OUVIR UM FILME

EDITORIAL: OUVIR UM FILME
Por Camila Vieira

SEM SOL: VIA DUPLA
Por Pedro Tavares

RESSONÂNCIAS E (NÃO) ESCUTAS: SEMENTES: MULHERES PRETAS NO PODER (ÉTHER OLIVEIRA E JÚLIA MARIANO, 2020)
E #AGORAOQUE (JEAN-CLAUDE BERNADET E RUBENS REWALD, 2020)

Por Kênia Freitas

A CONQUISTA DO BARULHO
Por João Pedro Faro

A VOZ, ESSA SOBREVIVENTE
por Rubens Fabrício Anzolin

A POESIA SONORA DE BLUE
Por Chico Torres

VIGILÂNCIA E RUÍDO EM HACKED CIRCUIT (2014) DE DEBORAH STRATMAN
Por Natália Reis

ÀS MULHERES QUE SEGUEM, IGNORANDO O FALATÓRIO
Por Geo Abreu

DO JOGO DE INCONTINÊNCIA À MANIA DE ORIGEM
Por Felipe Leal

MU, A TERRA DA IMPOSSIBILIDADE SONORA – SOBRE ABISMU DE ROGÉRIO SGANZERLA
Por Gabriel Papaléo

POR UM CINEMA FALADO
Por Éric Rohmer e tradução de Bernardo Moraes-Chacur

GERTRUD, GERTRUD, GERTRUD
Por Gabriel Linhares Falcão

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Editorial: Ouvir um Filme

Por Camila Vieira

“Imagens e sons como pessoas que se encontram em uma jornada e não podem mais se separar.”

Robert Bresson – Notas sobre o cinematógrafo

No cinema, a escuta é tão importante quanto o olhar. A percepção dos sons de um filme acontece com a percepção das imagens. Em um filme, imagens e sons constroem dinâmicas e fluxos. Ao analisar filmes por meio de textos, raramente abordamos algo a partir das nossas percepções sobre o som e, no entanto, imagem e som fazem parte da integralidade fílmica. Como críticos de cinema, somos bastante oculocêntricos e deixamos de lado considerações pertinentes ao som dos filmes. Colocamos a visualidade em primeiro plano de análise e esquecemos a sonoridade. 

Ao final do longa-metragem português “Aquele querido mês de agosto” (2008), o realizador Miguel Gomes questiona o diretor de som Vasco Pimentel sobre sons fantasmas que foram registrados em alguns planos e que não deveriam existir no filme. “Como é possível haver sons que não estão lá?”, pergunta Miguel Gomes. Vasco responde que tecnicamente isso é impossível, porque ele registra os sons que quer. “Eu sou diferente de você”. O embate entre os dois alude à forma como a materialidade sonora de um filme envolve a escolha entre sons desejáveis e descartáveis.

Em determinados filmes, as dinâmicas da escuta tornam-se elementos constitutivos da narrativa, como é o caso da franquia Um lugar silencioso, que Felipe Leal analisa em um dos textos desta edição da Multiplot. Os sons podem acentuar ou reforçar o que é visto nas imagens, mas efeitos sonoros e temas musicais também podem criar tempos e espaços imaginados apesar da tela, como argumenta Chico Torres em texto sobre Blue (1993), de Derek Jarman. 

Nem sempre o acoplamento do som à imagem resulta em uma codificação unívoca de sentidos dentro da estrutura narrativa. A fala como elemento sonoro não se sustenta apenas por meio do diálogo, mas sobretudo a partir de seus instantes silenciosos. No ensaio “Por um cinema falado” – traduzido nesta edição pelo Bernardo Moraes Chacur -, Éric Rohmer afirma ser “necessário que a palavra desempenhe um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual”.

É possível também pensar o som fora da ideia de correspondência à imagem ou de vínculo com a representação por uma forma propositiva de disjunção entre olhar e escuta. A partir dos anos 50, Stan Brakhage recusa o uso do som em seus filmes experimentais, por afirmar que as imagens em si mesmas já continham sonoridades. A sugestão sonora estaria na cadência, no ritmo, na pulsação das imagens. Pensar as frequências sonoras de um filme teria a ver com pensar a montagem das próprias imagens. 

Em suas múltiplas possibilidades, o som no cinema pode estabelecer vínculos diretos com as imagens ou pode transbordar os limites da visualidade. A nova edição da Multiplot propõe aguçar nossos sentidos para as escolhas das sonoridades dos filmes que escolhemos falar. 

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Sem Sol: Via Dupla

Por Pedro Tavares

No final dos anos 70, enquanto retornava aos projetos pessoais, Chris Marker fez uma série de viagens pelo mundo e a partir delas captou alguns signos da existência além de puras imagens. Sem Sol (1983) é uma espécie de mapeamento em via dupla – som e imagem – sobre a humanidade. E com esta via, um filme que se ouve para tomar um rumo e que se vê, para tomar o outro. É um jogo profundo e inerentemente político entre a natureza desta arte e seus aspectos técnicos.

Como um filme seminal que embaça fronteiras entre o filme-ensaio, documentário e ficção, Sem Sol é uma intensa colagem de sintomas. Colagem esta que levanta questões semelhantes aos efeitos do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, ao tirarmos ou colocarmos uma imagem – ou as mudarmos de lugar. Enquanto constrói ideias acerca de um futuro distópico com imagens que registram ou emulam o ordinário através do cotidiano no Japão, Cabo Verde, Estados Unidos, Guiné-Bissau e Islândia, os comentários-carteados feitos por Sandor Krasna tomam corpo pela voz de Florence Delay. Krasna, no entanto, não existe. É um personagem para representar as emoções de Marker. 

É através dela que o filme dá passos para trás, como um respiro necessário para acompanhar as imagens e com novos códigos, dar um novo significado, como uma readaptação ao pensamento de Farocki que não precisamos usar novas imagens e sim dar novos significados às existentes. Há uma conjuntura aqui, pois Marker utiliza de imagens de terceiros e sente-se livre para citar e ressignificar filmes e diretores como Hitchcock, Tarkovski, Vincent Minnelli e a si mesmo, mas também coloca questões sobre o jogo de poder envolvendo a câmera e o personagem e a ética no gesto da captura e na reprodução de qualquer imagem.  

Esta elaboração entre imagem e palavra e seus caminhos divergentes coloca em xeque até mesmo o valor de cada natureza. Enquanto exibe um produtor de games como um inerente comentário sobre o futuro, Marker salienta que só o eletrônico pode tratar o sentimento, a memória e a imaginação, desta vez com a voz da narradora. Estes embates que trazem diferentes valores entre fundamentos cinematográficos reforçam a ideia de uma construção de coerência entre ambos como um idealismo, um pensamento não anacrônico enquanto cada ponta segue para o desencontro. 

Quando Deleuze pensa em Foucault e simboliza seus encontros com o professor por “rachar coisas e palavras” e, num compêndio acidental com o filme Marker, também usa uma carta para se comunicar com o crítico Serge Daney, o filósofo e teórico francês a batiza de “Otimismo, pessimismo e viagem”. Deleuze fala de uma nova função da imagem, a da pedagogia da percepção e da espiritualização da natureza; a natureza da imagem, portanto. É interessante pensar nestas rachaduras e na pedagogia da percepção aplicadas ao filme de Marker e como o diretor levanta questões sobre a “ética do dispositivo” enquanto o mundo encontra um norte nebuloso.  Marker faz das cartas, das palavras, um diário-manifesto oral e com a força que se ouve o êxtase sobre o campo social, uma decodificação poderosa sobre a existência e anula a possibilidade de castração deste panorama com o sistema de fluxo tirânico de imagens complementando o agenciamento de expressão. 

Sem Sol, portanto, é um filme que exige acompanhamento bifurcado, de certas revisitas a como se lê e relê uma frase em um livro. A voz que se ouve na leitura é a voz de Delay, Krasna, Marker e também a nossa como uma simples convergência entre vida e filme. E é de Deleuze, em entrevista a Claire Parnet, novamente falando sobre Foucault, um resumo acidental de Sem Sol: “(…) É preciso que as forças do homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas forças com as quais do homem se associam”. Como a concepção de memória, que cria sua própria ficção dentro das lacunas a fim de complementar a noção de mundo e vivência, Sem Sol é um filme que configura seus próprios espaços na diferença de percepção. Nos diferentes códigos de compreensão do real e sentidos, Marker faz dois filmes distintos: duas narrativas, dois olhares, duas histórias a ouvir.

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Ressonâncias e (Não)Escutas: Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) e #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) 

Por Kênia Freitas

Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nesta dialética, aqueles(as) que são ouvidos(as) são também aqueles(as) que “pertencem”. E aqueles(as) que não são ouvidos(as), tornam-se aqueles(as) que “não pertencem”.

(Grada Kilomba)

Não serei interrompida! Não aturo o interrompimento dos vereadores dessa casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita!

(Marielle Franco)

Cosmopoética não é nem um fetiche nem uma marca registrada, apenas um termo, um modo entre outros de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta – o sentido de ressonâncias e de correspondências – mais do que a visão.

(Dénètem Touam Bona)

As cenas iniciais de Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) são fotografias e imagens em branco em preto de uma grande manifestação no centro do Rio de Janeiro cobrando justiça pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. O bloco é também composto pela montagem de áudios de jornais sobre a execução da vereadora e do motorista Anderson Gomes, assim como por manchetes que destacam mulheres pretas ocupando posições de poder. Essa montagem estabelece a prerrogativa do filme de Éthel Oliveira e Júlia Mariano: o trauma causado pelo assassinato de Marielle Franco e os desdobramente políticos desse trauma – com o aumento significativo de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras a cargos legislativos nas eleições de 2018.

Prerrogativa posta, o filme entra em sua jornada acompanhando as campanhas e posses (no caso das eleitas) de seis mulheres pretas: Mônica Francisco, Rose Cipriano, Renata Souza, Jaqueline de Jesus, Tainá de Paula e Talíria Petrone – candidatas a deputada estadual ou federal pelo estado do Rio de Janeiro por partidos de esquerda (PSOL, PT e PCdoB). A partir daí, o tom histórico e mais distanciado dá lugar a um documentário observativo filmado de forma íntima e cúmplice com as personagens e os seus posicionamentos políticos. Uma cumplicidade que se desdobra na câmera presente e de escuta atenta, nos momentos banais (deslocamentos nos carros, os cabelos sendo trançados, as compras no supermercado para o novo apartamento) e nos mais marcantes (grandes manifestações, a apuração dos votos e a posse) das campanhas.

Além da câmera observativa, a composição do filme é atravessada de materiais de texturas e origens midiáticas diversas: o registro amador de abordagens policiais abusivas, os videoclipes de campanha e o seu making off, os bastidores de uma entrevista para uma equipe internacional, stories do Instagram e posts do Twitter das candidatas. Materiais montados a partir do protagonismo compartilhado pelas seis candidatas em uma estrutura de fluxo contínuo e linear estabelecida pelo passar dos meses.

A pluralidade do título informa assim a coletividade posicional que interessa ao filme como organizadora da ação – as mulheres pretas de esquerda atuando na política partidária. Ainda que ao longo da narrativa, a singularização de cada uma das candidatas possa ser perceptível (por suas trajetórias, locais de atuação e formas de se expressar), o trabalho que as diretoras se propõem política e esteticamente é o de amalgamar essa vivências em um corpo multifacetado mas único.

Dessa forma, a apresentação das candidatas vai enfocar momentos de encontro e comunhão, como Mônica Francisco (que é pastora) no culto da Nossa Igreja Brasileira, Tainá de Paula no lançamento da pré-candidatura aberta por uma apresentação de dança afro, Rose Cipriano, Renata Souza e Talíria Petrone participando da 4ª Marcha das Mulheres Negras. Nesses encontros, a escuta se volta tanto para o discurso das candidatas, quanto para vozes, músicas e sons dos ambientes – tambor, orações e abraços.

Como uma boa parte do filme se faz dentro das fronteiras desse corpo coletivo – entre rodas de conversa da militância, reuniões das equipes de campanha e atos de esquerda -, a entrega dos santinhos faz chocar esse corpo com outros, com um fora. Sequências cruciais na constituição desse corpo comum pela repetição de gestos e modos de falar, e também pela repetição de experiências menos controladas – encontros às vezes breves e felizes, e outras vezes desencontros e não escutas. Isso culmina na cena em que uma ambulante diz para Jaqueline de Jesus que já tem candidato e ele é do Partido Novo e o diálogo se encerra de imediato com um “boa sorte!”. De ambas as partes, não há o que dizer – da parte do filme cúmplice também. 

Nesse sentido, Sementes é um filme sobre a criação de um novo pertencimento (o político partidário para as mulheres pretas) a partir do trauma. Um pertencimento que se faz, no filme e para fora, centrando a posicionalidade dessas mulheres pretas como ponto de vista e de escuta. Dentro desse corpo coletivo tudo ressoa e germina, o fora dele (os “novos”, a família Bolsonaro e os quebradores de placa) é uma contagem de votos que emudece os comitês estarrecidos. 

Politicamente #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) se situa no mesmo momento em que Sementes (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020), ambos próximos a avassaladora vitória da extrema direita nas eleições de 2018. O ponto de partida do filme de Bernardet e Rewald é da crise da esquerda – do “esgotamento profundo dos modos de organização das lutas e das mobilizações” ou da sua “incapacidade de sair da reatividade e propor pautas” – como diagnostica o artigo escrito por Vladimir Safatle e lido por Bernardet no começo do filme. A estratégia narrativa do filme passa longe da cumplicidade e da criação de pertencimento, sendo a de incitar e ampliar essa crise e os seus efeitos de incertezas. A pergunta “e agora o que?” do título é ao mesmo tempo um ponto de partida e um ponto de chegada para filme que se firma na impossibilidade de qualquer resolução.

Estratégia já posta na própria forma do filme – uma auto-ficção ou ficção feita a partir de personagens reais (bem no estilo Bernardet de jogar com os limites entre ficção, documentário, filme experimental e ensaio). Vladimir Safatle interpreta o intelectual paralisado pela crise; Bernardet seu pai, um militante saudosista e Palomaris Mathias a interlocutora política da dupla. A partir disso, o filme passa a propor uma série de situações e encontros – mais ou menos estruturados, às vezes totalmente ficcionalizados e outras atravessados pela não ficção – para provocar ainda mais a situação de crise.

Essas situações são em grande parte atravessadas pela impossibilidade de comunicação entre os diversos grupos dentro da esquerda – grupos de geração, de gênero, de classe, de raça, etc. Uma comunicação impossibilitada não pela ausência da fala (os muitos trechos de entrevistas, palestras e discursos públicos de Safatle incorporados ao filme ressaltam a eloquência verborrágica do filósofo), mas marcada sobretudo pela incapacidade de escuta. Uma não escuta encenada de inúmeras maneiras no filme: a impassividade de Safatle com a performance perturbadora do ator do Teatro Oficina que grita na sua cara; na cena em que o trio de protagonistas finge normalidade enquanto tem a sua conversa atravessada pela faxineira que liga o aspirador de pó; a briga com a filha estudante universitária pela recusa do intelectual em crise de participar da assembleia.

Ancorando-se na incapacidade de ouvir desse intelectual em crise, a não-escuta é assumida pelos diretores como uma performance estética e política para o filme. A performance da não-escuta da personagem principal parece inicialmente uma estratégia auto-depreciativa para questionar a posicionalidade normativa do seu protagonista – homem, branco, cis, hétero, de classe média alta. Isso sobretudo quando essa não escuta é assumida enquanto encenação – a cena da reunião com a enceradeira, o comentário aleatório da atendente no café, o embate entre pai e filha ou pai e filho. 

No entanto, mais do que a auto-depreciação, o que ocorre neste dispositivo fílmico é o centramento desse homem, cis e branco. A coletividade “esquerda” que o filme apresenta em crise e para a qual lança a pergunta “E agora o que?” mostra-se na narrativa menos atravessada por uma multiplicidade de raça, gênero e classe dos personagens reais e ficcionais que passam pelo filme, e mais alicerçada nessa experiência normativa do homem branco como o ponto de vista e de (não) escuta. Ao mesmo tempo em que ancora, essa experiência apaga a existência de sua própria posicionalidade.

Nesse sentido, a decisão de não identificar de maneira explícita no filme ou nos créditos quem são as personagens reais e as personagens fictícias que os atores interpretam não equaciona de forma anônima os participantes. Ao contrário, reforça as desigualdades de status sociais e de notoriedade pública previamente existentes. Uma cena que marca a decisão deliberada de não posicionalidade do protagonista é do recital de piano, em que após apresentação o intelectual encontra seus pares (outros homens e mulheres brancos de classe alta) e começa a fazer perguntas constrangedoras e hostis sobre posicionamentos políticos e financeiros que os seus pares estruturam. Como o indagador impertinente, o personagem se coloca fora do seu pertencimento de classe e raça.

Em termos narrativos, a invisibilização dessa posicionalidade específica parece contar com a associação automática da experiência do homem branco com a do sujeito neutro e universal – o seu pertencimento não precisa ser criado, foi herdado. E, isso posto, as premissas que atravessam o filme são reforçadas: a não-escuta vira não diálogo, a incapacidade de conversar vira reatividade da esquerda, que vira falência generalizada dos processos de organização e luta.

    Não por acaso, o filme se encerra na conversa tensa entre Safatle e os moradores do Capão Redondo, em que os militantes da quebrada recusam a aliança proposta pelo intelectual – “nós aqui e vocês lá”, diz um dos jovens. De um ponto de vista narrativo, essa seria a cena que poderia sustentar a hipótese do não diálogo e da reatividade da esquerda fraturada pelo identitarismo neoliberal individualista. Porém, se a escutarmos a partir da afirmação de um “nós” e um “vocês”, a recusa pode ser ouvida não como uma aversão ao diálogo, e sim como um dissenso à persistência da naturalização da posicionalidade normativa (branca, cis e masculina) como neutra e universal.

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Por um cinema falado

Éric Rohmer[1]

Tradução: Bernardo Moraes Chacur

O cinema passou mais de trinta anos aprendendo a prescindir da palavra. É natural que, dezoito anos depois[2], ele ainda não tenha encontrado a forma de utilizá-la. Estou me referindo à desconfiança, disseminada entre os melhores diretores, com relação a esse poder da linguagem que lhe é essencial, o de significar. Se o filme falado é uma arte, é necessário que a palavra desempenhe nele um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual. Ainda é muito difundida a crença de que o valor de um filme seria proporcional à sua independência das palavras e de que uma obra cinematográfica digna desse nome perderia muito pouco ao ser assistida sem dublagem por um público estrangeiro. Pode-se admirar o excelente Farrapo Humano porque Billy Wilder consegue iluminar as intenções mais sutis de seus personagens com métodos puramente visuais – ou sonoros. Mas lamenta-se, enfim, que eles falem. A palavra ou é supérflua ou indispensável. Não se pode adicioná-la sem necessidade ou subtraí-la sem prejuízos.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, Billy Wilder, 1945)

Em resumo, não é exagero dizer que, até hoje, há apenas um cinema sonoro. O erro dos cineastas de 1930 foi acreditar que somente a questão do tratamento cinematográfico do som era importante, enquanto a solução para o problema secundário da palavra (a introdução de um modo autônomo de significação, que é a linguagem, em uma arte de expressão visual) seria encontrada como decorrência lógica da primeira. Todos os esforços posteriores conduziram ao enfraquecimento da potência própria à palavra. Logo compreendeu-se que a palavra era som antes de ser signo e admitiu-se que ela deveria ser tratada como um modo de ser e não de revelar. A fala de cinema não se apoia somente sobre os diálogos que a precedem ou que a sucedem, ela está no tempo e não no texto. Simples instante no desenrolar de um filme, ela requer a sustentação de outros instantes, inclusive dos silenciosos. “O problema principal para os roteiristas”, escreveu André Malraux, na Verve em 1940, “é saber quando os seus personagens devem falar”.

Não se trata de trapacear. O problema do cinema falado não é apenas de encenação e o papel cada vez mais especializado que, na maioria dos casos, é relegado aos diretores, é certamente uma das causas desse equívoco. Eu sei que alguns dialoguistas compreendem muito bem que devem escrever para as telas de modo diferente do que fariam para o teatro ou para a página impressa. Pode-se inclusive repreendê-los por introduzir modificações absolutamente desnecessárias em suas adaptações, sob o pretexto das exigências próprias ao cinema. Mas esses remanejamentos se concentram muito mais sobre os modos de apresentação do que sobre o sentido. A maioria dos diálogos escritos para o cinema até aqui podem ser definidos como falas de teatro ao estilo de romance. Em geral, sob a forma escrita, eles pediriam naturalmente o “disse ele”, que, em um romance, delimitaria as frases dos personagens a um intervalo específico de tempo. Ainda assim, seu conteúdo jamais atinge a naturalidade dos diálogos dos romances americanos, por exemplo. Estes, conforme suficientemente demonstrado pela experiência, não podem ser transpostos para as telas sem perdas. Tais diálogos só são eficientes, aliás, porque conseguem trazer à vida todo um mundo à sua volta. No cinema, esse mundo existe. A frase pronunciada não precisa evocá-lo, mas somente encaixar-se nele e, desse modo, possuir uma densidade de sentido capaz de salvá-la da destruição. Os dialoguistas com aptidão para o cinema tentaram viabilizar de diversas maneiras essa junção entre palavra e mundo filmado. O texto de Prévert costuma ser um comentário poético ou humorístico sobre a imagem, mas o erro é precisamente confundir a imagem com um elemento do filme, como se fez tantas vezes desde o começo do cinema falado. Griffith, Sjöström, os expressionistas alemães, Chaplin, Gance e Eisenstein criaram – por meios muito diferentes – uma linguagem que se mostrou quase tão rica e sutil quanto a fala. É compreensível que a palavra tenha surgido como um elemento parasita, a ser mantido sobretudo às margens, e que a presença simultânea das duas linguagens tenha enfraquecido consideravelmente a capacidade expressiva de ambas. Não apenas a palavra foi tratada como som, conforme já mencionado, mas também a imagem foi reduzida a simples quadro ou cenário. A imagem nunca foi tão intrinsecamente bela, tão amorosamente trabalhada por seus especialistas quanto nos anos entre 1930 e 1940, uma verdadeira era de ouro para esses profissionais, sobretudo na França. No período, os diretores legavam a esses especialistas a maior liberdade possível com relação à determinação da posição dos atores no quadro e à distribuição das massas de sombra e luz.

Em nossa opinião, a relação entre o elemento visual e a palavra deve se estabelecer de forma totalmente diferente. Vários filmes permitem entrever como a linguagem poderia recuperar sua verdadeira função, precisamente aqueles que, passada quase uma década, indicam o rumo para uma nova concepção de decupagem. Talvez devamos exigir menos dos dialoguistas do que dos próprios diretores, que frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos. Não será, tampouco, com personagens enunciando máximas de La Rochefoucauld enquanto consertam rádios ou dirigem por vias engarrafadas, entrecortando seus discursos com interjeições e balbucios, que se falará a uma autêntica linguagem de cinema. A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra. Os melhores diálogos de Cocteau estão em As Damas do Bois de Boulogne, assim como os melhores de Prévert estão em O Crime de Monsieur Lange, porque Bresson e Renoir só lhes permitiram incluir o essencial à compreensão do filme (e não estou me referindo à sua dimensão anedótica). Com o uso do plano-sequência, tal exigência se torna ainda mais evidente e o ponto fraco de Cidadão Kane, é que nele a palavra ainda é tratada como barulho. Em Soberba (que considero superior), por outro lado, até a palavra mais breve tem peso, porque ela nos revela aspectos dos personagens ainda não evidenciados pela narrativa. Os dois melhores exemplos são sem dúvida o plano fixo na cozinha e o longuíssimo travelling ao longo da rua. Um jogo entre plano e contraplano teria certamente enfraquecido o caráter expressivo de ambos. A imobilidade do ritmo (caso possa-se assim dizer), a fixidez obstinada dos dois personagens, o “não coma tão depressa”, da tia, desempenham um papel bem oposto ao realismo mundano que o cinema costuma oferecer com condescendência. Retomando a distinção clássica, eles estão ali por necessidade e de forma alguma por verossimilhança. O travelling ao longo da rua, por sua vez, exprime pelo seu desenrolar monótono o vazio de uma conversa que não será concluída. Não é com a imagem que a palavra mantém uma relação, mas com um elemento totalmente cinematográfico: a dinâmica do plano, ainda que nesses dois casos, ela seja obtida por uma tensão na imobilidade.

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Assim, é preciso encontrar uma maneira de integrar a palavra ao filme e não ao mundo filmado, seja ao plano em que ela é enunciada ou à uma sequência anterior ou subsequente. Na cena do hangar em Portas da Noite, a falha do texto de Prévert (no diálogo entre Yves Montand e Nathalie Nattier) é evocar um imaginário exterior ao filme, como em uma narrativa teatral.  Já a sequência de O Crime de Monsieur Lange, na qual René Lefèvre relata a Maurice Baquet como passou sua manhã de domingo, é excelente pela dupla razão de aludir diretamente a uma outra cena e porque esse relato é mentira. Não se mente o suficiente no cinema, exceto talvez nas comédias (pode-se considerar que René Clair, Lubitsch e Capra dirigiram os filmes de maior valor do período entre 30 e 40, as raras obras que não nos forçam à nostalgia pelo cinema mudo). Para atenuar ou controlar a potência formidável da palavra não é necessário, como se acreditou, tornar a sua significação indiferente, mas enganosa. No teatro, nunca se mente. Isto é, seja na tragédia ou na comédia, a palavra nunca é simplesmente modo de ação de um personagem sobre os demais e sempre possui um valor intrínseco – ou atemporal se preferirem. Não há lugar no teatro para aquela ambiguidade própria aos diálogos de Dostoievski, Balzac ou Faulkner. Por outro lado, encontramos essa ambiguidade nos melhores filmes realizados nos últimos dez anos: A Regra do Jogo de Renoir, As Damas do Bois de Boulogne de Bresson/Cocteau, na obra de Preston Sturges, em alguns policiais americanos como O Falcão Maltês de Huston/Hammett ou À Beira do Abismo de Hawks/Faulkner. Em Orson Welles, esse hiato entre a significação da palavra e a do elemento visual, o contraponto entre texto e película (que é totalmente diferente do contraponto sonoro outrora preconizado por Pudovkin e Eisenstein) tende a seguir a via do comentário. Nos últimos anos, diretores muito diversos têm usado com frequência esse procedimento – talvez um pouco simplório – evidenciando a inegável necessidade de restituir à palavra a sua função legítima dentro de um filme.

As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, Robert Bresson, 1945)

A distinção que podemos estabelecer entre o cinema e o teatro não recai de forma alguma sobre a importância respectiva que cada um confere à palavra. Temos, sobre os cineastas de 1930, a imensa vantagem de não sermos mais assombrados pelo espectro do teatro filmado e será possível, de agora em diante, dedicar toda a nossa atenção ao problema essencial: escrever diálogos realmente feitos para o filme no qual terão lugar. Isto pressupõe, da parte dos dialoguistas, um conhecimento perfeito da linguagem visual com a qual o diretor pretende se expressar e, da parte do segundo (caso não sejam a mesma pessoa, como desejável), a disposição para considerar a palavra como parte constitutiva de sua obra.

Até tempos recentes, enquanto se contentava em adaptar de forma mais ou menos hábil os procedimentos que outrora compensaram a ausência das palavras, não se podia dizer que havia um verdadeiro estilo do cinema falado. Para a elaboração desse estilo, deverão ser aproveitadas as explorações das vanguardas dignas desse nome, apesar das dificuldades materiais. Já esperamos demais pela prova de que a era do cinema falado já começou.

Le Temps Modernes, setembro de 1948 (Retirado da coleção Le Goût de la beauté, Cahiers du cinéma, 2004)                              

Conto de Verão (Conte d’été, Éric Rohmer, 1996)


[1] Na verdade, o artigo é assinado por Maurice Schérer, que só passaria a usar ‘Éric Rohmer’ a partir de 1955, já na Cahiers du Cinéma.

[2] O texto foi originalmente publicado em 1948.

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Mu, a terra da impossibilidade sonora – sobre Abismu, de Rogério Sganzerla

Por Gabriel Papaléo

“Quem sabe a ameaça vem mais dos silêncios que dos ruídos?”

Ítalo Calvino, Um rei à escuta, em Sob o sol-jaguar.

O cinema caseiro pede anistia, e, indo até as ruas, com imaginação podemos achar as vontades dos deuses. Já no início de O Abismu, o primeiro longa de Rogério Sganzerla pós-Belair, nos deparamos com um interesse e uma proposta de transcendência do diretor: estamos convidados a procurar embates místicos com as paisagens do Rio. É onde está a cidade de Mu, uma terra lendária e perdida à espera do despertar de seu portal mágico, cujos habitantes usaram dos cartões-postais da cidade para construir seu portal. A civilização maia ficcionalizada e transformada para o Brasil do fim dos anos 70, a agonia da espera por dias mais livres, a elegia para uma cultura que não tem mais a estrutura que comporta suas ideias.

Sganzerla e Renato Laclete prendem a câmera ao carro da Madame Zero, vivida por Norma Bengell com um charuto enorme e vão à procura de uma nova religião, andando de carro a esmo, encarnando arquétipos vários, deixando-a desorientada pelo sincretismo. Nessa mesma frequência de luta entre forças místicas aparece a participação de José Mojica Marins como o professor cientista louco, um dos imaginários de ficção-científica cinquentista mais caros à Sganzerla, como um maníaco ganancioso a tentar conquistar o espaço, os portais, as fronteiras, e por que não os corpos. É importante que a cultura popular esteja impressa nos personagens de O Abismu porque, para Sganzerla, o que está em jogo com a invasão de Mu é todo um pesadelo linguístico de exceção cultural – que se assimile tudo que o Brasil tem direito de reclamar para si como identidade antes que os gringos venham tomar essa fronteira mitológica.

Nesse retrato à mão-livre, como pequenas vinhetas de pessoas que entraram em contato com esse divino alienígena quase incompreensível, muito dessa não-linearidade se percebe pelos dispositivos técnicos que Sganzerla usa. Quase tudo é rodado em câmera na mão, as bitolas gastas do 16mm parecem abraçar só a luz natural, e o grão forte e expressivo dá ao filme um teor caseiro que só reforça que Sganzerla está interessado em uma profecia em primeira pessoa, mais íntima, de pequenos contos fantasiosos desse filme-ensaio sobre misticismo, religião, e fé no desconhecido.

E como é o som dessa nova religião em formação? Qual o som egresso de outro mundo? O Abismu é um filme de paisagens e profecias, e a sujeira da imagem encontra no som uma nova oportunidade de agressividade. Sugerem-se barulhos de motor, ruídos descontínuos, diálogos que flutuam pelos ares do Rio sem casar necessariamente com o acúmulo narrativo, bem à forma de manchetes, de quadrinhos, das quais Sganzerla abraça com fervor. Na cena na qual a Madame Zero de Bengell canta de branco, parece que sua voz é de uma consciência alheia, de um som que paira sem controle e sem autor pelo vento. Quase não há diálogos claros em O Abismu, muito porque é um retrato de profetas e de charlatões, de Mojica Marins convocando “os boçais do mundo” a se unir, de Jorge Loredo versando sozinho em meio aos morros. Na unidade sociocultural imposta não existe conversa, existe proclamações, existe monólogos disparados ao vento, e a ousada proposta de som de Sganzerla parece lembrar que “unidade” também pode ser supressão do específico – e não há clareza possível de palavras diante dessa ebulição da consciência diante de contatos místicos.

Os ruídos e distorções são a regra de som e imagem em O Abismu, e talvez a única linha clara sonora é a da guitarra (distorcida) de Jimi Hendrix. Seria essa escolha intencional? O estado do som nos filmes brasileiros sempre leva a dúvida: nossos filmes mal-tratados tiveram o som captado dessa maneira precária ou foram as exibições na sala de cinema (e as subsequentes telecinagens) que não fizeram jus ao meticuloso trabalho sonoro? É dolorosamente comum acharmos cópias de filmes brasileiros num estado bem precário de imagem, mas mais comum ainda é acharmos cópias com o som prejudicado – o que gera a impressão de que o normal para “o filme brasileiro”, essa instituição una e insuficiente, é um som mal cuidado e por vezes de diálogos incompreensíveis. 

Quem procura ver online hoje filmes como “Um Homem sem Importância”, de Alberto Salvá, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci, só os encontra com diálogos estourados, uma mixagem pouco cuidadosa, e passagens sonoras bem confusas para a compreensão da narrativa. São filmes que se propõe abertos ao diálogo com a marginalidade cara aos realizadores brasileiros à época, que entendiam os comos e porquês de num sistema com pouca estrutura para se praticar cinema, o improviso e a possibilidade serem nossas maiores armas de invenção. Nesse movimento, as sementes do que foi desenhado como “cinema experimental” foram plantadas nesse período, que demonstrou que esse cinema, como o curta-metragem é e o digital também se revelou ser, é realizável.

Convencionou-se colocar o franco descaso de certos filmes com som sob a confortável coberta do “cinema experimental”, o estímulo à picaretice que faz com que grandes cineastas que utilizam do som precário para passar sua poética caiam no mesmo saco de oportunistas que pouco se importam com linguagem. Com Sganzerla não é diferente, e o som ambicioso, captado em meio aos ventos do Rio, aos ruídos no diálogo, nos lembra o tempo inteiro que estamos diante de um retrato caseiro, como ensaios filmados – a fina linha entre a “tosquidão” como manifesto estético dita por Paulo Emílio Salles Gomes, e a legítima falta de infraestrutura destinada ao cinema brasileiro e sua técnica. E Sganzerla constroi um cataclisma com isso, mesmo sob modestas pretensões – pelo menos para a abrangência de suas reflexões. Estamos diante de um filme que só foi possível em 1977 dessa forma. E isso passa também pela cuidadosa jornada sonora poluída do filme.

Não por acaso é com a guitarra distorcida de Hendrix em Monterey que Sganzerla termina o filme, embalando a destruição vista por imagens de outros filmes, a chegada de raças alienígenas com suas máquinas transformando o tecido da realidade em cores e líquidos que tiram nosso fôlego e nos absorvem. Mas diferente das músicas do inglês que atravessam o filme, em dado momento ouvimos a voz de Hendrix dublada, retorcida para encaixar na narrativa de Sganzerla, dizendo o quanto “todos vocês me inspiram”, falando sobre a expansão espiritual – a típica profanação misturada com homenagem tão comum ao método do diretor. Hendrix dá seu recado e dali em diante sabemos que estamos diante das trombetas do paraíso, finalmente reconhecendo o contato interplanetário que quem testemunhou tanto o Rio de Janeiro quanto às músicas do guitarrista inglês intuitivamente já experimentou inúmeras vezes.

N. do E.: Apesar do cartaz apresentar o nome do filme como O Abismo, no filme aparece O Abismu, com “u”.

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Do jogo de incontinência à mania da origem

Por Felipe Leal

    Na língua inglesa, quiet vem a traduzir tanto aquilo que está “quieto”, no sentido da pouca vibração, digamos, molecularmente falando, como também significa a ação que se faz num volume baixo, discretamente, em oposição ao que é loud, barulhento – de forma que estes Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) e Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place Part II, 2020) remetem inicialmente a uma forma de território inóspita, como veremos, a) no que diz respeito a uma lógica avessa ao manuseio “pesado” de qualquer objeto, situação dramática ou rotina de existência, e b) no que é preciso desenvolver de uma linguagem particular de sinalizações para crescer enquanto família. 

Aviões de brinquedo, os gestos da cozinha, a repreensão de um filho: desde que a misteriosa avalanche de monstros cuja visão está no barulho invadiu aquela incerta dimensão de mundo, o que se assiste como estando resumido, a princípio, à sobrevivência de uma família, está cercado e plenamente dependente de um jogo entre a vida e o som. Vida além do fator biológico; vida sob a régua da concepção, da expectativa que solda hábitos.   

    Às cegas sobre o futuro, continuamente em busca de sinais de vida alheia ou de uma sobrevivência mais bem equipada, e vendo seu microcosmo ruir em nome destas ausências mesmas, aquela família composta de quatro membros (melhor diríamos “cinco menos um”) não viveu sempre num território de inexplicáveis bestas com superforça e supervelocidade. Isto nos será atestado, em inteligente lance de economia diegética, por alguns jornais de conteúdo premonitório, profilático e massivamente emergencial, e pelos quadros simplificados com informações parcas e pouco úteis sobre os tais inimigos inumanos, ambas as formas de comunicação “coletiva” não fazendo mais do que duplicar, em palavras frias e gordurosas, a desesperança que os consome no “dia 89” ou no “dia milésimo” de um calendário já apocalíptico. 

Horror, então, de fim de mundo? Suspense de gatilhos sonoros? Ficção científica ou filme-dispositivo? Talvez, mais do que estes compossíveis, um só, contendo todos os outros: um exemplar family movie

Pois o que sabemos, agora, depois desta continuação minimamente ineficaz, ser a “franquia do lugar silencioso” não fez por seus andamentos e tesouradas diegéticas senão elaborar o slogan nuclear uma vez proferido pela senhora Abbott (Emily Blunt) em uma série de artimanhas paternas e maternas para educar aqueles dois filhos através dos ensinos extremos da proteção calculada. Em outras palavras: de uma ascese pelo som “de dentro”, pela ausência de som (esperança) que deve ser aceita e reelaborada no mundo da quietude que é agora seu lar. E como é comum às éticas televisiva e cinematográfica, hoje, que toda a sabedoria de certos antepassados seja invocada como um poder da boa persistência obsessiva edipiana, o que se poderá dizer de qualquer expectativa de continuidade aos filmes, que de fato despontaram numa premissa requintadamente original para as sensações, é que a marcha do amadurecimento filial é longa e patética o suficiente para aniquilar qualquer engajamento que ultrapasse dois pulinhos de horror.  

 “Quem somos nós, se não pudermos protegê-los?”, ela pergunta ao marido, e entremeados aos procedimentos de sobrevivência estarão tentativas de uma transmissão de sabedoria que consiste, por exemplo, em fazer o filho vê-lo pescar com as mãos, gesto em teoria escandalosamente barulhento, no limite de um “não-estresse do ambiente”, como se lhe pedisse para entender o som-do-peixe, o peixe tão-somente pelo que ele não será perceptível – e não temer o possível urso. 

No primeiro dos filmes, em particular, precisamente pela conquista de um frescor auditivo capaz de determinar o ouvido sobre a visão, e portanto criando o aberto no fechado, a exigência de um tipo específico de corpo espectatorial como pré-requisito para a duração integral da obra é sem dúvidas o maior dos triunfos, se pensamos num enraizamento para o gênero do horror como localizado no desenho sonoro, mesmo ali quando nos filmes do primeiro cinema o acompanhamento de orquestrações era matéria pensada mais ou menos em conjunto à fílmica. O que chamamos, na dimensão prática da confecção, de foley, a replicação de uma sonoridade a partir da captação de um barulho não necessariamente vinculado a seu “objeto de origem” – um crânio esmagado, por exemplo, se produz com uma melancia, uma porrada, um microfone –, constitui, mais do que o acesso ao filme, o próprio terreno da experiência pela qual estamos, de alguma forma, atados àqueles outros acontecimentos invisíveis, in-anunciáveis, monstruosos.

Literalmente incluídos numa malha codificada de regras, na singular posição do estrangeiro que cala para deixar a sobrevivência perceptível e em fogo médio, vemos ser quicada uma espécie de linguagem que opera não exclusivamente pelo entendimento, mas por velozes avaliações dos pesos envolvidos na união, que é a viva metáfora celular, racional, ontogenética do familiar. A máquina do filme – ou melhor, a máquina-filme – extrapola o “acontece-ali”, e esse organismo propriamente coordenado, no que um time de futebol americano se assemelha às trupes de dança, quando se trata de fascinar nossos olhos, esse organismo acrescenta ao imprevisível um grau de ESPÍRITO DE EQUIPE. Os itens de supermercado ganham relevos semi-eróticos, pois é necessário da ritualística do toque para alcançá-los, mais do que simplesmente consumi-los. Disto todos sabem, ainda que a lição deva ser repassada e repassada.

A linguagem se dá entre o sinal e o sussurro. Os gritos estão abolidos, as peças do mundo que disparam altas frequências ainda mais proibidas. Pode-se dizer que, em surpreendentes 90 minutos, o seu, o meu corpo humano acostumam-se com um mundo externo baseado em pegadas, abafados, roçares de gramíneas, tecidos, sutis reverberações de barulhos ocos. Que a mão corte o ar para “escrever” “você ficará bem”, antes da partida do filho para os treinamentos com o chefe-pai, as coisas só podem receber um literal desenho sonoro, porque não demorará muito para que quem assiste ao filme se aperceba destacado, a lápis, de onde está, para estar no que centenas de yoguis nos suplicariam, em vida, para que sentíssemos: o estar-na-atenção. Na fabricação do estado falso de repouso para o qual tudo se OUVE em sua propriedade particular. 

Mesmo que a retórica da família familiar tente se reintegrar aos ocorridos todos, dando-lhes o todos-por-um necessário para que o gênero amplie a suspensão do suspense (sob o custo do batido drama sacrificial), aqui, exatamente no que John Krasinski desenvolveu com outros dois roteiristas um plano legislativo de onde as regras partem, não se poderá negar que é inédito o poderio do cinema em recriar as máquinas corpóreas. O que eles sabem por ostensiva precaução, nós simultaneamente descobrimos e vivenciamos no ouvido (não esqueçamos que, para o corpo, a ótica ainda é o sentido de significação majoritário), por um desejo de antecipação do visto no que se ouve. 

Esse truque da densificação entre um caractere sabido e um outro, antecipável, sempre em “latência de”, tão bem cristalizado no Festim Diabólico (Rope, 1984), de Hitchcock, Krasinski leva ainda à outra dobra de confusão. Pois não é o prego pontudo e acidentalmente erigido na escada do porão onde eles habitam que irá engatilhar o urro de dor, mas a bolsa estourada que anuncia o parto, que traz como consequência a saída inventada pelo núcleo familiar para abafar um dos episódios mais barulhentos da vida, e, em especial, a previsão de que eles estarão unidos para dar cabo ao plano

Mulher sentada em frente a espelho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Cinema, arte da desunião aditiva. Mais da metade do filme, dali em diante, tratará do estado emergencial do barulho, ponto em que todo o inesperado se desova numa caixa de Pandora partida ao chão. Pode-se dizer que há uma sequência inteira, uma provação só, unindo todas as não desejadas. A mais especial delas fica sob responsabilidade do filho, que, mais unido à escolástica materna, mune-se da sabedoria de dizer ao próprio pai que é preciso que ele DIGA, à filha, do amor que sente por ela. O professar, neste caso implícito na tentativa de criar para ela um aparelho de aumento de audição, deve ser atado a um praticar ainda mais sacrificial. Mas tentar apaziguá-la do problema auditivo já não era suficiente? Não nos parece ficar posta em evidência a suposição de que nem a mais pornográfica das caridades é suficiente, se parte dos olhos do pai para aqueles de um filho? 

É um filme, afinal, de morais. E para as morais perderá o horror. 

“O que o papai fez – está em você”, passa a ser o mesmo outro lema do segundo capítulo da franquia. Sabemo-la uma franquia, aliás, por isto: o evidente é transferido para o final, para uma catarse paupérrima de complexo edipiano cuja função já foi proferida por dezenas de vencedores de Oscar: “nós vendemos histórias”, o poder de atravessamento que uma superação provoca no indivíduo que precisará se superar, mas primeiro moralmente, abaixando-se ao poder que deve lhe servir de fonte. Não tratarão mais de uma ética do som espraiada nos acontecimentos de um jogo com (agora) quatro jogadores fragmentados, nem de uma estratégia do contra-ataque condizente com a SAÍDA de uma primeira etapa do silencioso, mas encontrarão na obsessão pela origem esse mesmo espírito de encarnação familiar que se espera “do vizinho”, politicamente falando. O vizinho estenderá ou não, a ajuda? Quando cessar os cadernos do passado, quando não enumerar mais os mortos e não contabilizar mais seus desesperos, ele ainda será o bom Emmett (Cilian Murphy)? O bom vizinho? 

A mania de origem, de encontrar o agora no passado, presenteia-nos com um prólogo inteiro dedicado ao que já se esperava que o espectador “qualquer” tivesse lido na tática dos jornais, no filme anterior. Uma entrada, convém explicitar, menos sobre a família, menos sobre as regras ou sobre os horrores adaptativos “do começo”; menos sobre o começo de tudo, em si, e mais sobre o caráter colecionável e industrial da cosmogonia. A que ela serve?, tampouco poderíamos responder. O que é definitivo ao filme é que o som, de ausência cultural, torna-se falação, do mesmo modo que as grandes sagas eventualmente se tornam bonecos, quebra-cabeças, camisas, canecas. A ambição é a de identificá-los com maior profundidade ao tipo de heroísmo que se prova ininterruptamente, em tudo e em todos os dias, e que para tal apenas precisa rememorar a bravura-pai. O passado é a Ideia que se amarra com a fita da boa lembrança, a Única.

Se tivesse argúcia o suficiente para beirar a crise de deus, este estaria envelopado perfeitamente na ética do pai-ressuscitado-que-por-nós-deu-tudo. No professar praticado desta ética. Do começo ao fim, o que se acusa, PRATICAMENTE, é que o armamento inventado por aquela família, a perturbação nervosa causada nos monstros pelo borrão sonoro dos transmissores, tão-somente recebe um dado extra de transmissão, advinda de um acontecimento do fundo do peito. É o fenômeno do rádio no Lugar Silencioso, e também o fenômeno da conversão filial – fim. É como descobrir que uma xícara levemente quebrada pode servir de cinzeiro, e ver neste um santo. E como a apoteose final é uma irrupção da dimensão pela qual eles se munem contra um número (só aparentemente) cada vez maior de monstros, quem sabe a saga não precise de dezoito continuações para que eles cheguem a algum encontro à altura do descanso e da troca de inteligências. O som, o conceito do som, o espaço extrassensível imantado pelo som, sabe-se lá se não encontra, adiante, uma maneira menos letal de ressuscitar também a Wi-Fi. 

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Vigilância e ruído em Hacked Circuit (2014) de Deborah Stratman

Por Natália Reis

“Such a satisfying idea – noise annoys – at once

simple-to-grasp kernel and yet capable of inflation into

the most grandiose theories of subversion. But… who

is there to be annoyed and in what ways?”

Simon Reynolds

Astro Noise foi o nome dado por Edward Snowden ao arquivo encaminhado à jornalista Laura Poitras em 2013 contendo os documentos que atestavam uma série de violações de privacidade cometidas por inteligências governamentais nos EUA pós 11 de setembro. A designação é uma referência ao fenômeno descoberto acidentalmente na década de 1960 pelos astrônomos Robert Wilson e Arno Penzias, conhecido como cosmic microwave background radiation (radiação cósmica de fundo em micro-ondas) – um tipo de “eco” ancestral do big bang captado através de um ruído constante nos equipamentos do Bell Labs e cuja radiação pode ainda ser detectada numa porcentagem ínfima da estática da TV. Em um curto ensaio para o catálogo da exposição artística de Poitras (também nomeada “Astro Noise”), Snowden compara a “canção secreta das estrelas” e a aleatoriedade com que pôde ser descoberta às técnicas de criptografia e descriptografia, que refletem tanto a proteção quanto a possibilidade de exposição de nossos dados. 

O ruído por vezes é tido como sinônimo de erro, poluição, um fator externo de intromissão, não categorizável. Musicalmente falando, o crítico Simon Reynolds diz ser possível defini-lo como “interferência, algo que bloqueia a transmissão, atrapalha o código, impede que o sentido seja feito. (…) ocorre quando a linguagem é rompida, é um estado de afasia no qual nossa própria constituição corre perigo.”. Se em algum nível o ruído também pode ser compreendido em termos subversivos, a figura do whistleblower é potencialmente ruidosa quando expõe e desestabiliza um sistema perverso de vigilância e controle. Em Hacked Circuit (2014), filme dedicado a Edward Snowden e ao montador e sonoplasta Walter Murch, a realizadora Deborah Stratman explora a natureza dissonante do ruído para trazer à tona, num plano sequência de quase 14 minutos, procedimentos ocultos da sonorização cinematográfica ao mesmo tempo em que percorre sorrateiramente o espectro paranoico que tomava de assalto o cidadão comum após as revelações de Snowden.  

Já nos primeiros segundos do curta-metragem, somos levados a uma espécie de estado de vigília. O tema musical de A Conversação (Francis Ford Coppola, 1974), um piano solitário e repetitivo composto por David Shire, parece controlar o ritmo com que o cinegrafista avança lentamente por uma rua escura e deserta com o steadicam. Aos poucos, a trilha dá lugar a um tipo de operação acusmática na qual sons de objetos pesados chacoalhados, estampidos e baques em superfícies de metal e madeira podem ser escutados, mas não localizados. Um zumbido persistente se mistura à campainha de um telefone e a uma voz masculina abafada enquanto a câmera prossegue em sua trajetória pela calçada até entrar em um edifício bem iluminado. Até esse ponto não existe nada que indique uma pista do ambiente, nenhum sinal da intenção por trás desse movimento perscrutador.   

Os ruídos cessam para dar lugar à sonorização diegética, que emerge diante da visão de um homem no interior do local servindo café de uma cafeteira. Ele sai de quadro e uma panorâmica lentamente vai revelar o que até agora se manteve incógnito na imagem, mas presente no desenho de som: num estúdio (que mais tarde descobriremos se tratar do Sound Satisfaction, Inc. em Burbank, Califórnia), equipado com uma mesa de sonoplastia, um operador (o mesmo homem que vimos na antessala) observa nos monitores à sua frente Gene Hackman como Harry Caul, o protagonista de A Conversação, ao passo em que um artista de foley do outro lado da mesa acompanha com atenção suas movimentações. 

A cena exibida em quatro telas de tamanhos diferentes retrata os momentos derradeiros do filme de Coppola. Nela, Harry Caul, um especialista que presta serviços privados de espionagem, colapsa ao contemplar a possibilidade de estar sendo submetido aos mesmos métodos de vigilância que empreende diariamente. O personagem de Hackman passa a buscar por dispositivos de escuta até destruir completamente seu apartamento, mergulhado na degradação das certezas que mantinha sobre sua privacidade. Lançado ainda no calor do escândalo de Watergate, e com Walter Murch responsável pela edição de som, A Conversação é uma obra que se apoia de forma substancial nos seus aspectos sonoros para estabelecer um clima delirante de vulnerabilidade e desconfiança. O que Stratman faz em Hacked Circuit é deslocar desse contexto um ponto crítico e desmontá-lo como quem exibe o esqueleto metálico de um mecanismo. O circuito é exposto, desvendado. 

Numa coreografia quase orgânica e ao mesmo tempo cautelosa, a câmera se movimenta pelo estúdio testemunhando as técnicas empregadas pelo artista de foley, que troca instruções com o operador da mesa enquanto reencena, fazendo uso de diferentes objetos – um gesto que  revela ainda outro aspecto do som, para além da comprovação: a dissimulação –, todo o episódio final de aniquilamento. O steadicam atravessa o ambiente e sai pela porta de trás num movimento de recuo, os sons são projetados para fora e o cinegrafista volta para a rua escura. O tema de Shire reaparece em meio a uma profusão de ruídos cada vez mais altos, reconhecemos a calçada, a esquina, reavistamos a entrada do edifício. Nesse movimento circular, o circuito se fecha e um pacto é selado. Cabe a nós como detentores do segredo desconfiar do que vemos e ouvimos a partir de então. Encerrar o filme “com pedidos de desculpas, gratidão e admiração” a Snowden e Murch é reafirmar a necessidade de atenção aos sistemas que se desenvolvem longe dos olhos, sejam eles de dedicação artística às paisagens sonoras, sejam eles de repressão. 

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A voz, essa sobrevivente

Por Rubens Fabricio Anzolin

Começo pelo princípio: o verbo. Capitu e o Capítulo (2021), assim como boa parte dos filmes recentes de Júlio Bressane, é uma obra falada. Ou melhor dizendo: uma obra declamada. Uma obra em que qualquer respingo de verdade irá se revelar senão através da encenação, elemento inerente a qualquer ruído sonoro que a escrita antropofágica de Bressane privilegie. Em Capitu e o Capítulo, ouvimos o barulho do mar, que sobrevoa soberano as paredes de uma casa depauperada. Há também um piano afiado, no interstício das cenas picotadas dos outros filmes do cineasta. Por fim, temos ainda o violino, tocado com esplendor por um músico fleumático, em riste, enquanto os pensamentos de Bentinho (Vladimir Brichta) encontram-se cada vez mais e mais em direção ao delírio. Nenhum destes ruídos, no entanto, é capaz de dar conta da realidade, são todos sons de um mesmo fingimento, de uma mesma peça de arte amorfa que é Capitu e o Capítulo. Aliás, o grande trunfo do cinema de Bressane talvez repouse justamente nesse distanciamento moral com o mundo, muito político, por sinal, em que o cinema de tão irreal e alastrado torna-se cada vez mais verdadeiro. À parte o desvio, voltemos à Capitu, e principalmente ao  que interessa: a voz de Capitu. É somente na voz, aquela mesma que sai da boca afiada de Mariana Ximenes e do clamor exotérico de Enrique Diaz (Casmurro) em que podemos confiar. Em um filme como este, cerceado por estímulos tão deformados, a voz é a única verdade da mentira de Bressane.

Existe uma cena, logo no início do filme, em que dois homens são vistos de cima, conversando, apenas através de seus chapéus. Neste ínterim, nada se escuta, e tudo o que nos é proposto pela imagem é exatamente isto: a suposição. Algo muito parecido se dá logo a seguir, quando Capitu circula com um giz na parede a sombra do rosto do marido. Isto é: para Capitu, o que importa é menos a imagem real de Bentinho, mas sobretudo a imagem projetada pela luz que atinge o marido. No universo de Bressane, a sombra sempre foi um portal para o enlevo, o desatino, já que ela, mais que tudo, é um atributo da escuridão, local onde tudo pode se formar à face do olho, a partir da incerteza da luz. Pensemos no monólogo de fundo vazio de Sedução da Carne (2019), interpretado por Mariana Lima, ou mesmo no Casmurro/Machado de Enrique Diaz, rarefeito às fantasmagorias de uma literatura brasileira fadada ao apodrecimento precoce (como Junqueira Freire ou Castro Alves). Personagens regados ao invisível do preto, à liberdade das masmorras, e que são por isso formas não-absolutas, um tanto quanto indecifráveis. Se em Capitu e o Capítulo Mariana Ximenes contorna o perfil das sombras de Bentinho, idealizando um objeto em falso, é justamente porque a sombra não é Bentinho, mas sim sua projeção, sua deformidade. 

Tal projeção, aliás, concebe-se finalmente neste contraste de uma imagem sem voz: Vladimir Brichta pode elucidar a insanidade que acomete Bentinho: sua voz sobrevive à deformação da pele, aos olhos arregalados, à suposição da traição que o ator encarna. Já a sua sombra (aquela que Capitu projeta) permanece como sendo silente – eis uma voz em falso, uma miragem. A sombra de Bentinho é muda, inane, resultado exclusivo do que se projeta a partir do seu rosto. Sua sombra não tem voz, coisa que permite ao desenho sonoro de Capitu e o Capítulo contornar o imaginário de seus personagens na mesma medida em que Júlio Bressane cria costuras de sonoplastia nos entre-lugares: as cenas de seus filmes anteriores, a praia carioca, as orquestras que permeiam muito mais o imaginário do filme do que o filme em si. A partir daí, assimilar que Capitu prefere enxergar não a Bentinho, mas à sua sombra, é essencial: pois gradativamente o personagem vai aderindo à perturbação de sua própria imagem, de sua altivez sonora – coisa que a cena do corvo, mais ao final do filme, dá conta de comprovar, quando o delírio enfim toma desdobramentos reais, num esgoelar-se a si mesmo violento que os olhos não podem ver – apenas supõem, com os ruídos do animal fazendo as vezes da garganta do personagem. Quando se perde a imagem da mentira, nem mesmo o campo sonoro resiste à tentação de também querer-se um enganador.

Há muito tempo, inclusive, que me parece que o cinema de Júlio Bressane passa por essas paredes da suposição, jogos teatrais enigmáticos e espaciais que revelam sobretudo aquilo que transborda a mente de quem vê. Um local em que apenas a voz é imune ao delírio, pois nela reside a certeza da fala. Coisa parecida já tinha sido fabricada nos teatros de guerra de Cleópatra (2008) e Beduíno (2016), à base de monólogos, e que retorna de modo fulminante em um filme mais silencioso como Garoto (2015), quando as sombras das pedras e a melodia da natureza dão o tamanho da tensão do mundo.

Diante de tais formulações frequentes no universo do cineasta, o imprescindível está no fato de que a camada sonora invade o mundo na ausência da imagem, na presença da escuridão. A partir do momento em que nada se vê – ou que aquilo que se vê também se perde, se indiferencia – a melodia passa a fazer parte da bagunça, restaurando a desordem natural do mundo. Enfim, soa-me ser este o resultado final do procedimento bressaniano: se o fundo é o vazio, se as imagens chocam-se constantemente, a sonoplastia funciona para adulterar ainda mais esta bagunça, forjando à fórceps um imaginário caótico. No entre-meio destes jogos de delírio, dessas brigas de casais e das reconciliações inesperadas está a voz, esta sobrevivente. Por isso mesmo é curioso que um filme como Beduíno (2016), por exemplo, seja basicamente uma grande DR: pois tudo que se imagina e repele no outro está no campo da indefinição, da deformação e do ruído, enquanto tudo aquilo que é capaz de conciliar os dois amantes pertence apenas ao coro da declamação, ao que nasce com o ator, ou seja, à voz.

É nesse sentido que Capitu e o Capítulo dá continuidade a um ciclo de cinema que cada vez mais se interessa por uma arte da mancha, uma arte do ruído. Investigar no plano as deformações da imagem, do rosto, dos corpos. Afinal, se Dom Casmurro sempre foi sobre o distúrbio emocional que é o ciúme – sobretudo acerca daquilo que as imagens e os sons do ciúme produzem no inconsciente, de maneira quase elementar -, Capitu… é um pouco sobre esse distúrbio que está na imagem, no rumor, nos espelhos distorcidos, na pintura de olhos (que remetem tanto à mãe de Bentinho quanto a uma miragem de Capitu) que vigia e rege tudo ao redor. Uma mesma sensação que, inclusive, encontra-se no pseudo-narrador de Enrique Diaz (que interpreta Casmurro e assina como Machado), numa espécie de piscadela de olho de Bressane em fazer um dois de um, como se fosse ele todo, enfim, uma coisa só. E como se o torpor que emerge de Vladimir Brichta fosse exatamente fruto daqueles papéis destroçados de Diaz/Casmurro/Machado, resultado de uma noite incólume, banhado nas incertezas da escuridão de uma poesia brasileira já ferida e derrotada, encolhida em um sono de morte.

Em síntese, Capitu e o Capítulo é antes de mais nada um filme sugestivo, lacunar, de portas abertas, mas que mais e mais se anula e imbrica na mesma medida em que existe. Um pouco como o narrador de Dom Casmurro, mais sugestivo que acertivo, mais especulativo que taciturno, que quanto mais projeta mais se perde na própria miragem, transformando culpa e desejo em coisa única, indistinta, fundamental. Mecanismo deveras similar, vale lembrar, à relação dupla que estabelecem Sancha (Djin Sganzerla) e Capitu, seja pela fisionomia ou pelos cabelos louros que facilmente se confundem aos olhos de Bentinho. No cerzir dos panos, depois de toda a deformidade, depois de todas as lacunas lacunas, depois da imagem perder os sentidos, os contornos, depois de virar pintura, transe, sombra, retornaremos à voz, à declamação, à poesia maldita de Álvares de Azevedo que Diaz tão lindamente refaz. Pois o que unicamente permanecerá no cinema de Bressane será sempre a voz, ilesa aos enganos, aos desvios sorrateiros da imagem, às flores murchas que tomam conta do cenário, ao espelho deformador. 

Quando enfim Sancha colocar um véu sobre a câmera, como quem borra aquilo que se vê de uma briga de casal, como quem produz a mentira, ficaremos não com a sombra de Capitu, não com seu perfil errático, desmedido, mas sim com a sua voz, inane à mentira, certeira nas palavras, limpa e clara como no cinema dos grandes cineastas, que fazem da poesia sobretudo aquilo que se escuta como resultado do corpo, como se o cinema fosse um livro que pudesse ser visto. Ficaremos com Capitu, mas na certeza de que toda ela é uma aberração, um monstro, um desvario, um objeto indefinido ao mesmo tempo que é tudo. 

E depois não restará mais nada. Nem mesmo os créditos. Entrará um samba agudo, uma câmera na mão, e Júlio Bressane derrubará ao chão toda a nossa fantasia, todo teatro de fantoches. Já que, afinal, o cinema é apenas uma mentira. Das boas, é verdade. Mas ainda assim uma bela de uma mentira.

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A conquista do barulho

Por João Pedro Faro

Como as cartelas de texto no cinema silencioso, a trilha de som em À lombre de la canaille bleue (1985) existe paralelamente às narrativas estritamente visuais. Da mesma forma, quando lhe interessa, irrompe a desconjunção em que se insere para colar com as imagens. Diálogos ora são ignorados por ela e preenchidos pela música incessante, ora acabam por serem dublados (estando sempre descolados dos lábios dos personagens). São falas que se explicitam narrativamente, mas permanecem em um outro tempo, em uma outra linha de construção (onde o som direto não existe). Isso não significa que som e imagem estejam em guerra, está mais para um convulsivo desencontro onde tanto o que se vê quanto o que se ouve percorre uma trilha paralela de imprevisibilidades que acabam por formar, no processo do tempo de tela, um filme sísmico e barulhento.

Pierre Clementi, realizador, ator, cinegrafista, saxofonista e incendiário, estabelece sua câmera Beaulieu como que em uma autoritária livre-associação de registros por Paris (aqui rebatizada de Necrocity), o que quer dizer que tudo pode ser filmado ao mesmo tempo em que se fixa sobre personagens teatrais e tramas futurísticas mirabolantes com a precisão de um furor narrativo. Não à toa, o personagem que interpreta em cena é o próprio canalha a quem o título se refere, uma espécie de autoridade máxima que trabalha para manter a cidade de Necrocity a mais caótica possível. Nessa trama, ininteligível em termos típicos, mas concentrada e linear para padrões vanguardistas, um grupo de personagens destrutivos (que vão de líderes de organizações criminosas até viciados proféticos) transita e persegue-se por entre espaços urbanos altamente ficcionalizados. São como as figuras que Lang aprisiona em Spione (1928), revestidas por couro e habituadas à correria, mas na estetização junkie de uma sociedade não mais estruturada pelos poderes, mas pelos desejos. 

O que os persegue é essa trilha de som incessante, pertinentemente ruidosa, que combina improvisações musicais pós-punk com a linha de narração declamada por Clementi, e alguns restos de diálogos dublados fora do tempo. Essa amálgama sonora derrete as imagens ao longo da projeção, desafia constantemente qualquer concepção diegética para evidenciar processos alternativos de realização decididos a não se conformarem, a irem por caminhos difusos que rumam para as combinações mais violentas. São instrumentos metálicos que se associam a guitarras em reverberação e sons indecifráveis, sobrepostos pelo ritmo das palavras de Clementi. 

As palavras, de um texto críptico que oferece grande parte do extracampo à encenação ficcionalizada, apontam para diversos signos policialescos e futurísticos que expandem o que discorre pela estrutura entorpecente do filme, sem nunca interromper o fluxo do indecifrável. Ou seja, a pronúncia de frases que determinam personagens por títulos – Seringue para uma viciada em heroína, ou Inspetor Bastão para um dos algozes – os posiciona nesse cosmo teatral de definições popularescas, ao mesmo tempo em que os mantém em uma abordagem de indefinições e incompreensões: um furor lírico fortificado por palavras declamadas em voz firme e imagens que as oferecem mutações caracterizadas. Enquanto narra as confusas ocorrências de um mundo inventado, a voz de Clementi é soturna e controlada, dedicando a cada frase o tempo de um verso transmutado para uma tirinha dominical aventuresca.

O que ocorre, portanto, é uma construção sonora decididamente narrativa, que se comporta esteticamente pela fruição de suas raízes ulteriores à imagem. Ao passo em que lhe permite remembrar os registros através de uma narração que lhes dê escopo, também o inconforma com caminhos para além do que se vê, ou então, que define as imagens mais do que elas próprias, por conferir todo o sentimento à encenação. Não por acaso, a rítmica musical do longa quase nunca se encaixa com a duração dos planos, elas não convergem temporalmente, pois o tempo da música está interessado em aglutinar-se com o ritmo das texturas e dos ruídos imagéticos que perpassam as imagens. Especialmente nas sequências internas e, mais ainda, nas internas dos apartamentos arruinados dos junkies distópicos, as texturas sonoras e imagéticas encontram um compasso raro nas andanças da obra. Nos caminhos noturnos pela cidade, é tarefa das luzes de bares e faróis aglutinar-se à melodia dos metais, gerando essa sensorialização espacial e ambiental que é, acima de tudo, narrativa.

A máquina de Pinball, uma das imagens recorrentes de À l’ombre de la canaille bleue, acaba por ser um signo para certa elucidação da experiência: um composto vulgar de pequenas caracterizações que funcionam para que um centro de interesse (a bola, ou no caso, a câmera) passeie por luzes cintilantes e barulhos agudos (por vezes, até enfadonhos) por esse gesto quase lúdico de momento. Os cantos atingidos por esse meio de captação colecionam ideias de ficção científica, política, erotismo e aventura pelo gosto da acumulação, onde está toda essa carga de berros, palavras, ruídos e deformações sonoras construídos pelas deixas dos registros imagéticos que encenam (e também sobrepõe) personagens, cenários e situações sem começo ou fim, apenas acumuladas nessa perseguição por reverberações fílmicas que se amontoam para inventar um mundo próprio onde tudo que restou são as sensações. 

Se o cinema sonoro inventou o silêncio, dá para dizer que o produto cinematográfico de Clementi é uma conquista de invenção do barulho, onde ele é o definidor estético e dramatúrgico. Quanto mais alto, maior é a euforia, quanto mais distante, maior a devassidão. O barulho, aqui, é todo um rumor de combinações entre o concreto e o nebuloso, tendendo sempre à incompreensão, em que os sentidos do ouvinte são avidamente sequestrados por suas modulações, e onde as tramas das imagens encontram não apenas o sentimento (que não está delimitado pelas performances dos atores), mas também as dimensões dos cenários, o eco das cores e o alcance das luzes.

Termina sendo lógico que a última palavra que Clementi declama, antes de ler os créditos da produção, seja justamente “ficção”. Enquanto a única trilha, que reina por 80 minutos como composição fílmica sem interrupções, monta e remonta as encenações presentes na imagem, o que há de constante, em um filme onde a instabilidade de seus processos é o pilar da estrutura, é a capacidade de fabulação do disforme, do arranhado e do ensurdecedor. 

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Às mulheres que seguem, ignorando o falatório

Por Geo Abreu

Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.

De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.

Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.

A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?

O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.

Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.

O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.

Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados. 

A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?

É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?

Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.

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A Poesia Sonora de Blue

Por Chico Torres

Blue (1993), de Derek Jarman, é uma obra composta de fragmentos sonoros-textuais que se conflitam e se complementam, em uma interpenetrabilidade constante. A força dessa contradição produz a unidade estilística do filme e o preenche de humanidade. Todos os riscos de Blue, suas mudanças bruscas, seus saltos narrativos, suas múltiplas atmosferas ganham um relevo homogêneo devido a essa energia que unifica forças ambíguas: temos, então, vida e morte, céu e inferno, sublime e banal amalgamados através de uma unidade poética que oscila como o badalo de um sino que produz dois sons que se separam e se unificam ao mesmo tempo.  

A narração, os diversos efeitos sonoros e os temas musicais funcionam não apenas como criação não visual de um tempo-espaço que precisa ser imaginado. Eles também cumprem essa função, mas não determinam o tom do filme. Blue não pode ser visto como uma obra cinematográfica que “perdeu” sua imagem e que agora tem na narração, nos efeitos sonoros e na música os elementos que devem sustentá-la, deixando que as imagens sejam produzidas individualmente, em nossa subjetividade. Pelo contrário, a obra cria uma série de fragmentos sonoros-textuais que podem ou não determinar um tempo-espaço, mas que também são poesia, discurso, manifesto, ensaio etc. Tal multiplicidade narrativa e sonora que se apresenta diante da tela azul, portanto, não apenas sugere imagens, mas, sobretudo, sensações, muitas delas de caráter abstrato ou contemplativo.  

O filme possui uma estrutura narrativa cubista. A princípio, a narração, sempre estabelecida como monólogo interior, se estrutura em diferentes ambientações: uma voz que evoca, através da poesia, a beleza sublime do azul; um homem em situação de guerra que vive suas mazelas; e o relato do próprio Jarman e sua experiência com o HIV e a perda da visão. Essas vozes, à medida que se repetem, se misturam e surgem como que contaminadas por todas as ambiências que fazem parte da obra. Essa multiplicidade de vozes, afinal, representa a interioridade do próprio Jarman, seja em forma de poesia, de metáfora ou da mais crua e terrível realidade. Aqui ele se apresenta, com a mesma intensidade, como poeta, pensador e ser humano consciente de sua finitude, expondo sem melindres a aspereza que essa consciência pode provocar. 

Toda a sonoridade do filme acompanha sua narrativa, sempre através do equilíbrio entre suas tensões. Se temos a evocação poética acompanhada por uma música barroca, uma elegia ao azul, temos, por outro lado, elementos sinistros que se estabelecem não só através da música, mas também de ruídos e ambientações sonoras. A diversidade musical e sonora é imensa: temas musicais que se sustentam por si mesmos ou são um paralelo daquilo que é narrado; paisagens sonoras que cumprem funções narrativas, poéticas e sensoriais; elementos sonoros que presentificam o personagem que narra (os sons do bar do homem que vive a guerra; os sons dos aparelhos médicos, das ondas do mar etc). Ainda que esses elementos possam surgir separadamente, há um esforço constante de mesclá-los, de modo que os elementos sonoros se complexificam junto à multiplicidade narrativa. À medida que o filme avança, aprofunda-se a fusão dessas vozes e desses sons, havendo a unificação entre o celeste e o demoníaco. Desenha-se, assim, a alma do criador, em conflito constante, nos proporcionando sensações ambíguas, sendo possível, por exemplo, sentir calma e angústia ao mesmo tempo. 

Blue, enquanto um filme-ensaio, extrapola a estrutura autobiográfica e memorialista baseada no formato diário/monólogo interior. É a poesia que contamina todo o filme, não apenas em sua presença explícita em seu tom propositadamente exagerado, mas também em suas incursões disruptivas, em sua maneira não convencional de fundir sensações e ambientações. Ainda que pese toda crueldade do mundo real, com a presença da morte e da maldade em suas múltiplas formas, Blue é também sobre a beleza, sobre uma beleza profunda e ao mesmo tempo superficial, que corre sobre os ouvidos e que é simples como o azul que insiste sobre a tela. Uma obra múltipla, polifônica, que entende a contradição como a estrutura da vida e da subjetividade humana. É assim que Jarman compôs o seu testamento, nos entregando a força de sua angústia, de seus pensamentos e, sobretudo, de sua poesia.

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Rio, 360 Graus (Rio Babilônia, Neville D’Almeida, 1982)

Por Anita Gonçalves

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Em “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), longa mais recente de Neville D’Almeida, o desmantelamento do Rio de Janeiro “Cidade Maravilhosa” se faz por via do tempo fechado, tapando qualquer brecha de luz solar, qualquer eventual perspectiva de esperança naquele espaço trágico e arruinado. Em contraste, “Rio Babilônia” (1982), realizado mais de quatro décadas antes, também partilha da dissolução do estatuto de cidade-paisagem idílica e harmoniosa, mas, dessa vez, através do Sol, irradiante: ao mesmo tempo que queima e incendeia o asfalto, incide sobre e ilumina tudo aquilo que, em ebulição, se vê fora das limitações de uma representação estática, despovoada e sóbria de “cartão-postal”.

Como ponto de partida em “Rio Babilônia”, existe tal imagem do “Rio de Janeiro cartão-postal”, enquadrado perfeitamente através da janela do edifício da Companhia Nacional de Relações Públicas: é o Rio de exportação, disciplinado e devoto aos gringos, fonte geradora dos lucros e luxos dos que ganham com a venda de tal representação de cidade. Mas essa paisagem postal, imaculada e despovoada, será justamente convulsionada, corrompida e superada, havendo, em contrapartida – e que passa a ser central, revelado pela luz do Sol de 40 graus – tudo aquilo que essa imagem pura de “Cidade Maravilhosa” necessariamente esconde. Em um momento de diálogo entre Marciano (Joel Barcellos) e o excelentíssimo Doutor Liberato (Jardel Filho), quando este, aparentemente gozador de um estatuto público de prestígio e imponência, em uma espécie de elogio, diz que a cidade caminha ao progresso, querendo exaltar a paisagem polida e virginal com a qual se depara quando vai ao clube e sobrevoa o mar e os prédios de helicóptero, Marciano rebate: “construíram aquele prédio e esconderam a favela que tem ali atrás”.

Opondo-se a esse ato de “esconder”, “Rio Babilônia” é um filme que repudia o privado e celebra o público, operando primordialmente por meio de uma qualidade, baseada na luz e frontalidade, que impede a existência do privado e obstrui qualquer ensejo de sigilo. O Rio de Janeiro de contrastes e contradições – complexo e diversificado, e sobretudo desigual, ocultado pelos prédios, indústrias, empresas e (especialmente) cartões-postais – é fulcral, sendo aquilo que se desejaria esconder e privar, aqui, o coração das imagens.

Por meio das lentes confrontadoras e nunca mansas de Neville, há uma exposição da desigualdade, da violência e de um povo que passa fome, em meio ao contexto praticamente explícito de crise inflacionária e carestia (“a inflação cai, mas a comida não”, manchete discreta de um jornal). Assim, a cena onde Marciano mostra o “real Rio” à estrela norte-americana Linda Lamar, desobedecendo às próprias limitações territoriais da cidade, capital do estado propriamente dita, e levando-a para a Baixada Fluminense – mais especificamente o momento do saque coletivo à caminhonete que transportava feijão –, é certamente violenta e brutal, praticamente uma cena de batalha que expressa a tamanha fome da multidão; mas também, em um estremecido clamor de “feijão para o povo”, dignifica aquele ato e expressa a celebração do público, fazendo da cena envolta por uma atmosfera eufórica de esperança na potência energética, rebelde e insubordinada de um povo (ainda) oprimido.

Já na cena do Morro da Babilônia, o morro é uma espécie de templo sagrado, genuinamente belo e instigante na orbe fílmica; no entanto, desprezado e violentado por aqueles que não conhecem verdadeiramente sua força divina. É lugar de sincretismo onde Jesus Cristo e Oxalá convivem em harmonia, mas, ainda assim, onde a violência invade e irrompe nas imagens de serenidade. Dona Zica, aqui praticamente feita uma santa, reza a Ave Maria, enquanto o canto que escuta no rádio invade as imagens de violência; e, apesar de sua força sagrada – que no fugaz tempo que perdura nas imagens, já as toma -, tem um policial apontando o revólver em sua cabeça. Mesmo que seja o morro o ponto mais alto, onde o Sol menos incinera, onde a brisa bate mais leve e onde o céu está mais próximo, os policiais atiram e matam a sangue frio; enquanto milionários, criminosos impunes, fazem a festa – até que o asfalto esquenta demais, derretendo as extravagantes armaduras da burguesia.

O filme expõe as paixões, prazeres e fraquezas, tidos como motivo de constrangimento, de figuras de um “corpo dominante”, despindo-as, tornando-as dominadas, vulneráveis e enfraquecidas, submetendo suas representações por meio da qualidade fílmica de um cinema que enfrenta e subverte a realidade. No ato final do assalto que interrompe a performatividade da festa privada da elite, filma-se, com irreverência, e aqui sim, capturando, como reféns, seus convidados da cabeça aos pés, exibindo aquelas figuras de forma tão crua, fora de seus pedestais, sem terem como recorrer aos seus estatutos, pois estão atadas e amedrontadas. Em “Rio Babilônia”, no tocante a uma certa condição frontal e humana das imagens, o que interessa é o que está debaixo dos vestidos das madames e dentro das calças dos doutores.

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O prazer generalizado, enrustido nos discursos e publicizado e liberto nas imagens, paira sobre todo e cada plano, frustrando esforços para delegá-los à esfera privada, constrangida e retraída em si mesma, inexistente e ofuscada pelo clarão solar em “Rio Babilônia”. A sacanagem de exportação, higiênica e restrita, é desacatada, e a sacanagem manifestada é a do prazer público, sujo e belo, sem limites e sem cortes. Aqui, empresários, industriais, diplomatas, parlamentares, carregando ridiculamente seus insustentáveis títulos e esbanjando decadentemente seus luxos, são desnudados, desvirginados e destituídos da postura e formalidade que asseguram e legitimam sua imponência; e têm suas taras expostas, por meio de orgias com prostitutas de luxo em apartamentos trancados a sete chaves – mas que o Sol não esconde e a câmera não perde por esperar em expor.  E o povo extasiado também se deleita, livremente, sem que forças conservadoras de “Rio Babilônia”, fracas e impotentes, sejam capazes de acobertar, conter e domesticar: o sexo público e popular e sua beleza e força indomáveis penetram nas imagens, as quais proporcionam e impulsionam que extrapolem qualquer limitação. Contrapondo-se ao despovoado e sóbrio cartão-postal, o filme tem como força motriz as pessoas e suas paixões pulsantes, movidas a calor e reveladas pela luz que o Sol emana.

Com exceção das imagens que fazem a burguesia nua de refém, vulnerabilizada e ridicularizada, o enquadramento menos aprisiona e mais dá vazão àquilo que é expresso – e menos capturado – nas imagens: as pessoas em transe e suas manifestações flamejantes de amor, prazer, paixão. Sem seguir normas que precedem e determinam com exatidão o que está no quadro e subvertendo qualquer ordem possivelmente pré-estabelecida, a câmera se adapta e submete-se ao movimento que filma, anda junto e conflui com a liberdade daquilo que está manifestado nas imagens.

Nesse sentido, o filme renuncia muitas vezes da narrativa perfilada a um só eixo para dar lugar à expressão genuína do êxtase e da embriaguez; do batuque, do samba, da atração na cena do lançamento do perfume, por exemplo, onde mesmo durante o discurso de Paulo Villaça, o empresário bronco, Pat Cleveland, a Linda Lamar, requebra e mal serve ao que foi contratada, acena e se encanta, olhando e sorrindo para o que está fora do quadro; e nada sai como foi esperado e encomendado. O bronco grita: “eu tô pagando!”, enquanto a festa explode – para além da dimensão imagética do quadro –, totalmente fora de seu controle.

Há momentos, relativos a essa falta de controle, cujo caráter se aproxima do documental, onde meninos passam na frente da câmera e tapam a paisagem postal e turística, até então caucasiana, da praia, ou até mesmo cenas nas quais existe uma interação disruptiva das figuras com a câmera. São momentos consonantes a essa permeabilidade do enquadramento que permitem que as figuras e seus corpos em quadro se expressem livremente, quase como se não estivessem, como se, apaixonadas, impetuosas e em ebulição, transcendessem ou enfim sublimassem. Aqui, o rigor se faz no deixar fluir aquilo que está em quadro, criando uma situação fílmica que se pauta pela liberdade e pelo inesperado, sempre esquivando-se de qualquer tendência de um quadro-postal estático, ordenado e controlado.

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Somado a esse caráter libertino do quadro, ao longo do filme, ocorrem mudanças bruscas e repentinas de atmosfera fílmica, sobretudo de gênero e de encenação, pois cada cena, e até mesmo cada plano, possui um certo grau de autonomia e liberdade expressiva em relação ao todo, assumindo a imprevisibilidade, sem se ater a um único eixo narrativo que pode parecer ser proposto de início. Esse todo, o filme em si, é multifacetado e livre, desprendido de qualquer coisa que beira restringi-lo a um único fio condutor disciplinado e bem-comportado. Entretanto, não se opera exatamente por meio de um abandono da narrativa, mas por uma narrativa que não determina os trilhos, que não necessariamente dita o que está por vir, constituída por cenas-expressões transitórias desse Rio de Janeiro fílmico que aqui se constrói: esse lugar babélico, complexo e exorbitante, onde as pessoas que vivem ou que passam por ele, são o que verdadeiramente o constituem.

Ao longo dos sete dias sagrados, o boêmio Marciano, em seu itinerário insubordinado e caótico, cruza com inúmeras figuras – como patinadoras, eruditos, traficantes, jornalistas, capangas, artistas, mães e filhos, prostitutas, empresários, estrelas, cafetinas, deputados, estrangeiros, etc – que, mesmo quando passageiras, são extremamente centrais e expressivas em cada cena onde surgem e em cada plano em que aparecem, vulnerabilizadas e/ou, sobretudo, libertadas.

A beleza existe, revelada pela luz e pelo calor que arde na cidade do caos, lado a lado com a violência e brutalidade incendiária que essa luz inerentemente também revela. A beleza em “Rio Babilônia” não é comportada, apelativa e precisa – como a paisagem despovoada e imutável do cartão-postal. É a beleza humana de um povo apaixonado e suado, frágil e forte, exposto frontalmente, iluminado pelos raios solares e pelo enquadramento que menos limita e mais liberta. É uma beleza subversiva e insubmissa às tentativas de controle, as quais, na forma de discursos, acabam por se tornarem superadas pela linguagem confrontadora do filme, que faz desses meros discursos, insuficientes e falso moralistas, medíocres e pequenos demais frente a expressividade e exorbitância das imagens incineradas e iluminadas, libertinas e sagradas.

Como uma promessa final, por via do poema de Neruda (na voz de Christiane Torloni) e do Sol que alvorece e preenche a última imagem do filme, “Rio Babilônia” tem fé. Fé na potência humana, inquieta e desobediente do povo, e, apesar da descrença no chapado cartão-postal, esperança – que no filme se realiza – de que um dia o Cristo haverá de abraçar a todos, de que um dia, ó Rio de Janeiro, “para todos os teus filhos, não só para alguns, dês o teu sorriso, espuma de náiade morena”. Além disso, crê em Deus; mas um Deus que não está acima de tudo e todos, ou apenas ao lado dos ditos pudicos (pois não há quem seja), mas dentre a gente mundana, humana, livre e extasiada, e emergido nas imagens ousadas e devassas, que – assim como os antigos babilônios, próximos aos deuses com seus monumentais e altivos templos – se aproximam dos céus, através do Cristo Redentor eminente, dos sagrados e frescos morros e da própria sublimação das paixões por meio da libertinagem e depravação da ordem. Nas palavras de Jairo Ferreira: “Mestre do cinemão, gênio no experimental, Neville agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta”1.

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1 Jairo Ferreira em “Neville D’Almeida, retaguarda da vanguarda”, no livro “Cinema de Invenção”, 1986.

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A Dama do Lotação (Neville D’Almeida, 1978)

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Por Gabriel Papaléo

A leitura de Nelson Rodrigues sempre prezou pelo escândalo, e é comum – ainda que equivocada a meu ver – a noção de que seus arquétipos e suas teses são datadas, que não existe espaço para elas no cenário contemporâneo brasileiro atual, mas a forma que retrata as neuroses de uma burguesia carioca, e o como expõe as vísceras dos desejos e perversões reprimidos reflete um segmento da sociedade que não parece ter mudado, e sim se higienizado, sob seus obscuros desejos de poder. Num canal tão disposto a abraçar a aspereza e a putaria de Nelson como Neville D’Almeida, a dramaturgia aflora bem diante da encenação abertamente declamada. Em A Dama do Lotação, Neville sequestra Nelson para imaginar as maneiras que Sônia Braga dribla o eixo familiar de aparências onde os ideais de masculinidade são passados como legado de defesa, de uma atitude sexista sobretudo de medo.

E o que move esse legado é a fanfarra da hipocrisia, propulsionada especialmente pelos chavões do que as instituições esperam dos choques entre homens e mulheres. A amizade masculina falida, alvo no qual o diretor se diverte ironizando, é vista sob a mesma desconfiança até que a psicanálise, na figura de Claudio Marzo forçando a ideia de fidelidade e amor pelo marido em Solange mesmo que ela grite por violência, clame pelo expurgo. Segundo o diretor, nenhuma instituição segura essa fina camada que une os indivíduos sob suas capas de autoridade, e o desejo estimula as perversões sem categoriza-las como tais, sempre buscando esconde-las em algum subterfúgio moral, intelectual, ou financeiro.

Na sequência na qual Solange, Carlinhos e seus amigos vão na boite Barbarella da época, a tensão é por debaixo da mesa, escusa, no segredo, implorando por um desejo oculto. O perigo do flagrante permanece o motor das ações de Solange diante da recusa inicial do sexo, uma intuição em reação aos julgamentos de Carlinhos e seu pai. “A esposa deve ser frígida”, o pai afirma, porque sabe que sexo bom é aquele controlado pela instituição, seja ela qual seja (nesse caso, a família). A castidade imposta muito tem a ver com esse medo, essa tensão do desafio, de homens tão reféns do desejo feminino que tremem diante da possibilidade das mulheres perceberem seu poder sexual – uma variável impenetrável da fragilidade dos seus poderes autoproclamados. O que escapa de Carlinhos é o que motiva o desejo de Solange.

Não por acaso, Solange sempre reforça que os homens com quem transa são “piores” que seu marido, porque no limite esses sexos só existem para que tolere melhor a realidade do seu casamento. Existe um acordo de civilidade entre os homens que aqui interagem, seja Carlinhos com seu pai, seja Carlinhos com seu amigo, seja o motorista do ônibus com o cobrador, que prevê secretamente que as relações horizontais e confiáveis são apenas entre eles, como se o suposto mistério feminino fosse cruel o suficiente para não ser digno de confiança. A questão mais engraçada da sátira multifacetada que Neville propõe é que algo nunca discutido entre esses homens é que os seus desejos são a única forma de quebrar esse elo civilizado, de que secretamente esses homens entendem que relação alguma resiste ao desejo do pau; e assim Solange consegue dar pro pai do marido, pro melhor amigo do marido, e literalmente nada muda.

O que escapa à sátira, pontualmente, são as relações femininas que Neville filma. Como em Matou a Família e Foi ao Cinema, parece que existe uma atenção dramática especial, mesmo diante da crítica de classe, a relações que escapam dos homens que buscam o controle. A bela cena de tensão entre a mãe de Nuno Leal Maia e sua amiga (e amante) Matilde é um toque de mergulho no melodrama sem a ironia que atravessa todas as outras relações do filme. Nesse sentido Neville parece estar filmando Nelson Rodrigues até quando não está, mas diferente do carnaval cataclísmico de Rio Babilônia, aqui o diretor deixa seus comentários sociais diretos escorrerem por entre a dramaturgia, mais pontuado, ainda que não mais sutil. Essa atenção às neuroses da classe média perdida não furta o diretor de filmar o Rio de Janeiro contrastante, visto pelas janelas dos ônibus, na janela fechada do carro, na praia cheia que nunca acessamos – sempre sob o ponto de vista de Solange, sempre diante da progressão do seu arco dramático de pouca transformação e muita autopunição.

Evitar as perversões do outro na suposta civilidade da cidade culmina no desligamento de Solange dos planos familiares, do que se espera dela, e portanto tudo deve acabar numa praia vazia, da última foda com Sônia Braga e Paulo Villaça, felizes em estarem isolados, diante de uma utopia apenas deles depois de se conhecerem num ônibus, descartável como qualquer relação a qual Solange se submete em busca de sentir algo, de ser punida por seus atos. Seja chamada de segurança, seja de medo, seja de raiva de classe, o fio que liga o emocional dessa classe média retratada é o da vontade de sumir da cidade.

Esse mal-estar de classe é por todo momento refletido diretamente na forma que se lida com sexo, como se esse fosse um canal apropriado de intimidade para não se ter vergonha ou culpa de implorar por violência, por punição. Solange busca ser a mulher de todos principalmente porque quer sofrer alguma consequência que seja de seus atos; a questão é que no Rio de Janeiro, se você é de berço, se você é abastado, se existe privilégio de classe que seja, a possibilidade de que se arque com alguma responsabilidade é muito pequena. Cabe à dama explorar seu prazer implodindo as noções de masculinidade e família dos que a machucam sem sua autorização.

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É Tudo Verdade: Alvorada (Anna Muylaerte, Lô Politi)

me and the cult leader

Alvorada, de Anna Muylaert, junto com O processo (Maria Augusta Ramos) e Democracia em Vertigem (Petra Costa), se agregam em uma trilogia que acompanha os acontecimentos relacionados ao Impeachment de Dilma Rousseff.  Se O processo e Democracia em Vertigem se atêm a uma visão ampla, traçando panoramas e detalhes dos acontecimentos que culminaram no fatídico ano de 2016, Alvorada completa a trilogia sendo a versão contemplativa daquele momento. O filme não se preocupa em destrinchar aquilo que já foi detalhado exaustivamente, mas se põe como representante do vazio e da melancolia, em uma versão mais intimista no que se refere à atmosfera dos últimos dias da presidente no poder.

Em certo ponto do filme, Dilma afirma que nunca perdeu o equilíbrio. Pelo contrário, precisa compreender o fato de que outras pessoas o perdem em situações-limite. Em certo sentido, Alvorada também parece se imbuir da personalidade serena de Dilma, seguindo com sobriedade os seus últimos momentos como presidente. Não apenas ao lado de Dilma, mas acompanhando a rotina do Palácio junto de diversos funcionários em suas atividades cotidianas, o documentário consegue, através de seu olhar mais contemplativo que narrativo, se sustentar em formas simbólicas interessantes.

Esse simbolismo se dá justamente por meio dos funcionários e de suas funções. Além da equipe de Dilma, vemos uma série de empregados do Palácio em suas atividades ordinárias: a guarda e suas cerimônias, o processo de limpeza da piscina, a cozinha etc. Se as atividades básicas que fazem o Palácio da Alvorada funcionar continuam as mesmas, uma série de mudanças sutis ocorrem durante esse processo de mudança. A troca das cadeiras vermelhas por azuis é apenas um dos exemplos desse simbolismo que se realiza nessa dinâmica em relação aos objetos.

Assim, essa trilogia feminina acaba sendo completada pelo documentário singular de Anna Muylaert, se realizando através de uma visão mais intimista e sóbria sobre o início de um dos processos mais traumáticos da história do país. De forma silenciosa e prática, o filme consegue ter algo como uma objetividade melancólica, ainda que em diversos momentos o seu tom pareça vago e impreciso. Um filme que não se preocupa em preencher lacunas, mas sim de ser um olhar mais pessoal e específico sobre os bastidores de uma tragédia pessoal e política.

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