Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Coisas Verdadeiras (Harry Wootliff)

Por Camila Vieira

Inspirado no romance True Things About Me, de Deborah Kay Davies, Coisas Verdadeiras encena uma narrativa em torno de uma mulher millennial. Kate Perkin mora sozinha e prefere ficar distante de seus pais controladores; trabalha como atendente, mas chega sempre distraída ou atrasada; e sua rotina a coloca em constante estado de apatia. Sem vontade para se acordar e com baixa auto-estima, ela mal consegue manter laços sólidos de amizade e se encontra em uma posição vulnerável.   

Mais do que se sentir desejada, Kate busca alguma conexão com um homem ex-presidiário que ela conheceu em um dos seus atendimentos. Depois de interpretar um homem pouco confiável em The Souvenir (2019), o ator Tom Burke assume um registro semelhante ao interpretar Blond, o desconhecido que se envolve com Kate e se aproveita de sua fragilidade. Ele aparece e desaparece quando sente vontade. O sexo é sempre apressado. Blond altera rápido de humor: às vezes, é carinhoso e solícito; em outras, é grosseiro e estúpido. 

Por meio de uma câmera instável, o filme centra o olhar para Kate e o modo como ela vai absorvendo aos poucos suas próprias angústias e insatisfações. Ao acompanhar o descompasso cotidiano da personagem, a cineasta Harry Wootliff quer se solidarizar com uma mulher comum que sofre os efeitos de uma vida pouco desejável. Apesar do acúmulo de situações desconfortáveis, ela não desmorona totalmente e, ao mesmo tempo, sua tomada de consciência não se seduz pela estratégia fácil de transformá-la em heroína. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: No Táxi do Jack (Susana Nobre)

Por Camila Vieira

O problema de No Táxi do Jack, da portuguesa Susana Nobre, é confiar plenamente no possível carisma que seu personagem principal possa sustentar. Joaquim é um senhor na faixa dos 60 anos de idade, que está perto de se aposentar e acumulou em sua trajetória inúmeras experiências de trabalho, em sua maioria precarizados, desde limpar chão de fábrica a dirigir como taxista. Ao longo do filme, a maior parte de suas interações acontecem com funcionários que representam o peso das instituições que exigem procedimentos burocráticos para que o personagem mantenha-se com algum emprego. 

Durante as viagens que realiza pela cidade, Joaquim relata sobre seu passado na Inglaterra e nos Estados Unidos, a dificuldade para aprender a falar em inglês, os diferentes empregos provisórios que ocupou, a desconexão com o filho devido a rotina árdua de trabalho, o retorno a Portugal no momento pós-ditadura. É certo que a narrativa demonstra preocupação em aprofundar o personagem como uma subjetividade que se faz pelas diversas condições de trabalho que ele enfrentou ao longo da vida. No entanto, o relato parece apenas dar conta de um amontoado de situações pregressas, sem qualquer pausa reflexiva sobre os efeitos do trabalho. 
Como o foco acaba sendo a presença do personagem e sua forma pitoresca de narrar, No Táxi do Jack deriva por algumas brincadeiras cênicas, como aquela em que Joaquim parece estar dirigindo um táxi em uma rua movimentada, mas a câmera recua em um travelling que mostra a filmagem dentro do cenário de um estúdio. Em outro momento, ele conversa com um amigo cego e cadeirante, por meio de diálogos quase sempre jocosos. Nem sempre o humor é alcançado e o filme perde algo no meio do caminho.

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lidando com a Morte (Paul Sin Nam Rigter)

Por Camila Vieira

O maior mérito de um documentário como Lidando com a Morte é escancarar o quão ridícula e absurda é a tentativa de um grupo de europeus brancos que desejam capitalizar em nome dos rituais que envolvem o luto e a morte de comunidades étnicas que habitam a Holanda. No bairro multiétnico de Bijlmer, em Amsterdã, a agência funerária Yarden tem o interesse de ampliar seus negócios para alcançar turcos, antilhanos, indianos, angolanos e outros tantos imigrantes como potenciais consumidores de seus serviços.

Sócia da agência, Anita Von Loon é a empresária que mais se empenha em fazer as tratativas diretamente com o público almejado. Ela visita templos, igrejas e mesquitas com um sorriso que deseja parecer amigável a quem ela não conhece, mas também expressa simpatia fingida e desrespeitosa por refletir seu olhar exotizado para culturas diferentes. Logo após a dor da perda de seu pai, Anita percebe a armadilha do “entusiasmo ingênuo” que ela tanto defendeu.

Por mais que disseminem o discurso de que a empresa precisa se modernizar frente às mudanças do bairro, ela e seus colegas funcionários da Yarden perpetuam o pacto colonial. Na sequência em que ganenses questionam a empresa sobre detalhes incompatíveis no que se oferta com suas cerimônias de luta, os funcionários soltam gargalhadas. Menos por se perceberem como alheios a demandas simples, como banheiros maiores ou horários ampliados, mas certamente por uma falha estrutural de acolhida e compreensão das especificidades culturais das diferentes etnias consultadas. Nada mais contundente que o contraste entre as salas vazias e assépticas da agência funerária e os festejos movimentados em celebração aos mortos nas demais comunidades.  

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Armugan (Jo Sol)

Por Camila Vieira

Rodado nos Pirineus de Aragão, região nordeste da Espanha, Armugan flana por uma paisagem rural em que personagens envelhecem isolados e em contato com a natureza. As imagens em preto e branco são dotadas de um rigor na composição: os atores estão quase sempre dispostos na centralidade do quadro, que só se desestabiliza quando alguém entra em movimento na cena. Os diálogos são poucos e, em muitos momentos, escutamos os personagens mediante voz off ou voz over. A atmosfera constrói uma temporalidade fora do cotidiano que superdimensiona a iminência da morte. 

Armugan é conhecido na região como o homem que oferece a última presença de conforto aos que estão prestes a morrer. Por ser uma pessoa com deficiência física, ele precisa ser carregado por Anchel, que o leva nas costas até chegar aos vilarejos que necessitam de sua companhia. A relação entre Anchel e Armugan é perpassada por cuidado e cumplicidade pela manutenção da vida. Ela pode ser tão frágil quanto os brotos que nascem e crescem nos pequenos frascos de vidro que ambientam a casa dos dois personagens. 

Uma mulher estrangeira aparece na região em desespero pelo estado terminal de seu filho pequeno, que está sofrendo. Armugan recusa eutanasiar o garoto. Ele insiste em oferecer apenas um acompanhamento de ordem espiritual. Neste embate com a materialidade do sofrimento, o filme altera o tom do registro misterioso e mítico para o debate pragmático em torno de quem tem o poder de interromper a vida. É um desvio que reposiciona o filme em outro lugar, que até simplifica o ponto de partida.   

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: A Taça Partida (Esteban Cabezas)

Por Camila Vieira

Não é novidade alguma encontrar no cinema narrativas que partem de famílias que sofrem as consequências da separação de casais. Dentro deste universo, o diretor chileno Esteban Cabezas propõe uma dramaturgia desconfortável, na medida em que se sustenta pelas ações e intencionalidades do personagem Rodrigo, um homem que não se conforma com a separação e deseja reocupar o espaço perdido a qualquer custo. 

O interesse de Rodrigo não é apenas ver seu filho Julian e ficar algum tempo perto dele. O personagem observa de longe a casa e aguarda a saída de Maxi, o novo companheiro de sua ex-mulher Clara. Só então Rodrigo se aproxima da mulher e, por insistência, consegue que seu filho fique com ele, que foi autorizado apenas a passear no planetário com o garoto, após seu retorno da escola. Ele não cumpre o que foi acordado e, a partir daí, será guiado por suas próprias vontades ressentidas pelo seu ego de macho ferido.

O personagem recusa sair da casa que já não é mais dele e destila sua inveja em relação ao bem-estar familiar que Clara parece ter alcançado. O desconforto avança quando os planos são reenquadrados no formato 4:3, com o intuito de enfatizar a expressividade dos personagens em momentos importantes da narrativa. Por meio das diversas situações em que Rodrigo age contra tudo o que sua ex-mulher solicita, a trama intensifica o desprazer e o horror de aturar um homem adulto que age de forma irresponsável e narcísica.

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Higiene Social (Denis Côté) 

Em cada plano, o personagem Antonin interage com cinco mulheres diferentes: sua irmã Solverg, sua esposa Églantine, sua amada Cassiopée, a funcionária Rose e a teóloga Aurore. Pelas conversas, descobrimos que Antonin afirma-se como um dândi e sente cansaço e dores no corpo. Seu destino é ter muitos amigos, não se submeter ao trabalho e viver da arte do furto. Enquanto ele, Aurore e Rose vestem roupas contemporâneas, Solverg, Églantine e Cassiopée apresentam-se com vestidos e adereços de séculos passados. De início, cogita-se que Antonin seja um personagem à frente de seu próprio tempo. No entanto, em algum momento, eles falam sobre facebook, cinema e computador. Engana-se Antonin quando diz que “sua civilização não vai deixar rastros”. O tempo atual ainda é afetado pelo conservadorismo dos pensamentos tradicionais.  

Apesar de insistir que o “mundo é uma fadiga moral”, Antonin é constantemente questionado pelas mulheres ao seu redor. Solverg defende o trabalho como forma de seu irmão livrar-se da prisão, sentir-se útil e realizado. Églantine julga Antonin por não cumprir seus deveres como marido. Cassiopée não deseja vê-lo novamente e o protagonista incita um duelo ridículo com seu oponente desconhecido. A fiscal Rose reafirma que Antonin deve cumprir a lei e a ordem. 

A única personagem que desarranja a própria forma do filme é Aurore, uma jovem que aparece caminhando pela floresta nos intervalos de uma cena e outra. Seu corpo é filmado próximo e a câmera segue seus movimentos, até o momento em que se escuta uma música de rock que a faz dançar. No encontro com Antonin, ela o ridiculariza como um “ladrãozinho sem moral”. Como uma espécie de comédia de costumes, Higiene Social desenvolve o quanto o masculino perde-se em seu próprio narcisismo e fragilidade.    

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Olhar de Cinema: Por Trás da Linha de Tijolos Vermelhos

Por Pedro Tavares

Uma informação básica e que aparentemente passa como uma sombra em Por Trás da Linha de Tijolos Vermelhos é a consequência de um tempo assolador dos protestos registrados. Após seis meses de ocupação das ruas de Hong Kong, um capítulo novo então é escrito e registrado por câmeras que não possuem donos, identidade, conceitos estéticos ou até mesmo uma função para elas fora o imediatismo de seu registro.

Estas imagens podem ser fruto da hipérbole das redes sociais ou para uso particular, porém, juntas, a pensar em diversos realizadores não identificados, temos um capítulo escrito. A princípio enquanto os estudantes ocupam as ruas e pedem iniciativa da população o filme remete aos trabalhos de Sylvain George como a ocupação do espaço por corpos além de suas motivações. Porém este capítulo que cessa a liberdade enquanto a polícia os cerca durante os quatorze dias de ocupação da universidade politécnica exibe a urgência da produção de imagens tem suas vantagens.

Como uma automática denúncia de abuso de poder essas imagens captam a autodefesa dos estudantes além do protesto: eles querem e precisam descansar, ir para a casa, se alimentar, se banhar. O poder, enquanto isso, os afunila no campus da faculdade. E como é um filme feito para os efeitos dessas imagens além de qualquer construção paralela fica evidente como não há um filtro do que deve ou não ser exibido afim de maior impacto – tudo é bem didático, naturalmente ilustrativo.

Resiste o tempo que é possível para que o corpo peça para desistir. A pressão é, principalmente, psicológica, mas por trás dessa linha, o que o estado guarda para estes jovens não é um simples acordo ou ao menos notar os seus pedidos. Fica evidente como e para quem ele está a funcionar e sempre a base do horror.

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Mostra de SP: Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Radu Jude)

Por Camila Vieira

Para explicitar o mal estar de uma Romênia em que a crise econômica e social piorou com a pandemia da Covid-19, Radu Jude lança mão do registro da comédia na ficção Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental. No entanto, o cômico onde o filme quer chegar não depende apenas do jogo de interações entre os atores. Ele flerta com a forma como se forjam situações absurdas, em que o artifício é o tempo todo demandado de uma cena a outra. 

Dividido em três atos ou partes, o filme começa com uma circunstância aparentemente simples na estrutura dramatúrgica: um homem e uma mulher se filmam durante uma relação sexual; o vídeo caseiro acaba vazando na internet; e a repercussão altera o cotidiano da mulher na escola onde ela trabalha como professora de história. O desdobramento de tal incidente poderia colocar no centro do debate apenas a gravidade da vida íntima exposta em público e a ampliação do efeito de moralização por meio do uso das novas tecnologias. 

No entanto, Jude usa tal ponto de partida para desenvolver uma sátira da hipocrisia da sociedade romena. O segundo ato é povoado de imagens e frases curtas que preparam a tônica em torno de vários temas, que vão desde patriotismo ao distanciamento social. O movimento culmina na execração pública da professora pelos pais dos alunos em uma espécie de micro tribunal a ocorrer no último ato do filme. A cena abre margem para o aparecimento de personagens caricatos que enfatizam o ódio aos judeus e ciganos, destilam preconceitos contra homossexuais e recusam qualquer alteração dentro do tradicionalismo das instituições. 

Se por um lado, há algum interesse em ver no filme marcações dos novos tempos pandêmicos (o elenco atua com máscaras de pano ou cirúrgicas), a aposta na ridicularização de todas as frentes possíveis esvazia o potencial político que o filme poderia alcançar. O exercício parece superficial e repetitivo por ser apenas um acúmulo anedótico e revela a fragilidade na condução. 

* Visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Olhar de Cinema: Sonhos de Damasco (Emilie Serri)

Por Camila Vieira

A partir de uma viagem de carro encenada com seu pai, Emilie Serri inicia e encerra Sonhos de Damasco. A estrutura circular envolve um percurso a ser feito, com a companhia da figura paternal que pode evocar a ideia de origem. O ponto de partida é a indagação ao pai sobre o que ele se recorda de sua vivência como jovem em Damasco, capital da Síria. Ele é um expatriado no Canadá e mantém o costume de falar árabe, da mesma forma que outros tantos personagens entrevistados ao longo do filme. De início, a imagem idealizada do pai nas filmagens domésticas em que a realizadora aparece criança, ainda em 1986, acabam por ser desmontadas e confrontadas com imagens da Síria em ruínas.

O filme faz uso de diferentes materiais de arquivo: desde vídeos de família a fotografias registradas em preto e branco em diferentes tempos. O procedimento documental recorre a depoimentos tanto de sírios que moram em outros países quanto de seus descendentes  que já assimilaram outras culturas. Um dos entrevistados afirma que todas as suas memórias estão em Montreal, no Canadá, e não mais em Damasco, porque a Síria como ele conhecia está completamente destruída e a guerra acabou por esfacelar as famílias envolvidas. A fala de Mohamad coloca em desequilíbrio toda a tentativa do filme de qualquer busca romantizada pelas origens: “Não há espaços para sonhos. Para nós, tem sido um pesadelo desde que a guerra começou”. 

Alguém apresenta a hipótese de que, no futuro, os países desaparecerão e já não existirão mais fronteiras. Em uma construção que também lança mão do uso da câmera que a realizadora enxerga como única âncora, a materialidade fílmica desmonta qualquer possibilidade de certeza sobre as raízes partilhadas. Sonhos de Damasco costura fragmentos de memórias em uma espécie de corda bamba, na medida em que possui consciência do trauma, mas ao mesmo tempo também deseja esquecer para construir lugares imaginados.

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Olhar de Cinema: Um Céu Tão Nublado (Álvaro F. Pulpeiro)

Por Camila Vieira

Composto por planos noturnos e crepusculares, Um céu tão nublado alterna sequências da paisagem venezuelana, quase sempre em lugares de passagem, como estradas e portos; ambientes onde trabalhadores circulam, em navios cargueiros e porta-aviões ou territórios ocupados por atravessadores de gasolina e câmbio, além de soldados que cercam determinadas regiões do país. A sensação inicial é de terra devastada: uma Venezuela que alimenta o desejo de um plano de integração de nação e, ao mesmo tempo, seus habitantes parecem estar à deriva. 

O azul escuro do céu e do mar no cais contrasta com o fogo expelido das chaminés das fábricas. As travessias de carro pelas rodovias são substituídas pela espera de militares por helicópteros nos navios. As sequências de controle e vigilância na saída das fronteiras são seguidas por outras em que cantores populares pedem carona às margens das estradas. A montagem de Um céu tão nublado procede por acúmulos, oposições, diferenças que complexificam a experiência venezuelana, sem recorrer ao procedimento fácil da explicação didática.

O mesmo acontece com a ambiência sonora do filme, que é marcada por transições em que uma voz over masculina interpela como “filho da pátria” a se sentir órfão. Os noticiários da Rádio Nacional, tratam da reeleição de Nicolás Maduro, a oposição de Juan Guaidó e a interferência diplomática de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, por meio de sanções ao governo venezuelano. O choro insistente de um bebê transportado dentro de um carro é amplificado com o som dos mesmos noticiários ao fundo. Em outra sequência, diversas vozes de atravessadores se superpõem em planos de detalhe com bocas falantes e as mãos cheias de dinheiro. A composição mais impactante do filme apresenta jovens e crianças que enchem barris de gasolina e descarregam dos caminhões. Com vários galões empilhados ao fundo, o rosto de um menino aparece em primeiro plano a olhar para o céu. É a imagem do futuro aprisionada à contundente crise do presente.

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Olhar de Cinema: Conferência (Ivan Tverdovskiy)

Por Camila Vieira

A revivência do trauma em Conferência implica partilhas de silêncios e corpos quase imóveis, filmados em planos estáticos e frontais. A madre Natasha e sua amiga Svetlana são sobreviventes de um atentado que aconteceu em outubro de 2002, no teatro Dubrovka, em Moscou. Enquanto era apresentado um musical, um grupo de chechenos manteve como reféns artistas do espetáculo e pessoas da plateia, com o intuito de mobilizar publicamente o país para exigir a retirada das tropas russas da Chechênia. No filme de Ivan Tverdovskiy, a rememoração de tal evento que marcou a história política da Rússia só é possível por meio da ficção.

Por outro lado, a narrativa ficcional também precisa ser ancorada em lastros do real: a cerimônia de luto organizada por Natasha acontece no próprio ambiente do teatro onde o incidente de fato aconteceu. Entre as cadeiras, são dispostos manequins com três cores que representam quem estava no dia: branco para as vítimas que não sobreviveram ao ataque, preto para os terroristas e azul para os que não compareceram à cerimônia. Em uma longa sequência com personagens que relatam sobre suas lembranças do dia fatídico, o filme desenvolve-se a partir de um trabalho rigoroso de encenação das narrativas por atores e atrizes, que irão interpretar os relatos dos sobreviventes reais ouvidos durante a pesquisa do diretor. Apenas dois jovens – que hoje são atores – foram reféns na época e, na mesma sequência, ambos aparecem e relatam suas próprias experiências. 

O modo como o testemunho se alia ao gesto ficcional ganha outra dimensão dentro do teatro: não só por ser o lugar onde tudo aconteceu, mas sobretudo por se tratar de um espaço cênico. Um microfone passa de mão em mão e alguns planos aproximam-se dos rostos dos personagens. Os relatos são prolongados e incomodam os proprietários atuais do teatro. Natasha insiste que os participantes não abandonem o teatro até encerrar a cerimônia. Ela defende ser importante não ter medo e não esquecer, em memória dos que morreram. “Precisamos encontrar a força dentro de nós para fazer isso. Sentamos e não falamos nada e acontece um desastre atrás do outro. Somos covardes para dizer algo”, afirma Natasha. Mas a personagem alimenta uma contradição dentro de si: apesar de querer falar sobre o que aconteceu, ela não sabe como lidar com sua filha Galya que a culpa por uma decisão drástica que ela precisou tomar para conseguir escapar da morte. Conferência é também um filme de embate entre o que é necessário lembrar e o que se deve esquecer dos traumas históricos.

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Olhar de Cinema: A Calmaria Depois da Tempestade (Mercedes Gaviria)

Por Pedro Tavares

Em certo ponto de A Calmaria Depois da Tempestade a diretora Mercedes Gaviria resume sua proposta como um exercício estático de memória. É interessante notar como esta frase dada pela própria realizadora coloca ao filme um tipo de análise referente às imagens de arquivo e suas funções simbólicas. Está impregnada no filme a questão do uso das imagens, da captação à reutilização como uma forma geral de banalização.

Gaviria utiliza o seu vício em captação de sons, as constantes filmagens caseiras de seu pai e a retomada de seu progenitor ao mundo cinematográfico para dar novos sentidos às imagens particulares de sua família e para registrar o processo de filmagem de um novo filme. Aqui temos dois filmes e com a narração de Gaviria, surge o terceiro. Portanto, fica em xeque a formação de unidade entre eles – ainda que todos coexistam paralelamente sem a necessidade de uma justificativa. Porém, Gaviria resolve uni-los com seu ponto de vista, com depoimentos de e sobre si.

Não leva muito tempo para que esta decisão tome a tela e dilua qualquer possibilidade de impacto, afinal Gaviria a leva para o escopo existencial – paralelamente social –  com o suporte da ternura da memória, como se as rasuras do tempo às levasse a um local de potência orgânica, o que não acontece. A Calmaria Depois da Tempestade, desta maneira, está mais para ser um depoimento manipulador através das imagens indo de encontro à proposta de construção de um bloco de memórias através delas.    

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Olhar de Cinema: Estilhaços (Natalia Garayalde)

Por Camila Vieira

As imagens iniciais de Estilhaços dão a impressão de que seria intocável a felicidade da família de classe média em que a diretora argentina Natalia Garayalde nasceu e cresceu. Aos 10 anos, ela ganhou de presente uma câmera Sony 8 mm do seu pai e passou a filmar seu cotidiano em Rio Tercero, uma cidadezinha de 40 mil habitantes, na província de Córdoba. Registradas nos anos 1990, as imagens domésticas mostram o frescor da vida em um bairro comum, com uma praça, uma escola, uma delegacia, um rio e uma fábrica. Ali residem as memórias dos passeios com o pai médico e a mãe professora de história, as brincadeiras com o irmão mais novo e a festa de ano novo de 1994. Seria o último ano em que a diretora conseguiria dormir sozinha, segundo suas próprias palavras no filme, e tal frase é seguida por um corte: as imagens de felicidade são interrompidas pelo impacto de uma tragédia.

Um plano sequência é filmado dentro de um carro que se desloca pelas ruas em meio a um bombardeio inesperado: pessoas gritam e correm desesperadas, projéteis explodem e estilhaços caem do céu. Enquanto ouvimos o ruído constante de bombas, uma mulher com um bebê nas mãos é resgatada. Após o caos e a desorientação, vem o contexto: em novembro de 1995, a fábrica de munição militar explodiu com 20 mil projéteis, causando a morte de moradores e a destruição de casas e estabelecimentos. O incidente alterou a rotina da comunidade, inclusive da família Garayalde. Autoridades e o próprio presidente Carlos Menem difundiam a versão oficial de que as explosões foram causadas por um acidente e um operário da fábrica é demitido e investigado. No entanto, descobre-se mais à frente que o evento foi proposital para ocultar o contrabando de armas para a Croácia, na Guerra dos Balcãs. O ataque tinha sido planejado para apagar os rastros da operação.

Diante da força e das consequências do incidente, Estilhaços movimenta-se do familiar para o coletivo, do íntimo para o público. Aquela inocência inicial das imagens felizes de classe média é diluída e o que se mostra como imagem são vestígios das casas destroçadas no dia seguinte à explosão, os projéteis ainda ativos que voltam a explodir, os relatos do pai sobre o receio de ser contaminado com fósforo branco. Mesmo que a menina Natalia se alegre por um instante com as aulas suspensas e com suas simulações como repórter a entrevistar moradores sobre a tragédia, a permanência do trauma na comunidade é o que a leva a parar de filmar. Até mesmo a escola começa a dar aulas sobre os riscos dos produtos químicos.

No último movimento do filme, as imagens de arquivo misturam-se às filmagens recentes feitas por Natalia em retorno a Rio Tercero. O que antes era apenas o medo coletivo de contaminação química materializa-se como doença no corpo da irmã: ela morre de câncer e, mais tarde, o pai da cineasta também será acometido pela mesma enfermidade. Mas a realizadora lembra que “as imagens sobrevivem aos corpos”. Se a vida familiar se estilhaçou diante dos fatos brutos que aconteceram, o desfecho busca restituir uma intimidade que sobreviveu como fragmento.

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