a psiquê nordestina comum. O Sertão em Deus e o Diabo, como lembra Ivana Bentes, opera como espaço do imaginário, não do concreto. É possível, portanto, que nele Canudos e o cangaço se sobreponham temporalmente, pois nele opera o sempre eterno, o tempo de Deus. Na cena final, Corisco é emboscado por Antônio das Mortes ao som da trilha de Sérgio Ricardo. Ele pula para trás em sobressalto, gesto repetido três vezes e ampliado em três diferentes ângulos. O caçador dá três tiros pausados para a frente, e um plano afastado mostra Corisco girando ao invés de cair morto. Ele para, solta sua peixeira, e logo antes de começar a cair, grita – num brado que interrompe a trilha sonora – “mais forte são os poderes do povo!” e um jump cut corta sua queda pelo meio para ele direto já caído no chão. O brado segue em sua duração original, ecoando depois da queda, e só então a música volta. Cristino Gomes da Silva Cleto morreu, mas Corisco jamais. Ele pula, gira e ecoa para sempre. O Sertão, para Glauber, tem o funcionamento da metafísica subjetivista bíblica, onde a terra é zona de conflito para deidades históricas, e onde o homem é nada mais que sujeito paciente de um mundo que não lhe pertence.

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As intervenções musicais no filme quase sempre narram musicalmente momentos de importância, nunca em reiteração das ações exibidas, mas como consumador do tom fantástico, epopeico da narrativa. Pois o que vemos à nossa frente é o desenrolar de um cordel, com direito a moral da história. Durante a corrida final do casal, o cordelista conclui:

Tá contada a minha história
verdade e imaginação
Espero que o Sinhô
tenha tirado uma lição
Que, assim mal dividido,
esse mundo anda errado
Que a terra é do hômi
não é de Deus nem do Diabo!

E enquanto isso não fosse compreendido, o Sertão seria para sempre apocalipse.

* * *

            A obra que aparece como atualização definitiva da relação entre o sertanejo e o apocalipse é Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles. O filme se aproxima de Deus e o Diabo acima de tudo pela oposição perspectiva, como já anuncia a primeira imagem dos créditos iniciais: enquanto Glauber escolhe começar no chão, de cara com o limite, os autores escolhem o céu, dirigindo-se ao infinito. A narrativa de Glauber é a da urgência de voltar-se à terra, de abandonar a transcendência e apropriar-se sobre o concreto. Mendonça Filho e Dornelles, por sua vez, compreendem que a mitologia anda de mãos dadas com a política, e que não pode ser abandonada ou destruída, mas pode e deve ser reconfigurada. Se, nessa escolha inicial, os autores criam o contraste inverso da abertura inicial de Glauber (constelações brancas no preto sideral ao invés dos mato desidratado cinza escuro sobre o branco da terra seca), é porque o projeto de Bacurau é a formulação de uma utopia nordestina.

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            O uso dos créditos iniciais é mais recentemente reconhecido como recurso nostálgico de referência ao cinema de cerca de 30 anos atrás, antes do hábito entrar em desuso. Eles também são ornados por uma canção sessentista, Não Identificado, na voz de Gal Costa. O uso das canções é igualmente relevante aqui, menos na intenção de inventar uma percepção nordestina quintessencial, e mais fazendo referência a uma política de estilo:

Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental
(…)
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer uma canção de amor
Como um objeto não identificado

            Em 1968, começou o movimento tropicalista do qual a canção faz parte. O projeto retomava nas sete artes o princípio antropofágico do modernismo dos anos 1920 numa nova busca da essência brasileira. O resultado digestivo misturaria, além das três culturas que constituem a miscigenação do povo brasileiro, também esse saldo com a pop art e com a cultura de massa hegemônica.. Um iê-iê-iê como dos Beatles, mas nordestino. Que possa voar para o espaço, chegar em outros planetas. Bacurau se apropria de códigos típicos do gênero apocalíptico estadunidense para fazer um filme que converse com a própria massa e também com o planeta que o invade. Após 55 anos de Deus e o Diabo, Dornelles e Mendonça Filho compreendem os erros da primeira fase cinemanovista e os mecanismos da indústria estadunidense, que ainda toma conta do mundo. Não é uma meta trazer à massa a “consciência de sua miséria”, isso já é dado comprovado e reiterado e esvaziado e, não obstante, ainda vivido. Tampouco é diagnosticar a religião e o povo como alienado (traço mal envelhecido no cinema novo). Trata-se de um chamado energizante à luta, erguido pela reapropriação de estruturas narrativas que constituíram ao longo dos anos a mitologia cinematográfica de sustento imperialista.

A trama é simples: o pequeno povoado interiorano de Bacurau, após a morte de sua matriarca, começa a sumir dos mapas virtuais e a ser atacada por um grupo de estadunidenses, europeus e brasileiros sudestinos abastados e armados até os dentes, decididos a exterminá-lo por esporte. Aqui, é retomado o estilo bíblico de narrativa apocalíptica pela ignorância do entorno. O mundo é Bacurau: Não Identificado continua tocando após o fim dos créditos iniciais, e uma pan para a esquerda revela a Terra. Após cruzado por um satélite, o enquadramento se aproxima do nordeste brasileiro até a imagem fundir-se, por um segundo, com o close de Teresa (Bárbara Colen) adormecida e um plano de um céu alaranjado. Então o amálgama dá lugar ao take aéreo de um caminhão de carregamento seguindo em direção à cidade. Se Bacurau é o mundo, os alienígenas são os de fora da cidade, e não à toa os caçadores usam drones em forma de disco voador para vigiar os nativos que lhes são presa. A alienação não mais vem do comportamento do povo, mas é consequência da privação de recursos que o vulnerabiliza e o invisibiliza, e é essa condição mesma que estabelece Bacurau como centro do próprio universo – e que, em última instância, sustenta a associação não nativo/alienígena.

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Essa construção metonímica de mundo é feita de forma involuntária (ou não) há dezenas de anos por narrativas de invasão alienígena no cinema norte americano, iniciadas em tramas-reflexo de conflitos políticos tornados pavores comuns, como o belicismo exponencial em O Dia Em Que A Terra Parou (Robert Wise, 1951), a ameaça comunista em Vampiros de Almas (Don Siegel, 1955), um inimigo maior que a bomba atômica em A Guerra dos Mundos (Byron Haskin, 1953). Entre muitos ecos contemporâneos, algumas particularmente bem sucedidas são narrativas de salvadores norte americanos, como Independence Day (Roland Emmerich, 1996),  – onde o contra-ataque aos alienígenas tem êxito em 4 de julho, pareando a celebração da libertação global à da independência estadunidense -, e na franquia Os Vingadores. Seus heróis são à moda americana, mesmo que não nativos dos EUA ou da Terra, pois operam em prol do status quo americano, portando um irônico domínio inato da língua inglesa. Quando perdem a batalha contra um alienígena portador de uma arma de destruição em massa, metade do Universo é dissolvido. No filme seguinte, eles se apropriam da arma e restituem boa parte do que foi perdido. O arco dos Vingadores é o arco do destino universal, eis o poderio por eles detido. O desenho dessa importância não é menos megalomaníaco que o monopólio concreto da franquia – ou dos demais filmes da Disney – sobre as exibidoras ao redor do mundo, esmagando cinemas nacionais (situação, no Brasil, agravada pelo governo bolsonarista que destrói o que pode do horizonte de produção cultural brasileira). Em Bacurau, os opostos bom/mau, alienado/alienígena, poder em massa/poder regional são reflexo de e referência a esse contexto.

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            O risco de extermínio iminente e a urgência do contra-ataque é onde se aplica o aprendizado de Deus e o Diabo, pois a narrativa parte de um conflito concreto. Há uma mudança essencial, entretanto, no olhar sobre o misticismo, saldo dos 55 anos de evolução antropo e sociológica que separam os dois filmes, e está em sua função de empoderamento e de parte do paradigma que constitui a representação de mundo. No primeiro plano, como comentado, há uma fusão simultânea do take espacial com um close de Teresa adormecida e um plano de um céu alaranjado – o de Bacurau. Entrar na cidade envolve a entrada numa sorte de transe, traço em diálogo com o trabalho fotográfico de Pedro Sotero no qual os focos de luz dissolvem os traços onde batem com força, e garantem na figuração uma presença do abstrato. Assim que Teresa vê Damiano (Carlos Francisco) em sua chegada, antes de cumprimentá-la, ele a manda abrir a boca e receber um comprimido. Sua boca o recebe em plano detalhe, como uma sorte de hóstia. Mais à frente, descobriremos ser esse comprimido um psicotrópico, dado a todos os residentes – homem, mulher, idoso, criança – antes da batalha final, que será vencida pelos residentes. Bacurau é uma terra mística, e nela o transe não aliena, mas finca em si os pés do povo, garantindo vigor na luta e sua posição de agente da própria história. A transcendência, como a alienação no filme, dualmente isola e empodera.

            Acima de tudo, Bacurau é uma obra do contemporâneo. Como tal, se passa num tempo futuro também indefinido, “daqui a alguns anos…”. O contemporâneo globalizado opera numa sorte de amálgama de tempos e de referências concretas de momentos históricos diversos, em que jovens trajados teen à la 1990 escutam discos sessentistas de vinil enquanto usam celulares touch screen. É nesse tipo de contradição que Bacurau opera, trazendo a secular questão da pobreza a um olhar específico do gênero setentista/oitentista, e fazendo ferramentas de ação tanto de tecnologias recentes quanto de antiguidades. O museu de Bacurau aparece como elemento ignorado (os sudestinos, quando passam pela cidade, não fazem questão de visitá-lo) até o momento do embate, quando um dos assassinos, à procura de vítimas, percebe que uma ala destinada a armas antigas contém apenas os selos nas paredes: os cidadãos estão armados. E aí a história vira instrumento de luta, vira via de sobrevivência; o mesmo tratamento tem a educação, que faz, da escola, uma trincheira durante o tiroteio. Na limpeza do sangue dos inimigos no museu, a responsável manda deixar as manchas nas paredes: “Quero que fique assim, exatamente do jeito que tá.”. Nesse jogo de passado e futuro, o presente vira uma feitura consciente da História.

A noção de amálgama, além do de signos geracionais, se aplica a Bacurau em muitas formas, uma outra principal a de atores, à medida que rostos já conhecidos pelo audiovisual brasileiro e mundial se confundem com os dos nativos da cidade da Barra (RN), onde o filme foi produzido. São feitos closes nos rostos familiares como nos anônimos à indústria, e os planos conjuntos e panorâmicas homogeneízam o elenco: em Bacurau não há protagonista. Faz parte da utopia que o herói seja uma massa coletiva e consciente. Uma massa plural, composta por médica, professor, puta, lavrador, matador, fugitivo. E, na sua história, são todos salvadores.

Bacurau é, em última instância, um filme que não existiria sem Deus e o Diabo na Terra do Sol, nem sem o cinema de gênero estadunidense, e nenhum deles existiria sem a Bíblia. O Apocalipse, no fim das contas, é uma narrativa de crise em torno de uma meta para o mundo, podendo ser tanto um encerramento quanto uma possibilidade. No contexto de lançamento, Bacurau é a prova de que o Brasil ainda é capaz de fazer algo que o brasileiro comum havia esquecido que podia: retomar uma mitologia que seu povo e que o resto do mundo possam venerar.

[1] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 1998, p. 2139.

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Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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