“Me encantei pelo cinema porque era o único lugar em que eu podia chorar”
Theo Montoya é o narrador de seu filme, que começa e termina em seu quarto na cidade de Medellín, Colômbia. O amor que vai descobrindo pelo cinema o leva a registrar os momentos que divide com os amigos, muitos deles criativos: se transvestem, se maquiam ou simplesmente curtem roupas e acessórios.
Montoya então pensa num filme: num universo em que humanos e fantasmas se comunicam, ele e seus amigos produzirão festas e encontros espectrofílicos, a partir de um app de paquera específico. Logo que um humano transa pela primeira vez com um fantasma, a prática se transforma em febre entre os jovens, que passam a ser perseguidos e presos por isso.
Durante o casting proposto para este filme somos apresentados aos personagens: todos homens, jovens e gays. Entrevistados, conhecemos um pouco de suas histórias e desejos. Temas perturbadores surgem destas conversas: suicídio, vício, abandono e a prática de pequenos delitos ajudam a compor um retrato daquela juventude.
O diretor finalmente acha seu protagonista: Cami, figura que usa o nome de anhell69 nas redes sociais. Dias depois da entrevista, Cami está morto e uma espécie de maldição se abate sobre o filme espectrofílico: vários dos participantes do casting desaparecerem. Daí em diante a ideia do filme se transforma e Montoya passa a investigar o desparecimento violento de tantos rapazes da sua idade em Medellín.
A ideia dos fantasmas se mantém. As imagens aéreas da cidade à noite ajudam a criar o efeito de distopia, com figuras de olhos vermelhos e vestidas de preto que guardam a cidade de cima, como esperando o sinal de suas próximas vítimas. O diretor passa a percorrer a cidade num carro fúnebre dirigido por um de seus ídolos, o diretor Victor Galvíria. O cinema colombiano então é um rabecão. Dentro dele, num caixão, está o futuro. No guidon, seu passado.
Tão profundo quanto plasticamente belo, Anhell69 transforma garotos em anjos perdidos numa cidade amaldiçoada, com fantasmas sempre à espreita. Uma juventude que é pintada meio morta em vida, partilhando sonhos simples e impossíveis. Ao mesmo tempo, sinaliza o terror cotidiano de tantas cidades latino-americanas entregues a falsas guerras anti-drogas, cujas engrenagens parecem servir a um genocídio em massa.
Transformar a dor em algo tão bonito quanto esse filme deve ser também uma maldição terrível.
Longa-documentário, vencedor da Competitiva do 55º Festival de Brasília, acompanha expedição da Funai e o reencontro entre parentes Korubo separados por disputas com etnia vizinha.
O filme começa com informações em cartelas, salientando a presença no comando da expedição, realizada em 2019, do indigenista Bruno Pereira, especialista em populações indígenas que vivem em isolamento, na época ainda técnico ligado à FUNAI. Em junho de 2022 Bruno acompanhava o jornalista norte-americano Dom Phillips numa viagem pelo Vale do Javari quando ambos foram assassinados.
Apesar desse fundo trágico, na qual a morte de Bruno se confunde com a própria política indigenista brasileira, em eterno conflito com os interesses do agronegócio, o documentário se ocupa da existência dos personagens Korubo em relação com a equipe com a qual dividem a jornada registrada pelo filme.
Estabelecendo logo de início a escolha por planos fechados em detrimento de planos abertos, geralmente usados quando se filma na Amazônia, Bruno Jorge aposta numa fotografia de detalhe, bem aproximada. Assim estabelece diferenças entre corpos brancos/corpos indígenas e também salienta costumes: cortes de cabelo, adereços, pinturas.
Já no momento do encontro com a equipe a língua se impõe como outro marcador de diferença. Um dos técnicos da Funai é responsável por traduzir o que dizem os Kurubo, o que acompanhamos via legendas. Em meio a brincadeiras muito masculinas, de zombaria sobre a troca de irmãs ou de bravatas sobre disputas mano a mano, a embarcação segue levando a equipe em busca dos parentes arredios de Xuxu e Takvan.
Interessante notar que a equipe da Funai não seja formada apenas por homens brancos, mas também por indígenas de diferentes etnias e pelos quais o documentário pouco se interessa. Sem eles seria quase impossível transitar pelos rios ou estabelecer acampamentos com a agilidade empregada pelo grupo. E eles seguem ali, o filme inteiro em segundo plano, enquanto a câmera se ocupa, quase sem pudor, dos Kurubo, estabelecendo uma relação de proximidade que não vemos ser negociada em momento algum, talvez porque eles sim representem a diferença ou, ao contrário, a semelhança de uma imagem idealizada de indígenas selvagens e ingênuos.
Entre encenações de batalhas, da apresentação de usos e também da arte das bordunas carregadas pelos Korubo – conhecidos vulgarmente como “índios caceteiros” por suas habilidades na fabricação e manejo de bordunas – o filme preenche o tempo de espera pelo reencontro entre parentes com imagens de caça e trato de animais selvagens, como macacos e preguiças, com o objetivo de alimentar o grupo. Cru e cozido e relações de predação como ontologia vem à mente quando estes mesmos animais reaparecem na história, agora em relações amistosas, quase amorosas, fazendo parte das famílias.
O privilégio de observar estilos de vida tão diversos e organizar racionalmente a coexistência desses modos de relação com o mundo é o que nos ganha emocionalmente na relação com o filme dirigido por Bruno Jorge. As sequências do reencontro entre as famílias e seus irmãos perdidos são tão afetuosas, barulhentas e humanas quanto a presença avassaladora de mosquitos, insetos, aves e demais existências que compõem a floresta amazônica. É instintivo apalpar o corpo para espantar as carapanãs ou cair num misto de choro e sorriso dentro da sala de cinema.
Essa imersão sensorial no filme também se deve ao trabalho de edição de som realizado por Bruno Palazzo. Conseguir dar um corpo audível aos diálogos captados em trajetos de lancha em rios caudalosos ou no meio da mata fechada e extremamente povoada de vida (e barulhos) deu ao filme e ao técnico o prêmio de melhor edição de som do Festival. A quem se interesse por som de cinema documental, sugiro ouvir Palazzo falando a respeito do trabalho com esse material.
A escolha por filtrar alguns trechos com o uso do slow motion – com a intenção de estender o tempo de algumas sequências, segundo o próprio diretor – parece alcançar o oposto, estabelecendo uma quebra no fluxo quase hipnótico de estar no mato experimentando relações com seres mais que humanos, sendo tragados pela grandiosidade de tudo ao redor, sentimento que talvez se perca no filme também, já que são poucos os planos abertos, dados ao respiro diante de tanta intensidade.
Ainda no quesito sensorial, há muito apelo ao que se come, ao que se diz com naturalidade sobre sexualidade, genitálias e demais traços materiais das relações com os outros e com o mundo ao redor, dando a impressão de uma intimidade tão conquistada quanto dada por certa, que quase nos esquecemos do exercício de imaginar o que pensariam os Korubos se estivessem em nossa companhia na sala de cinema, vendo a si mesmos e nos assistindo reagir ao que é exibido na tela. Que experiência seria? Compartilharíamos pupunhas cozidas e discordaríamos a plenos pulmões, estendendo a sessão por muito mais que duas horas e meia? Quero acreditar que sim.
UM CASAL: SOPHIA E TOLSTÓI (Frederick Wiseman, 2022)
Sophia e Léo Tolstói num jogo de espelhos muito funcional. É pelo espaço e pela relação direta da personagem e a câmera, num monólogo que serve como devaneios de uma pré-discussão com somente Sophia em cena que Wiseman faz, neste retorno à ficção, uma combinação de angústia humana e a libertação pela natureza.
CANÇÃO DE AMOR (Max-Walker Silverman, 2022)
Há um nítido engajamento pelo sentimento de estranheza perpetuado por Silverman ao acentuar neste conto sulista de solidão uma camada cômica, principalmente com personagens secundários. É um filme já visto outras vezes visto no cinema contemporâneo americano e já cansado. Há uma beleza entranhada sobre a ação da sobrevivência aliada à beleza do meio, a imagem em 16mm, mas não suporta todo o filme.
WALK UP (Hong Sang-Soo, 2022)
Uma das esferas de Walk Up é que há um limite até para o confessionário desenfreado de Sang-Soo em seus filmes. Como um comentário bem humorado sobre estes limites, incluindo o do sonho e da imaginação e ode ao cinema que pela montagem tudo pode. Sang-Soo é único e na singeleza sabe ser cruelmente sincero mesmo quando a saída é encher a cara e fazer filmes.
A PRAGA (José Mojica Marins, 2021)
Ainda que mais próximo de um conto de horror convencional – ou um longo episódio de suas séries televisivas -, Mojica acha caminhos para trabalhar questões sociais e existenciais que outrora faria de forma mais radical. Aliado ao hercúleo trabalho de Eugenio Puppo para resgatar e finalizar o filme, A Praga nos lembra quão versátil e relevante Mojica foi por toda carreira.
OPERAÇÃO HUNT (Lee Jung-Jae, 2022)
É afrontoso ver um filme que se baseia num arquétipo, numa cartilha de saídas funcionais e tão apático que nem mesmo o simples trabalho de escapismo barato o filme de Lee Jung-Jae é capaz de fazer. Você já viu este filme antes em diversas línguas. Escolha um melhor.
Pio como receptador do mal que volta e meia nos assola. Ferrara coloca Pio como uma extensão e comentário vivo do que o filme de fato narra, um mundo prestes a curvar-se ao fascismo. E como Jesus chora ao contemplar Jerusalém e Jeremias escreve o livro de lamentações com tristeza, angústia e medo, Pio replica este gesto de desesperança no silêncio e na repetição de rituais que desembocam em uma das cenas mais potentes do filme quando Pio transparece, enfim, sua aflição.
CARVÃO (Carolina Markowicz, 2022)
Fábula rural interpelada por um pungente thriller de corrupção que dialoga diretamente com seu entorno. A realidade que instiga uma escolha corpulenta pela moral tipicamente brasileira e tão pulsante em pequenas comunidades. Por estas brechas o filme sustenta a linha de tensão e estilhaça argumentos puritanos conforme se aproxima das casas da região a lembrar que a necessidade é muito maior que os valores.
NIGHTSIREN (Tereza Nvotová, 2022)
Um bom filme para sessão dupla com Carvão. Tereza Nvotová também faz uma fábula rural interpelada por questões que envolvem valores e Nightsiren a parte da presença de bruxas num vilarejo. Bruxas estas que são estudadas pelo viés da subversão ao conservadorismo e não pelo lado mágico que geralmente são implicadas. A cólera geral criada pela vizinhança esboça um filme de vingança silencioso e de reapropriação do espaço criado para a liberdade e não para o medo.
EO (Jerzy Skolimowski, 2022)
Não é um exercício inédito ao colocar extremos opostos em representação para analisar seus comportamentos – a lembrar de Bresson, por exemplo – e EO, o burrinho que dá nome ao filme, é o observador das devastações humanas. Ele é uma espécie de Sr. Hulot do apocalipse e o que realmente instiga no novo filme de Skolimowski é a insinuação do valor da neutralidade do observador, de códigos não estruturados no comportamento do animal para que tenhamos qualquer insinuação de suas reações – o que de certa maneira nos remete aos filmes mudos que na ausência da palavra se esgueiram na linguagem corporal e nos gestos.
O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV (Sergei Lonitzsa, 2022)
Lonitzsa segue com a série de resgate de imagens e condensá-las sob um conceito. Este talvez seja o mais prático no sentido de uma lógica narrativa e que através dos depoimentos aborda a banalização do mal e como estes atos de horror parecem de um passado distante ou impossíveis de serem recriados pelo real. É um exercício que pela repetição coloca-se em xeque, porém aliado ao seu valor histórico, não cerceia o horror quando ele deve ser, de fato, exibido.
Musical antirrepublicano. Neoconstitucionalismos à base de corpos e amor – bombeiros que cedem aos desejos ao invés da defesa nacionalista e heroica. João Pedro Rodrigues equilibra o cinismo do debate sugerido à contemporaneidade pela diluição de uma pauta frontal e que naturalmente se atrela às imagens, nivelando assim confronto e afeição.
CONVERSANDO SOBRE O TEMPO (Annika Pinske, 2022)
Apesar do clássico rigor que dilui para observar a queda do estado burguês – ao contrário de uma narrativa da vida burguesa que obviamente subentende um estado de desespero geral -, o longa de Annika Pinske observa a ilusão de superioridade num esquema narrativo contemporâneo e que aposta na distância como manobra concreta sob o real. Ainda que se aproxime de um desgaste, principalmente por filmes de grife de festival, o filme de Pinske funciona em boa parte do tempo.
MATO SECO EM CHAMAS (Adirley Queirós, 2022)
Afirmar a distopia no Brasil de hoje não é novidade para Adirley Queirós, mas o que reforça toda trama dos “gasolineiros” e presidiários como resistência ao bolsonarismo é como o filme dialoga com o real, indo da narrativa paralela e o infiltrando, a ponto de interromper o filme para dar ênfase ao desejo das personagens (que se confundem com suas vidas reais) pela liberdade e como Mato Seco em Chamas, além de mais um diagnóstico certeiro sobre o Brasil pós-golpe, é uma chave de recomeço para muitos ali filmados.
FOGARÉU (Flávia Neves, 2022)
O incêndio incitado por Flávia Neves em Fogaréu não leva suas brasas para muito longe. A hipocrisia incrustada no cotidiano nacional vem na base do didatismo – neste sentido o controle narrativo de Neves é ótimo – e desmistifica a família conservadora brasileira através da figura de uma mulher de esquerda. A questão é sobre qual aplicabilidade esta junção óbvia se faz?
O CONTADOR DE CARTAS (Paul Schrader, 2021)
Schrader é tão versátil como realizador que desta vez faz um filme-farsa para criticar frontalmente o sistema de torturas do exército americano e o orgulho patriota que cerca este gesto brutal. Em seu entorno há uma trama de gênero envolvendo campeonatos de Poker, vingança e um amor tortuoso com dos finais mais belos de 2021.
BRIGA ENTRE IRMÃOS (Arnaud Desplechin, 2022)
Aqui temos um caso curioso: se Desplechin outrora criou bons subterfúgios para evitar o contato direto com o conflito, neste ele escancara a proposta de um distanciamento claro entre conflito e montagem para depois colocá-los num encontro frontal tão mecânico que a única possibilidade crível aqui é que Desplechin abriu mão de seu filme para obedecer ordens de um produtor.
O filme de Adrián Silvestre se revela uma medida bem competente entre o drama envolvendo identidade de gênero e a vida corriqueira, como ele se torna um elemento primordial para toda ação, da busca pelo amor às crises existenciais e principalmente pela afirmação no mundo enquanto um olhar externo está a julgar cada ação.
TRÊS TIGRES TRISTES (Gustavo Vinagre, 2022)
O mais controlado filme de Vinagre troca o enfrentamento usualmente visual dos filmes anteriores por um manifesto didático e até bem humorado como comentários acerca do momento trágico momento que vivemos sem abandonar a representação do cotidiano LGBTQIA+. Certamente trata-se de um suspiro antes de um grande lamento sobre o Brasil de 2018 para cá em que a risada se confunde com o choro.
BROKER (Hirokazu Kore-eda, 2021)
Kore-eda vai à Coréia do Sul e faz uma espécie de filme americano de sua carreira depois do europeu The Truth. Broker é um filme agridoce e que bate incessantemente na jogada do tema ácido com diversas saídas tragicômicas para transformá-lo em objeto de discussão sem que crie mal estar no espectador. É um filme menor de Kore-eda que parece estacionar na zona de conforto com abordagens mais acessíveis que as tradicionais de sua filmografia.
REGRA 34 (Júlia Murat, 2022)
Curioso que este filme de Júlia pareça mais com um filme de Lucia, distante de seus filmes anteriores e que remete ao ambiente de Praça Paris, por exemplo. Um conto tipicamente carioca que associa de traumas, injustiças sociais e violência com liberdade, sexualidade e BDSM. É um gancho ousado e igualmente duvidoso, ainda que a primeira camada de conflitos esteja relacionado à seriedade de eventos corriqueiros no Rio de Janeiro e que a liberdade seja uma forma inerente de escoar a dor – através da dor, o que está em cheque é a forma, o modus operandi, a maneira de concatenação deste universo.
DECISION TO LEAVE (Park Chan Wook, 2022)
Como Kore-eda, Chan Wook fez um exemplar americano de seu trabalho. Digo isto no sentido de um trabalho mais palatável e menos espetacular. Porém, Decision to Leave está mais próximo de trabalhos que se baseiam na linguagem propriamente dita e não em uma abordagem teatral como se espera de filmes com este rigor. É um filme feito para o corte, para resultados imediatos e efeitos instantâneos. Chan Wook sabe refletir estas intenções nos personagens a exemplo do detetive que não dorme e que sobrevive a um casamento falido e usa o trabalho como subterfúgio. Basicamente um longo exercício de subversões com certa funcionalidade.
PALOMA (Marcelo Gomes, 2022)
Se “Meu Lugar no Mundo” dilui os desejos e afirmações de uma mulher trans no cotidiano, aqui temos uma versão televisiva desta abordagem, condensada em um único conflito didático o bastante para o elo dramático com o moral quando narra o sonho e busca de Paloma para casar na Igreja.
NOITES DE PARIS (Mikhael Hers, 2022)
Fins e recomeços. Recorte de um tempo, uma família, um sentido e um sentimento concentrados no grão. Pessoas que chegam e vão, momentos bons e ruins – a vida da família de classe média oitentista em Paris como uma poesia. Corações a bater, olhos a piscar, conflitos a criar e diluir.
QUANDO NÃO HÁ MAIS ONDAS (Lav Diaz, 2022)
Teatro da culpa. O denunciador e o denunciado corroídos enquanto Lav Diaz trabalha de duas formas distintas para cada um. Em comum, há o aspecto teatral, que nunca esteve tão coeso e Diaz concatena muito bem palavras e ações ao potencializar cada um de maneiras particulares aliado ao tempo, elemento primordial do cinema do realizador.
TEXTO ESCRITO COM DIVERSAS INTERPELAÇÕES DO WHATSAPP.
Proxy Reverso (2014) de Guilherme Peters e Roberto Winter
Em entrevista a Andrea Soto Calderón recentemente publicada em O Trabalho das Imagens (ed. Chão da Feira), Jacques Rancière afirma que a imagem vai além da forma visual: falamos de uma estrutura do mundo e de nossa construção deste mundo comum. É a imagem que se encarna na essência através dos símbolos. E quando esta imagem é interpelada por outra imagem, por um outro mundo? E quando esta imagem vem a partir de um novo estímulo? Quais valores e condições tiramos dela?
A pedagogia da imagem é outra. Enquanto você, leitor, se debruça à nova edição da Multiplot!, é bem provável que sua aba vizinha tenha chamado atenção para um novo e-mail, para uma nova mensagem ou notificação. O seu olho e sua linha de raciocínio seguem para um outro degrau e quando você voltar, não estará mais no mesmo lugar. Assistir a um filme pode ter semelhante efeito quando interpelado por mensagens de aplicativos.
Mas este é um caminho a se pensar acerca dos difusos efeitos da imagem – há diversos sentidos e caminhos para elas quando são encontradas, reutilizadas, recriadas. O trabalho de realizadores como Harun Farocki, Chloé Galibert Laine, Rob Savage, Jacky Connolly, Cao Fei, Kevin B. Lee, Phil Solomon e, claro, Jean-Luc Godard, entre tantos outros, partem da ideia de uma nova configuração da imagem. Um novo sentido e novos mecanismos para elas através do uso de outras naturezas como videogames, desktop e imagens encontradas, seja para recriar algo a partir do que é encontrado, seja para usá-lo como simples influência.
É uma mudança dos termos pedagógicos da imagem e, com isso, do cinema. Nesta edição da Multiplot! investigaremos a posição da câmera (ou sua ausência) nos filmes forenses e sua grande influência na sociedade, os desktop movies que partem essencialmente do falseado do narrador tanto para criar filmes-carta como filmes de gênero, nos filmes feitos a partir imagens com outros fins como o videogame – seriam os filmes feitos a partir de games foundfootage? – entre tantas outras possibilidades, incluindo o arquivo como um meio alternativo de diálogo para interpelações, como uma espécie de performance do autor ao dar um novo sentido a esta imagem – a citar, sempre, o Atlas Mnemosyne de Warburg.
Certamente não é um tópico urgente, necessário, ou qualquer coisa que o valha. Pois é simples, eles estão inseridos e calcados no agora, mesmo que sua base seja um evento ou imagem do passado. Esta é uma edição dedicada aos termos, pedagogias da construção da imagem do agora à sua diluição, esta que Jean-Luc Nancy coloca como “a imagem presente atrás de cada coisa e como a dissolução, tem também, por trás dela, esse sonho pesado de morte do qual viriam os sonhos”.
Aqui o objeto é simplesmente isolado, qualificado, extraído do ambiente, projetado em um novo mundo; o pedaço de real não tomado para ser confrontado com as partes manuais da obra, ele é tomado “para ser tomado” e não adquire essa virtude, essa eficácia singular senão pelo fato de ser destacado do resto. [1]
Michel Leiris
Por Pedro Tavares
Resumido como um retrato íntimo de duas vacas, o documentário de Andrea Arnold produzido pela BBC traz dois caminhos conflituosos acerca do objeto e o espectro que o circunda. O isolamento claro e simples em um curral e como Arnold o descontextualiza. Este destaque/isolamento segue a norma de Leiris, de um destaque para a convenção e com ela os fantasmas do senso de falseamento tomam a tela.
Primeiro em uma escada voyeurística numa espécie de câmera-olho (um pouco longe da versão vertoviana e próxima da literalidade) por muitas vezes grudadas ou muito próximas aos animais. E em segundo, conforme o registro de uma rotina óbvia de tratamentos e funções primeiras relacionadas à produção de leite, o filme de Arnold distorce os objetivos dos animais filmados. Como Michel Leiris diz acerca do objeto escolhido, “do fato de ser destacado do resto” traz “eficácia singular do objeto fabricado”. O corpo-tema segue tanto pela ideia de uma eficácia singular (a do destaque) quanto a de um objeto fabricado. A manobra de Arnold que não se dá pela proximidade da câmera e sim pela montagem, é como nos aproximamos destes animais durante o registro rotineiro.
E neste caminhar de repetições de tarefas que o falseado é corroborado como um filme de observação, de distanciamento, de destacamento. Rupturas simplórias sobre o valor dos gestos de seus cuidadores, das ações mais simplórias quanto as mais tenácias sobre a “função” do objeto, ao menos em tela. Quando Serge Margel comenta as palavras de Leiris sobre o isolamento do objeto, ele diz: “Isso já é a descontextualização ou deslocamento do objeto, que perde seu valor de uso, que se separa de seu produtor, de seu lugar de origem, de sua função primeira, para não ser por ele mesmo”.[2]
No caso do filme de Andrea Arnold, conforme se isola estas duas vacas do restante pelas bordas da imagem ou no registro atividades que necessitam apenas de seu cuidador e o animal – como o cuidado com as patas ou até mesmo um parto – mais deslocados eles estão no sentido de seu valor e mais inseridas no contexto afetuoso, seja pelo esgarçamento da narrativa com ações repetidas que o filme ganha ares de uma proto-narrativa, de uma personagem estabelecida a criar uma representação clara para quem a assiste.
Porém, há um escape em Cow: se o filme se desenhara por toda sua duração como uma questão sobre o objeto, seu deslocamento, seu valor e transformara tudo em fantasmagoria, deste mesmo falseado cria-se a subversão. Destrói-se o afeto rapidamente numa ação fria e que traz o fantasma do sentido benjaminiano[3] mais para perto. A vaca, que recebe o nome de Luma, deixa de ser Luma, mãe de um bezerro, produtora de leite e transforma-se no que Arnold filmara por todo o filme. Um objeto assombrado, que se destaca do resto para a produção capitalista e também para a moldura da imagem. Luma é uma tag de identificação presa ao corpo e, antes de tudo, um fantasma.
[1] Artes e ofícios de Marcel Duchamp, 1992.p. 131-132.
[2] Arqueologias do fantasma (técnica, cinema, etnografia, arquivo), 2013.
[3] O conceito de fantasmagoria surge no século XIX, como resultado das mudanças fundamentais nos modos de produção e no modelo econômico.
Para a edição “Imagens Fantasmas” considerei um papo com Wilson Oliveira Filho muito importante pensando em sua área de atuação com as salas de cinema e meios tecnológicos. Um novo espectro toma esse espaço e Wilson, em tempo, mostra seu projeto de expansão de atividades para novas leituras e, claro, releituras do espaço através da arqueologia dos meios.
O projeto que pensa a sala de cinema do campus João Uchoa da UNESA para usos e reusos toca, entre diversos sentidos, um ponto crucial: o da sala como laboratório da sociedade e da comunidade científica. Quais são planos para tornar estes planos acessíveis ao público a pensar que o projeto lida com um espaço privado?
Por se tratar de um projeto de extensão, esse pensar já se dá com a comunidade como um todo. Não só para com os alunos, mas para com o entorno. A extensão universitária é uma grande “sala de aula sem paredes” para lembrarmos o que McLuhan pensava sobre o cinema. Tentamos nos aproximar dos antigos frequentadores de salas de cinema, além de, com os discentes e funcionários do campus, pensar a formação de público que salas em espaços como Universidades podem e devem (re)despertar. A sala de cinema no campus João Uchoa sempre foi aberta ao público. O que meu projeto amplia é a possibilidade de outros usos para manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e outras performances audiovisuais e assim pensar as potências dessa economia criativa que vai ainda e por muito tempo precisar de salas de cinema
Este mesmo projeto toca na memória das salas de cinema de rua – o que nitidamente separa da experiência do filme como uma parte do consumo em um passeio no shopping center. Um grande “trauma”, a citar Benjamin. Como trabalhar a sala de cinema, neste espaço acadêmico, e reativar o hábito de ida ao cinema?
Essa é uma parte importante uma vez que a sala possivelmente deixará de existir enquanto tal, já que o campus sairá daquele local. Mas suas memórias estão impressas em diversos momentos da sala. Nessa sala mediamos debates com Nelson Pereira dos Santos, Walter Carvalho, exibimos dezenas de filmes universitários e experimentais (creio que a vocação desse tipo de sala em seu uso mais tradicional seja o de exibir o que não tem lugar para a exibição). Nesse espaço, no entanto, vimos não só filmes ou debates, mas performances audiovisuais como o belo trabalho “Cinema das atrações”, de Raimo Benedetti. E aqui usar mediamos e vimos é afirmar uma configuração da memória coletiva. Acho que uma experiência em sentido benjaminiano, mais do que esse trauma, essa fratura que o cinema fora do lugar que lhe conferiu tradição e dentro dos templos de consumo mencionando por você é o que de mais importante fica. E tentamos justamente isso: trabalhar dentro da Universidade hábitos (também no plural), entender novas espectatorialidades e potências desses lugares de memória para usarmos a expressão de Pierre Nora. É nesse sentido que acho que podemos trabalhar salas de cinema em espaços como a Universidade. No futuro, acho que cursos de cinema precisarão ter disciplinas que lidem com a sala como um ambiente; a sala como ecologia das mídias.
Em tempos de consumo de novos materiais audiovisuais e a proposta de oferecer o espaço da sala de cinema para uma espécie de contragolpe da relação postura-memória. Como se dá essa relação? Como estes novos materiais digitais ajudam a manter uma tradição que envolve a sociabilidade e articula contra o declínio das salas de rua?
Primeiro pelo entendimento arqueológico dos meios. Aqui sua questão se torna crucial. Essa sala dentro do campus João Uchoa conta com dois projetores analógicos em uma cabine e um projetor digital fora da cabine. Aí acho que já há toda uma perspectiva a ser analisada. O hábito do cinema ainda em tempos da sala e a sala agora aberta (o projetor não mais atrás das nossas cabeças como no velho e bom hábito cinema para destacarmos a expressão de André Parente e Kátia Maciel), mas também acima das nossas cabeças ligado a computadores, videogames, celulares (rompendo justamente o hábito e, seguindo ainda André e Kátia, criando uma outra situação cinema, estendendo a concepção de Mauerhofer). Tentamos pensar “sessões” nesse sentido. Uso as aspas, pois não sei se estamos diante do mesmo fenômeno. A exibição por exemplo de uma sequência de gifs direto do meu celular problematiza a ideia de exibição e curadoria (e aqui meu projeto toca no seu projeto de mestrado creio, mas isso já daria outra conversa…).
Logicamente falamos de um espaço fantasmagórico envolvido pela memória, pela nostalgia que hoje são tomados por igrejas, farmácias e lojas de departamentos. Inclusive a sala está localizada no bairro que hospedava o Cinema Apolo (fechado em 1949). Há alguma ideia que se relacione diretamente com a história das salas de cinema neste projeto?
Na pesquisa inicial que levou ao projeto busquei informações sobre o Apolo que até pouco tempo era uma academia de ginástica. Entrei no lugar como faço em diversas salas que se tornaram outra coisa e não obtive informações. A fachada deve ser a mesma de outrora e no bairro poucos se lembram da sala. Há já aí algo que passeia pela nostalgia, pela nostalgia das ruínas como já abordou Andreas Huyssen. De forma mais direta comecei a pensar em um curta sobre essa sala no Rio Comprido (uma sala com mais de 400 lugares), mas é algo que segue ainda só nos planos. Muitos filmes sobre salas específicas vêm surgindo, mostras dentro de festivais etc.
Há uma ligação com a experiência completa envolvendo a coleção de memórias ao utilizar o espaço completo como o hall de entrada, a aparelhagem e, claro, a tela. Como este projeto pensa em construir um novo público que hoje não acostuma a consumir imagens? Hoje o consumo me parece uma experiência solitária através da TV, do celular, torrents, etc.
Novamente você toca em outra questão central. Como conviver o espaço com novas formas (e certamente solitárias) de consumo audiovisual. Fazendo, creio eu, o radical entendimento do reuso. Tratando os ambientes que compõem uma sala como o lócus de fato em sua totalidade. Recuperar a sociabilidade que uma ida ao cinema cria, provoca com novas atrações. Escrevi com Márcia Bessa sobre isso em artigo apresentado na Socine em 2019. Segue para quem se interessar. https://www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2019(XXIII).pdf (pp.1231-1235)
Nesta proposta de ter novas utilidades à sala me vem o pensamento de equilíbrio que Benjamin fala sobre as funções sociais do filme envolvendo o ser humano e a aparelhagem. Como esta proposta equilibra estas funções?
Aliando o aparelho (analógico/digital) ao cidadão.
Wilson Oliveira Filho é professor da Unesa desde 2005. Foi coordenador entre 2012 e 2021 dos cursos de Cinema, Fotografia e Produção Audiovisual no campus João Uchoa. Atualmente é extensionista com o projeto “A sala de cinema no campus João Uchôa: usos e reusos para Economia Criativa”. Foi pesquisador do programa Pesquisa Produtividade entre 2013 e 2020. Autor de McLuhan e o cinema ( editora Verve, 2017) e artista multimídia com o DUO2x4 em parceria com a professora, cineasta e pesquisadora Márcia Bessa.
Uma informação básica e que aparentemente passa como uma sombra em Por Trás da Linha de Tijolos Vermelhos é a consequência de um tempo assolador dos protestos registrados. Após seis meses de ocupação das ruas de Hong Kong, um capítulo novo então é escrito e registrado por câmeras que não possuem donos, identidade, conceitos estéticos ou até mesmo uma função para elas fora o imediatismo de seu registro.
Estas imagens podem ser fruto da hipérbole das redes sociais ou para uso particular, porém, juntas, a pensar em diversos realizadores não identificados, temos um capítulo escrito. A princípio enquanto os estudantes ocupam as ruas e pedem iniciativa da população o filme remete aos trabalhos de Sylvain George como a ocupação do espaço por corpos além de suas motivações. Porém este capítulo que cessa a liberdade enquanto a polícia os cerca durante os quatorze dias de ocupação da universidade politécnica exibe a urgência da produção de imagens tem suas vantagens.
Como uma automática denúncia de abuso de poder essas imagens captam a autodefesa dos estudantes além do protesto: eles querem e precisam descansar, ir para a casa, se alimentar, se banhar. O poder, enquanto isso, os afunila no campus da faculdade. E como é um filme feito para os efeitos dessas imagens além de qualquer construção paralela fica evidente como não há um filtro do que deve ou não ser exibido afim de maior impacto – tudo é bem didático, naturalmente ilustrativo.
Resiste o tempo que é possível para que o corpo peça para desistir. A pressão é, principalmente, psicológica, mas por trás dessa linha, o que o estado guarda para estes jovens não é um simples acordo ou ao menos notar os seus pedidos. Fica evidente como e para quem ele está a funcionar e sempre a base do horror.
Em certo ponto de A Calmaria Depois da Tempestade a diretora Mercedes Gaviria resume sua proposta como um exercício estático de memória. É interessante notar como esta frase dada pela própria realizadora coloca ao filme um tipo de análise referente às imagens de arquivo e suas funções simbólicas. Está impregnada no filme a questão do uso das imagens, da captação à reutilização como uma forma geral de banalização.
Gaviria utiliza o seu vício em captação de sons, as constantes filmagens caseiras de seu pai e a retomada de seu progenitor ao mundo cinematográfico para dar novos sentidos às imagens particulares de sua família e para registrar o processo de filmagem de um novo filme. Aqui temos dois filmes e com a narração de Gaviria, surge o terceiro. Portanto, fica em xeque a formação de unidade entre eles – ainda que todos coexistam paralelamente sem a necessidade de uma justificativa. Porém, Gaviria resolve uni-los com seu ponto de vista, com depoimentos de e sobre si.
Não leva muito tempo para que esta decisão tome a tela e dilua qualquer possibilidade de impacto, afinal Gaviria a leva para o escopo existencial – paralelamente social – com o suporte da ternura da memória, como se as rasuras do tempo às levasse a um local de potência orgânica, o que não acontece. A Calmaria Depois da Tempestade, desta maneira, está mais para ser um depoimento manipulador através das imagens indo de encontro à proposta de construção de um bloco de memórias através delas.
Um conflito simples desequilibra as intenções de Apenas o Sol como potente discurso: é o embate direto entre o formalismo e a frontalidade da mensagem. Talvez não exista um filme que coloque em palavras de maneira tão direta a relação do pentecostalismo e o extermínio da cultura indígena e, obviamente, suas vidas. Por caminhos diversos já o visitamos, seja em pinceladas no tema, filmes-rituais ou até acompanhando missões pastorais por aldeias, mas em Apenas o Sol há o diálogo direto sobre o assunto e com a profundidade necessária.
O que o assola é como Aramí Ullon compõe suas vias. Através de um homem que resgata palavras através de um aparelho de som e fitas magnéticas como forma de dialogar com o passado o filme justifica os encontros com outros personagens e seus depoimentos. O modelo dos talking heads se aproxima muito à forma que Ullon utiliza estes depoimentos: não estão ao acaso ou diluídas neste processo de gravações e recordações e sim estruturadas como capítulos de casos isolados que compõem um mosaico.
O filme ganha mais forças quando consegue brevemente aglutinar testemunhos, casos e canções tradicionais de maneira mais orgânica e sem transformar o formalismo como protagonista do filme e tomando a frontalidade que à priori seria das palavras. A força dessas histórias e assombros seguem funcionais apesar de não mais intactos. O conflito formal é mais forte que a própria intenção em narrar uma história de mutação e que caminha para o desaparecimento através de ideologias além do cunho religioso.