Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Apenas Mortais

Por Camila Vieira

still 2

Os momentos mais extraordinários de Apenas Mortais (Being Mortal, 2020) elaboram uma permanente indistinção entre a visualidade do presente e as memórias que os lugares evocam para seus personagens. Para dimensionar as alterações da relação da protagonista com o pai que, aos poucos, vai se definhando por causa do Alzheimer, a direção do chinês Liu Ze embaralha diferentes temporalidades que acontecem simultaneamente em um só espaço.

Com tal estratégia de encenação que permite criar presenças e ausências, o filme não se limita a ser apenas um melodrama familiar. Existe também o interesse em preencher os lugares afetivos com imagens do passado. O cruzamento de tempos distintos extrapola a relação com um presente em que as coisas, as pessoas e as relações estão ameaçadas de desaparecer.

Se o olhar do pai de Xia Tian é conduzido à renovação constante daquilo que é visível, algo parece desaparecer nessa relação que foi construída entre os dois durante tanto tempo de convivência. Outras situações de perda são vivenciadas pela protagonista: ela abandona seu emprego estável e rompe com seu amante para voltar à cidade onde os pais moram e ajudar a mãe nos cuidados com o pai. Os lapsos recorrentes de memória distanciam cada vez mais o pai da filha.

Em determinada cena, o pai é levado a sair de casa em direção à aldeia de sua infância, após ser atraído pela presença de um menino que brincava com uma bola no corredor (seria esta presença um vislumbre dele mesmo como criança?). Aquele mesmo garotinho reaparece já na aldeia procurada pelo pai, mas é a filha que é levada a olhar. O filme produz exercícios de encantamento com as pequenas lembranças que se misturam à narrativa, que nunca recorre ao didatismo dos flashbacks para pontuar sobre o passado dos personagens.

É claro que há sempre o peso de lidar diretamente com as consequências da doença. Com o avanço do Alzheimer no patriarca, o cotidiano vai se tornando cada vez mais árduo para todos: a mãe fica esgotada com as tarefas diárias, a irmã insiste em levar o pai para uma casa de repouso e Xia Tian vai aos poucos deixando em segundo plano tanto seu novo trabalho quanto seu novo namorado. No entanto, é justamente a aproximação da morte do pai que desencadeia uma abertura ao mistério pelo acionamento dos vestígios da memória.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Tenet (Christopher Nolan, 2020)

tenet

Mijar ao Vento

Por Pedro Tavares

No conceito de autoria, a reiteração de métodos e a noção de um lugar comum na obra geral ou se justifica ou se ostenta. É de fato curioso como Tenet é uma espécie de incessante busca e confirmação de certo fetichismo por parte de Christopher Nolan na suposição de uma possível transição de um diretor de blockbusters pomposos para o autor de cinema com sua própria grife. Neste raciocínio é possível desfiar o filme de maneira muito simplória para termos logo uma resposta sobre as intenções do filme e vemos como as alegorias estão em função da ilusão e são nulas para a narrativa, transparecendo intenções, que, perfiladas, mostram interesses perniciosos ao filme.

O enredo, per si, antes da intromissão deste fetiche-justificativa por parte de Christopher Nolan, é muito próximo a qualquer lançamento de ação B e que isto não seja visto com maus olhos, incluindo a maneira que Nolan orquestra suas sequências de ação e como o filme é montado, a partir de um épico que coloca o seu 007 no divã para questionar a mortalidade. A partir daí, um encontro com a metodologia do realizador que se aproximou desta ideia da metafísica a partir de espaço-tempo em filmes como Amnésia (2000), A Origem (2009) e Interstellar (2014) retorna à mesma abordagem como a possibilidade de reconhecimento de um tema-chave em sua filmografia.

A máxima “mijar ao vento” vem do “protagonista”, um homem-carcaça, sem demais apresentações e ser da CIA é o suficiente para que sua missão seja permeada pelo senso de equidade. E por mais que esteja sempre em devaneios sobre os reais efeitos de encarar o ciclo, a função da máquina é de partir para a intervenção.

Nesta função de monte e desmonte do enredo a partir das possibilidades que a distorção do tempo permite, as brechas são preenchidas por um moralismo barato. Tenet se arrisca demais ao caminhar sempre em extremos – o perigo do filme é o do fim do mundo, o retorno do tempo é para um senso de justiça coletivo – e seu protagonista sempre a serviço desta moral entre idas e vindas, uma representação do alvo que Nolan almeja e não um personagem passível de mutações.

Confiando neste efeito devastador que o filme levaria como um panfleto ideal e pronto para as mãos de seu público, Tenet é um passeio previsível no campo da ética e funcional como um filme de coreografias. Elas, que justamente salvam o filme da ideia da elasticidade do tempo em certos momentos e que se resumem ao movimento de rewind (a clássica rebobinada nas fitas VHS)  e em um sentido de carga dramática tão profunda quanto, de fato, mijar ao vento.

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mamãe, Mamãe, Mamãe

Por Camila Vieira

Mama_Mama_Mama_STILL_1

Apesar de ser um filme que toma a morte como ponto de partida para o desenvolvimento de sua própria dramaturgia, não há qualquer desconforto nas imagens de Mamãe, Mamãe, Mamãe (Mamá, Mamá, Mamá, 2020), da argentina Sol Berruezo Pichon-Rivière. Os planos são todos muito bem controlados. O uso da paleta de cores fica restrito à instrumentalidade tautológica: são frias quando remetem à melancolia da perda e são quentes quando mostram o passado feliz das irmãs. Nem mesmo o fora de campo produz algum mistério, já que ele só é usado como mera ilustração da ausência que já acontece desde o início da narrativa.

A encenação da perda parece ser um subterfúgio para abordar uma história que só é possível ser narrada com mulheres: a mãe solo e sua filha Cleo; a tia e as três primas; a vizinha; a cuidadora da avó e sua filha. Mas as representações das mulheres aqui são reduzidas às imagens mais genéricas e cristalizadas de uma idealização do feminino: as crianças estão sempre calmas, dóceis e bem educadas; a mãe chorosa e reclusa no quarto; a fantasmagoria da irmã se manifesta como presença angelical; a tia é a protetora sempre preocupada com o bem-estar da sobrinha e de suas filhas. Tem até uma coelha fofinha entre as meninas que vai gerar filhotes – qualquer metonímia simplória da relação mãe e filha é bem-vinda nesse filme.

Não é de se estranhar que todas as mulheres – crianças, adultas e idosas – estão aqui restritas ao espaço da casa e, mesmo quando há um breve momento de fuga, elas sempre retornam ao lar. Nada vai perturbar esse espaço apaziguado, nem mesmo a necessidade de inserir na trama a menina Aylin, que vem do Paraguai, pelo simples exotismo de que ela está ali apenas para narrar histórias de sequestros e desaparecimentos. A jornada das crianças pelo desconhecido em um caminho fora do espaço doméstico nem chega a ser ameaçadora – um contrassenso com a própria ideia de morte que o filme quer aludir. Desta maneira, Mamãe, Mamãe, Mamãe limita-se a ser um filme fofinho, palatável, que não desconcerta, nem foge das expectativas do conforto da audiência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Al Shafaq – Quando o Céu Se Divide

 Por Camila Vieira

Al-Shafaq_4

Um pai à procura do filho é o leitmotiv de Al-Shafaq – Quando o Céu se Divide (Al-Shafaq – When Heaven Divides, 2019), da diretora e roteirista turca Esen Isik. Morando na Suíça há anos, o turco Abdullah mantém em casa os costumes de sua cultura de origem, ao mesmo tempo em que se adapta à rotina em território ocidental. Sua esposa e filhos seguem os mesmos preceitos, com exceção de Burak, o caçula, que é o grande pivô de insatisfação do patriarca da família.

Talvez o grande problema do filme seja a construção unidimensional do personagem de Burak. Se de início, o jovem não demonstra interesse em rezar o Alcorão, quer se divertir com colegas ocidentais da mesma idade e não suporta a violência centralizadora do pai, a suposta mudança forçada dele deverá ser como o fundamentalista recrutado a serviço da Guerra Santa na Síria. De uma forma ou de outra, a aparente transformação de Burak não altera absolutamente nada dentro de sua função familiar: ele parece ser apenas uma peça jogada no roteiro para motivar a decepção do pai.

A história de Abdullah em busca de seu filho – que inevitavelmente é encontrado morto – é colocada em paralelo ao drama do menino sírio Malik, que também perdeu o irmão em um campo de refugiados na Síria. Apesar de ser breve, a trama de Malik é desenvolvida de forma mais complexa: sua família é obrigada a migrar de sua residência, mas não consegue escapar da ameaça de soldados bandeiras negras do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). Ele consegue sobreviver junto com o irmão, que logo depois também morre em outro ataque.

A narrativa aproxima Abdullah e Malik não só pelo vínculo que existe entre eles e parentes mortos. Enquanto a trama intercala o presente com acontecimentos do passado dos dois personagens, sabe-se que Burak foi recrutado para as ações do ISIS que afetaram diretamente a vida da família de Malik. A amarração esquemática de roteiro que conecta a história dos dois personagens apenas serve a uma agenda humanista forçada que não contribui e nem traz olhares diferenciados para os conflitos no Oriente Médio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: 17 Quadras

Por Camila Vieira

122338032_3623188107744964_9012826939138858945_n

Há algo nas imagens de 17 Quadras (17 Blocks, 2019) que altera a relação de poder de quem filma em relação a quem está sendo filmado. Em um primeiro momento, o documentarista estadunidense Davy Rothbart se sentiu interessado em registrar com sua câmera o cotidiano da família dos irmãos ainda pequenos Emmanuel e Smurf que ele conheceu a partir de um jogo de basquete, em 1999. Com o pacto de aproximação estabelecido, todos os integrantes da família passam também a filmar a si mesmos, construindo e materializando suas próprias encenações. Não se trata mais apenas do olhar de alguém de fora, mas de quem vive intensamente aquela realidade por dentro daquela casa em Washington a 17 quadras do Capitólio.

Registradas ao longo de 20 anos, boa parte das imagens do documentário se colocam sob o risco do real, tal como pensa Jean-Louis Comolli, em que a auto mise-en-scène permite implodir qualquer gesto programado de representação de si. Há algo de espontâneo no modo como a câmera se movimenta, na forma como cada um fala e interage com os outros em cena, que deixa escorrer uma dinâmica de desejo muito particular de quem está sendo filmado por conta própria. Por mais que as escolhas da montadora Jennifer Tiexiera sejam marcadores externos que optam pela contiguidade narrativa das temporalidades distintas dos acontecimentos, ainda assim as imagens por si só produzem fissuras a romper com uma ordenação cristalizada da cena, já que a própria alteridade também se impõe como co-criadora.

Por acompanhar um longo período de tempo, os vínculos afetivos entre a mãe solo Cheryl e seus três filhos, Emmanuel, Denice e Smurf, são dimensionados em suas complexidades. O bairro é cercado por violência, que não é explicitada, mas situada em extracampo: ouvimos o barulho das sirenes dos carros de polícia; Smurf é traficante de drogas, mas não vemos ele negociar diretamente; e mesmo o evento mais trágico só é possível de ser reconstituído pelas memórias dos outros. “Você tem que usar seus punhos como armas”, diz Emmanuel, em um trecho em que relata quantas vezes seu irmão levou tiros nas ruas.

Se o ponto frágil de 17 Quadras é o uso persistente dos acordes indies melancólicos da trilha musical de Nick Urata com supervisão de Dan Wilcox, a força do filme pode ser resgatada com as próprias falas dos personagens, em especial Cheryl, que diz ser necessário se curar e ter esperança. O documentário poderia ser mais um de tantos que são seduzidos pela espetacularização midiática de famílias com vidas precarizadas, mas ele está mais interessado em respeitar essas pessoas e acompanhar como elas sobrevivem apesar da violência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lua Vermelha

Por Camila Vieira

202001973_1_ORG

Com olhares cabisbaixos, corpos estáticos ocupam paisagens em um vilarejo na costa da Galícia, na Espanha. Um homem encontra-se sentado em uma pedra na beira do mar. Um casal permanece na margem da estrada. Outro homem está em pé próximo à parede de uma barragem. Uma senhora idosa continua levantada na sala de estar da sua casa. O ambiente sombrio do lar é invadido pelo ruído de passos de alguém que já não está mais ali. Quem desapareceu foi Rubio, um marinheiro que se aventurou pelo mar em um barco naufragado como tantos outros da comunidade.

Para dimensionar a ausência de um morador importante para a vila, Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020), do espanhol Lois Patiño, constrói uma atmosfera em que o tempo parece ficar em suspensão. Os personagens não se movem, mas falam por meio de voz over. O que eles contam são histórias fantásticas que envolvem a viagem de Rubio, o possível encontro com um monstro, o aparecimento misterioso de uma rocha em formato de uma onda na praia, a presença da lua vermelha. As sequências se alternam a cartelas com trechos dessa narrativa. Enquanto os peixes boiam mortos na beira do mar, cavalos e até mesmo uma cabra são os poucos animais a se movimentarem pelos espaços.

Quando aconteceu o desaparecimento de Rubio? Há mil anos? Não se sabe ao certo há quanto tempo os moradores estão assim. “Nós somos o sonho de alguém. O sonho de um mar adormecido”, diz um deles. As poucas mulheres que aparecem são a mãe de Rubio e as três bruxas convocadas por ela para trazer o marinheiro de volta. Elas são as únicas mulheres com o poder de caminhar pelos ambientes, cobrir os corpos com lençóis – algo que permite uma visibilidade iconográfica dos moradores como fantasmas da vila – e vasculhar os vestígios deixados nos barcos naufragados.

A dilatação da duração dos planos, a localização dos corpos como figuras diminutas na paisagem, a cor rubra intensa a invadir as imagens, o som de mar e de vento ruidoso, os lentos travellings a revelar a monumentalidade dos espaços vão compondo a atmosfera de Lua Vermelha. Os habitantes da vila figuram existências sideradas pela mitologia da vila, em que as imagens e os sons são orquestrados em uma espécie de ritual próprio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Tremor

Por Camila Vieira

The Tremor - Still 3

É curioso como o longa-metragem O Tremor (Nilanadukkam, 2020), do indiano Balaji Vembu Chelli, propõe uma reflexão crítica em torno do apetite da mídia em se alimentar da tragédia humana. O interesse reside menos em desvelar a máquina de espetacularização dos meios de comunicação como tantos outros filmes já fizeram, mas compreender que comunidades continuam abandonadas à própria sorte em áreas de risco, sem provocar qualquer mobilização permanente de governantes e da opinião pública. Não há noticiário capaz de evitar o histórico sucessivo de catástrofes e abandonos.

Na trama, um fotojornalista é convocado para viajar até a vila de Kookal para registrar imagens de uma comunidade destruída pela ação de um terremoto. De início, o longo percurso cheio de ruas estreitas e sinuosas parece ser mais difícil do que ele imaginava. O contato com a paisagem montanhosa é permeada por imagens de outros incidentes de tremor que atingiram a vila. Um breve plano com a tela de teste com barras coloridas da TV indica que provavelmente são cenas já capturadas por emissoras locais.

Em meio a uma névoa branca densa que cobre a região, o fotojornalista pergunta aos moradores onde aconteceu o terremoto. Alguns dizem que foi em no vilarejo próximo. Muitas casas parecem estar abandonadas. Quanto mais o protagonista adentra no lugar, ele é levado a entrar em contato com fantasmagorias que cruzam seu caminho e que o fazem se perder em outros caminhos.

Enquanto o olhar do fotojornalista procura a racionalidade do registro imediato visível dos fatos, a paisagem oferece a ele indícios de desaparecimentos: moradores apontam para vilas arrasadas que ele não consegue ver. Os planos do filme vão se compondo com brumas esbranquiçadas, presenças que se esvaem, ruas vazias. A força de O Tremor como cinema reside justamente na construção da paisagem como um acúmulo de repetições trágicas no curso da história que se tornam invisíveis ao olhar de quem só quer capturar o momento imediato.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Nova Ordem

Por Camila Vieira

Autorizado2

Depois de vários planos fragmentados que aludem ao que irá acontecer ao longo da narrativa, as primeiras cenas de Nova Ordem (New Order, 2020), do mexicano Michel Franco, apresentam uma aglomeração de pessoas brancas, ricas, bebendo, dançando e se divertindo na confortável e intocável mansão da abastada família Novelo. O local recebe convidados para a cerimônia de casamento da jovem Marianne com um “jovem e promissor arquiteto”, segundo as palavras de Victor, amigo influente que mantém vínculos corruptos de trabalho com o pai da moça. Do lado de dentro da casa, organizam a cozinha os empregados não-brancos de ascendência ameríndia.

Aos poucos, acontecimentos estranhos começam a desestabilizar a teatralização da elite na mansão: a juíza ainda não chegou para realizar a cerimônia, as torneiras jorram tinta verde, uma convidada aparece com o pescoço esverdeado. Até que chega Rolando, antigo empregado da família, para conversar com sua ex-patroa, mãe de Marianne, e pedir dinheiro para a cirurgia de Elisa, sua esposa que está doente. Ela foi expulsa da enfermaria de um hospital público, que evacuou as vagas para acolher manifestantes feridos. Aqui já conectamos as pequenas irrupções já vistas com um grande fora de campo: vários protestos invadem as ruas, enquanto a elite permanece alheia ao que acontece lá fora.

É óbvio que a ex-patroa coloca dificuldade para dar o dinheiro e, a partir daí, explicita-se de forma gritante a desigualdade entre as classes. O filho mais velho quer logo expulsar Rolando. Marianne enfrenta os homens da família para ajudar o antigo empregado (curioso notar como há sempre uma jovem branca, loira, bela, que se coloca como a alma caridosa dos pobres oprimidos pelo sistema). E claro que o enfrentamento dela não será suficiente para romper a estrutura de poder hierárquica mantida pelos homens da família. Mas ela será a mocinha capaz de sair do conforto de sua casa para “fazer alguma coisa”, enquanto sua mansão acaba sendo logo depois invadida pelos manifestantes.

A primeira meia hora até chegar o momento da invasão e do saqueamento da casa dá a impressão de que Nova Ordem quer lançar alguma possibilidade de inversão de poderes dentro das cristalizações sócio-econômicas ordenadas pela máquina capitalista neoliberal. Mas é só um jogo de aparências: Michel Franco orquestra as cenas de forma pomposa e grandiloquente, como se o chamado para a luta armada contra o opressor devesse ser filmado como um espetáculo. Quando a cidade passa a ser sitiada pelo exército, a mesma lógica espetacular é exigida para explicitar a violência tanto em opressores quanto em oprimidos. A direção não se compromete com absolutamente nada que encena e se esvazia tanto em sua indiferença que só entulha cenas pretensiosamente chocantes para sua audiência internacional.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Problema de Nascer

Por Camila Vieira

TTWBB_10_ISO_Coated_v2©PanamaFilm

Nos ambientes escuros de suas casas, dois personagens alimentam dificuldades em superar a ausência de alguém querido em suas vidas, no longa-metragem O Problema de Nascer (The Trouble With Being Born, 2020), da cineasta austríaca Sandra Wollner. O primeiro é um homem que perdeu a pequena Elisabeth, desaparecida há 10 anos ao fugir da casa da mãe. O segundo é uma senhora já idosa que se recorda todos os dias do irmão Emil, morto em um acidente há 60 anos. A forma dos dois driblarem as ausências em um presente fraturado se dá pela convivência com um androide, que encarna memórias implantadas – e por que não alteradas? – daqueles que se foram.

Como Elli, a ginoide recorda-se do cheiro da terra molhada, dos cigarros, do protetor solar, das inúmeras horas que viveu ao lado do pai, das músicas que ambos ouviam. Ela é a personificação idealizada da criança doce, gentil, inocente, com presença disposta o tempo inteiro diante do homem que ela chama de pai. Mas a figura paterna transparece algo no mínimo estranho nesta relação: ele olha para ela com desejo ao comprar um vestido; ela posa nua e sensual diante dele; e após uma dança incessante, dorme com ela. A cena de sexo não precisa ser mostrada, mas já se sabe que aquele corpo robótico foi avariado. “Mamãe nunca teria deixado, mas ela não precisa saber de tudo”, diz a voz off de Elli.

O que significa o não saber de tudo nesta relação pai e filha que envolve pedofilia? É certo que a ginoide foi programada para satisfazer o desejo do dono, mas sua rostidade remete à criança que desapareceu. Será que a menina fugiu de casa justamente com o intuito de se livrar de um histórico de abusos com este homem que nem sabemos ao certo ser o pai? A pergunta fica em suspensão, até o momento em que a ginoide escapa do aprisionamento da casa, é resgatada por um terceiro e volta a um novo enclausuramento doméstico, desta vez na casa de Anna.

Como Emil, muda-se o gênero para androide. A voz agora é de um garoto, que brigava muito com sua irmã no passado. Na nova casa, não há tempo suficiente para elaboração de outra vivência em meio ao trauma. As diferentes memórias de Elli e Emil implantadas no mesmo ser robótico acabam por se confundir e se misturar. O estrago na estrutura familiar permanece. Apesar do interessante ponto de partida, O Problema de Nascer limita-se à abordagem unidimensional das relações humanas pelo que há de pior nelas, sem se permitir alcançar outras experiências.

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Cozinhar F*der Matar

Por Camila Vieira

0062859 2

Para explicitar a espiral de violência perpetuada por masculinidades tóxicas dentro das relações familiares no longa-metragem Cozinhar F*der Matar (Cook F**k Kill, 2019), a diretora eslovaca Mira Fornay conduz a narrativa por sucessivos jogos de inversões de poder. A trama começa com o desespero de Jaroslav, um motorista de ambulância, que está sofrendo uma crise de relacionamento com Blanka. De início, ele parece ser o bom pai de família, que está realmente preocupado com seus três filhos pequenos, que foram deixados na casa da avó. Jaroslav alega que sua esposa o está chantageando para conseguir o apartamento da mãe, a intimidadora Dorojka, que reclama ao filho: “Não sabe cuidar de sua própria esposa, sem ela intimidá-lo?”.

Dorojka está morando com Gustav, pai de Blanka, em um mísero apartamento estreito no subúrbio, em que mulheres do bairro cercam Jaroslav e ele quase é atingido por uma jukebox que é jogada da janela de um vizinho – essa cena inclusive será repetida algumas vezes, com pequenas variações dos instantes prévios à queda do objeto. Quando Blanka é vista pela primeira vez em cena, o filme desvela quem realmente é a vítima de toda a tragédia. Gustav diz a Jaroslav que não deseja ver o genro tratar Blanka da mesma forma que ele trata Dorojka. Então, começa o relato de uma cena de violência doméstica que aconteceu no passado em que Gustav espancou a mãe de Blanka. Só que, no presente, o relato de Blanka é concretizado cenicamente como uma reconstituição em que Jaroslav é espancado por Gustav.

Gustav e Jaroslav são os agressores de Dorojka e Blanka. “Amei sua mãe, mas tinha medo dela”, diz Gustav. “Eu a amo exatamente como você amava a mãe dela”, diz Jaroslav. As duas frases declamadas pelos principais personagens masculinos de Cozinhar F*der Matar são a expressão máxima da manutenção do relacionamento abusivo, que intimida, chantageia, violenta e mata mulheres. Ao virar a chave do filme, a diretora Mira Fornay parece lançar o desejo de denúncia da estrutura de poder do patriarcado, cujas violências são perpetuadas de geração para geração (e aí faz sentido entender como o filme se modela a partir das repetições).

No entanto, é justamente por recorrer ao jogo de sucessivas cenas de agressão que o filme inclusive coloca as mulheres à mercê de encarnar no próprio corpo a monstruosidade da violência. E quando Fornay opta por fazer isso, Cozinhar F*der Matar parece estrangular a si mesmo com a própria estratégia almejada.

 Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Suor

Por Camila Vieira

SWEAT_Magnus_von_Horn_Photo02

A sequência inicial de Suor (Sweat, 2020) é a tautologia do privilégio de uma digital influencer. Em um shopping mall, Sylwia Zajark uma mulher branca, loira, magra e bela faz uma demonstração de uma aula de fitness para seu público branco que deseja ser como aquela mulher. Depois dos gritos motivacionais e selfies com sua audiência, ela respira fundo e prossegue sua jornada, ao som de “She’s got the look”, de Roxette. Ela ainda tem muito trabalho a cumprir: fazer uma live para mostrar entusiasmada que sempre usa a escada no lugar do elevador de seu prédio, apresentar um shake do Olympus Nutrition para compensar a insatisfação do patrocinador e se encontrar com seu agente que está tentando agendar sua aparição em um programa de televisão.

O diretor sueco Magnus von Horn quer mostrar com Suor que a vida de uma digital influencer também pode ser muito difícil. Longe da câmera do celular, ela não escolheu estar solteira e se sente muito triste, da mesma forma como comentou sobre tal sensação em um vídeo postado em suas redes sociais. O desabafo espontâneo imediatamente viralizou e seus patrocinadores começam a ficar preocupados com a exposição indevida de tristeza da jovem.

A partir desse deslize da personagem em meio a sua rotina de construção idealizada da imagem do bem-estar, Suor vai desvelando outras informações sobre Sylwia para que o espectador tente ser empático com suas lágrimas. A única companhia dela é seu cachorrinho Jackson. A mãe parece ser ausente e fazer pouco caso das conquistas da filha. Um stalker aparece em frente ao prédio para perturbar sua tranquilidade.

É curioso como inclusive uma cena em que a protagonista reclama ter recebido uma embalagem em caixas plásticas – para deixar claro na condução da trama que se trata da rotina de uma influencer ecologicamente responsável e que devemos nos compadecer dela. No entanto, a mesma nem questiona uma empresa grande, como a Fiat, que há bem pouco tempo foi denunciada por fabricar automóveis adulterados para burlar possíveis testes de emissões de poluentes.

O único momento em que há alguma ironia a explicitar o quanto esse jogo com o neoliberalismo deve ser realmente questionado é a sequência do aniversário da mãe de Sylwia. Ao ver a imagem da moça estampada na capa da revista Women’s Health, um dos convidados exclama: “Você parece uma estátua!” – ao que ela responde com um “obrigada” constrangedor. O outro pergunta se foi usado photoshop, ao que se sucede com a queda inesperada de um jarro de flores da mesa. Mas é apenas uma sequência de desarranjo que passa ligeiro, tanto quanto uma madrugada de abusos e violências que é administrada rapidamente pela personagem. Afinal de contas, ela precisa continuar sorrindo para seus 600 mil seguidores.

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

FacebookTwitter

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mães de Verdade

Por Camila Vieira

88

Há algo nos planos de Mães de Verdade (Asa Ga Kuru, 2020), de Naomi Kawase, que traz na própria materialidade indícios do estilo da cineasta japonesa: alguns takes com movimentos suaves a filmar os corpos dos personagens; outros em que a luz estourada do sol invade os espaços; ou mesmo aqueles em que o vento balança os galhos das árvores. Fazer do invisível uma força tátil é um dos elementos que marcam a filmografia de Kawase dentro da constelação do cinema contemporâneo.

No entanto, o modo como a narrativa engendra sucessivos encadeamentos esquemáticos parece a todo custo diluir a pujança da construção das imagens e dos sons de Mães de VerdadeDepois do plano inicial do mar junto ao som da mãe que chora amalgamado ao grito do bebê que nasce, acompanhamos uma cena de bela intimidade entre mãe Satoko Kurihara e seu filho Asato. A partir daí, o que vem na sequência desaba todo o esforço de contiguidade sensorial até então conquistado em prol da amarração da trama: Asato supostamente empurrou um colega na escola e, após todo o rebuliço da mãe do menino machucado, instaura-se em Satoko a desconfiança de que seu filho possa ter realmente cometido tal ato.

Como posso duvidar do meu menino?” – a pergunta de Satoko já introduz uma suposta hesitação dentro do seu papel de mãe, que prende o filme à necessidade de jogar um flashback em que ela aparece com o marido Kiyokazu a conversar sobre a vontade de ter um filho. Desejo impossível a princípio, já que a azoospermia de Kiyokazu impede de ter filhos biológicos. O marido se desespera, lança a possibilidade do divórcio e – que milagre do acaso! – aparece um infomercial de uma agência de adoção na televisão que só falta colocar em letras garrafais que nada está perdido para o pobre casal.

Não é para pais encontrarem os filhos. É para os filhos encontrarem os pais” – eis o slogan da agência Baby Baton que convence Kiyokazu a decidir pela adoção. O casal mora no 30o andar de seu confortável e intocável prédio, enquanto é muito óbvio que Hikari, a mãe biológica de Asato, deve ser construída como a mãe jovem, que será rejeitada pela família tradicional japonesa, que se tornará uma mulher a sobreviver de trabalhos precarizados, que levará uma vida carregada de culpa e sem conforto algum.

Na medida em que o esquematismo do roteiro impõe esse imediato contraste entre mães – pasmem! -, descobrimos que Asato não empurrou seu coleguinha na escola e – ufa! – família Kurihara pode voltar para seu conforto, porque aquele suposto acidente foi só uma desculpa para forçar uma dúvida e logo depois lançar a certeza de que o menino é adotado. É necessário ainda prosseguir com as amarrações frouxas e os subterfúgios dramáticos, como trazer Hikari de volta para reivindicar o garoto e introduzir um flashback sobre a trajetória dela de sofrimento até chegar ali.

No meio desta platitude de previsibilidades, talvez seja possível encontrar algum respiro breve de suspensão em uma sequência: aquela em que Maho, uma das adolescentes grávidas da Baby Baton, celebra seu aniversário em um churrasco com a vizinhança e as amigas da ilha. Os planos voltam a ficar instáveis, escutamos uma voz off feminina a interpelar aquelas personagens em closes e vemos a sombra de uma mulher que filma com uma câmera na mão. Seria a mesma Kawase em cena a reconstituir aquele plano de sua sombra em Caracol (Katatsumori, 1999)? Mas logo o plano se dissipa e Mães de Verdade volta a ser um filme de apaziguamento do já esperado. Se em Caracol, a diretora abraça o mistério na relação com sua avó para tratar de maternidade, já não  espaço para qualquer opacidade em Mães de Verdade, porque agora o que interessa é decodificar as imagens ao bom entendimento e deixar de lado o enigma que é a própria vida. 

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

FacebookTwitter

Olhar de Cinema: Nasir

Por Camila Vieira

88

Inspirado no conto A Clerk Story, de Dilip Kumar, a estrutura dramática do longa-metragem Nasir, do indiano Arun Karthick, também assume ser concentrada e compacta. É a história de um homem comum, Nasir Bhai, que trabalha em uma loja de tecidos. Ele tem uma família; dorme, se acorda e sai de casa todos os dias para trabalhar; fuma alguns bidis (cigarro local) e interage fortuitamente com personagens corriqueiros que aparecem no meio do caminho. Ele demonstra preocupação em ajudar a família: carrega potes de água para casa e entrega o almoço do sobrinho na escola.

O protagonista pertence a uma minoria muçulmana em uma comunidade predominantemente hindu. O alto-falante nas ruas anuncia que a procissão do festival hindu está perto de acontecer. Mas Nasir não se preocupa e continua a cumprir sua rotina, ainda que surjam problemas que afetam sua vida. As pessoas ao redor de Nasir também parecem viver um dia de cada vez. Os momentos em que a valorização do comum fica evidente no longa-metragem são os que mostram a interação entre os colegas funcionários da loja de tecidos. O protagonista recita para eles um de seus poemas que termina com o verso “o que é a vida senão solidão e silêncio?”

Nos trechos em que os personagens dormem, os peixes pintados nas paredes e refletidos nos abajures parecem compor a atmosfera de quem também sonha apesar do enfrentamento diário cotidiano. Mesmo que seja difícil entregar uma encomenda em um lugar distante ou guardar o pouco dinheiro que se ganha para melhorar de vida, Nasir é um personagem em constante movimento. Ele não se paralisa diante das adversidades, ainda que, ao fim de tudo, o infortúnio apareça para ameaçar sua existência.

FacebookTwitter

Olhar de Cinema: Um Filme Dramático

Por Camila Vieira

88

Na cartela final de Um filme dramático, explica-se que “as ideias, as histórias e as imaginações” do filme são das crianças e pré-adolescentes creditados e que também são estudantes do Colégio Dora Maar, em Saint-Denis, subúrbio de Paris. O longa-metragem foi realizado durante quatro anos de encontros com os alunos, dentro do que o realizador francês chama de processo colaborativo, a partir de uma encomenda feita pela comissão do distrito que construiu a escola.

No entanto, o que há na operação do filme que leva o espectador a crer que seja realmente fruto de um processo colaborativo? É certo que estão ali os planos filmados pelas próprias crianças. Elas filmam relatos feitos em frente à câmera sobre os acontecimentos cotidianos (como se fossem pequenos filmes diários) ou takes com passeios pelas ruas (em que muitas vezes, a grande diversão é descobrir o efeito de um zoom). A beleza dos planos criados pelos estudantes paira justamente na câmera que treme, na voz que titubeia, na incerteza do que filmar ou não. Mas em boa parte do filme, o que vemos é uma câmera controlada, a observar o que acontece entre os estudantes na sala de aula.

Essa câmera sempre atenta que não quer vacilar e que está ali a serviço da captura dos “melhores momentos” de interação entre os estudantes foi guiada por dois diretores de fotografia, Claire Mathon e Raphaël Vandenbussche. Eles fazem parte da equipe formada por Eric Baudelaire, que também contou com a participação da montadora Claire Atherton no processo de escolha de quais imagens caberiam ou não para o longa-metragem que se vende para o mundo com a chancela de “filme colaborativo com os estudantes”.

Nestes planos controlados, acompanhamos discussões até bem interessantes entre as crianças. Em determinado momento, elas repercutem sobre os imigrantes na França e se o governo do país é ou não racista. Em outro, elas falam sobre o que pode ser um filme ou o que caracteriza um documentário. Dentro de um debate acalorado sobre a importância do registro do som, um dos estudantes explica para os outros que, se um documentário perde o som, ele se torna dramático ou ficção científica. Na mesma sequência, vemos uma menina bater uma claquete e, no início, o som está sem sincronia com a imagem e, quanto mais a garota bate a claquete, o som começa a se sincronizar. No entanto, a brincadeira de disjunção sonora é proporcionada pela edição controlada de Um filme dramático.

Eric Baudelaire quer fazer com que os espectadores acreditem que seu filme seja colaborativo com as crianças, mas ele também faz questão de assinar sozinho a direção de seu próprio filme. O que se forja na construção de Um filme dramático é a roupagem do “filme fofo com crianças que filmam” e que tem muito pouco ou quase nada de colaboração efetiva dos estudantes no pensamento criativo do longa-metragem. Se Um filme dramático começa justamente com um plano instável de um céu escuro com uma estrela flutuante a ser filmada por uma criança com a câmera na mão que diz ser preciso estabilizar aquela imagem, o gesto de Baudelaire é tornar seu filme estável o suficiente para seu prazer individual como cineasta.

FacebookTwitter