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O que deve o cinema marroquino da década de 1970 filmar?

Por Geo Abreu 

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Um balcão de bar com pelo menos três homens envolvidos numa clássica conversa bêbada, em que alguém recusa um trago e provoca grande desfeita, indo do registro de uma conversa entre amigos à inimizade fortíssima ainda na apresentação do filme. Todo esse movimento filmado à distância, com planos compostos e muito aproximados, envoltos numa névoa de vapor alcoólico e cigarros que compõem também uma escolha formal: um entendimento não muito claro sobre quanto da ação do filme é representação ou cinema verité; convivendo com essa dúvida até que ela deixe de fazer sentido, seguimos  até o final do filme, carregados pela trilha sonora e a construção desse tecido fino que impede uma visão clara dos limites entre verdade e encenação.

Foram pelo menos seis visualizações em dois meses e uma obsessão por About Some Meaningless Events (1974), de Moustafa Derkaoui, que espero exorcizar nesse texto. Ao redor de alguns eventos aparentemente sem sentido, avoluma-se uma série de pequenos conflitos: desde a falta de recursos para o pagamento dos atores até o exercício do flerte entre as poucas mulheres no bar e a equipe de filmagem, que sai às ruas para perguntar que filmes o público marroquino gostaria de ver no cinema.

Moustafa Derkaoui termina o curso de cinema em Lodz, Polônia, e na volta para casa junta uma equipe – que inclui seu irmão – para sair às ruas de Casablanca e investigar o estado geral das coisas. A pergunta sobre que cinema querem os marroquinos parece pura desculpa para a aproximação de tipos interessantes, homens mais velhos com cara de sábios, bêbados, mulheres bonitas. No final das contas, das respostas mais simples às mais elaboradas, o que os interlocutores de Darkaoui querem ver no cinema são episódios da vida dos homens comuns; “filmes históricos que contem a história do nosso país”.

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Escrevo esse texto na semana em que Mangue Bangue, de Neville D’Almeida, e Memórias de um estrangulador de loiras, de Júlio Bressane, ambos feitos no mesmo ano de 1971 e impedidos de circular durante a ditadura militar brasileira, voltam a público num dos mais importantes repositórios de filmes nacionais a disposição do público comum, o site/comunidade Making Off[1]. Na mesma década, no Marrocos, uma equipe de cinema tem seu filme exibido publicamente uma única vez antes de o ver impedido de circular em seu país. Corta para quarenta e cinco anos depois: o filme marroquino volta à público a partir do encontro entre ele e uma pesquisadora num acervo catalão, circula em festivais e mostras especiais e motiva textos surpresos com a força do discurso sobre um cinema nacional, vivo e sagaz, que se põe em relação com a vivência popular da cidade, num contexto de imagens colonizadoras às quais aquele público se via rodeado.

A intenção em pontuar a coincidência no reaparecimento de alguns filmes da mesma década, impedidos de serem exibidos por motivos políticos, é a dimensão de como operam esses regimes de silenciamento de discursos críticos e de uma classe artística que se distancia das representações vinculadas a esse tipo de poder: o impedimento na existência de algumas obras acompanha o desaparecimento físico de centenas (em alguns casos milhares) de pessoas.

Voltando ao filme em si,  a trilha jazzística, elegantemente potente em modular a temperatura das sequências, muitas vezes soa como mais uma camada das conversas que se sobrepõem no ambiente do bar e da rua, compondo uma textura sonora envolvente que nos prepara para a tensão, em especial na cena do assassinato, belamente coreografada e exposta a um ritmo mais lento que lembra muito um prender fôlego diante de algo assustador que se presencia. Depois da apresentação dos personagens e ambientes, a ação se concentra na construção desse conflito entre o estivador e seu chefe, chegando ao ápice da tensão nessa bela cena de luta/dança que muda os caminhos do filme.

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Aqui sai o tom de reencontro com a cidade, seus personagens e ambientes, para um enclave meta referente. A equipe se reune para discutir o caminho do material que tem em mãos: imagens do assassinato de um homem. Quais as implicações em manter aquele episódio na versão final do filme? Uma informação chega até eles: aquela morte tinha um fundo político. Como processar essas imagens diante da complexificação do registro? A sequência dessa discussão me parece tão didática quanto deve ser comum na realidade de produção de filmes em territórios em disputa, cenário próximo de muitas realizadoras brasileiras. Vale a escuta cuidadosa do embate de ideias nesse momento do filme.

Nos aproximamos do final e da sequência da entrevista na cadeia, que eu colaria na parede se pudesse. O que me perturbou ao assistir About Some Meaningless Events foi a construção de um terreno aparentemente leve de abordagem de personagens populares, que reivindicam presença nos filmes de seu tempo e de seu país, e cuja força arrasta esta equipe cinematográfica, jovem e curiosa, até o fundo de questões políticas de natureza muito comum em todos os estratos sociais, a corrupção. As violências explicitadas pelo estivador, que também é artista, nos provoca e convida a rever as próprias escolhas estéticas (ou, pelo menos, deveria). Apesar de toda a auto importância que os cineastas se dão enquanto profissionais capazes de encapsular as memórias do tempo presente, filmar coisas que nunca teremos coragem de fazer, senão em termos fictícios, é o mais alto grau dessa prática?

O que mais pode a equipe de cinema realizar? Todos os filmes são em alguma medida políticos? É possível imprimir leveza na construção de um discurso crítico de base popular em confronto com a violência do cotidiano?

Com muito cuidado e alguma desconfiança no uso da palavra acredito que Darkaoui e sua equipe tenham conseguido realizar um filme popular sobre a classe trabalhadora de Casablanca na década de 1970. Pena que a maioria de seus personagens não o puderam ver na sala de cinema.

[1] Agradeço ao Samuel Lobo pela contextualização e atualização das notícias sobre as raridades do cinema nacional que caem na rede vez por outra e a equipe do Making Off pela inestimada contribuição ao acesso.

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Amores do meu exílio

Por João Pedro Faro

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Guará está à solta. Ele veio de uma terra além-mar, vive em um caixão com banheiro e cozinha, usando uma sunga vermelho-sangue. As ruas de Londres estão silenciosas, como em Drácula (de 31), só que inebriadas pela cor e pela luz, ao invés da névoa e da sombra. O monstro circula livre, sem ameaça ao seu império de terror, sem concorrentes à altura, sem conflitos a serem ultrapassados. Sua rotina é suficiente, pois já se revela proveitosamente inumana. Da mesma forma que Zé Bonitinho foi, ao mesmo, Chacrinha e Vincent Price, Guará também é simultâneo: invoca Peter Lorre e Pedro de Lara.

Guará é um monstro em férias nesse exterior pouco táctil, pouco convidativo à permanência. Na falta de um espaço em que possa fixar-se, é preciso se agarrar ao primeiro pescoço que vê pela frente. Para sua sorte, o que não falta são loiras para estrangular. E não se trata de qualquer distúrbio ou psicose, está mais próximo de uma inaptidão social irreverente, uma intentona comunicativa de métodos pouco convencionais. O que poderíamos esperar de um vilão tão completo além da monstruosidade perfeitamente carismática? É um compêndio de talentos sem reconhecimento popular, apenas tentando se adaptar a um ambiente novo trazendo, em sua bagagem de convivência, a linguagem do estrangulamento.

Sua barba formula o rosto, epicentro vulcânico de toda a fita. Por vezes, confrontamos seus olhinhos nervosos que, ao contrário da câmera, não conseguem manter a concentração em um ponto fixo. As mãos são irmãs dos olhos, não conseguem parar quietas, giram a correntinha que prenuncia o libertador assassinato ou ajeitam as extremidades do bigode para mantê-los desenhados. Então, sendo possível trocar os olhos pelas mãos, é a lente que lhe estrangula: fecha o plano com sua face, na proximidade desejada, e os extremos do rosto sangram pelos lados da tela. Não nos cansamos de retornar ao rosto de Guará, porque ele possibilita todo o resto, torna-se necessário sufocá-lo com a câmera. Em outras palavras, é Bressane quem estrangula o estrangulador.

Bressane está à solta. Sabemos que o exílio não passa de um avacalho, então não há tempo a perder lamentando a terra natal abandonada. Aqui o problema do espaço é a falta de montanhas, de morrinhos, de subidas… Ao invés dos pedregulhos gigantescos que expandiam o teto do quadro para as nuvens, nessa terra estrangeira, Bressane precisa se contentar com o limite dos complexos de apartamentos londrinos. O Brasil são as memórias: Helena babando o sangue preto, Hugo e Milton na sarjeta, as ruazinhas medíocres do Leblon… Fica na tela, por momentos fílmicos em forma de sinapses, a saudade dos amigos que matei.

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Bressane é fixado por gramáticas através de caligrafias tortas. Seu primeiro passo mais parece um recuo: por adorar prólogos, abre o filme com a costumaz entrega das imagens que se sucederão, isoladas da lógica sequencial, atreladas a imprevisibilidade do movimento pendular de sua narrativa. Dizer que não há narrativa em um filme como esse é jogar no lixo um dos operadores mais minuciosos da condução cinematográfica, tão preciso em dispor suas imagens em uma linha de nós emaranhada.

A questão é que, ao invés de colocar a linha que costura os planos através da configuração de uma linearidade, ou de uma não-linearidade, Bressane empuxa o filme para um globo de superfícies possíveis, em diversos ciclos constantes que seguem ordens claras, mas que estão sempre incapazes de começar ou terminar na frente da lente. Não à toa, ele se aproxima do fim de sua duração com um livro de palavras finais ilegíveis, que poderiam surgir como sucintez da obra, mas preferem ser sua inconclusão, sua incompletude elementar. Portanto, o prólogo serve como demonstração do futuro, e o epílogo como apontamento da foz.

A fluência imagética só é completa pela contramão do repertório sonoro. Os gritos animais, que se repetem junto com os sons ambientes dissonantes, puxados para o agudo, se complementam em uma trilha formada por anomalias auditivas. Mas o grande filão, como de costume, é o silêncio: poucas coisas são melhores do que quando não se escuta mais nada e é possível isolar-se totalmente nos estrangulamentos que se amontoam.

O que é engendrado, na costura da montagem, são os lapsos de tempo que operam pela via do prazer. Não tem tempo ruim no exílio: é uma fartura de pescoços para serem esmagados.

As loiras são uma epidemia. Elas ocupam todo canto, surgem de toda beirada, estão embaixo das escadas, ocupando praças públicas, se infiltrando nas casas… É o que torna os olhos tão irritadiços, tão magnetizados por um entorno tão infestado de cabelos amarelos. O magnetismo, elemento bressaniano de praxe, faz com que suas figuras em tela tenham aproximações inevitáveis, eletrizantes. Aqui, são as mãos do Conde Guará que não aguentam a pulsão magnética, precisam dos pescoços, precisam fechar os dedos na nuca loira nem que seja só por um instante. Mas isso está longe de ser um problema para elas.

As loiras buscam ser estranguladas. Apresentadas em sua face materna, ao nanarem um nada inocente neném no começo da fita, dispõem não apenas de uma compreensão maternal de nosso amado assassino, que aproximaria o filme de um páthos indesejável, mas também estão dispostas ao prazer da asfixia, verdadeiramente definidor. São vítimas consensuais, que morrem e revivem apenas para sentir a morte novamente, que não param de circundar o monstro, de tentá-lo aos seus instintos, atraídas pela repulsão. Cumprimentam o estrangeiro exilado com o generoso desfile de pescoços. Exilado num paraíso de amores, o estrangulador não poderia pedir mais. Até ele, em dado momento, chega a se cansar de tamanha oferta de vítimas. Monstruosas essas loiras, que perseguem incessantemente nosso humilde herói, ansiosas pela falta de ar que ele amorosamente as proporciona.

O que há de sobra no assassinato é a vitalidade. Uma espécie de vida eterna conquista pela insaciedade, atingida pelo monstro perfeito, vencedor em suas peripécias românticas. Seu modo de demonstrar a paixão, abandonando os cadáveres pelas praças e calçadas, sempre ocasionam ao retorno. Para matar as mesmas mulheres, para caminhar pelos mesmos lugares, sendo o forasteiro macabro de uma terra de oportunidades riquíssimas… Como aproveitar melhor um exílio europeu do que com uma coleção de paixões assassinadas?

As memórias dessa jornada permanecem perdidas. Mesmo que expostas, elas nunca desejaram serem encontradas, não pertencem à história. São os restos de um passado possível, em um cenário explorado às custas do prazer, que não está disposto à lembrança, apenas à repetição, ao replay (ou refrão), o que é muito diferente. Não se recordam as loiras estranguladas, se repete diariamente o mesmo gesto do estrangulamento, se estrangula de novo, cada vez como se fosse a primeira. Elas continuam a morrer, e ele continua a matar. Se vive o presente através da memória, já que é a única coisa que se resta quando não há mais nada. O estrangulador vive. Na imagem final, já grisalho e caquético, ele não perece, apenas sai de quadro. Escapa do olho. Sua imortalidade está aí, para ser subjugada como memória.

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O pêndulo, a fugitiva

Por Felipe Leal

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Quando um esquema distinto de narrativa nos entrincheira numa zona temporal em que um vértice projetado no futuro é eleito como ponto de retorno de todos os esforços também futuros, criando caracóis diegéticos, é comum que saltemos, também nós, no tempo. Saindo da cronologia cuja direção é “à frente”, desarticulando, em conjunto, para as outras coisas (“coisas” como os sentimentos) o novelo dentro do qual elas são consideradas, semelhantemente, pela durabilidade, ou mesmo pela eternidade, o que essa deformidade temporal que o cinema propicia transfere para as experiências é que, aquelas capazes de “conversão”, duplamente próximas da sensação de “origem”, é a elas que o memorialista de sua própria história deve se dirigir se quiser viver um tempo à guisa de imagens libertas.

Que Pulp Fiction (1994) estoure em surf music após um assalto em chamas interrompidas, dando início ao “verdadeiro” início, só para em seguida devolver Vincent Vega e Jules Winnfield a mais uma odisseia semirreligiosa de retórica e tática, não quer dizer que todos os filmes pós-Tarantino envolvidos com dobraduras temporais são dele devedores explícitos, nem, por um outro lado, que seus antecessores eram gérmens menos elaborados. Compreendidos enquanto máquinas de suas próprias necessidades narrato-lógicas, os filmes passam a ser organismos cujos ciframentos e significações funcionam, aliás, precisamente para evitar o comportamento compulsivo de virar tudo às claras, aproximando a obra do reconhecimento sintético. Isto não porque, desde seus “pós-guerras”, os cinemas tenham se dirigido menos para encadeamentos e mais para desencadeamentos imobilizantes, mas uma vez que tudo aquilo que concerne à memória deve explicitar de que memória está falando – e há memórias que edificam tanto quanto há memórias que, afetuosamente, passam à frente para a edificação de outras.

O que acarreta, então, que no início deste O Sul (1983) uma jovem entenda, receba como que por uma faculdade diferente dos ouvidos uma certeza derradeira e antecipada, tanto em relação a nós, que ainda não conhecemos ninguém, quanto em relação a seus familiares, que desde ali “não ouvem como ela escuta”, sendo talvez esta a primeira “informação” implícita do filme, ao filme? Que ela ouça daquele desaparecimento de seu pai entre latidos, gritos e pássaros, todos os sons refletindo ou buscando aquele mesmo nome, todos os sons sendo signos deste nome ausentado, o desaparecimento definitivo, distinto dos outros, quando também havia o grito, o latido e o pássaro? Ora, dado um caracol, a resposta está no caracol: a chave de seu passado está escondida no pai, e o pai está escondido, está se escondendo, ele sempre se escondeu em seu passado. Jogo artificioso de memória. Jogo, para o “maestro da Espanha” Victor Erice, é a pureza do dispositivo de disputas onde a memória é sempre mais uma natureza de memória.

No que parece ser o mesmo cômodo onde ela “hoje” acorda para receber a anunciação do precipício vibratório de onde o pai não vai retornar, jaz também uma lembrança pré-natal: a postura de um pêndulo acima da barriga da mãe grávida teria determinado seu sexo, fazendo da filha um fruto biológico, mas também dos poderes divinatórios do pai, de quem vai insistir, mesmo que silenciosamente, para “receber” uma iniciação. Estaríamos relembrando o tempo inteiro desse aspecto da memória que a torna uma ilha de edição propriamente cinematográfica. Nada, afinal, aconteceu, para ninguém, de uma forma que possa ser resgatada, nem em totalidade, nem em veracidade. O real, neste caso, é o impossível inventado. E o ponto de vista, um deslumbramento que golpeia as posições, mais do que as filiações ou os nomes, com uma outra impossibilidade, esta a ser tomada quase como sacra: que ela edite e assuma sua invenção do pai, que o memorável seja uma espécie de eterno retorno do preenchimento, nós já entendemos. O que assombra, aqui, é que ela acredite numa transferência extra-física que, devendo ser provada, terá de se lançar em direção ao lado sombreado da memória, o que está sempre em vias de vir e, nunca vindo de todo, não cessa de enviar seus sinais.

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A crença, antes de ser delírio, n’O Sul, é uma postura diante da sobrevivência de uma memória que seja razão-de-memória, que a recorde, assim como a nós, de estar certa, pelo menos, do que não foi aquele que foi. E o pai não podendo morrer inacessível, a menina tentará reproduzir dele os momentos de nudez, transmutando o espectador, como o fizeram Murnau, Bergman, Dreyer, mas também Akerman, Hitchcock e Reichardt, mais num confessionário do que num confessor. Os segredos estando visíveis na medida em que escapam para o território da invisibilização, não podemos testemunhar sobre eles senão dizendo que algo que efetivamente não pôde tomar carne em lugar algum, ali está, denso, maciço como o que tem peso. Semelhante ao efeito de eternidade que detém uma obra como A Felicidade Não se Compra (1946), encontra-se aqui um esforço afetuoso de entregar à vida insustentável uma segunda chance de se fazer no tempo, num cristal, e partir das imagens deste outro. É por isso que o filme de Erice se entrelaça como devidamente tendem a se entrelaçar as memórias nos interiores dos países, lugares de costumes: pelos acontecimentos que os ritos preservam.

Como uma narradora numa idade e num estágio de relação com aqueles indivíduos em que só interessa o “isto-foi”, contando-nos da infância e da juventude o mais contaminada possível com suas brechas, e portanto, criticamente falando, o mais distante de “uma só” identidade que se pode estar, toda ritualística marcadamente feminina de Estrella, se incrustando numa película cujo elemento químico de referência é o nível de entrega do pai àquilo que lhe diziam as mulheres ser “um acontecimento único”, atesta-se nos momentos de maior comunhão ou de maior afastamento com ele. Momentos que serão transbordamentos significadores de uma independência que só separando-se dali, mais do que dele, ela poderia alcançar. Na celebração da sua Primeira Eucaristia, parecendo uma noiva de acordo com as tias, a câmera retorna ao véu, pendurado isoladamente numa cadeira que a tradição aliás ordena ser ocupada pelo pater, depois de deslizar na dança oficial de sacramento com ele. O momento de júbilo da garota, o de ter conquistado o maior sopro de ânimo e dedicação de uma figura dominada pelos estados lacônicos, fica grafado como mais significativo do que qualquer contrato feito postumamente, dentro ou fora da igreja, com outro homem.

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À sua maneira, a fúria que ela esperaria da mãe, outra suposta, senão a maior vítima daquele marido mais dedicado às estrelas de cinema, é frustrada ao ver que essa mulher, preferindo não tocar nas lacunas “da traição” de forma alguma, perde os direitos de participação e de reivindicação de todas as formas. Tudo se desenrola, ou melhor, não se desenrola, como se a mais adulta das duas se satisfizesse com o imaginário sulista dos cartões postais, restringindo o marido a um rolo de caprichos dos quais ela só tem uma imagem distante, enquanto a criança, que é quem os coleciona, ao contrário, persistisse em encontrar o signo além deles. Aquela mãe desenovela um miolo de linhas rubras atiradas ao chão pela filha, como se, incapaz de ser honesta ao menos sobre a existência de alguma mágoa, participasse de um trabalho tolo de sublimação cujos significantes são também demasiado fúteis, e quando a chance de repreender Estrella por ter sumido durante um dia inteiro mais lhe cai nos ombros, o que poderia ter sido uma libertação dos fantasmas da casa acaba invertendo os papéis de vez. Na cena mais emblemática da obra inteira, o coração daquele homem pendurado bate da única forma que soube fazer-se ouvido. A estratégia de comunicação dos emudecidos fica à altura do que ele nunca pôde lhes dizer diretamente. A criança recebe um comunicado via som; a outra, no entanto, o estranha. O cosmos está espatifado.

A superação das lembranças puras em imagens-lembrança, como pouco menos de um século antes teria arranjado Henri Bergson, desencadeia uma mudança tamanha de “estações”, de sazonalidade, para aquela menina e para sua forma-biografia, que os ritos naturalizantes das profecias de amadurecimento feminino não conseguem contemplar, se seguidas ao pé da letra. Em nome de uma “mudança de tom do registro” digna de um diário que se pode cindir, a posteriori, entre duas formas de discurso extremamente distintas, uma coletora, outra unificadora, a radicalidade com que ela passa a ver o pai, sob aquele ponto de mirada cuja inexpressividade aberrante é pura comunicação de um sofrimento de fato superior, fazem dela alguém para quem o gesto mais afetuoso é tomar distância para mapear, quantas vezes for preciso, o melhor jeito de abordar de novo. A pureza de uma ficção, e não é tão diferente assim o que acontece na primeira explosão proposta pela psicanálise, se desmancha num brinco antigo mas muito querido que é preciso fazer “vivo”, justificado mesmo que deslocado no tempo. Para crescer, ela precisa crescer o peso do baixo volume do pai.

Pois assim o é aquele homem, que teme mais os vivos que as figuras da grande tela; ele é alguém que se dá perdido no tempo, que se dá aos poucos. Muito pouco. Só simbolicamente. Alguém que, pouco “dizendo”, dirá melhor de si nos menores registros de som. E preparada para escutar a frequência menor, ela também se mune o suficiente para dar equivalências até onde ele aguentar ser “o” ouvido, até onde se perceber, como seu rito de existência comanda, na persona do culpado. Mas quem é o culpado? Ou melhor: quem é este que cumpre a função, a imagem do culpado? Aquele que tem de se terminar em respostas.

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O porquê de ouvirmos antecipadamente, desde onde está o início-do-filme que ela julga justo, e junto com ela, que nos empresta supra-ouvidos, de um homem que nunca mais voltará, coincide com o preparo, travestido de onisciência, daqueles narradores que sabem que, dentro das possibilidades de um afastamento total da vida como vontade, é preciso embalar e cuidar para que aquele de quem a coisa será separada conviva antecipadamente com outras formas de ausência, como o não-entendimento, como a negação das vontades. Estrella e espectador são, enfim, testemunhas. Em outras palavras: o que a mãe da garotinha não faz, ela materna sozinha, fá-lo confessar sozinha. Quando a tradição não nos é passada, tomamos nós as rédeas do que as coisas estarão vindo a dizer.

 Vendo cada vez mais aumentar o vácuo da figura paterna em direção a um tipo humano que, separado do seu berço sulista por uma briga com o pai (avô que ela não conhece), só pode dever existências seguras às imagens e pessoas do sul da Espanha, a tradição simbólica que o arraiga, essa alteridade do pai (aquele outro que, sendo mistério, lá ficou), toma do campo semântico das manifestações ocultas e divinas o funcionamento de seu maquinário. Estrella une imagens de outras culturas e meios visuais às técnicas também variadas de memorizar, enquanto criança, e com isso reserva para sua primeira figuração dele um tipo heroico, sublime, importante e sobrenatural, mas separado da realidade de seu alcance tanto quanto está esse “deus” de que lhe falam. Seu pai é, então, uma caixa mágica de conteúdos cifrados.

Agora, quando as mudanças auditivas (da última conversa, do pêndulo, dos gritos da mãe e dos criados) lhe inauguram, naquele início de filme que é princípio dos fins de uma individualidade, como que a detenção de uma câmera, o que sua assunção de uma trajetória adulta afirma da vontade de independência alojada na re-articulação de nossas imagens é que “escrever a si mesmo” é rasurar tudo aquilo pelo que somos acusados de “início”: as imagens de outrem. Através de Estrella, assim como através da criança Ana e do Frankenstein “real” d’O Espírito da Colmeia (1973), Erice entrega às crianças e às quimeras incompreensíveis algumas das rebeldias mais tocantes que o cinema se presta a homenagear: a daqueles que inventaram uma língua para dar conta do extremo onde não temos fim, onde somos emperrados, onde somos o signo da vítima. Mas ser refém num limite, ser invadido pelo campo dos grandes outros, a isso se responde inventando um melhor lugar para todos os “si”s.

Ainda que o efeito do corte “inicial” seja o de suspender também nossa consciência de caso, sendo preciso fingir sobre esse não-sumiço para lhe dar sempre boas-vindas, muitos dos episódios da passagem da personagem dentro da vida adulta torcerão a um grau máximo a receptividade a partir da qual “o lado de lá do pai”, o que estaria mais próximo do seu ponto de vista, vira um exercício de perseguição de lacunas que só se realiza aproximando a distância, quão grande ela seja, disso que o cinema mesmo ainda não se desimpediu de fazer: produzir outras cosmologias só visíveis quando o próprio pensamento do cinema se transfere para suportes distintos. No caso em questão, necessitado da pretensa amplitude sociológica das imagens encadeadas menos para ser “verdadeiro” ou “falso”, e mais para esticar os centros de dúvida de onde recomeçam e recomeçam os apegos, as impressões e as pistas de uma profundidade nuclear, o dispositivo de Estrella perceberá o outro núcleo, a outra vida do pai, à “luz” dessa espécie de verve documentarista capaz de violar todas as leis para buscar em seu objeto os últimos resquícios de uma forma-memória.

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No que será uma das conversas cabais entre ambos, ela lhe questionará sobre seu pouco interesse no departamento dos namoros. Ela é, afinal, uma filha autogestada; quer saber por que ele, ao menos, nem que fosse uma só vez, não fingiu querer saber. Ao que ele é capaz de responder: “e eu tenho a culpa, certo?”. Sendo, portanto, a verdadeira resposta uma pergunta desviada: “por quanto tempo serei [só o] culpado, eu que certamente não poderia lhe retribuir senão com culpa, no jogo dos porquês?”. Entendemos, enfim, a primeira imagem, a imagem que só deve configurar nosso “primeiro” estágio: ela nos escapa, e exige que escapemos constantemente de algo um “si mesmo”. Impedida de buscar suas próprias figuras, ameaçada de viver à imagem d’Ele, Estrella escapa então, das imagens colocadas sob sua posse. Vaga até onde não possui nada além de começos. Vai ao Sul. Ser ninguém?

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Androides flutuando no rio de Heráclito

Por Luís Flores

            “Antes, quando alguém tinha um segredo que não queria contar a ninguém, subia até o topo de uma montanha, procurava uma árvore, fazia um buraco e sussurrava o segredo dentro. Depois, tapava com barro. Assim, ninguém o encontraria”. Essas palavras ressoam na abertura de 2046, terceiro filme da trilogia informal de Wong Kar-wai sobre o amor, iniciada com Dias selvagens (1990). Trata-se de um pequeno prólogo sci-fi, no qual a narração over — que situa a história no ano de 2046 — nos informa que “um trem misterioso parte para 2046, periodicamente”. Como se esse significante conjugasse o espaço e o tempo. Vemos imagens digitais, que representam, de maneira onírica, uma metrópole futurista com cores antinaturais, luzes neon e traços esfumaçados, mas cuja arquitetura geral pouco difere da Hong Kong contemporânea ou mesmo moderna (uma cidade qualquer de um tempo indistinto). 2046, cabe apontar, consiste no prazo para a transição de Hong Kong acordado entre Inglaterra e China, sendo portanto um ano limítrofe para os desígnios de autonomia e soberania nacional.

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            A narração, em voz masculina, relata que esse misterioso destino, identificado simplesmente pelo número-título, atrai passageiros que desejam recuperar suas memórias perdidas, “porque nada nunca muda em 2046”. Uma miragem, portanto, ou algum tipo de simulação hipermnésica, eternizada, de uma Morel ou Marienbad futurista. É o que parece sugerir a visualidade dessa sequência inicial, cujas cores e formas já mencionadas são acrescidas de um certo efeito de travamento na imagem, uma condição de atraso, lapso ou lentidão existencial. O narrador nos conta que ele próprio fora o primeiro a sair de 2046, sendo que a história do filme — que começa a seguir, em registro mais realista do que a abertura sci-fi, mas com a fatura aproximada de um maneirismo tardio — estabelecerá uma correspondência alegórica com o preâmbulo, sem nunca ficar claro se é passado ou futuro o tempo que se esvai.

            Acompanhamos os mementos amorosos de Chow (Tony Chiu-Wai Leung), o jornalista e escritor honconguês que escreveu um livro homônimo ao filme, cuja narrativa corresponderá, em certa medida, ao preâmbulo que vimos — mas não de maneira direta ou equivalente. Chow encontra quatro mulheres principais, em idas e vindas: Su Li-zhen (Gong Li), a jogadora que inicialmente parece ser o seu grande amor; Lulu ou Mimi (Carina Lau), antiga amiga do escritor, que é esfaqueada pelo namorado ciumento no quarto 2046 do hotel (e que reaparece como a ginoide de cabelo roxo, no registro da ficção científica); Wang Jing-wen (Faye Wong), a filha do dono do hotel (que reaparece como a ginoide principal, por quem o escritor se apaixona, na cena de ficção científica); e Bai Ling (Ziyi Zhang), a vizinha do quarto 2046, que se apaixona ingenuamente por ele. A única talvez que acredita no amor, com ecos de Ginny Morehead em Some came running, o que a torna também, parafraseando João Bénard, um dos mais bonitos personagens que o cinema alguma vez inventou (ou reinventou).

            A narrativa de 2046 se funda, de fato, em um movimento de retomada e transbordamento do passado, das imagens que restavam guardadas, inexatas, no “buraco da árvore” — metáfora ambivalente para o inconsciente, sobretudo como depósito “arcaico” de experiências perdidas, ultrapassadas ou expropriadas pela cidade neoliberal, essa paisagem sem árvores dominada por letreiros neon, torres de cimento e anúncios publicitários. Tais imagens “subterrâneas”, permito-me esquematizar, são de ordem pessoal ou coletiva, incluída nessa segunda categoria a “memória cinéfila”, por assim dizer, que me remete à Ginny Morehead, de Minneli, mas também a outros filmes, especialmente os do próprio Wong. Por um lado, portanto, vemos fragmentos e lampejos mnêmicos dos personagens, em registros cujo aparente realismo se nutre de uma aura envolvente de estilização: enquadramentos premeditados, músicas over, efeitos visuais como slow motion. Tais efeitos, que já estavam presentes em Dias selvagens e Amor à flor da pele (principalmente), são acentuados em 2046. Por outro lado, portanto, na esfera que nomeei de coletiva, há uma afloração recorrente de imagens do próprio cinema (a começar pelos filmes anteriores da “trilogia”), da qual destacarei dois aspectos indissociáveis. Primeiro, Wong repete procedimentos de encenação e montagem como, por exemplo, a reiteração de detalhes (em Amor…, o encontro na escada da sopa ou o corredor de cortinas vermelhas; em 2046, os pés da ginoide ou o instante em preto-e-branco no carro), produzindo todavia um efeito imersivo maior. Depois, ele organiza um espelhamento intrincado de falas, situações e pessoas, radicalizando a tendência às permutas e interseções narrativas presentes nos outros dois filmes.

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            Junto à rememoração, portanto, há um deslizamento imagético em cachoeiras de sonhos e reflexos, labirintos de artifícios e detalhes interconexos, sempre com a exuberância visual característica do diretor. Por vezes, os planos-sequência constituem verdadeiros tableaux vivants, como já acontecia magistralmente em Amor à flor da pele. Em 2046, porém, a técnica narrativa é levada ao estado da total embriaguez, em sintonia talvez com o próprio personagem de Chow, sempre fumando e bebendo muito (para viver, para esquecer). Entre cortinas vermelhas (cenográficas), escadas, corrimãos, portas, divisórias, vãos, espelhos e brechas, elementos que abrem ou margeiam o campo do visível, consuma-se um teatro movente da paixão. Ficamos literalmente chapados — em meio a imagens sedutoras que carregam, consigo, vidas reais e imaginárias (a um só tempo), turbilhões magnéticos de emoção e desejo. O fluxo cinematográfico revela-se, enfim, um manancial encantatório, induzindo-nos a uma atitude algo primitiva de fascinação e deslumbramento. (Por isso, também, evito levar adiante um paralelo com a psicanálise, preferindo apostar em outro tipo de sopro para essas imagens).

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            Por mais díspares que sejam os registros de sci-fi e os casos amorosos, entre si, constitui-se neles uma afinidade estético-narrativa que a montagem sublinha, seja “costurando” planos e detalhes (especialmente de Wang Jing-wen, o reflexo en abyme do primeiro amor), seja repetindo recursos como as cartelas de elipse. Os eventos esparsos são conduzidos por meio de uma sofisticada rememoração visual, um tipo de sinfonia polifônica que não os encerra discursivamente, mas antes o contrário. Algumas vezes, os encadeamentos adquirem duração prolongada; em outras, são subitamente interrompidos, obstruem-se e alternam-se por saltos, deixam lacunas de atravessamento, pontos abertos de penetração. É significativo, claro, que haja um escritor — em tripla instância, personagem, jornalista/romancista e diretor — atuando para recompor em história os estilhaços de sonho que transcorrem da memória. Mas ele próprio, em suas contínuas derivas do corpo e do desejo, parece reiterar uma condição dupla, algo contraditória: aprisionamento no circuito de eterno retorno das histórias amorosas e busca infinitiva por um ponto de fuga ou plenitude (mesmo que esse ponto seja o jogo donjuanesco da sedução amorosa ou certo êxtase ambíguo).

            A memória, vale dizer, é também o irrecuperável, seja porque o amor não pode ser substituído, seja porque tudo se transforma o tempo todo. “Nada acontece duas vezes / nem acontecerá. Eis nossa sina. / Nascemos sem prática / e morremos sem rotina” (da heraclitiana Wislawa). A memória, além disso, tem seus truques, seus reflexos imprevistos, seus desvios impossíveis, como um jogo de espelhos que nos desorienta ou nos guia, sem que notemos. Lá pelas tantas, descobrimos que o suposto primeiro amor de Chow é uma apostadora profissional, uma rainha das cartas, e, mais ainda, ela é também a imagem duplicada de um primeiro amor, talvez igualmente ilusório (mas o que não é?), de outra mulher com o mesmo nome e o mesmo rosto. (Em Amor à flor da pele, vale lembrar, Su Li-zhen e Chow ensaiavam infinitamente uma paixão ao avesso, que nunca se consumava; enquanto ao final de Dias selvagens, víamos Su Li-zhen sozinha e Tony Leung vestindo-se para sair como jogador profissional. Esse ponto é interessante, pois as correspondências entre os filmes podem ser entendidas menos como sequências do que afluências quânticas, multiversais ou incompossíveis).

            Me agrada pensar a memória como um jogo, sendo que os próprios personagens às vezes fingem lembrar de menos ou de mais, represam ou exageram os mementos que reencenam (em inglês, em francês, o ator é aquele que “joga” um papel: to play ou jouer). Lulu ou Mimi, amante de York em Dias selvagens, afirma não se lembrar de Chow em 2046, de modo que Chow poderia ser entendido como a sobrevivência espectral do amante anterior, do amor primeiro. Mais significativo ainda é quando York e Tide dizem, em Dias selvagens, que não têm boa memória, que não se lembram um do outro, quando na verdade não somente se lembravam, como também se lembravam em demasia. As memórias e as imagens, entidades dotadas de vida, manifestações sensíveis que sobrevivem e se multiplicam à nossa revelia. Em outro sentido, a decisão de ir para Hong Kong ou ficar, em 2046, é tomada por Su Li-zhen a partir de uma disputa de cartas, restituindo ao jogo amoroso certa dose de aleatoriedade — ou será de cálculo, de maquinação invisível? 2046 não é, aliás, um herdeiro de direito de Vertigo ou um primo galante de Blackout e New rose hotel, filmes que se dissolvem no jogo ensandecido da paixão e do desejo?

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            Todavia, a memória é ainda aquilo que se apaga tão logo se guarda, como o segredo que, selado no tronco da árvore, se perde no fundo de nós; como a fumaça que fica diante das mãos, depois que o amor se foi (“chama, e, depois, fumaça”, escreveu Bandeira; impossível não pensar na névoa que sobe do cigarro, em Amor à flor da pele e 2046). Um momento que, congelado (isso é memória), também pode paralisar, sendo emblemáticos os planos de Chow e Su, cada um a seu turno, imóveis no corredor de cortinas vermelhas que leva ao quarto 2046 — cuja simbologia já se insinuava em Amor à flor da pele — ou o plano de Chow fumando no terraço do hotel, sozinho, em uma imagem estática cujo único movimento é o zoom out que termina no rosto de Wang, virando-se para a câmera, em uma rede intertemporal de olhares que ultrapassa o escopo convencional do que chamamos de “cena”. A memória, enfim, é o que submerge, naufraga ou desaparece, seja na defasagem de um inconsciente pessoal, seja no dinamismo da paisagem cambiável (ou cinematográfica), falsamente coletiva, num mundo marcado pela gentrificação, pelo globalismo, pela transitoriedade. (Se em Amor à flor da pele chovia frequentemente, a falta de chuva em 2046 é sinal de que já se está afundado na água ou pelo menos à deriva).

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            É crucial que o enredo sci-fi seja sobre um homem japonês (um híbrido entre Chow e o namorado de Wang Jing-wen), que se apaixona por uma ginoide cujos sentimentos estão retardados graças ao seu estado de exaustão. Dialética, portanto, entre a hipervelocidade do mundo exterior, que penetra também nos impulsos anímicos, e a inadequação do sujeito-máquina em seus processos internos que emanam para fora. Poucas vezes, aliás, os créditos finais de um filme foram tão significativos para resumir e expandir uma ideia subliminar: os nomes que surgem e desaparecem junto aos prédios, em um protótipo de Hong Kong digitalizado; trechos sonoros de rádio ou tevê, com notícias que se referem ao processo de modernização do país e ao “progresso”.

            2046 é uma elaboração pujante das condições do sujeito contemporâneo e de sua existência sensível, amalgamada de imagens e experiências que escapam, frequentemente, ao manejo direto do vivente. Desprendidas entre a memória e o sonho, proliferadas na paisagem desbotada do pós-capitalismo, com seus mecanismos infinitivos de lembrança e esquecimento, as vidas abstratas de 2046 padecem de um “sonhar acordado”, de um “retorno eterno” que nunca cessa de recomeçar. Multiplicam-se em singularidades ilusórias (os mesmos planos, os mesmos gestos, os mesmos anseios), que reafirmam no fundo a máquina abstrata de repetição do mundo, reino de fantasmas e androides, de lembranças e quimeras: como o cinema, aliás.

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O que jaz fosforescente dentro da casca carbonizada

por Lucas Saturnino

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Diz uma lenda do Talmude que, ao nascer, a criança carrega uma vela sobre a cabeça como símbolo de conhecimento ilimitado. No momento de seu nascimento, um anjo apaga a vela e a criança esquece tudo. Durante o caminho de sua vida, ela deve aprender a se lembrar daquilo que havia esquecido.

(Born in Evin, Maryam Zaree)

As lacunas são elementos estruturantes da história de todo cinema nacional. No que pode soar uma proposição paradoxal, o que existe fica mais nítido em face do que não. Como se a cinematografia a que podemos assistir no presente momento fosse composta por fragmentos de uma potência criativa que nunca terá se consumado em sua totalidade e sobre a qual esses vestígios nos estimulam a imaginar. A incompletude intrínseca à produção artística vista como reflexo representativo de uma comunidade nacional não desmerece os frutos concretos da realidade, pelo contrário: valorizam-nos, uma vez que colocam a materialidade em perspectiva frente à possibilidade do desaparecimento. Se uma nação é uma comunidade imaginada, a sua invenção oficial também se dá por meio de silenciamentos seletivos, apagamentos estratégicos e da coação ao contraditório. O caso iraniano é emblemático: do xá aos aiatolás, a censura jamais deixou de existir.

Em seu monumental estudo A Social History of Iranian Cinema (2011/12), Hamid Naficy escreve que o cinema no Irã serviu como metáfora e corporificação para a modernidade em um território de lutas perpétuas, ferozes e desiguais — político-ideológicas e além. Por modernidade, entende-se, em síntese, ocidentalização, racionalização, deslocamento de diversas ordens, intensificação sensorial, mutabilidade sociocultural e quebra de tradições — isto é, uma travessia traumática. O autor resgata a afirmação de Miriam Bratu Hansen de que o cinema seria o mais significativo “horizonte cultural no qual os efeitos traumáticos da modernidade foram refletidos, rejeitados ou renegados, transmutados e negociados”. E Naficy completa: “A política da modernidade iraniana sempre envolveu a política da percepção fílmica, da representação e da contrarrepresentação”[1].

No decurso da revolução de 1978/9, as salas de cinema sofreram o mesmo destino de outros estabelecimentos associados às perversões do imperialismo ocidental como bancos e lojas de bebidas alcoólicas, tornando-se alvos da fúria antissistema na condição de símbolos da decadência cultural e espiritual do regime do xá, de modo que mais de um terço dos cinemas iranianos teria sido destruído no período. O processo de “limpeza” pós-revolucionária também motivou a eliminação de inúmeras cópias e negativos de filmes (ficção e documentário) considerados imorais ou apologéticos à monarquia.

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O caso mais atroz ocorreu em Abadan — uma cidade com cerca de 300 mil habitantes, situada na fronteira com o Iraque, onde a Anglo-Persian Oil Company (antepassada da contemporânea BP) inaugurara uma das maiores refinarias de petróleo do planeta em 1912, e que na década de 1950 viria a ser central nas disputas referentes aos esforços de nacionalização do petróleo por parte do governo do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, deposto em um golpe orquestrado pela CIA em 19 de agosto de 1953. Foram os britânicos os primeiros a trazer o cinema para Abadan: na primeira década do século XX, quando a exploração do petróleo na região ainda se encontrava nos primórdios, uma unidade de cinema móvel teria passado pelo local — numa prática de propaganda que futuramente seria adotada pelo Empire Marketing Board e pelo British Council.

No 25º aniversário do golpe, na noite de 19 de agosto de 1978, quatro homens atearam fogo com gasolina ao Cinema Rex, descrito como uma sala de segunda na parte pobre de Abadan, durante uma sessão de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974), matando cerca de 400 pessoas, no que se estima ter sido o segundo maior atentado terrorista do século XX não perpetrado por atores estatais em número de vítimas. Os funerais se converteram em protestos sob o cântico de clamores revolucionários e ao evento é usualmente atribuída uma importância fulcral para convulsionar de vez a revolta popular que culminaria com a deposição do regime monárquico.

O governo do xá culpou os islamistas e os islamistas culparam o governo do xá. Em todo o caso, “os grupos de oposição […] incitaram claramente a destruição dos cinemas […] ou se referiram a tais ações em termos de júbilo e aprovação” e “testemunhos e documentos compilados após a queda do xá também estabelecem uma ligação clara entre os incendiários e líderes clericais anti-xá”, escreve Naficy, que compara o caso ao assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy no tocante ao acúmulo de perguntas não-respondidas e obscurecidas por sucessivas investigações problemáticas.

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Dos quatro supostos incendiários, apenas um foi julgado e condenado à morte em 1980. Em depoimento no tribunal, ele confessou a sua participação no crime, que teria cometido com o objetivo de inflamar a população contra o regime, se declarando um ex-viciado em heroína (precisamente a temática abordada em The Deer) que largara o tráfico e as drogas após ingressar em um grupo de estudos islâmicos, abraçar a religião e subsequentemente aderir aos protestos revolucionários. Contudo, lhe foi negado o direito à defesa profissional e nenhuma das testemunhas ou colaboradores apontados pelo réu foram chamados a depor, o que Naficy entende como uma forma de evitar a qualquer custo expor o potencial envolvimento de figuras religiosas no atentado.

Ao menos dois dos três incendiários restantes morreram no incêndio e é possível que o terceiro, desaparecido, tenha escapado caso também não tenha morrido no local. Outras cinco pessoas foram executadas (incluindo o dono e o gerente do cinema, acusados de cumplicidade) e muitas mais presas em um julgamento envolto em grande controvérsia. Ironicamente, as sessões da corte islâmica em Abadan tiveram lugar no cinema Taj (hoje Naft — ou “petróleo”), um imponente edifício em art déco onde os funcionários da antiga petrolífera britânica outrora podiam assistir aos filmes exibidos em sua língua materna, sem a presença de iranianos, que de início estiveram proibidos de frequentá-lo.

II.

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Inspirado pelo atentado ao cinema Rex é o filme Careless Crime (Jenayat-e bi deghat, 2020), dirigido por Shahram Mokri, que se utiliza dos fatos conhecidos para compor uma ficção metalinguística, flertando com o realismo mágico, como se fantasiasse: era uma vez o cinema que aqui jaz obstinadamente reenfeitiçando a própria sorte…

Em cenas orientadas esteticamente pela efervescência de uma percepção perturbada, quatros homens suspensos no tempo planejam incendiar um cinema, que pode ser o malfadado Rex ou o agouro de uma repetição contemporânea da tragédia. Noutra linha narrativa, enigmaticamente simultânea e assincrônica à primeira, em registro mais dado ao realismo cotidiano se representa a organização e realização de uma sessão de cinema numa espécie de instituição cultural, vista a partir de diferentes núcleos de personagens que vão se cruzando até o clímax, quando as duas cronologias confluem. Ainda há uma terceira, inclinada ao artifício: o filme dentro do filme (também chamado Careless Crime, também assinado por Mokri), sobre um míssil que caiu e não explodiu no interior do país, onde duas mulheres preparam uma projeção (ritual?) ao ar livre de The Deer.

Careless Crime é um filme obcecado com a ritualística da sala de cinema e, por consequência, com suas fraturas, as quais adquirem ressonâncias para muito além do seu contexto original em razão da pandemia global do coronavírus e do quão condenado pode parecer toda essa representação das “preliminares” de uma sessão de cinema enquanto experiência coletiva na data em que escrevo (março/abril de 2021). A aura fantasmática do cerimonial se duplica: a sala de cinema sendo não só espaço físico de crise simbólica da identidade nacional como também espaço simbólico de crise material da modernidade cinematográfica que havia desestabilizado aquela identidade antes do mais.

Na aparente transição temporal que separa as tentativas dos incendiários, podemos observar a experiência da espectatorialidade cinematográfica sofrendo uma indiscutível conversão ao migrar dos estabelecimentos de rua e circuito para os museus, cinematecas e demais instituições culturais. Na grande sala em torno da qual gravita a ação, o cinema iraniano encontra-se entre o ânimo continuador da juventude e a deferência museológica simbolizada pelos abundantes cartazes de obras clássicas, que já não convidam a assistir sua programação, mas estampam a magnitude de um determinado patrimônio artístico.

Os filmes de Mokri, cujo interesse por circuitos e circularidades alude a prismas estéticos e filosóficos, são experimentos que buscam nivelar a representação ao real convencional como método de desestabilizá-los mutuamente, aspirando à energia vital que nasce do encontro entre a formalização estrutural e o risco de sua incongruência. Em Fish & Cat (Mahi va gorbeh, 2013), a técnica do single take é manipulada com o propósito quase paradoxal de ratificar o tempo do relógio, igualando-o ao da ação fílmica, para assim então colocar esse tempo do relógio em xeque. Já no distópico Invasion (Hojoom, 2017), a reconstituição de um crime maniacamente subordinada à fidedignidade dos fatos descamba na convulsão do cognoscível, que se turva entre a mimesis e a reduplicação.

Em Careless Crime, mantém-se a concepção da expressão cinematográfica como coexistência (maníaca, convulsiva, disruptiva) do sistema com o ruído; e retornam, com variações, as referidas questões trabalhadas nos filmes anteriores: a perspectiva de um fechamento que acaba se baralhando entre a mimesis e a reduplicação do golpe original, além do distúrbio no tempo do calendário como sintoma dessa inconclusão traumática.

Assim, a narrativa assincrônica interpela o fenômeno da modernidade descontínua (em termos de tempo e espaço, contrato social e identidade, razão e causalidade), vivenciada pelo sujeito histórico (individual e coletivo) como convulsão vertiginosa. Vão se acumulando no presente as sequelas de temporalidades que não cessam de o preceder, consoante a compreensão de que o tornar-se é a ação de continuar tornando-se (sujeito, nação etc.). Em se tratando de escopo, Mokri vê no fragmentário um meio de acessar o holístico. De qualquer forma, se Careless Crime é capaz de nos envolver no experimento, isso se deve ao modo como articula em seu âmago o fascínio primordial do enigma.

O eixo é o trauma e o trauma é o marco fundador da cultura cinematográfica purificada em chamas, entre outros expurgos recalcados no processo de exploração do espaço de mobilidade da República Islâmica. Nesse quadro, a ritualização da memória ferida não desconsidera o choque das expectativas terapêuticas que possam existir no ímpeto por detrás do gesto com as manifestações inconstantes de um distúrbio autorreflexivo — “esta rebelião contínua a que chamamos de dramaturgia”, como diz Nasim Ahmadpour, a roteirista de Careless Crime[2] —, dando origem à catarse, se tanto, mediada pela própria inconclusão.

O respiro encantatório fica por conta do filme dentro do filme, onde a memória do cinema iraniano consegue ser projetada em uma idílica nascente sem que haja a interferência de quaisquer reflexos na tela, como notam incrédulos os personagens, enquanto a harmonia do ambiente magicamente desimpedido os congrega em comunhão, olhares convergindo tal e qual é condição sine qua non do utópico, por mais efêmero que seja. E se as bruxas fossem cineclubistas? E se elas zanzassem por aí disseminando a dádiva dos olhos livres como missão e bruxedo? O feitiço das projecionistas é justamente dar a ver — no passado, esse lugar suspeito, raiz de toda melancolia, desfavorecido pelos seus tantos pecados desvelados — o que jaz de fosforescente dentro da casca carbonizada.

III.

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O incêndio do cinema Rex também é evocado no início de outra obra recém-lançada sobre a história do cinema iraniano: Filmfarsi, de Ehsan Khoshbakht (2019), um melancólico filme-ensaio sobre a cinematografia do período pré-revolucionário, imerso na angústia diante da iminência de um duplo perecimento: o oblívio social e a obliteração material — ambos politicamente induzidos pelo atual regime iraniano, receoso quanto à circulação de imagens e significantes não produzidos sob o seu domínio, explica Khoshbakht (que, além de cineasta e escritor, é codiretor do festival Il Cinema Ritrovato, em Bologna).

Filmfarsi conduz o público em uma viagem pelo purgatório das imagens em desuso como quem nos convida a gozar do que ainda arrisca ser a derradeira orgia dos mortos-vivos às vésperas do desmemoriamento enfim irreversível, reunindo imagens cuja sobrevivência dependeria da circulação de fitas VHS e rips derivados, esses vetores miraculosos de uma existência desfigurada, transmissores do próprio conteúdo no limite do esfacelamento.

A primeira imagem de Filmfarsi é a de uma mulher com véu, coberta pelo xador (a veste chegou a ser proibida pela monarquia Pahlavi como medida de modernização forçada e após a revolução islâmica tornou-se obrigatória para uso feminino em público). Ela está perceptivelmente transtornada, ocupando a posição de testemunha em um tribunal, onde, acuada pelos microfones, jura sobre o livro sagrado. O julgamento é o da tragédia do Rex.

Na sequência, Khoshbakht traça um paralelo entre o velamento compulsório das mulheres iranianas e a manipulação da história nacional, a ofensiva contra um passado (in)comum por meio da oclusão de uma herança cultural indesejada — o cinema varrido para baixo dos panos como indigno da esfera pública, dito degenerado e corruptor. “Os cinemas se transformaram em valas comuns [para o enterro] da consciência coletiva”, proclama ele, enquanto a visão das numerosas salas incineradas preenche a tela.

Khoshbakht afirma que todos os filmes incluídos na montagem se encontram proibidos no Irã e explica que sua geração só os pode descobrir através de fitas VHS ilegais — daí ter denominado Filmfarsi de obra em “VHSscope”, colagem confeccionada com base na textura inconfundível do videoteipe de resistência (pois difunde ao passo que, bem longe do público, o passado vai se desintegrando em latas de película enferrujadas).

Cunhado pelo crítico Amir Houshang Kavousi, o termo “filmfarsi” se refere ao cinema popular iraniano produzido entre os anos 1950 e a revolução de 1979. Segundo Kavousi, o filmfarsi era fundamentado em um mashup de diversos cinemas populares estrangeiros até que disso fosse produzido algo que passasse a ilusão de ser singularmente iraniano — em certo sentido uma concepção próxima à de antropofagia cultural. Além do mais, o conceito propõe que o filmfarsi seria um simulacro zombeteiro de “cinema nacional” ao invés de sê-lo propriamente, pois o modo de produção mambembe característico da época deixaria a dever seja em matéria de “cinema” ou em sua contraparte “nacional” — como se no resultado estivesse sempre patente a “precariedade” e o “fora do lugar”.

Khoshbakht busca reivindicar as plateias descontinuadas tanto quanto os próprios filmes, enquadrados em seu contexto (social e emocional) de relação com o público: o choro, o riso, as reações extremadas da psique de um coletivo esquizofrênico. Ele observa que os futuros revolucionários também terão sido espectadores daquele cinema. Então “como puderam se enfurecer contra a imagem que eles haviam criado para si mesmos?”.

Os filmfarsi desagradavam o regime e as cabeças pensantes de ambos os lados da oposição, dividida entre religião e modernidade, na medida em que, funcionando como espelho, expunham a esquizofrenia do país a olhos vistos, alienando o público da imagem oficial de nação que o xá desejava passar e também afrontando os projetos concorrentes de seus críticos, fossem religiosos ou modernizantes. Essas disputas se faziam presentes, por exemplo, na representação do corpo feminino: para além da clássica dicotomia entre a mãe e a puta, surgiu nos filmes a figura bipolar da mulher que trajava o véu e a minissaia em simultâneo, combinando finalidades contraditórias no mesmíssimo look.

O lamento é direcionado a um cinema popular interrompido, reprimido, enterrado vivo. À parte a relação sentimental com o VHS de um lado e a questão do olhar orientalista de outro, a dinâmica de Filmfarsi se assemelha a Once Upon a Time in Beirut (Kanya Ya Ma Kan, Beyrouth, Jocelyne Saab, 1995): à sombra dos 15 anos de guerra civil libanesa, duas garotas de 20 anos encontram um tal de Mr. Farouk, guardião de películas como tesouros, que lhes (re)apresenta Beirute — cidade que elas só conheceram devastada — através do cinema, onde bruxuleante a memória do que foi perdido mantém-se palpável.

A melancolia intrínseca ao cinema: tirar companhia de onde só há fantasmas. Khoshbakht lamenta que sua atriz favorita (Irene Zazians, ou Iren, falecida em 2012) tenha sido banida pela revolução e então a traz de volta, em espectro, para um último close-up. Às telas, ela só havia retornado uma única vez: em Shirin, de Abbas Kiarostami (2008), no qual uma centena de atrizes são filmadas assistindo à representação de um antigo poema persa que o espectador nunca vê — vê-se só as reações dos rostos delas: olhares, emoções etc.

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Khoshbakht nota em tom jocoso que embora o país tivesse uma das mais ricas literaturas sobre o amor, teria sido incapaz de representá-lo nos filmfarsi. Os olhos de quem os viam, porém, é que nunca deixaram de estar lá, preenchendo essas e outras lacunas.

IV.

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Maryam Zaree é uma atriz alemã que nasceu na prisão de Evin, em Teerã, designada aos presos políticos do regime iraniano, onde seus pais, então jovens militantes de esquerda, estiveram detidos devido ao engajamento político. A mãe de Zaree foi presa já grávida da filha, que nasceria no encarceramento em julho de 1983. Dois anos e meio depois, as duas obtiveram a liberdade e rumaram ao asilo político na Alemanha. O pai só seria libertado em meados dos anos 1990 e também buscaria refúgio no mesmo país. O que se passou na prisão, como foram seus primeiros anos, ela não sabe, não lembra, nunca lhe contaram.

Born in Evin (2019) é o primeiro filme dirigido por Zaree (conhecida pelo trabalho como atriz em Transit e Undine, de Christian Petzold, além da série 4 Blocks) e se fundamenta na busca por descortinar o não-dito acerca do que terá significado nascer na prisão, algo que os pais dela jamais quiseram ou se importaram em esclarecê-la. Zaree também faz uso do vídeo para exibir imagens limadas da consciência coletiva iraniana, deixando-nos espiar os vídeos caseiros de uma família feliz diferente das outras — formada por um pai preso, uma mãe exilada e uma filhinha que não está entendendo quase nada.

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A dinâmica é simples e livre de dispositivos: acompanhamos Zaree de conversa em conversa, intercalando o afetuoso e o truncado. Se há um centro gravitacional no filme, são as expressões — reações — faciais dela. A rigor, os seus interlocutores nunca lhe fazem grandes revelações — não há clímax à nível de novas informações sobre o passado. Até pode-se achar que os mais velhos estão enrolando-a — é o que as pessoas fazem, pois, quando não veem sentido na abordagem frontal de uma determinada questão, seja lá por qual motivo. Além do que, as respostas convenientes ao processo de narrativização dos problemas muitas vezes simplesmente não existem — restando, abissais, as lacunas.

As lacunas são formativas, confundem-se com o que tomamos por realidade manifesta. O encoberto, por sua vez, não costuma reemergir na forma de discurso clarificante. É elusivo e impreciso, revelando-se nas entrelinhas do diálogo, nas maneiras de enunciação, nas digressões da convivência, nos limites da transparência, na linguagem corporal. A câmera (em belíssimo trabalho de Siri Klug) se detém no cicatrizado ao invés de ficar só sondando o lancinante, como seria usual em iniciativas similares, e a atenção do olhar à riqueza das expressões faciais que vão se acumulando no percurso é extraordinária.

O comovente é a delicadeza dos rostos roubados à morte. Quase todas as pessoas em Born in Evin, praticamente sem exceção, só não estão mortas por detalhes — dos que já tiveram a vida no fio da navalha aos que poderiam nem sequer ter nascido. E, entretanto, ali estão. A fisicalidade dos sobreviventes retratados é a fonte humanista da beleza que transborda graciosa, imponente e encantadora. Trata-se de uma política de contrarrepresentação.

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Zaree se vê na necessidade de inventar uma nova gramática para endereçar sua história. A iraniana lhe é estrangeira, além de uma impossibilidade prática — nenhuma imagem é autorizada aos derrotados, de forma que eles deixem de existir na consciência coletiva do país. Quanto à alemã, só lhe resta fazer chacota com o trabalho de atriz “étnica” na Europa. Logo no início, ela se representa vestindo um longo véu islâmico — como se estivesse se preparando para uma filmagem, que, caso não seja real, poderia ser — e diz: “A geração dos nossos pais não fugiu do Irã para que os filhos tivessem que interpretar estereótipos racistas nos mais estupidamente nonsenses dramas televisivos alemães”.

A princípio, ela tenta fazer isso através de uma chave performática, só que as ideias nem sempre funcionam. Ao final, não se inventa nada e a questão da performance deixa de ser central conforme vamos assistindo Zaree submergir em seu íntimo. A câmera operando como sismógrafo que mensura a permanência sinuosa do trauma em cada face filmada — à exemplo do choro preso que se converte em lágrima irrefreavelmente derramada.

Já é um clichê afirmar que tal filme é “sobre trauma” e decerto hoje existem demandas (comerciais e políticas) para que essas narrativas sobre trauma sejam produzidas, em massa, nas artes, tornando natural a suspeita em relação a estetização cosmeticamente terapêutica da matéria, sem nem entrar no mérito de iniciativas mais condenáveis.

O caso de Born in Evin é curioso: Zaree não teria crescido com a plena consciência dolorosa do trauma e parte do ímpeto por trás da realização do filme até parece se originar de certa culpa internalizada em relação ao próprio esquecimento, que, embora a tenha protegido, não poupou mais ninguém. Para além da ausência do pai em parte da infância, ela conta que só adulta descobriu uma memória traumática incrustada (inconsciente) dentro de si: no Marrocos, teve um ataque de pânico causado pela declamação de versículos religiosos no sistema de som de um ônibus; mais tarde, o seu pai lhe explicou que a reprodução ininterrupta de versículos religiosos era um dos métodos de tortura aplicados em Evin.

A questão pode não ser tanto descobrir a verdade quanto finalmente encontrar o seu preço. A moral, então, aqui, passa a ser sofrer juntos uma dor que é ou deveria ser coletiva — como consciência essencial à faculdade de sentir. O filme é uma carta de amor (dela aos pais) e, como tal, procura dar forma às coisas para avivar o mais difícil de expressar.

V.

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À 00:20 de 14 de novembro de 2020, foi dado o upload: uma cópia da versão restaurada de The Deer (Gavaznha, Masud Kimiai, 1974) apareceu em um célebre fórum de tracker privado para compartilhamento de filmes. Aos familiarizados com as condições prévias de disponibilidade de The Deer, era como um milagre: a qualidade da imagem cristalina, 1080p, AR apropriado, duração completa, final original, sem cortes. A restauração foi produzida com base na telecinagem de uma versão em película quase completa do filme, conquanto duas breves cenas só tenham podido ser recuperadas das fitas VHS.

O filme tinha aparecido ali pela primeira vez em agosto de 2013: a versão censurada, sem legendas, qualidade horrorosa de som e imagem, proveniente de um DVD iraniano ao que tudo indica ilegal. Os esforços de legendagem para o inglês começaram um ano depois. Alguém, nesse meio-tempo, encontrou um corte mais longo no YouTube (2h vs. 1h42) — é o único upload do perfil, um CAMrip, datado de 03/02/2013 (em abril de 2021, conta 474 mil views). Porém, um dos falantes de persa do fórum advertiu que o áudio dessa versão estava fortemente editado, censurado. Levantou-se, então, a possibilidade de que fosse customizada uma montagem amalgamada a partir das duas cópias.

O corte censurado ressurgiu com melhor qualidade após um usuário comprar outro DVD bootleg em meados de 2015. Naquele setembro, a primeira versão das legendas em inglês foi concluída — e revisões foram sendo feitas nos anos seguintes. O corte original apareceu assistível pela primeira vez em abril de 2016. Já em agosto de 2020 foi encontrada uma cópia colorizada em um grupo de Telegram, novo método de compartilhamento de arquivos no Irã (nos comentários, linkou-se uma notícia sobre estudantes que teriam desenvolvido um software, baseado em inteligência artificial, de coloração de imagens).

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The Deer é o tipo de coisa que não interessa a ninguém que deseja cultivar uma imagem de nação. Trata-se de um melodrama masculino cujo foco é o reencontro de dois amigos de infância desfigurados pela passagem do tempo no cenário imundo de uma sociedade corrupta, repressiva e letárgica, onde o fracasso é nacional, geracional e generalizado. De um lado, o viciado em heroína que inspira asco em todos à sua volta; do outro, o assaltante de bancos que, escondido da polícia, assiste impotente à vida passar na janela (codificado de forma a remeter a um guerrilheiro de esquerda, dado inexplícito devido à censura).

The Deer é um ponto de conexão entre o filmfarsi e o cinema novo de Mehrjui, Beizai e companhia. Os créditos iniciais foram criados por Kiarostami e consistem na justaposição de arames farpados e sementes de dente-de-leão, acentuando no plano-detalhe o contraste entre a beleza e a feiura, a degeneração e a inocência, como observa Naficy. A desolação também se sobressai por efeito da alternância entre close-ups e planos gerais, à medida que, seja na distância ou na intimidade, já não se distingue esperança nas perspectivas.

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No papel do toxicômano arruinado, a performance de Behrouz Vossoughi é brilhante, tão impactante que a repressão estatal o elegeu como o principal responsável por aquela desmoralização. Além das sessões de interrogatório e ameaças de morte, o filme já lhe havia rendido, antes, o prêmio de melhor ator no festival de Teerã, entregue pela Imperatriz Farah em pessoa. Vossoughi, grande estrela popular no período, até hoje vive no exílio.

“Nós sabemos que essas coisas acontecem no país, mas não é necessário representá-las no cinema!”, teria reagido indignada a irmã do xá, Ashraf Pahlavi, ao assisti-lo. The Deer foi severamente mutilado pela ação da censura e o final modificado para atenuar a brutalidade policial. Após mais de um ano bloqueado na censura, ele estrearia apenas em janeiro de 1976, tornando-se um fenômeno de público e sendo exibido continuamente até o fatídico incêndio do Rex. Poucas semanas depois do atentado, na chamada “sexta-feira negra” de setembro de 1978, o exército do xá abriria fogo contra manifestantes reunidos em frente ao Cinema Nahid, em Teerã, onde The Deer ainda se encontrava em cartaz.

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Como os filmes que viriam a ser banidos após a revolução sobreviveram? Uma vez que o poder ainda não havia sido centralizado por completo durante os dois primeiros anos da República Islâmica, algum espaço de manobra persistiu brevemente no meio da confusão transicional. Assim foi possível que à época um certo alguém anônimo percorresse os estúdios, telecinando o material em 35mm e criando cópias disso em vídeo. As fitas então passaram a ser vendidas junto à crescente diáspora iraniana na Califórnia, pois o home video demoraria a se popularizar no Irã — e posteriormente seriam através desses mesmos bootlegs, diz Khoshbakht, que os filmes retornariam ao seu país de origem[3].

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Para Khoshbakht, os filmfarsi são caracterizados pela tensão — tensão que está presente nas narrativas e na estética; repercute na produção e na exibição; atravessa a técnica e a cultura; reporta-se aos artistas, aos personagens e aos espectadores. Naficy faz diversas alusões a espelhos: ao cinema que fabrica e reflete as imagens distorcidas da identidade nacional, em crise mediante as perturbações de reflexos afrontando espelhos. Nas cópias clandestinas, essas tensões e distorções são também literais em face da precariedade da imagem. E assim a visão de cada versão desfigurada de The Deer acaba se firmando como monumentalização momentânea em homenagem às ruínas insurgentes daquela cultura cinematográfica desmemoriada.

Questionado sobre o enigmático título de The Deer, Kimiai cita uma memória dos tempos de escola: um professor seu dizia que “os cervos têm pernas feias e lindos chifres, mas o que os salva do perigo é a sua velocidade, e isso graças às pernas disformes e esqueléticas, enquanto o que os enrasca são logo seus longos e formosos chifres”.

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[1] As referências da primeira seção se encontram em “A Social History of Iranian Cinema”, de Hamid Naficy (Duke University Press, 2011/12). As da última seção, no tocante a “The Deer”, também. Sobre modernidade, ver o volume 1. Sobre “The Deer”, volume 2. Sobre o incêndio do cinema Rex, volume 3.

[2] http://www.iranart.news/Section-cinema-4/11055-nasim-ahmadpour-playing-with-literature-and-dramaturgy

[3]  https://soundcloud.com/user-596073675/24-filmfarsi-the-deer-with-ehsan-khoshbakht

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Editorial: cinema e memória

“O presente é o instante em que o futuro desmorona no passado”
– citação incerta de suposto verso de Browning por Susan Sontag,
em carta memorial a Jorge Luis Borges

Por João Lucas Pedrosa

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Não é um debate simples, o da memória na contemporaneidade. Recheadas de gerações póstumas – pós-moderna, pós-cinemática, pós-verdade, no caso latino americano pós-(quantos)golpe(s) -, as últimas quatro décadas parecem ter sido tomadas pelo espírito de fim de festa da razão, que festeja apenas para espantar (ou celebrar) a iminência do fim do mundo (em voz passiva, pulsão de morte). Talvez o fim da pandemia possa trazer o deslocamento perceptivo necessário para fazer enfim surgir o pós-apocalipse e, daí, ressurgir dos escombros o espírito da gênese (em voz ativa, pulsão de vida).

É pensando na gênese que vem a proposta do tema desta edição da Multiplot!. Na expressão da memória como ação. Henri Bergson via o corpo humano “como uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro”[1]. Enquanto tal, é inevitavelmente ligado ao passado, este que influencia cada movimento seu e expira na consumação de cada ação. Eis que há o cinema como ambos ação e registro da ação, o revirar da duração. Onde entra a arte que restitui a corrente da ação passada no presente, e que tumula, além dos mortos, suas cadências? Além dos corpos, seus espíritos de tempo? Além das matérias – ou sequer elas -, as suas virtualidades?

Nisso há muito: a tensão das percepções humanas de temporalidade (as obras de Alain Resnais e Chris Marker nos anos 1960); as contradições historiográficas feitas cinema (os filmes de Carlos Adriano, Congo de Arthur Omar, Center Stage de Stanley Kwan); o retorno ao passado como autópsia de um trauma histórico (Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata); o filme histórico como objeto de fabulação (Bastardos Inglórios e Era Uma Vez… Em Hollywood, de Quentin Tarantino); a manipulação da História pela indústria hegemônica (O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, primeiro “longa histórico” de Hollywood e suas referências bibliográficas nas cartelas); a guerra e o holocausto tornadas gênero fílmico e como isso afeta o imaginário coletivo e a consequente relação das massas com o passado… o córrego é infinito, pois infinito é o cinema.

[1] BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 86.

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É Tudo Verdade: Alvorada (Anna Muylaerte, Lô Politi)

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Alvorada, de Anna Muylaert, junto com O processo (Maria Augusta Ramos) e Democracia em Vertigem (Petra Costa), se agregam em uma trilogia que acompanha os acontecimentos relacionados ao Impeachment de Dilma Rousseff.  Se O processo e Democracia em Vertigem se atêm a uma visão ampla, traçando panoramas e detalhes dos acontecimentos que culminaram no fatídico ano de 2016, Alvorada completa a trilogia sendo a versão contemplativa daquele momento. O filme não se preocupa em destrinchar aquilo que já foi detalhado exaustivamente, mas se põe como representante do vazio e da melancolia, em uma versão mais intimista no que se refere à atmosfera dos últimos dias da presidente no poder.

Em certo ponto do filme, Dilma afirma que nunca perdeu o equilíbrio. Pelo contrário, precisa compreender o fato de que outras pessoas o perdem em situações-limite. Em certo sentido, Alvorada também parece se imbuir da personalidade serena de Dilma, seguindo com sobriedade os seus últimos momentos como presidente. Não apenas ao lado de Dilma, mas acompanhando a rotina do Palácio junto de diversos funcionários em suas atividades cotidianas, o documentário consegue, através de seu olhar mais contemplativo que narrativo, se sustentar em formas simbólicas interessantes.

Esse simbolismo se dá justamente por meio dos funcionários e de suas funções. Além da equipe de Dilma, vemos uma série de empregados do Palácio em suas atividades ordinárias: a guarda e suas cerimônias, o processo de limpeza da piscina, a cozinha etc. Se as atividades básicas que fazem o Palácio da Alvorada funcionar continuam as mesmas, uma série de mudanças sutis ocorrem durante esse processo de mudança. A troca das cadeiras vermelhas por azuis é apenas um dos exemplos desse simbolismo que se realiza nessa dinâmica em relação aos objetos.

Assim, essa trilogia feminina acaba sendo completada pelo documentário singular de Anna Muylaert, se realizando através de uma visão mais intimista e sóbria sobre o início de um dos processos mais traumáticos da história do país. De forma silenciosa e prática, o filme consegue ter algo como uma objetividade melancólica, ainda que em diversos momentos o seu tom pareça vago e impreciso. Um filme que não se preocupa em preencher lacunas, mas sim de ser um olhar mais pessoal e específico sobre os bastidores de uma tragédia pessoal e política.

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A pós-verdade no É Tudo Verdade

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Dois filmes exibidos no Festival É Tudo Verdade representam bem, e de maneira irônica em relação ao título do festival, o que se costumou chamar de pós-verdade. Esse termo, que vem ganhando a alcunha de conceito, surgiu para nomear a crise política que se instaurou no século XXI no que se refere ao modo como as redes sociais se tornaram meios para a disseminação em massa de notícias falsas. Desse gatilho inicial, se desenvolvem não apenas as famigeradas fakenews, mas uma série de teorias conspiratórias e brigas políticas em torno de discursos. Assim, a pós-verdade se instaura no campo da linguagem e do valor semiótico da imagem propagada na internet: não mais importa aquilo que é sustentado cientificamente, mas apenas o modo como certas informações são transmitidas (e por quem são transmitidas), privilegiando interesses particulares e ideologias misturadas à teorias da conspiração que ganham alcance global.

Em Mil Cortes (A Thousend Cuts) e Sob Total Controle (Totally Under Control), temos a presença dessa problemática em contextos diferentes. No primeiro, vemos o modo como o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, sustenta todo o seu governo numa guerra contra as drogas, realizando uma lógica de extermínio de pequenos traficantes e usuários, além de censura implícita à imprensa através do discurso de ódio por meio de bots que investem seus ataques sobretudo à Maria Ressa e à sua equipe de jornalismo da Reppler. Além desse recurso usado nas redes sociais para promover ataques sistemáticos, vemos como Duterte criminaliza a atividade jornalística usando o seu poder político, em um esquema que se concretiza com o julgamento de Ressa, acusada de injúria cibernética, além de outros processos que ainda se desenrolam. Um quadro asqueroso que une um tipo de espetacularização da política que maquia o desmoronamento da democracia das Felipinas e que tem como um dos seus sustentáculos os bots das redes sociais.

Já em Sob Total Controle temos um recorte do início da pandemia do novo Corona Vírus nos EUA. Ainda que tenha envelhecido rápido, o filme traça um panorama interessante do início da pandemia no mundo e a irresponsabilidade do governo norte-americano em relação a isso. No que diz respeito ao tema da à pós-verdade, o documentário revela a postura negacionista de Trump e o modo como o seu desprezo à ciência chega à população, fazendo provavelmente o primeiro processo de politização globalmente conhecido do vírus em questão. As consequências dessa politização nós já sabemos, pois essa realidade é quase que sistematicamente repetida aqui no Brasil. O excesso de desinformação por parte do governo gera um clima de desconfiança constante sobre aquilo que estava estabelecido e soluções duvidosas aparecem em forma de milagre: é o caso do uso da hidroxicloroquina como remédio preventivo contra a Covid-19. O discurso interesseiro e sem fundamento toma o lugar do fato e do dado científico, a narrativa se sobrepõe àquilo que deveria ser consenso em nome do bem público.

Assim, esses dois documentários, compondo a programação do É Tudo Verdade, são ótimos exemplos de mostrar como a verdade é escorregadia e frágil. Se ela depende da comunicação e da linguagem para se realizar, a história da humanidade mostra o quanto que quem detém certo poder dessa linguagem e tem como disseminar aquilo que deseja comunicar, se utiliza desse recurso para fins próprios, por mais retrógrados que sejam. Mostra também que com o desenvolvimento da internet esse processo se tornou ainda mais nefasto, já que agora a forma da informação ganhou um novo impulso e a verdade parece ter recebido o ultimato de sua falência.

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É Tudo Verdade: Dois Tempos

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Por Chico Torres

Dois tempos é um roadiemovie em que Yamandu Costa e Lúcio Yanel exploram as regiões fronteiriças entre Brasil e Argentina. Uma busca que procura remontar as origens de Yanel, o primeiro mestre de Yamandu no ofício do violão. Yanel se radicou no Brasil e teve como primeiro lar a casa de Yamandu quando esse ainda era menino. Diante disso, o filme funciona como uma espécie de retorno ao lar, um presente de discípulo para mestre através de uma viagem em um trailer.

O filme não se furta do silêncio e a naturalidade do convívio que se estabelece entre os dois personagens faz com que a presença da câmera seja incorporada à rotina de ambos sem dificuldades. Ficamos com a sensação de que eles estão ali da forma mais autêntica possível, sem que os momentos de silêncio ou de diálogos vagos prejudique o filme. Logo fica visível a sabedoria de Yanel, uma sabedoria popular e que tem na experiência a sua grande validade. Em nenhum momento a figura de Yamandu se sobrepõe a do mestre. Como todos sabem, Yamandu é um dos violonistas de maior destaque no mundo, mas no documentário o seu papel é quase o de coadjuvante e a sua postura é a de alguém que está ali para aprender e para viver a amizade.

O retorno de Yanel representa também o modo como as coisas mudam e ao mesmo tempo permanecem ao longo do tempo, fazendo com que ele se reconheça e se afaste do seu lugar de origem. Mais do que diálogos sobre música (esses praticamente não existem no filme), o que se tem de pano de fundo é um conteúdo espiritual e filosófico que trata sobre destino, morte e fé, mas tudo sob uma simplicidade cativante. A mística do interior Argentino é resgatada através dos encontros com populares, com a visita ao cemitério, à estação ferroviária na qual trabalhou o pai de yanel, tudo isso regado à música tradicional gaúcha presente no Brasil e na Argentina.

Um filme que contempla paisagens, que se debruça sobre uma cultura subterrânea, que coloca dois grandes violonistas no seio da cultura que os alimentou, enfim, um filme honesto que não procura biografar seus personagens, mas deixa que eles sigam como os andarilhos que são.

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É Tudo Verdade: Paulo César Pinheiro – Letra e Alma

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Por Chico Torres

O documentário sobre o Paulo César Pinheiro não traz entrevistados. Só há a presença do próprio poeta, no conforto de sua casa, contando a sua própria história que é complementada com imagens de arquivos. Vemos o panorama de uma biografia que se confunde com a própria “cultura brasileira”, talvez a única cultura que tenha no formato canção um dos seus pilares mais fundamentais de formação de identidade nacional. Junto com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro é sem dúvida, ao menos na categoria específica “letrista”, um dos maiores construtores dessa ideia de brasilidade.

Traçando de modo cronológico, como diz o próprio PCP, um percurso que consegue unir cinco gerações, começando com Pixinguinha e chegando aos jovens compositores do século XXI, o filme aborda satisfatoriamente a potência criativa do poeta, mas não promove conflitos ou investigações mais minuciosas sobre o seu processo de trabalho, por exemplo. Pelo contrário, segue na passividade de contar os sucessos de alguém que teve a chance de viver exclusivamente da música. Como muitos documentários biográficos, a impressão é que se fica na superfície para poder dar conta de uma biografia que parece já oferecer atrativos suficientes ao público.

O filme se mantém no passado, estreito à visão do poeta e de suas saudades, seus encantamentos e o seu orgulho reiterado de ser um dos detentores da moribunda cultura nacional. Não há um mínimo esforço provocativo, dialético, nenhuma centelha de chacoalhar a paz daquele deus impassível que observa tudo e que ainda é capaz de contemplar. O que temos, enfim, é um documentário dócil e muito pouco criativo. PCP sempre aparece em preto e branco, como se estivesse preso a um passado que é constantemente rememorado. Faz pensar o quanto que se perdeu dessa ideia de Brasil com “S” e não com “Z”, o quanto que está datada a ideia do poeta, do compositor, do cantautor, dando lugar aos fuzis e ao funk carioca. Mas, se o poeta está vivendo esse tempo, nada mais digno do que fazê-lo confrontar esse mundo através de suas ideias, de seus voos imaginativo. Mas não, o documentário se mantém em sua reverência para que o homem rememore e lamente. Um lamento justificável e louvável, mas que ganharia muito mais potência se viesse carregado de ideias para o presente, perturbando a paz e exigindo troco.

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É Tudo Verdade: Gorbachev – Céu

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Por Chico Torres

Há dois trunfos no documentário sobre Gorbachev. O primeiro é em relação à forma: o filme possui direção e montagem que conseguem criar uma boa dinâmica e poeticidade para a monotonia das entrevistas e do próprio ritmo de Gorbachev, um homem nonagenário e adoecido. O segundo é em relação ao conteúdo: o entrevistador, desabusadamente, interroga Gorbachev sem reservas, o colocando diversas vezes contra a parede para que ela seja direto em suas respostas. Mas, como diz o próprio entrevistador, Gorbachev é ardiloso e suas falas são quase sempre ambíguas. O filme é conduzido assim até o final, sem grandes revelações, causando a sensação de que o entrevistador teve seus planos frustrados.

Ainda que o foco do filme seja explicitamente arrancar considerações de Gorbachev sobre os diversos fatores envolvidos na dissolução da URSS, o que se tem é um extrato poético e divertido sobre a decadência de um homem contraditório e que se vê solitário no fim da vida. Seja falando de sua falecida esposa, recitando poemas ou cantando canções de modo fanfarrão, quase chegamos a esquecer que aquele homem foi uma das figuras mais importantes e controversas da segunda metade do século XX. Além da presença do que parece ser funcionários que se tornaram amigos, aquela solidão é completada, de modo sugestivo, com retratos na parede de sua esposa e a insistente figura de Putin no televisor.

Nesse sentido, o documentário que parecia se propor a tratar sobre o tema árido da política, acaba que transmitindo um senso poético que, de algum modo, se coaduna com a personalidade errática de Gorbachev. Não temos nenhuma resposta precisa e saímos do documentário sem conhecer quase nenhum detalhe das ideias e dos bastidores dos eventos nos quais o estadista russo esteve envolvido. Por outro lado, tomamos conhecimento da frágil intimidade de alguém que parece estar preso em um limbo ideológico, no limiar de ideias que o deixaram preso em um universo indefinido, onde seus olhos vivos se contrastam com o seu corpo debilitado, como se em sua carne reinasse também um tipo de contradição indissolúvel.

 

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É Tudo Verdade: Eu e o Líder da Seita

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Por Chico Torres

Em Eu e o Líder da Seita (Aganai/ Me and the Cult Leader – A Modern Report   on the Banality of Evil) temos a presença de dois homens que poderiam ser retratados como vítima e algoz, um caso típico de confronto que renderia cenas bastante constrangedoras e redentoras. Mas, se esperamos que embates polêmicos se desenvolvam através desse encontro tão incômodo, ficamos surpresos porque o que encontramos é quase que a história de uma amizade que se dá sem grandes exaltações. Os dois personagens, em uma viagem que transmite a ideia de jornada purificadora, parecem estreitar os laços ao longo do filme, fazendo com que aquela possível história polêmica ganhe contornos mais sutis.

O filme se abre para reflexões sobre moral, fanatismo religioso, consumo e perdão. Sakahara e Araki flutuam entre tensão silenciosa e desconcertante intimidade. Se o primeiro permanece em seu lugar duplo de interrogador intimidador e possível amigo brincalhão, Araki é de fato o personagem que sofre as maiores transformações e quem nos salva da monotonia do filme. Percebemos suas transformações emocionais à medida em que se avança na viagem de trem. No início, Araki aparece tímido e quase assustado com a presença da câmera; no meio, está emotivo e bastante reflexivo, revelando diversos aspectos de sua vida antes e depois de sua adesão à seita. No fim, aparece acuado, visivelmente contrariado por ter que carregar toda aquela responsabilidade.

São essas variações que sustentam o filme. Sakahara, através de suas perguntas e investidas que muitas vezes possuem a intenção de convencer Araki a sair da seita e retomar a sua “vida normal”, conseguem fazer com que ele reflita, ainda que de maneira fugidia, sobre as suas escolhas. Desse modo, vemos o confronto de dois mundos irremediavelmente conflitantes: o de Sakahara, ligado ao consumo e à realização, e o de Araki, ligado à renúncia e ao esvaziamento de expectativas. Mesmo que sejam temas instigantes, os diálogos se realizam de modo natural e, por isso mesmo, muitas vezes são truncados e tediosos. O filme plaina nesse tipo de ambientação morna e não consegue realizar de fato uma investida consistente em nenhum dos temas que levanta. Seu final acaba por condensar tudo aquilo que estava latente ao longo da viagem: o confronto direito e a redenção de Araki através de um pedido de desculpas diante da imprensa. A sensação que se tem é que esse elemento chegou tarde demais, enquanto que os outros, os mais sutis, foram mal aproveitados, talvez por culpa do próprio Sakahara que parece não ter conseguido explorá-los devidamente. Um filme que fica no meio do caminho e que extrai com timidez a complexidade de alguém que parece querer estar além do bem e do mal, mas que acaba por retornar, inevitavelmente, para as questões demasiadamente humanas.

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É Tudo Verdade: Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina

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Para além da questão de uma arte panfletária, aquela desenvolvida na URSS, muitos artistas e pensadores se dedicaram a criar e refletir uma arte que fosse além de sua função pedagógico-revolucionária. A complexidade do que se entende por arte e política possibilitou uma série de desdobramentos que superam o sentido reducionista e datado de “arte revolucionária”.

É diante disso que quero pensar Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina. O filme procura mostrar panoramicamente o percurso e os diversos impulsos criativos que movimentaram o grupo sempre na direção de uma teatro com princípios políticos, mas um político libertário e muito pouco pedagógico. De Brecht a Shakespeare, sob o sol absoluto de Oswald de Andrade, o grupo desenvolveu, através de uma constante evolução estética, um tipo de dramaturgia que tem como centro não o cérebro ou o coração, mas a pelves e as entranhas. Assim, além do texto e da encenação, o corpo surge como elemento fundamental, um corpo liberto, dionisíaco. O filme consegue retratar bem, mesmo que indiretamente, o modo como o corpo foi sendo cada vez mais explorado e radicalizado dentro do Oficina. O irracional, ironicamente, surge como elemento político à medida que explicita ou sugere uma libertação total através do desbunde, indicando um sentido orgíaco e antropofágico para a vida.

A força política dessa dramaturgia se fundamenta também na subversão da própria ideia de arte. O questionamento estético é, portanto, também político, à medida que ao criticar os modelos convencionais do teatro, critica toda uma tradição e dá a ela uma resposta subversiva. Outro esquema que se desenvolve no Oficina é a interação entre artista e público. Ambos se confundem no espaço cênico. No sentido político, é possível entender que essa relação abre espaço para o jogo, para a participação, sendo um instrumento pedagógico poderosíssimo: uma forma brechtiana, mas que tem também como referência o teatro da Antiguidade.

Outros modos de relacionar arte e política são trazidos pelo documentário através de uma série de entrevistas e da presença iconoclástica de Zé Celso Matinez. Esses entrevistados não aparecem, suas falas são representadas por imagens de arquivos existentes desde a profissionalização do grupo. O filme, portanto, procura explorar um formato não usual de entrevista que mesmo podendo causar certo incômodo no início, já que ficamos curiosos para saber se quem fala é exatamente o personagem que aparece na cena, aos poucos vamos nos acomodando nessa narrativa quase errática, incorporando, de certo modo, o espírito irracionalista do grupo.

O filme, ao trazer diversos recortes de Zé Celso em sua longuíssima luta pelo espaço que circunscreve o Oficina, revela um ser contraditório e fascinante. Um homem que perdoa o seu torturador; que confunde realidade com ficção ao dizer “isso aqui é um filme de Glauber Rocha”, fazendo uma alusão ao Terra em Transe, como se esquecesse por um momento que entrega o microfone para um homem real em estado de miséria real e não a um personagem; um homem que luta pelo teatro fazendo teatro, teatralizando a política, numa ingenuidade que surge quase como a negação radical daquela vulgaridade e ambição dos políticos e homens de negócios. O filme, portanto, traça esse panorama através de uma cronologia torta e breve, pois são sessenta anos de um teatro que passou por diversas transformações internas, além de incêndios, ditaduras, revoluções e dissoluções. E a arte continua, como é mostrada em uma das encenações do Oficina, em seu lugar necessariamente à margem, procurando os espaços mais improváveis para fazer de suas bacantes algo de vivo no mundo dos homens.

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É Tudo Verdade: Fuga

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Fuga (Flee) é um filme interessante por unir animação, biografia e documentário histórico, integrando fatos importantes de um passado recente a aspectos subjetivos de um personagem bastante cativante. Apesar disso, o filme se detém às situações traumáticas dos personagens, fazendo com que aspectos históricos e subjetivos de uma realidade tão complexa sejam explorados apenas superficialmente.

Já de imediato conhecemos a história dramática de Amin, um afegão homossexual que foge da guerra e se refugia ilegalmente na Rússia com parte de sua família.  O longa exibe, através da vida em fuga de Amin em sua juventude, alguns aspectos da guerra que se desenrola no Afeganistão desde 1979, além do ambiente desolado da URSS em sua dissolução. Mas esses aspectos, apesar de serem fundamentais para o desenvolvimento do filme, são sempre trazidos através do olhar emocional de Amin. E não é que as emoções do personagem sejam menos relevantes do que um tipo de abordagem mais analítica. O que acontece é que o tom emocional, usado em exagero, acaba por tirar o peso de todo o arcabouço histórico que está por trás daqueles traumas. Conhecemos as situações-limite que são vivenciadas por Amin e seus familiares, mas não sabemos o que Amin fez dessas experiências, como ele desenvolveu os seus estudos e como é que isso o ajudou a lidar com tantos problemas. Sendo ele um homem afegão, homossexual, intelectual, que viveu em duas culturas completamente diferentes e em momentos históricos bastante decisivos, é possível presumir que muito mais poderia ser dito.

Apesar da alta carga dramática daquela história, o tom confessional, realizado através de entrevista que surge como uma forma de purgar o passado, acaba imprimindo alguma leveza ao filme, causando uma sensação de alívio ao perceber que, apesar de tudo, a coisas deram certo para Amin. Uma pena que, através dessa história de superação, conhecemos muito pouco sobre o que moveu aquele homem em sua trajetória, nos restando apenas imagens de um passado que foi apresentado por uma ótica que, mesmo sendo de maior alcance em relação ao público, parece diminuir consideravelmente a grande história de Amin.

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É Tudo Verdade: Glória à Rainha

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Por Chico Torres

Glória à Rainha (Glory to the Queen) é um documentário que se desenvolve através de uma dinâmica entre o mítico e o banal. O que nos leva nessa jornada dupla, são as trajetórias de quatro enxadristas contemporâneas e conterrâneas da Geórgia, país incorporado à União Soviética.

Em seu aspecto mítico, somos apresentados a essas mulheres que possuem o talento do xadrez e que monopolizaram por quase meio século os títulos mundiais do esporte na categoria feminina. São verdadeiras referências nacionais e isso se evidencia principalmente ao vermos seus nomes (Maia, Nona e as duas Nanas) serem replicados em outras mulheres, através de várias gerações, funcionando não apenas como uma homenagem, mas como uma espécie de benção, para que aquelas filhas também recebessem o mesmo talento das enxadristas. É curioso como muitas delas, de fato, se tornaram profissionais do xadrez ou mulheres que ocupam cargos importantes. Somam-se a isso, para reforçar esse aspecto mítico e que nos distancia daquela realidade meio mágica, imagens de arquivos de vários momentos em que as jogadoras, em meio aos cartazes típicos da estética soviética, exibem seus talentos jogando com vários opositores ao mesmo tempo, ou se desafiando entre si nos matches. Essas imagens estão carregadas de uma aura que imprime autoridade e reverência a essas quatro mulheres extraordinárias.

Por outro lado, presenciamos também o momento atual das enxadristas, o que acaba por revelar o teor mais banal e cotidiano de suas existências. Ainda que não se dedique exatamente a uma exploração de suas vidas particulares, o filme consegue cenas em que as personagens exibem suas personalidades, seus conflitos e realizações em torno de uma vida dedicada ao xadrez. Essa banalidade é exibida com sutileza, à medida em que é desenvolvida como detalhe, como algo que exige a atenção do espectador. Nada é exatamente revelado, mas surge como latência, como algo que é dado em doses mínimas e que talvez precisa ser subjetivamente explorado para uma apreciação mais proveitosa.

Junto a essas narrativas que correm paralelas, uma mensagem ocupa todo o espaço do documentário: a de que essas mulheres, para além de serem fundamentais para o desenvolvimento do xadrez em todo o mundo, lutaram por um espaço ocupado majoritariamente por homens. Através das personagens que carregam o nome das quatro jogadoras, é possível pensar na simbolização da vitória feminina sobre uma sociedade machista, sustentada sob a construção de um exército de Maias, Nanas e Nonas. Também de forma sutil esse aspecto vai se tecendo sobre as biografias entrecruzadas das personagens, se desenvolvendo como discurso engajado, mas muito pouco militante, à medida em que a problemática é explorada com naturalidade e objetividade, tratando com obviedade aquilo que é realmente óbvio. Tal qual a mente de suas personagens, Glória à Rainha é um filme que transita bem entre a assertividade e a imaginação, nos mostrando, ao mesmo tempo, a genialidade e a banalidade de mulheres que conquistaram o mundo debruçadas sobre um tabuleiro.

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