A pós-verdade no É Tudo Verdade

me and the cult leader

Dois filmes exibidos no Festival É Tudo Verdade representam bem, e de maneira irônica em relação ao título do festival, o que se costumou chamar de pós-verdade. Esse termo, que vem ganhando a alcunha de conceito, surgiu para nomear a crise política que se instaurou no século XXI no que se refere ao modo como as redes sociais se tornaram meios para a disseminação em massa de notícias falsas. Desse gatilho inicial, se desenvolvem não apenas as famigeradas fakenews, mas uma série de teorias conspiratórias e brigas políticas em torno de discursos. Assim, a pós-verdade se instaura no campo da linguagem e do valor semiótico da imagem propagada na internet: não mais importa aquilo que é sustentado cientificamente, mas apenas o modo como certas informações são transmitidas (e por quem são transmitidas), privilegiando interesses particulares e ideologias misturadas à teorias da conspiração que ganham alcance global.

Em Mil Cortes (A Thousend Cuts) e Sob Total Controle (Totally Under Control), temos a presença dessa problemática em contextos diferentes. No primeiro, vemos o modo como o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, sustenta todo o seu governo numa guerra contra as drogas, realizando uma lógica de extermínio de pequenos traficantes e usuários, além de censura implícita à imprensa através do discurso de ódio por meio de bots que investem seus ataques sobretudo à Maria Ressa e à sua equipe de jornalismo da Reppler. Além desse recurso usado nas redes sociais para promover ataques sistemáticos, vemos como Duterte criminaliza a atividade jornalística usando o seu poder político, em um esquema que se concretiza com o julgamento de Ressa, acusada de injúria cibernética, além de outros processos que ainda se desenrolam. Um quadro asqueroso que une um tipo de espetacularização da política que maquia o desmoronamento da democracia das Felipinas e que tem como um dos seus sustentáculos os bots das redes sociais.

Já em Sob Total Controle temos um recorte do início da pandemia do novo Corona Vírus nos EUA. Ainda que tenha envelhecido rápido, o filme traça um panorama interessante do início da pandemia no mundo e a irresponsabilidade do governo norte-americano em relação a isso. No que diz respeito ao tema da à pós-verdade, o documentário revela a postura negacionista de Trump e o modo como o seu desprezo à ciência chega à população, fazendo provavelmente o primeiro processo de politização globalmente conhecido do vírus em questão. As consequências dessa politização nós já sabemos, pois essa realidade é quase que sistematicamente repetida aqui no Brasil. O excesso de desinformação por parte do governo gera um clima de desconfiança constante sobre aquilo que estava estabelecido e soluções duvidosas aparecem em forma de milagre: é o caso do uso da hidroxicloroquina como remédio preventivo contra a Covid-19. O discurso interesseiro e sem fundamento toma o lugar do fato e do dado científico, a narrativa se sobrepõe àquilo que deveria ser consenso em nome do bem público.

Assim, esses dois documentários, compondo a programação do É Tudo Verdade, são ótimos exemplos de mostrar como a verdade é escorregadia e frágil. Se ela depende da comunicação e da linguagem para se realizar, a história da humanidade mostra o quanto que quem detém certo poder dessa linguagem e tem como disseminar aquilo que deseja comunicar, se utiliza desse recurso para fins próprios, por mais retrógrados que sejam. Mostra também que com o desenvolvimento da internet esse processo se tornou ainda mais nefasto, já que agora a forma da informação ganhou um novo impulso e a verdade parece ter recebido o ultimato de sua falência.

FacebookTwitter