CURAR O REAL PELO MÍSTICO – OS FILMES DE SERGIO SILVA E JOÃO MARCOS ALMEIDA

Por Arthur Tuoto

 

A sobrevivência do cinema está hoje na capacidade do jogo que ele pode criar no interior de um sentimento geral de saturação em relação às imagens.”

Serge Daney

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Os curtas-metragens de Sergio Silva e João Marcos de Almeida não são meros trabalhos de reverência. É claro que existe, aqui, uma veneração que é implícita a uma lógica de invocação de certos imaginários cinematográficos, mas toda a assimilação entre a iconografia e o suporte acontece muito mais através de uma dinâmica performativa, uma lógica de desconstrução que busca no procedimento a sua sublimação pessoal (um pós-maneirismo bastante consciente do seu lugar), do que uma simples dialética de piscadelas. Apropria-se a historiografia fílmica brasileira e internacional não como mero objeto referencial, mas elemento de relocalização, inventário pessoal que tem nessa autoevidência um arsenal de cura, de reintegração entre sujeito e cultura. A cinefilia não busca uma definição exata de seus fantasmas, mas encontra na atemporalidade de seus mitos uma possibilidade libertária de jogo.

Jogo daneyniano, necromancia sugestiva ou simplesmente afirmação da vida (afinal, os personagens doentes curam-se justamente através de uma conclusão celebrativa), o cinema aqui é um meio – trivial e mítico na mesma medida – e não um fim. Os filmes se dão em um movimento assumidamente iconoclasta que se utiliza da dimensão cinematográfica numa ordem maleável de tirá-la de um lugar e colocá-la em outro, embaralhar as peças, misturar os referentes, bagunçar as bases de sustentação. Desorientar, mesclar, jogar. A poesia está no ato desse ritual, na sua vocação bruta, consequentemente impura e, naturalmente, na sua poderosa mística.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014)

Não é por acaso que o mundo em que se passam Febre (2017), Minha única terra é na lua (2017) e A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) soam como uma dimensão para desencarnados. Tanto em sua abordagem espacial e dramática – um anti-naturalismo muito frontal e incisivo – como na maneira como os personagens se portam e se deslocam, é possível perceber um estado de limbo. Um transe que se relaciona constantemente com uma ambiguidade, uma contaminação. São filmes onde ninguém está muito vivo e nem muito morto. Os cenários são esse lugar de passagem, palco que funciona mais como a frágil ligação entre mundos do que espaço principal de um acontecimento. Um lugar de encontro que nunca se limita a uma contextualização específica, que parece constantemente aberto, disponível para entidades de todos os tempos e círculos.

Essa fissura no espaço-tempo que os trabalhos promovem concebe uma artificialização muito característica de seus ambientes. O âmbito doméstico mais comum se transforma em uma dimensão anacrônica, uma zona de sonho. Quando o estoniano Robert se hospeda no apartamento de Marcos, em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014), acontece uma desestabilização emocional que infecta todos os entornos daquele universo. A paixão-doença do personagem se comporta como um disparador fantástico que evidencia o lugar do lúdico a partir de uma perspectiva melancólica e saudosista. O espaço da casa vira um espaço de desolação: miragens neon tropicais de um quarto fechado e escuro. O personagem é constantemente acometido de uma solidão incurável, da saudade de uma felicidade que quiça algum dia existiu. O apartamento é muito mais um dispositivo fantástico que media esses encontros incomunicáveis, do que um espaço de consumação amorosa propriamente. Existe um tom mítico, um ensejo para grandes acontecimentos, inclusive para embates de ordem transtemporais, mas o que se fundamente, no final das contas, é essa banalidade dolorida: a efemeridade de um amor platônico, a inevitável distância entre os afetos, a morte de um ídolo pop.

A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) não celebra uma iconografia, mas constrói sua dimensão a partir do que é transitório. Uma ida ao cinema, uma música cantarolada, um maço de Hollywood. O cinema entra como procedimento libertário que é ativo nessa dissolução, que não está interessado em reerguer os mesmos monumentos, mas em se colocar em lugares muito pouco cinematográficos. A pobreza do cenário, a caricaturização das luzes e toda a abordagem bruta que o filme articula gera um tom muito desolador que se autoconfigura nesse sua natureza anti-fílmica. Afinal, qual a melhor maneira de evidenciar o cinema se não negá-lo? Godard e Sganzerla, definitivamente dos maiores cineastas que entenderam esse jogo, são evocados aqui não a partir de uma mera referência, de um elemento influenciador evidente, mas tem seu vigor desconstrutivo encarnado na própria funcionalidade do curta.

Os três curtas, aliás, compartilham dessa vocação de um encontro que nunca é consumado, que pode até ir às vias de fato sexual, mas que tendem, inevitavelmente, a isolar o seu protagonista em uma busca pessoal solitária. Em Febre (2017), único curta dos três em que Sergio e João compartilham a direção, já que nos outros a colaboração acontece em diferentes camadas de diálogos diretos ou indiretos (sempre esotéricos), isso é ainda mais evidente. Após retornar ao Brasil depois de um período no exterior, Marcos procura uma reconciliação com o país, com as pessoas e, de diferentes maneiras, com um imaginário cultural que ao mesmo tempo que soa distante, é constantemente implícito em sua formação. O filme é o mesmo. O personagem tem o mesmo nome, sua irmã é interpretada pela mesma atriz (Gilda Nomacce), ele sofre da mesma Febre. Até a figura do ídolo pop volta em uma uma relação de espelhamento sugestivo (a morte de um lá: Michael Jackson, o fim simbólico de outro aqui: Kim Gordon e Sonic Youth). Nessa espécie de continuação espiritual do curta anterior, apesar de Marcos ter tido um outro fim, ele procura pela mesma coisa. Uma constante vontade de se exceder, fugir dos mesmos lugares, ainda que preservando antigos afetos e saudades.

Febre (2017)

O filme soa como um embate entre uma alienação que quer se preservar (a ideia mítica do país, as referências motivadoras de um ideal libertário de arte) e essa vontade de extrapolar os mesmo lugares. Uma identidade que se reafirma e que também se descontenta. A angústia desses mesmos amores (os boys, os cineastas, as frutas tropicais) e, em uma mesma medida, a liberdade do desapego. Toda a busca por uma catarse que dê conta dessa revolução pessoal é encenada através de uma relação ainda mais processual com o cinema. Se em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho (2014) o procedimento ficava mais evidente por meio de um maneirismo bruto, aqui o cinema literalmente expõe seus mecanismos. Marcos e Marcelo, em certo momento quando o primeiro vela pelo sono do outro, na cama ao som de Dolores Duran, são literalmente acoplados a uma pan circular da câmera. O plano gira sobre o próprio eixo, integrando os personagens a esse movimento, para depois abandoná-los e continuar seu deslocamento, revelando tripés de luz, fresneis e outros elementos do set. Ao fim a sequência reencontra os dois personagens, agora difusos, refletidos em uma vidraça. O procedimento não é mera referência, mas engole os protagonistas a partir de uma lógica que não segue mais as leis da física, que se desestabiliza em prol da figura da câmera, se rearranja em reverência ao suporte.

Outra vez, o cinema se desconstrói a partir de uma alusão muito pessoal (a câmera de regras próprias, a cartilha afetiva geradora de princípios formais muito particulares), e ao mesmo tempo absolutamente universal. Afinal, o que de mais clássico existe do que um plano circular registrando um casal de amantes? Os três curtas parecem seguir uma progressão muito sofitiscada e ousada nessas recomposições que se fundamentam numa transparência de processos, que são bastante autoconscientes de seus procedimentos, mas nunca domesticáveis dentro de uma perspectiva puramente metalinguística. O risco é sempre iminente, o limite entre o filme (a alusão universal) e o anti-filme (a iconoclastia de seus autores) é de um equilíbrio rigoroso, o que gera uma vitalidade muito característica.

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Minha única terra é na lua (2017)

Minha única terra é na lua (2017) é, por enquanto, o ápice desse encadeamento entre uma dimensão pessoal de seu autor – o curta é dirigido unicamente por Sergio Silva – e esse jogo cinematográfico que sublima, que cura ou tenta curar essa doença, essa febre, essa efemeridade anacrônica de não pertencimento que perpassa todas as obras. O filme é uma entrevista com Sergio, que é interpretado por Gilda Nomacce, mas que de tempos em tempos é encenado pelo próprio diretor Sergio Silva. O trabalho rejeita as alegorias anteriores e se foca em uma relação muito direta a partir desse dispositivo do confessionário em que o personagem/autor responde 36 perguntas que vão do aparentemente banal a uma exposição mais profunda de seus anseios. Configura-se uma espécie de curto-circuito tríptico a partir daquele que talvez seja o elemento dialético mais essencial do cinema: o plano e contraplano. Uma espécie de conjuração cinematográfica que, através de um alinhamento de referentes pessoais, se articula numa terapia mística. O alter ego não existe mais: Marcos é substituído por Sergio, mesmo Gilda, atriz que sempre interpretava a irmã, é parte do mesmo microcosmo individual.

O curta não precisa mais buscar referentes externos, mas se vale das questões do seu diretor dentro de uma ambiguidade que é característica dele próprio como sujeito. O jogo agora parte de uma só via. O exorcismo é, finalmente, praticado em primeira pessoa. O autor se desnuda dos maneirismos, da caracterização anti-naturalista e da artificialização espacial (que até existe nas primeiras cenas do filme, mas que se potencializa justamente na oposição realista e hesitante da não interpretação de Sergio), para dar lugar ao que de mais simples e essencial o cinema resguarda: uma conversa a dois. O que dentro da ação performática funciona muito mais como um monólogo, já que as perguntas partem de um lado só, mas a maneira como o filme se apropria da dinâmica da conversa, do bate e volta que motiva uma continuidade, gera um tom muito íntimo, uma aproximação doméstica (literalmente, já que pelo que tudo indica estamos na mesa de uma cozinha) que harmoniza ainda mais a proposta. Minha única terra é na lua (2017) abriga, sem a mediação característica dos filmes anteriores, o mote medular desse cinema: a reencenação mística como uma sentença de cura. O cinema-ritual que era praticado até aqui idealiza nessa abordagem objetiva uma ontologia própria. Um modo de estar no mundo que é desimpedido, pleno em sua irresolução e em suas crenças: os signos, os astros, o cinema.

Sergio Silva e João Marcos de Almeida confrontam a historiografia cinematográfica com mistério e adoração. Um jogo que constantemente se relaciona com um ocultismo particular, um remodelar esotérico de ícones que encontra um sentido muito novo – e inegavelmente contemporâneo – a partir de uma história universal da linguagem e do tempo em constante reescrita. O passado e a nostalgia podem soar como emblemas marcantes, mas a subversão dessas maneiras, o procedimento desses hábitos é, sem dúvida, coisa grandiosa que pertence ao futuro.

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TITANIC (1997) – UM IDEAL NEOCLÁSSICO VINTE ANOS DEPOIS

Por Arthur Tuoto

Memória espectral, o cinema é um luto magnífico, um trabalho de luto magnificado. E ele está pronto a se deixar impressionar por todas as memórias enlutadas, isto é, pelos momentos trágicos ou épicos da história. São então esses enlutamentos sucessivos, ligados à história e ao cinema, que, hoje, ‘fazem caminhar’ as personagens mais interessantes. Os corpos enxertados desses fantasmas são a matéria mesma das intrigas do cinema.

Jacques Derrida em entrevista para a Cahiers du Cinéma (abril de 2001).

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Vinte anos atrás, James Cameron fez da morte um renascimento. A partir da recriação milionária de uma tragédia, o cineasta norte-americano concebeu não apenas um dos maiores filme-eventos da história, mas relocalizou a própria historiografia daquele cinema. Uma perspectiva clássica que se focava na fundação de uma iconografia própria, que rejeitava a simples reverência ou reciclagem como atributos histriônicos e autoconscientes de uma narrativa novelesca, mas partia em busca de uma reconquista pelo que é efetivamente inocente.

Jean-Marc Lalanne, em texto sobre Titanic para a Cahiers du Cinéma em 1998, afirma que a obra de Cameron representa um ponto de inflexão do cinema americano, uma transição do seu maneirismo para um sonho neoclássico. Distante das visões apocalípticas ou irônicas de diretores como Oliver Stone e Irmãos Coen, abordagens que direta e indiretamente marcaram o imaginário estadunidente noventista e, definitivamente, longe de qualquer caricaturização oitentista, Cameron procurou, nesse luto glorificado, ressuscitar uma grandiosidade atemporal, uma primazia do contar que tem na universalidade arquetípica do amor e da morte uma perspectiva narrativa que se completa.

Perdemos essa ingenuidade? É possível encontrar, hoje, um drama fabuloso tão grandioso e referencialmente autêntico – mesmo libertário em seu jogo historiográfico – como foi Titanic em 1997? Ao mesmo tempo que o trabalho parte de uma perspectiva artesanal muito comovente nessa restituição de um sonho clássico, é evidente que ele funda essa mediação sobre uma base bastante cara ao seu autor: a tecnologia. E não estamos falando apenas da tecnologia que permitiu a reconstrução virtual do navio e de sua tragédia grandiosa, mas em como a obra assume a artificialidade como um mote dramático. O cenário idílico é recriado, da sua luz falsa alaranjada – uma filiação muito pouco solar – a assépticidade dos ambientes de um navio novo em folha. Nas externas o que brota é essa luz inautêntica – mais ilusória ainda na icônica cena do casal protagonista na ponta do navio – e nas internas, a reprodução ideal e intocável de tudo, dos objetos aos ambientes. Cameron assume aquele espaço como um estúdio magnificado. O tempo não passou aqui. É tudo novo e fresco, conservado numa ordem de simulacro, de virtual não apenas na dimensão do efeito especial, mas sintético em todos os seus entornos imaginativos. O navio é um estúdio de cinema, um sonho clássico naufragado que o diretor tenta recriar.

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Nem por isso Titanic é um obra nostálgica. Mais do que uma reverência, o que se procura é uma continuidade, uma leveza que nos aponte para aquilo que já sabemos que vai acontecer. Amor e morte se complementam a partir dessa fantasmagoria, desse espectro cinematográfico que ronda o filme, mas que nunca é exatamente incisivo em sua orientação. Uma sutileza que se reflete na maneira como Cameron leva a história, já que estamos diante de uma obra grandiloquente, mas também muito leve. Até a morte aqui é convidativa, imersa numa perspectiva de sonho, de pesadelo distante onde somos espectadores protegidos. É evidente que a construção tensional existe, mas o fim é guiado por uma delicadeza, um aconchego, uma tragédia contemplativa produzida para ser acolhida numa cadeira almofadada de cinema. O fato real é muito mais mote de fantasia, de cenário disparador de efeitos lúdicos (ainda que frontais), do que contextualização crua dos eventos. O cinema testemunha, mas remodela, recompõe a realidade a partir do mote novelesco e sedutor.

Existe um senso de imersão tecnicista, que Cameron potencializou ainda mais em Avatar (2009) com o elemento 3D, que resguarda o filme nessa elegância imperativa. O diretor parte de um arsenal técnico muito pesado justamente para nos guiar com mãos leves. As panorâmicas externas em CGI, o deslizar da steadycam, os corpos despencando em ângulos primorosos, tudo reitera um ponto de vista onipresente que testemunha aquela situação com a devida distância, com o devido balançar harmônico das ondas.Titanic é uma fábula em que autoria e aparato se unem, acima de tudo, em benefício de uma experiência de espectador. É como se tudo fosse matematicamente programado para ser o mais eficientemente assimilado, do tempo de cada olhar a iminência dramática das cenas, em uma perspectiva ao mesmo tempo hábil, afável e devastadora.

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A autoria é equilibrada por essa visão tecnológica, contemporânea em suas relações com o suporte e a imagem, mas absolutamente aberta a demandas populares, articulando-se numa dimensão que ao mesmo tempo que nunca isola a visão de seu autor, compreende a eficiência do seu produto, integra-se ao seu meio e a engrenagem mercadológica dele. Seria James Cameron o mesmo anti-autor – o artesão freelancer – que David Fincher é nos dias de hoje? Dois diretores em que o estilo fala mais sobre a exigência entretiva do que sobre uma visão individualizada do trabalho, onde a tecnologia funciona, constantemente, em prol dessa reivindicação, dessa fruição do clássico que encontra a solicitação astuta contemporânea. E se Fincher rejeita a ingenuidade – é inegável que vivemos a era das narrativas cínicas -, se ele refunda o clássico com uma acidez que é característica dos nossos tempos, o cineasta, atualmente, é um dos que melhor concilia esse abraço a evolução dos suportes – a assimilação tecnológica como mote dramático atemporal – com uma ideia de produto cinematográfico, de entregar não apenas um filme, mas um trabalho que cumpra seus desígnios industriais na cultura que pertence.

Não que Avatar (2009) não tenha dado uma continuidade digna a esse sonho neoclássico, já que ele até o deslumbra ainda mais – tanto no sentido do tecnologia como um acontecimento (o primeiro grande filme em 3d), como dessa sentença inocente do romance – mas um só filme não pode dar conta de um panorama tão extenso. É claro que existem constantes tentativas de retomar esse ideal, mas diferente de Fincher, diretores como James Gray, Christopher Nolan e Paul Thomas Anderson (para ficarmos numa tríade clássica contemporânea de intenções bastante específicas entre si) estão muito mais empenhados em uma visão individualizada e isolada, em construir a sua própria ideia de clássico partindo de uma inflexão autoral muito incisiva, do que em se integrar a uma demanda. Não é por menos que os três diretores compartilham de um gosto por uma produção grandiosa, mas que conserve a tecnologia em um campo muito mais limitado, prezando por um realismo, efeitos práticos e até uma vontade em perpetuar o suporte da película.

GAROTA EXEMPLARGarota Exemplar (2014) – David Fincher

Cameron e Fincher compartilham de uma iconoclastia quase maquiavélica. São homens que acreditam que para perpetuar alguns mitos é preciso abrir certas concessões. Não existe a romantização do processo (tão cara para Gray), mas a assimilação de uma evolução pragmática inevitável da linguagem, de uma eficiência pela fraude. O que é Titanic se não um grande circo tecnológico encenado na impessoalidade de um estúdio? A renovação vem pelas vias de suas próprias mentiras. E em Titanic, literalmente, do seu próprio ideal de morte. Ao magnificar esse luto, Cameron transforma a memória espectral de uma tragédia e de um cinema em disposição irreverente, em uma luta não pelo que é novo, mas pelo que sempre pertenceu ao presente.

Vinte anos depois, o cenário é deveras menos inocente do que o diretor de 1997 previu, mas sua base motriz tecnológica caminha a todo vapor. Para além de Fincher, cineastas como irmãs Wachowski, Steven Soderbergh, Johnnie To e Robert Zemeckis, apostam constantemente na tecnologia como catalisadora do clássico – talvez não tão empenhados em uma lógica industrial como Fincher, mas até certo ponto tradicionais em seus propósitos. Um elemento agregador de forças que ao mesmo tempo que reitera um dinamismo plástico  – até mesmo uma nova concepção de plano cinematográfico – viabiliza um controle obsessivo por cada detalhe posto em tela. O ideal de hoje é um ideal de domínio, de controle pelos processos. Um equilíbrio entre as novidades que motivam novas mediações espaciais e velhos preceitos que mantém viva a disposição de uma boa história a ser contada.

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RENASCIMENTO EM TEXTURAS E LUZES

Por Gabriel Papaléo

Testemunhando o pictórico no fim do mundo de uma natureza que vive e morre sob os próprios termos. Os vestígios e registros daquilo que acaba e vive em igual medida. Assume o ponto de vista totalmente difuso de sugerir olhares múltiplos de uma coruja, de um cavalo abandonado por quem nunca vemos, das sombras que sobem as montanhas, de um fotógrafo privilegiado diante da terra alienígena que está diante dos nossos olhos. Salta dessas diferentes percepções para afirmar uma impossibilidade de assimilação do todo, de momentos que deixam lacunas, de preenchimentos de intuição mais fortes que informações visuais. O digital como ferramenta impressionista de fragmentação e reorganização da imagem, texturas diversas que se confundem para com o zoom preciso esclarecer. Constroi seu mundo através de neblinas e reflexos, de um som de extracampo que dá conta de todas as transformações simultâneas que remetem tanto a uma origem da Terra como de fragmentos de um reinício. Das ficções-científicas especulativas mais conscientes do potencial apavorante do lugar que localiza sua narrativa.

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Enquanto visão de mundo cinematográfico, um manifesto pelo potencial destruidor do digital. As chamas da floresta ou os raios no céu são consequências naturais do perigo sentido ao longo da narrativa – surpreendentemente modulada para um conceito aparentemente difuso – mas são elementos de violência imagética menos incômodos que a presença do ruído, do grão digital que se move lentamente, que forma abstrações através de paisagens deformadas lentamente. O poder do tempo em destruir uma imagem para renovar o mundo que secretamente observamos. Sleep has her House, com a ambição de imersão num estado de transe, vive num curioso e pouco habitado lugar de incerteza sobre a projeção cinematográfica nos tempos de transformação e morte do cinema: tem suas fundações estéticas nos signos de uma cinema tanto de horror quanto de ficção-científica de um assombro com o desconhecido que se impõe bem dentro da experiência da tela escura, com a projeção em tela enorme; mas constroi o pensamento através justamente de uma questão imaterial da imagem, da maleabilidade do quadro e da textura, de um cinema essencialmente digital que não enxerga na superfície da película uma âncora de presença física no mundo. Sua exibição parece enxergar como irrevogáveis tanto as ferramentas de exibição digital num computador quanto na experiência da tela escura tão sagradas em cinematografias como de Tacida Dean, Peter Tscherkassky e Paul Thomas Anderson.

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Uma progressão notável na filmografia do Barley, como se culminasse diversas ideias dos mundos criados e destruídos pelo galês nos seus filmes anteriores. Alia com harmonia sua vocação para olhar impressionista que vira expressionista de paisagens com seus curtas mais focados na abstração de texturas que o aproximava a Brakhage, como o Irresolute (2015). Aqui, o pictórico das texturas se configura dentro de uma ação de horror de espaço como mais um elemento cênico, seja na figura de um céu alaranjado que deixa o mundo respirar por um momento, seja na cicatriz deixada no ambiente pela correnteza implacável numa das fusões ambiciosas do filme. A beleza e perigo do natural, ficção-científica e horror como visões complementares de mundo, as duas faces da curiosidade, tentando adentrar um lugar não pensado para a sua presença, que progride lentamente até o fim apocalíptico que parece que esteve ali desde o princípio.

Foi uma das sessões mais inacreditáveis da minha vida. Sei que acaba muito confessional nisso daqui que vejo como diário emocional do que tive com o filme, mas sinceramente saí catatônico. Não sei se conseguirei ver novamente numa tela grande, mas tenho certeza que não me esquecerei do que tivemos ali.

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O ACASO QUE REGE O MUNDO – O CINEMA DIGITAL DE JOHNNIE TO E MICHAEL MANN

Por Gabriel Papaléo

Em certo momento de Warriors – Os Selvagens da Noite (1979, dir. Walter Hill), todas as gangues se reúnem para um debate numa praça, um amontoado de pessoas ocupando um lugar através da desobediência civil para esclarecer questões éticas de suas vivências enquanto sociedade. O uso da locação no cinema de gênero como forma estrutural de construir mundos através de recortes de lugares reais, especialmente em produções de baixo orçamento, indicam muito uma devolução das imagens ao mundo ao redor, uma forma de abandonar o estúdio para ressignificar o que é cotidiano. Essa prática é velha, transformada em manifesto já nos tempos de Nouvelle Vague, e no limite esteticamente um estúdio pode reproduzir a vivência das ruas de qualquer cidade com rigor imagético devido, mas esse peso simbólico não perde força: levar essa ação às ruas devolve a consequência pras ações que ali enxergamos. Existe algo forte em ver o lugar onde se vive representado em tela, e em acompanhar rostos desconhecidos em um mundo paralelo ocuparem esse ambiente alterado em prol da ação. Filmes como Los Angeles Plays Itself (2003, dir. Thom Anderson) e mesmo Vancouver never Plays Itself (2015, dir. Tony Zhou e Taylor Ramos), o video-ensaio do Every Frame a Painting sobre a falta de representação de sua cidade como ela mesma nas telas, constróem nessa ideia de imaginários cinematográficos a identidade cultural da cidade – e até no que isso tem de opressor.

É da escritora americana Jane Jacobs uma frase que exemplifica o contato humano na cidade como modelo social de resistência: “Modesto, sem propósito e aleatório como possa parecer, o contato com o outro nas ruas é a pequena mudança que faz crescer a qualidade de vida pública”. Nos olhares perdidos da cidade, lugares e pessoas são ressignificados. Historias contidas naquelas pessoas se suspendem todos os dias no caos da rotina da cidade, onde a pressa suprime o contato além do visual, e o cotidiano passa a se formar pelo desencontro. A cidade é representada como ambiente de encontros, ocupada pela ação, caótica pelas consequências. Estar na cidade é uma ideia cívica, um poder de ocupação que transforma um ambiente de trânsito em um lugar de convivência, de identidade cultural. Inserir a ação do filme de gênero na cidade é um manifesto porque traz o peso historico de um lugar habitado, composto ao longo de gerações, detentor de jornadas múltiplas que não temos acesso mas sentimos enquanto observadores.

Nesse sentido, o papel do indivíduo que busca a manutenção de uma certa ordem urbana costuma ser o protagonista eleito tanto por To quanto por Mann. A obsessão pelo controle de encenação dos dois diretores se reflete na própria dramaturgia dos filmes, com seus personagens extremamente eficientes na busca pela volta à normalidade. Em Fogo Contra Fogo e em PTU, dois dos melhores filmes dos diretores, essa compreensão dos personagens em tentar moldar o mundo é expressada na forma que a encenação apropria a cidade na estrutura de travelogue como forma de ocupação, mas sob estéticas diferentes. A Los Angeles de Mann é de locações realistas, luzes naturais, com o mitológico sendo construído com elementos cotidianos, e as luzes revelando a solidão dos protagonistas; a Hong Kong de To trabalha com locações cuja estilização é de um trabalho de marcação de luz muito preciso, de um potencial mitológico de sombras planejadas que ocultam as mentiras da conspiração policial do filme, a ponto de criar uma cidade quase imaginária. Ambos no entanto se aproximam em estética através da materialidade da película, que é responsável pelo palpável das luzes em ambos os filmes, pela forma de estilização dos sentimentos dos personagens através do ambiente – na cidade fantasma de To, na cidade inflada de personagens e espaços de Mann. E quando os diretores migram para o digital, a estética de registro da visão de mundo muda radicalmente – o que era palpável se torna frágil, em escalas diferentes e um tanto complementares.

A difusão das luzes e suas fragilidades.

Em 2004, Colateral inicia o cinema digital na filmografia de Michael Mann, e com ele a configuração visual da cidade muda. Desde o processo cotidiano dos taxistas no início, o detalhe nas mãos nos motores de carro e as conversas dos passageiros triviais no banco de trás de Max, a dimensão que mais importa ao filme é do registro mosaico de uma cidade em movimento. Os lugares populosos, cheios de trânsito e luzes, com o céu no crepúsculo que se despede da rotina dos habitantes de Los Angeles para então cair a noite, e o ambiente então a se esvaziar. Agora não há mais sombras, não há mais esconderijos estilizados; tudo é iluminado, exposto, a cidade luminosa que nunca dorme graças a captação do digital. Mais da metade de Colateral se passa em becos obscuros, em ruas sem trânsito, sempre vigiadas pelas torres iluminadas que têm uma presença imponente no fundo dos quadros mesmo sendo impessoais, monumentos abandonados testemunhas tão impotentes na ação quanto nós espectadores. A cidade de milhões de habitantes pensada em volta do trabalho e do movimento constante, como o matador vivido por Tom Cruise frisa com frequência, palco para a eficiência máxima de suas ações violentas enxergadas por ele apenas como trabalho e cujas consequências são inevitáveis num registro pictórico que carece das sombras de PTU ou Fogo contra Fogo. As sombras só surgem no final, e nunca absolutas, confundem mais que esclarecem.

Colateral

Como os personagens ultra-eficientes de Mann, existe também em Vincent uma vocação anárquica no combate às instituições – uma contradição sempre interessante nos protagonistas do diretor. Bate de frente com o chefe abusivo de Max, sempre tenta trazer a dimensão enorme da cidade como algo opressor – e mesmo assim trabalha pela ideia de controle, da ordem, uma visão niilista que assimila o impessoal como parte do mundo. Talvez por entender o acaso como agente que o personagem simpatize com o trabalhador comum, com quem está sozinho a vagar numa Los Angeles hostil.

Que a maioria dos obstáculos narrativos do limitado roteiro de Colateral sejam em volta do acaso – a queda do corpo no carro, a chamada de última hora dos policiais, a dimensão pessoal do confronto final, a falta de luz no metrô no clímax – só torna uma decisão arrojada a escolha de Mann em associar a impessoalidade da cidade a um movimento de sorte. É como se a ordem social invisível que regesse Los Angeles fosse menos uma questão de ordem e mais de como lidar com a falta de controle, o improviso como sobrevivência. Vincent tenta a todo momento manter-se no plano, mas é na base do improviso que a progressão dos acontecimentos se dá – como o jazz no clube da cena do terceiro assassinato. E é pelo improviso que ele cai, quando a aleatoriedade da cidade ajuda Max, o taxista nativo de LA que só consegue agir quando as luzes caem completamente, que anda pelas quadras da cidade com a dimensão de fuga para um lugar paradisíaco mas que está destinado a começar seu dia no metrô como qualquer habitante dali que percebe que não está no controle de sua rotina.

Colateral

Não por acaso Colateral termina no metrô onde começa Fogo contra Fogo; é o seu oposto, afinal. Se lá a alteridade entre oponentes era pela impossibilidade da fuga no aeroporto, aqui é pela impessoalidade do cotidiano. O fardo é ficar na cidade de luzes, onde o homem comum só vence o assassino eficiente ao atirar pelas sombras, no escuro que não está ali para ameaçar ou criar a potência mitológica de uma imagem, e sim por acaso.

Quem vence o confronto é essa aleatoriedade, a competência das pessoas que agem para controlá-la não é páreo para o implacável da cidade digital. É notável o tempo que Mann usa nos filmes para demonstrar o processo de trabalho de seus personagens, porque é aí que entendemos a dimensão trágica das ações que devem provocar e combater, e se percebe que não é suficiente colocar quem é mais apto para o trabalho se a base do confronto, da violência que paira aqueles lugares, acaba arrasando tudo. São personagens frequentemente registrados fora de foco, ofuscados pelas luzes e a fumaça das fábricas, que vivem pela manutenção de uma ordem que se prova falida, e esses são filmes românticos nas perdas pessoais porque não existe contato humano que sobreviva a obsessão de conter o caos, registrado em um digital que só lembra do quanto o ambiente pictórico pode ruir a qualquer momento – e a câmera de Mann está lá para testemunhar o preço que se paga por tentar controlar um mundo frágil.

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O digital limpo, a fragilidade no ambiente físico.
Já Johnnie To, que começou a explorar o digital com Don’t Go Breaking my Heart (2014), sai dos ambientes urbanos que costuma construir as sequências de ação de seus filmes de crime e vai para dentro do estúdio mostrar a fragilidade do digital. Nos seus dois últimos filmes, Escritório e Três, o diretor lança mão de uma luz de estúdio que revela a falta de materialidade do ambiente, e concebe toda a estrutura narrativa de obsessão dos personagens em volta dessa nova perspectiva de mundo que ele atribui ao uso do digital.

Em Escritório, a historia transcorre toda dentro de um estúdio que visivelmente emula um galpão, com armações de metal expondo as paredes, as luzes todas artificiais, e uma arquitetura de cidade visivelmente planejada na artificialidade do utilitarismo. Não é por acidente que o visual aproxima tanto de Playtime, outro filme de encenação planejada com detalhismo para expor o humor que existe nessa ilusão de controle, de motor perfeito que rege a geografia de uma sociedade. No filme, todas as relações de poder geram uma melancolia em alguma medida – seja na figura do chefe de Chow Yun-Fat, seja no ato final de retirada da personagem vivida por Sylvia Chang – por conta justamente de uma irrealidade material da cidade que não se comenta, não se torna metalinguagem, e é apenas vista ao redor e sentida pelos personagens. Os quadros de To frequentemente mostram dezenas de funcionários enfileirados, perdidos num coletivo não de pertencimento, mas de obrigação social. A alegoria musical e a encenação marcada exibem todo um esquema dos mecanismos de ação daquela cidade de estúdio, esculpida sob a ideia capitalista do progresso puro, e por isso tão irreal em suas matrizes.

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Em Três, a relação é tão radical quanto: o hospital onde quase toda a ação do filme transcorre é feito de corredores iluminados de forma chapada, tudo sempre às claras, sempre revelando a natureza falsa daqueles cenários que escondem as conspirações que são descobertas à medida que os personagens obcecados pelo controle progridem na investigação. A câmera de To passeia pelo hospital em diferentes frentes de ação (o policial de Suet Lam na espera, o policial de Louis Koo lidando com a corrupção, a doutora de Zhao Wei mediando a relação dos criminosos com os policiais) como forma de idealizar aquele amálgama de sociedades distintas em convívio, para construir uma tensão gradativa que vai corroendo essas noções de civilidade aos poucos, mostrando que mesmo num ambiente neutro como o hospital elas são conflituosas.

A mudança mais frontal de Escritório em comparação a Três, no entanto, é na forma que o caos do terceiro ato se configura; a maior violência contra aqueles personagens corporativistas é o rearranjo de suas posições, um fim de relações mediadas pelos contratos, que acabam consumidas porque no arranjo capitalista as mudanças não são físicas no ambiente, mas no crivo social. No hospital de Três, a ordem é uma questão palpável – o silêncio é a regra, a calma uma forma de exercer a civilidade ali dentro – e a subversão disso, quando as coisas realmente saem do controle, é exercida através do tiroteio, do confronto através da violência física – o plano-sequência do clímax sendo a síntese disso, uma câmera lenta que evidencia uma organização meticulosa de um caos absoluto.

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Se os adeus em Escritório são cerimoniosos nos seus gestos, em Três são visivelmente destrutivos. O que aproxima os dois filmes é o registro digital dessas luzes, desses ambientes falsos colocados numa perspectiva de ordem/controle vs. caos/reorganização. Enquanto espectadores intuímos as dissonâncias nos ambientes através da luz marcada e dos limites frágeis das placas de metal do galpão de Escritório e das paredes divisórias do hospital de Três – e o choque é maior por conta da assimilação dessa mesma afirmação nunca ser discutida pelos personagens. A conspiração é textual como em muitos filmes de To (Breaking News, Drug War, Vingança, A Missão, e o próprio PTU), mas é na desconfiança do registro daqueles ambientes que frequentamos que o diretor organiza novas formas de alteridade com os personagens que acompanhamos, como nós tão reféns de estrutura programadas socialmente, do preço que pagam pela manutenção do poder.

Seja no estúdio estilo Playtime (1967, dir. Jacques Tati) em Escritório, ou no hospital de novela de Três, em diferentes vias, sob o digital de fragilidade pictórica ou de revelação da falsidade de uma luz marcada no ambiente, o cinema de To e Mann trabalha nesses filmes de crime a ideia de uma sociedade do capitalismo como ambiente obsessivo falso. O controle é apenas um dispositivo ilusório cujo interesse é apenas dos poderosos, sejam de corporações criminosas legais ou ilegais – e cabe ao indivíduo se impor diante da ordem para sobreviver a esse acaso. É o trem em Colateral, transitório e implacável, palco de um mundo que vê o indivíduo como indiferente, ou sala de operações que é destruída a bala em Três, ambiente social seguro fragilizado em segundos. O jazz e o inesperado.

A luz digital é aqui, portanto, um sinônimo de fragilidade da compreensão de ordem no mundo dos personagens. Um lugar de instabilidades, como os prédios idênticos em metrópoles diferentes de Hacker (2015, dir. Michael Mann), os corpos disformes nos pixels da boate que Crockett e Tubbs entram em Miami Vice, ou a baixa definição das multidões refletidas nos vidros do táxi em Colateral. Os rostos são superfícies vivendo num mundo prestes a ruir como a imagem digital que os capta. Não por acaso, o que afina os finais desses filmes é a imposição do caos, de perdas emocionais. Não existe controle formal como antes em um mundo de multiplicação de imagens por dispositivos mais acessíveis, e, querendo ou não afirmar preceitos antigos do formalismo cinematográfico, deve-se levar em conta que a imagem enquanto registro (e especialmente percepção) mudou.

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DIALETIZAR SEM ESPERANÇA DE SÍNTESE – DA LINGUAGEM À FENOMOLOGIA

Por Diogo Serafim

Dialetizar sem esperança de síntese

Era preciso deixar a morte insistir na imagem. Abrir a imagem ao sistema da morte. (…) entre a artimanha e o risco, entre a operação dialética e o sintoma de uma rasgadura, entre uma figuração sempre firmada e uma desfiguração que sempre se interpõe (…) existe um lugar, um ritmo da imagem no qual a própria imagem busca algo como o seu desabamento. Então estamos diante da imagem como diante de um limite escancarado, um lugar que se desconjunta. O fascínio aí se exaspera, se inverte.

Georges Didi-Huberman, Devant l’Image

O não-saber desnuda. Essa proposição é o ponto culminante, mas deve ser entendida assim: desnuda, portanto eu vejo o que o saber ocultava até então, mas se eu vejo eu sei. De fato, eu sei, mas o que eu soube, o não-saber desnuda novamente.

Geoges Bataille, L’expérience Intérieure

Reside na alma um ímpeto ascético que se estabelece no desejo de querer superar o que vemos e o que nos olha. Ir além do que nos é apresentado. Se o cinema é a transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens, no que consiste, propriamente, o ato de assistir a um filme? É o fenômeno da ilusão da experiência e, como fenômeno, não se apresenta necessariamente como um código a ser destrinchado, e sim muitas vezes como um mistério a ser sentido, fundamentalmente consolidado como expressão e não como discurso. Consiste no evento ultrapassando o significado, podendo até se apresentar como frustração, mas uma frustração bastante específica que jamais se resigna, que sempre instiga e impacta.

Devemos buscar uma fenomenologia da imagem que se apresente para nós como abstração plena da realidade, sem buscar necessariamente uma significação determinada pela razão, mas uma absorção sensível transcendental e arrebatadora capaz de elucidar todos os seus predicamentos. É como Glauber Rocha afirma: “para mim cinema é imagem e som, o resto pouco importa. É o drama existindo na dinâmica visual, diferente do drama literário, contado. A câmera não é narradora de fatos, mas instrumento de criação. O cinema deixou de ser romance para ser poesia, e quando você escreve uma poesia, um conto ou faz um filme, não faz mais que materializar um sonho, materializar um produto do inconsciente que não é controlado pela razão”. Ali reside toda a força da expressão, a inelutável modalidade do visível¹ que se manifesta tanto como fisicalidade como abstração. Aqui valem os escritos de Merleau-Ponty: “todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele”.

Isso não significa necessariamente uma recusa à hermenêutica. A fenomenologia pode se apresentar ou aliada a uma abordagem mais fechada, baseada nos códigos estabelecidos pela linguagem fílmica, ou como uma interpretação mais subjetiva e amorfa, que se apresenta a mim não por meio de predicados definidos, e sim como lembrança, afeto, enlevo². A experiência do cinema não como análise determinística de um sistema fechado, e sim como um sistema pessoal, amplo e imprevisível, um processo dialético que nunca chega a uma síntese, mas sempre se descontrói, se reconstrói, desaba e ergue-se novamente.

A morte do cinema como o paradigma maior da imagem, a morte como um arcabouço das imagens, onde a sua política se sente, não se explica. Um ato extremista de fé, tematizar a morte como rasgadura e projetá-la simultaneamente como meio de recoser todas as rasgaduras, de compensar todas as perdas. Maneira de incluir dialeticamente a sua própria negação, fazendo da morte um rito de passagem, uma mediação rumo à ausência de toda morte3.Permitir a morte da comunicação para o nascimento da experiência. O filme vive em mim, eu entendo não porque me foi dito, mas porque senti na pele o fenômeno.

O cinema nascendo do trauma, do momento em que permito perder-me a mim mesmo. A obra como uma construção absoluta que se apresenta a mim como recordação da minha própria experiência sensível, onde confronto a minha existência com a imagem que me observa de volta.

Devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.

Feche os olhos e veja

A imagem dela entrara na sua alma para sempre, e palavra alguma teria quebrado o sagrado silêncio do seu arroubo. Seus olhos o tinham chamado e sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida!

James Joyce, A Portrait Of The Artist As a Young Man

O cinema sempre esteve em algum grau subordinado a uma manifestação natural. Ora, filma-se o que se vê. Isso não está necessariamente associado ao quão manipulada foi a mise-en-scène ou a dramaturgia, e sim à simples ontologia plena da matéria que nos é apresentada. Lisandro Alonso se abre em seu filme A Liberdade (2001) para essa ontologia, aqui transposta como rotina, como movimento, como contemplação. Logo nos é apresentada a solidão do lenhador Misael conforme ele vai realizando suas tarefas diárias. Não cabe aqui definir significado às atitudes do nosso protagonista – basta dizermos por exemplo que quando, após terminar seu almoço e pôr-se repentinamente a observar o horizonte com o olhar moroso, Misael vai até sua barraca, deita-se em sua cama e descansa com o mesmo olhar desolador e enigmático, olhando para além da câmera, como que para mim. E eu também me senti sozinho.

Alonso logo em sequência já me reconforta: desliza sua câmera da escuridão vazia da barraca (do eu) até a imensidão holística da natureza. As árvores, os pássaros, a terra, o céu. E eu me senti parte daquilo. Quando Misael lava suas mãos, eu lavo as minhas, quando ele seca seu rosto, eu seco o meu. Quando Misael liga para Juan e pergunta de Micaela e Roxana, sentindo saudade das mulheres de sua vida, eu me lembro e também me dói. Eu também sinto saudades.

A sequência mais comentada do filme costuma ser a final, na qual Misael olha para a câmera, conversando com a equipe técnica do filme, das mais impactantes quebras de quarta parede na história do cinema. É quando Alonso se mostra na realidade como um fabulista de olhar retratista, é quando percebo que aquele universo no qual me adentrei tão absolutamente, que me entreguei, a personagem a qual acompanhei tão diligentemente não passa daquilo: uma personagem. Uma imagem. E isso torna todo o turbilhão de sentimentos que veio antes ainda mais devastador e presente. Quando a representação tem a força de fenômeno. O cinema faz isso: reconcilia a soberania do Eu com o infinito do Outro. Porque a narrativa do Outro reside em mim. E ali se dá a nossa própria narrativa.

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A Liberdade (2001) – Lisandro Alonso

O filme ‘tabula rasa’ (1989), de Peter Tscherkassky, é um filme seminal no sentido em que a morte do cinema é aqui a morte da ilusão do controle. Pode funcionar muito bem como defesa dos estudos de Metz também – porém o que realmente me interessa aqui não é o discurso simbólico do cineasta, e sim como ele é constantemente abstraído de sentido pela câmera e no fim se reapresenta na figura do corpo feminino. Apresenta-se não como linguagem, mas como expressão. Eu não posso categorizar no que consiste o imaginário do autor, mas posso reorientá-lo a meus termos, o meu inconsciente sendo o discurso do Outro, o meu desejo sendo o desejo do Outro. Empregando conceitos da psicanálise lacaniana, Tscherkassky tenta aqui desestruturar e simultaneamente reconciliar o real, o simbólico e o imaginário, desfazendo e refazendo constantemente este nó borromeano, sistematicamente rompendo com cada um destes conceitos para dissociá-los e associá-los em seguida. O objeto de desejo que quando finalmente se apresenta ao alcance de minhas mãos, desaparece, se esconde, continuamente foge do meu controle. Quando a ilusão do cinema desfalece e o que resta é apenas a constatação de que tudo não passou de abstração. Mas a dor permanece. A imagem dela resiste na minha lembrança. Mesmo que sempre se deteriorando, cada vez mais distante. O filme consiste em uma luta contra o esquecimento, o corpo da moça constantemente me sendo negado em sua totalidade até que ela desaparece de vez da minha memória. É a consolidação da frase final do conto O Aleph, de Jorge Luis Borges: “A nossa mente é porosa para o esquecimento, eu mesmo vou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços dela”.

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Tabula rasa (1989) – Peter Tscherkassky

    Nos dois exemplos de filmes acima a minha experiência se deu basicamente em um processo de identificação, com o protagonista de A Liberdade e em seguida com o autor (Tscherkassky) e sua expressividade. A identificação no cinema geralmente se dá nessa alternância constante entre o Eu e o Outro em uma experiência lacaniana/lévinasiana de experienciar o amor e a alteridade.

Contanto, no filme Não é Um Filme Caseiro (2014), propõe-se não propriamente uma experiência por identificação, mas uma experiência de aniquilação do Eu. O filme não precisa necessariamente me abarcar como uma figura ativa de identificação com Chantal, sua irmã ou sua mãe (por mais que haja tal empatia), mas sim como uma entidade que é naturalmente invasora naquele meio5. A identificação se dá com a matéria fílmica, com a análise das possibilidades políticas de um exercício tão extremo. O que há para dizer? Vale a pena discursar sobre o que o filme propõe acerca do papel da tecnologia nas relações humanas atualmente, sem dúvida. Sobre como a árvore presa ao chão, resistindo os fortes ventos, serve como analogia à mãe da diretora e a ela própria. E podemos tentar compreender o que Chantal quis dizer com “por isso que ela é assim” quando a funcionária da casa a pergunta sobre sua mãe. O que ela quis dizer com assim?

Eu sei, eu compreendo perfeitamente, mas não me atrevo a explicar. A linguagem não abarca. Não me atrevo sequer a pensar excessivamente sobre o tema por saber que adentrei um campo hermenêutico muito maior do que eu – o do holocausto, o da perenidade do trauma, onde a compreensão não se dá por linguagem, e sim por alteridade. Quando a face do Outro me assola, me aniquila, pois ela representa ali o maior dos atos políticos.

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Não é Um Filme Caseiro (2014) – Chantal Akerman

    Seria interessante também comentar sobre a obra recente de um dos mais geniais diretores do século XX: Jean-Marie Straub. Após a morte de sua esposa Danièle Huillet, espetacular diretora e sua companheira em praticamente toda a sua filmografia, surgiu um aspecto muito particular e recorrente em seus filmes desde a tragédia a qual ele foi submetido. Reside nas imagens de filmes como O Joelho de Artemide (2012) e Diálogo de Sombras (2013) um desespero latente escondido na aparente serenidade das imagens. Reside sobretudo uma avidez desesperada em recuperar a imagem da esposa falecida, uma luta impossível contra a impermanência do sonho, a necessidade de recuperá-lo pela abstração do cinema.

    A morte do cinema é a morte deste como meio de comunicação direta, como manipulação, a morte de um discurso materialista hierárquico e o nascimento do meu protagonismo como espectador. O que eu depreendo está de acordo com o que floresce em mim, não com o que me foi imposto. Devo orientar os misteriosos frêmitos de beleza que ecoam em mim, sem esperança de síntese, onde eu transcendo o espectro e finalmente me uno com o holismo intangível do Outro. Quando o fenômeno transcende o discurso. E finalmente o cinema pode acabar se tornando algo como a cena final do filme de Edward Yang Mahjong (1996), quando em um caos capitalista de cores, movimento e anonimato, sem nenhum nexo causal plausível, duas pessoas possam se encontrar e, em um ato de fé, se apaixonar.

  1. James Joyce, “Ulysses”.
  2. Aqui talvez valha uma análise mais cuidadosa acerca da constituição neurológica do que chamamos de sentimento e razão e como essas faculdades se associam, temas brilhantemente trabalhados por António Damásio em seu livro “O Erro de Descartes”.
  3. Georges Didi Huberman, “Devant l’image”.
  4. Georges Didi-Huberman, “Ce que nous voyons, ce qui nous regarde”.
  5. Percebe-se aqui o que poderia gerar um dos maiores problemas estruturais nessa teoria fenomenológica do cinema: estar preso a um filme, estar à mercê de seus valores políticos e uma necessidade de buscar empatia nas figuras das personagens, nas quais deveria supostamente me espelhar/admirar/personificar enquanto espectador. Ora, isso não é necessário, posso fazer uso da fenomenologia da matéria para criticá-la epistemologicamente, uma crítica aliada à essa apropriação sensível da apresentação em questão. Eu não estou à mercê de nada, a matéria está ali para me fazer repensar minhas convicções, para me apresentar novos conceitos e possibilidades sensíveis, claro, mas seus predicamentos também podem ser recusados ou reorientados por mim.
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COSMOLOGIA COTIDIANA: O CINEMA DE HONG SANG-SOO

Por Pedro Lovallo

Alguns artistas são acusados de jamais abandonarem a sua zona de conforto, insistindo nos mesmos temas e padrões estéticos. Que Hong Sang-soo seja visto por muitos como um diretor de filmes iguais não é surpresa, e isso certamente diz muito sobre o seu trabalho. Esse reducionismo, porém, deixa de captar o que o torna tão único: o coreano é um cineasta de acúmulos: seja de elementos retomados e ressignificados ao longo de sua filmografia, seja a partir de gestos, frases e imagens que rimam dentro de uma mesma obra, obedecendo a um sistema muito particular.

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Seus filmes recorrem a estruturas dípticas e trípticas, reconstituem eventos, os embaralham cronologicamente como um bolo de cartas. No universo do diretor, os elementos se acumulam num grande filme de várias horas, mas cada obra é também um mundo fechado em si mesmo, onde uma ação aparentemente banal pode ser recontextualizada mais à frente e situações idênticas podem ser reencenadas com personagens diferentes ou modificações sutis. Nesse universo as coincidências de fato acontecem e o cotidiano pode se converter em realismo fantástico: contradições poderiam ser explicadas por uma viagem no tempo, nunca mostrada ou sequer sugerida (como o final de A Câmera de Claire, 2017); encontros e desencontros parecem orquestrados por uma força superior (o cineasta, certamente) e figuras secundárias e sem diálogos podem ganhar uma importância quase mística (como o limpador de vidros no quarto de hotel em Na Praia à Noite Sozinha, 2017). Não se limitando a contar histórias, Hong mobiliza o mecanismo narrativo em prol de um jogo de reconfigurações. Embora o sul-coreano seja frequentemente comparado a outros diretores de tendência verborrágica, talvez seja mais interessante propor uma ligação mais improvável: entre Hong e David Lynch.

A lógica do jogo do diretor não necessita de explicações. Hong não está interessado em refletir sobre a metafísica que move as engrenagens de seus filmes, mas em assumi-la quase ontologicamente enquanto agente catalisador de sua encenação. Sob esse aspecto, suas repetições assemelham-se às estruturas lynchianas de obras como Cidade dos Sonhos (2001) ou Império dos Sonhos (2006). Hong não é propriamente um cineasta do onírico, mas a forma como ressignifica a banalidade cotidiana tem um quê de sonho; ou pelo menos busca captar a excentricidade inerente ao dispositivo de narração. Tanto ele quanto Lynch se aproveitam da força motriz das estruturas ficcionais: o sul-coreano embaralha a trama para operar a partir dessa confusão, enquanto o criador de Twin Peaks busca no embate entre sonho e realidade a criação de sua atmosfera. Não se trata, em nenhum dos casos, de construir um quebra-cabeças a ser desvendado segundo uma chave narrativa inequívoca; mas de estabelecer uma organização que possibilite o funcionamento desses universos. A trama emaranhada não é um truque simplista pedindo para ser desmascarado, mas a lógica possibilitadora da livre encenação das ideias de ambos os diretores.

É um universo que se expande a cada novo trabalho, habitado por pessoas bebendo, conversando e transando – e no qual muitos dizem não enxergar nada além de trivialidades, como se a vida não se resumisse em grande parte a isso. É um cinema que se dedica às pequenas coisas – conversas despretensiosas, flertes desengonçados e mesmo incômodos, o constrangimento do silêncio que impera no meio do diálogo – sem exaltá-las, mas trazendo-as ao primeiro plano, buscando a maneira ideal de representar o cotidiano em toda a sua complexidade banal.

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Seus longos planos funcionam como ilhas, separados por elipses. Cada cena possui autonomia, sem deixar de se comunicar, no entanto, com o restante do filme. A unidade (filmografia) é composta por unidades (filmes) formadas por outras unidades (planos) e cada qual constitui um universo. Quando os personagens desandam a falar, Hong não recorre ao plano/contraplano, mas a uma câmera que desbrava o ambiente, buscando com movimentos laterais ou zooms a expressão dos atores ou algum objeto cênico. A câmera pode flutuar pelo local por minutos a fio, observando a resolução de um conflito, mas em ritmo variável: de forma deliberada e detalhista, captando diversas nuances da cena (como no diálogo final de Na Praia à Noite Sozinha); ou de forma mais dinâmica, respondendo a momentos de maior intensidade (como na discussão entre patrão, funcionária e amante em O Dia Depois, 2017). Após o próximo corte, outros takes podem ter menor duração: uma mudança de ambiente, um personagem caminhando, até que outro plano venha para ficar, encontrando gradualmente as próprias possibilidades, captando novos detalhes. Um mesmo enquadramento pode adquirir novos significados – a exemplo de O Dia Em Que Ele Chegar (2011), que explora variações das mesmas situações, alternando personagens e diálogos, ressaltando a diferença entre um momento e outro.

Hong opera de modo aparentemente simples, é um virtuoso que evita chamar atenção para si; o plano-sequência é sua identidade, não um movimento autocongratulatório e gratuito. Não por acaso, gestos mínimos tornam-se fundamentais e vem daí a importância da presença física e da expressão corporal de seus atores. É o que torna Kim Min-hee uma atriz perfeita para seus filmes, capaz de tornar pequenos momentos de espontaneidade (um sutil cerrar de olhos, balançar a cabeça levemente para trás ao sorrir constrangida, os gestos embriagados em Certo Agora, Errado Antes, 2015) pequenos milagres a serem captados pela câmera, eternizados em sua pura graciosidade. O cinema de Hong Sang-soo é uma máquina de assimilar gestos e nuances, à espera não apenas da consumação de sua vigorosa encenação, mas também da espontaneidade de seus intérpretes.

Discussões sobre a morte do cinema inevitavelmente desembocam na reflexão sobre o papel do autor. Seja na iconoclastia de cineastas que encontram sua forma de trabalhar na desconstrução formal e narrativa, seja na revisita a elementos clássicos em um projeto estético calcado na reverência a um cinema de outrora ou mesmo em obras que se apoiem na relação digital x película; não parece existir uma categoria que abarque completamente um cineasta de estilo e procedimentos tão particulares como os de Hong Sang-soo.

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O sul-coreano encontrou em elementos básicos da linguagem cinematográfica – o plano-sequência ou o zoom, por exemplo – sua maneira de construir uma marca autoral facilmente reconhecível sem recorrer a uma hiperestilização agressiva. Enquanto se beneficia das facilidades do digital, a máquina cosmológica que é o cinema de Hong Sang-soo busca na praticidade de certos recursos tradicionais uma maneira de reinventar estruturas clássicas e, portanto, construir sua própria linguagem. Mesmo simples escolhas estéticas podem ser vistas sob o viés da desconstrução formal – pensemos em como os movimentos de câmera e zooms substituem o corte –, reafirmando seu cinema como uma arte de reorganização de elementos em prol da construção de uma lógica associativa muito cara à sua cosmologia particular.

Enquanto alguns enxergam apenas um cineasta em sua zona de conforto, Hong Sang-soo continua a reinventar sua própria maneira de dar forma ao cotidiano. E continuamos acompanhando esse fluxo de acúmulos com a certeza de encontrar novas velhas sensações a cada filme.

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EDITORIAL: COMO ENGANAR A MORTE

Por Arthur Tuoto

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Quando André Bazin afirmou que “o cinema ainda não foi inventado”, o crítico francês sentenciava no horizonte de um ideal realista inalcançável a impossibilidade do seu próprio objeto. Ao mesmo tempo que o cinema progride cada vez mais em relação a uma mediação  espacial realista (o som, a cor, o 3d), ele invariavelmente descaracteriza o seu suporte (a tv, o vídeo, o virtual). Ou talvez, inversamente, se configura com mais expressividade dentro de sua própria natureza heterogenia. O cinema morreu ou está simplesmente nascendo em uma perspectiva híbrida que é de sua estima propriedade?

A especificidade, ela sim, está morta. A saturação – de suportes, de linguagens, de jogos entre os mais variados elementos – estabelece uma relação antagônica que se alimenta das próprias crenças. Se por um lado a iconoclastia e a hibridização dão o tom de uma infindável dimensão de obras que tem na desconstrução o seu mote de morte, de reestruturação urgente, de relocalização obsessiva, por outro “o classicismo pertence ao futuro”. Em uma mesma medida que Godard usa a tecnologia – a maior evidência dessa progressão em perspectiva ao mito baziniano – para desvirginar o cinema de seus suportes, livrá-lo de um estado intocável e situá-lo numa dimensão que é doméstica e libertária, que é subversiva pelos próprios meios, James Cameron tem nesses mesmos avanços a oportunidade perfeita para reiterar a universalidade do clássico, o ideal blockbuster anti-doméstico que encontra no gigantismo de uma dramaticidade ancestral a sua comoção atemporal. Godard e Cameron são mitos que se completam dentro da unidade de duas trajetórias opostas que buscam a mesma coisa: enganar a morte.

O cinema articula, em plena e constante jornada, antigas e novas eras tecnicistas que se depositam ao longo de um século e pouco. Perdemos a especificidade, mas ganhamos uma ontologia tão variada que mal cabe em si. Uma maleabilidade de universos que, hoje, produz a sua própria realidade, concebe a sua própria experiência imersiva que tem na descaracterização variada do seu suporte uma reinvenção imprescindível.

Existem aqueles que buscam um retorno, um resgate clássico que, diferente de Cameron, encontram em um purismo das velhas formas uma relação artesanal com o seu objeto. O caso é que a busca idealista não deixa de ser a mesma: ainda se salva pela aparência. Seja Griffith, Godard ou um estatuário egípcio, nossa natureza de eternizar é uma natureza do engano, de fraudar o tempo e forjar a vida pela imagem. Essa falsa polarização (a tecnologia e o artesanal)  busca justamente atender a variações de um mesmo mito inalcançável. A invenção do cinema está na sua constante reinvenção, na sua assimilação divergente. O que buscamos, com essa edição da Multiplot, é pensar e repensar os limites dessa falsa morte. Um fim que pode até ser concreto em relação a uma perspectiva tecnicista (os suportes, os meios), mas que encontra na utopia da sua própria impossibilidade (a sentença baziniana) um incessante itinerário de recomeços.

Enfim, não é precisa tomar um lado quando todos os mestres buscam o mesmo santo graal. Entre rituais de reverência, destruição de ícones e conversas com os mortos, fraudar a tragédia desse fim tem se tornado nossa maior especialidade. Reconhecemos a iminência dessa sorte de recomeços e por isso mesmo nosso trabalho aqui é o de evidenciar – celebrar – uma paisagem radical. A renovação tanto a partir de uma intervenção direta do que é estabelecido, como de um retorno reverente, de um resgate do passado que sempre pertenceu ao futuro (o clássico, outra vez). Entre vencedores e vencidos, deixar o cinema morrer é deixar essa transformação acontecer.  Uma operação que tem na dimensão histórica não apenas a apreensão simbólica do fim dessas eras, mas a perspectiva próspera de uma constante reescrita.

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NOTAS SOBRE O NOVO ESPECTADOR

Por Jean-Louis Comolli

(Cahiers Du Cinéma – Abril de 1966)

Traduzido por Felipe Leal

Um dos objetos da filmografia tanto quanto da ciência é o de alcançar um conhecimento científico das qualidades (acuidade, penetração, finura) da visão de um filme. Para fazê-lo, não há outro caminho que não o da submissão da existência mesma destas qualidades (coisas abstratas) às condições (que imaginamos como sendo as mais tangíveis) desta visão.

Mas se, para a maioria, esses fatores materiais são eles mesmos suscetíveis a todas as variações e adaptações (nada de mais frágil, no fundo, do que as normas técnicas), há pelo menos um que encontramos sempre e constantemente, ao ponto de assemelhar-se à uma necessidade, uma condição indispensável à toda visão, e até mesmo, ademais, ao ponto de se passar por algo natural, por ordem normativa, ontológica: é a obscuridade da sala. Eu gostaria que houvesse um número de razões técnicas para justificar e impor a visão dos filmes em salas escuras: talvez, de fato, a luz do ecrã sofresse com a luz do dia. Mas não chego a crer que, até aqui, a escuridão tenha sido regra absoluta, que motivos ópticos tenham sido suficientes para fazer do escuro o hábitat natural do cinema. Com efeito, todos os outros espetáculos – teatro, circo, ópera, concertos – se acomodam, em graus diferentes, à meia-luz (quanto isto não se faz, ao exemplo do teatro antigo, em plena luz solar). O cinema sozinho, nascido, entretanto, nas relativas penumbras dos cafés, se desenvolveu e se constituiu rigorosamente às lacunas do dia, não sofrendo de outra luz que não aquela que ele mesmo projeta. Os sociólogos e psicólogos já o remarcaram suficientemente: a escuridão da sala tem outras funções e outros efeitos que ultrapassam a facilitação de uma melhor visão do filme… se ela é feita de imperativos técnicos, ela é o lugar de fenômenos de outro modo complexos, que colocam em jogo, através e para além do filme e sua visão, dentro do espectador e através dele, o homem e a sociedade – ou seja: de uma certa maneira, a função sociológica e psicológica do cinema.

Aqui, um parêntese: que fique bem entendido que o cinema, se é arte, é também linguagem, sistema de signos que, por si sós metáforas mais ou menos amplas, significam. E precisamente aquilo que é mais marcante nele – como na literatura, ligada às palavras, linguagem das linguagens; expressão, portanto, mas talvez, nele, mais absolutamente que nela, na medida em que a imagem retorna mais brutalmente ao mundo como espírito do que as palavras, instrumentos do espírito enquanto mundo – o notável é que a arte a ele se encontra tão ligada, confundida com a vida: as imagens ao mundo, a beleza à significação. Não é, portanto, vão, considerar o cinema sobretudo sob o ângulo de suas significações e funções (fica subentendido que ambos só se elaboram e se distinguem por e através da escritura de cada cineasta – nós o chamamos de “mise-en-scène”), ou seja, mais sob o ângulo de suas formas e questões formais que aqui se colocam que sob aquele de seus temas (os temas, ao menos, que as obras propõem).

A sala escura é, então, o teatro dos mitos, ao mesmo tempo suscitados e suscitantes daqueles que a tela carrega. Nós conhecemos suficientemente os fenômenos de fascinação, de transferência, de êxtase, as projeções dos espectadores que entram em transe junto com o filme. E o cinema que nós chamamos de cinema de entretenimento (até o dia de hoje, o mais óbvio do cinema, qualquer que seja seu valor estético) não faz mais que responder a essas necessidades, que as entreter. Fazendo assim, ele continua a entreter, como também torna mais indispensável ainda, se é possível, a escuridão da ambiência. Há, portanto, entre o cinema de entretenimento e a sala escura um contrato firme e antigo, permanentemente reconduzido, um sendo para o outro, e reciprocamente, o meio de sobrevivência. E teríamos vergonha de decidir qual dos dois mais contribuiu para manutenção das convenções sobre as quais o outro se funda. Porque, nisto que chamamos de produção corrente, se é verdade que ali encontramos constantes, estereótipos, histórias, morais e personagens convencionais, se essas convenções passam mesmo aos olhos de um sem-número de espectadores como leis imutáveis, a escuridão da sala, nisto, guarda quase que inteiramente a pesada culpa. Há um condicionamento da sombra, que joga às claras, como um reflexo, dentro do espectador que entra numa sala, pendente, vê o desejo, formas por ele já reconhecidas, esquemas experimentados, de todo uma parafernália perfeitamente homologada.

Em primeiro lugar, e talvez o mais importante, o sentimento de sair do mundo dos vivos; de adentrar, numa escuridão próxima àquela do confessionário ou dos aposentos de dormir, as bordas costeiras dos sonhos. A sombra das salas incita o espectador a não considerar o cinema senão como uma maquinaria engenhosa de sonhos, mas estes, aqui, infelizmente, quase sempre os mais vulgares e fúteis; quer dizer, como se por uma negação do vivo, por uma colocação do mundo entre parênteses (mesmo se se trata de um mundo também ele grosseiro e fútil). Quaisquer que sejam para o espectador as vantagens medicinais (catarse, encarnação de frustrações, etc.) que resultem dessa utilização “negante” ou “sublimante” do cinema, ele conduz invariavelmente a um equilíbrio, a uma estabilização das necessidades e ofertas, das perguntas e respostas – as mesmas curas (posto que suas evidências estão dadas) trazidas às mesmas mazelas renascendo das mesmas e tantas feridas falsas – equilíbrio, ou talvez melhor dizendo: anulação dos efeitos às causas, estagnação total. Tal é o esquema de funcionamento da indústria cinematográfica, quando ela marcha em pleno rendimento. E se o cinema não fosse nada além dessa indústria de leis simples – dito de outro modo: se ele não tinha grandes cineastas, artistas para driblar o jogo e falsear as cartas, para desestabilizar tudo aquilo que a osmose produtor-consumidor tem de tranqüilizante para um e para o outro (tratando as convenções à maneira avessa, desapontando as ilusões primárias pela intervenção de ilusões outras), não há dúvidas de que ele se desenrolaria em circuito fechado, que repetiria ad infinitum as mesmas fórmulas (porque elas produzem os mesmos efeitos), recomeçando invariavelmente as mesmas séries, como um velho vira-lata cujos truques valeram-lhe a fama.

Em todo caso, o cinema hollywoodiano (os filmes B como “ambiciosos”, mas sempre excetuando-se os filmes de Hawks, Hitchcock, Lang, Ford, Fuller, DeMille, Sternberg, Preminger, Ray, Mankiewicz, etc., brevemente colocando os autores lado a lado porque também foram os seus esforços os de margear Hollywood, traí-la), o cinema hollywoodiano tem apresentado durante mais de 30 anos o protótipo do circuito fechado (onde a oferta e a demanda parecem perfeitas uma para a outra): uma era de ouro não do cinema, mas da indústria, era de ouro real, posto que suas necessidades são imediatamente satisfeitas, tal como um parêntese no Tempo, que se exclui da História, que permanece uma zona de sombra na história do cinema ela mesma, o volante de sua evolução. E compreendemos melhor, agora, que os nostálgicos do cinema americano assim o são, no fundo, não pela era de ouro de uma arte – todo período da arte sendo uma tragédia e se inscrevendo, desta maneira, não somente na história das artes, mas na dos homens –, mas protetores da nostalgia, como um paraíso perdido, desse estado que é de qualquer maneira pré-natal, dessas relações de ordem fetal entre o espectador-filho e a indústria-mãe: isto que os partidários absolutos do cinema americano amam no cinema não é, nem jamais foi, as belezas, as audácias ou novas formas que dispensassem os grandes franco-atiradores de Hollywood; foi, ao contrário, e ainda o é, tristemente, uma satisfação automática e despreocupada de seus desejos (se podemos chamar esses impulsos de desejos).

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Que não reiteremos à exaustão a grandeza do cinema americano, se isso que podemos chamar de ‘sua grandeza’ é a perpetuação de um estado e de rapports larvais, em que todo o perigo é banido, todo acidente impossível, breve; se é esta colocação do cinema e do espectador enquanto excluídos do mundo e excêntricos ao tempo. Não há grandeza alguma nesse mecanismo perfeito. Eu vejo a força do cinema americano mais concentrada em cineastas que são irredutíveis e que, longe de se satisfazerem sem complexos desta maravilhosa bolsa sem flutuações, tentaram (penso no Lang de Fúria (1936) e Suplício de Uma Alma (1956); no Ford de As Vinhas da Ira (1940), A Longa Viagem de Volta (1940) e Legião Invencível (1949)) deter as engrenagens por dentro. E este é um fato tão considerável que pode ser bem o sucesso de seus filmes, o espectador ali sempre tratado como adulto e como homem, e não uma besta que não cessa de delirar acordada.

O único progresso que conheceu o cinema em circuito fechado que se exclui ele mesmo do movimento das formas cinematográficas é um progresso ainda de tipo industrial, feito de excessos visando o aumento da demanda e do consumo por exagero publicitário das necessidades e pela inflação das seduções (é o caso das superproduções, esforço último de ampliar um mercado supersaturado e bocejando de êxtase). Quanto às inovações estéticas, ousadias e invenções estilísticas, elas são bem entendidamente o feito desses rebeldes do sistema que foram em maiores e menores graus de consciência os autores; e eles se fizeram não para as salas escuras, mas, cada vez, precisamente, contra elas.

Tanto a existência quanto a novidade ampla disso que podemos chamar de “mal-entendido” não têm, elas, nada de surpreendente. Entrando no cinema, o espectador é de imediato prisioneiro da sala escura: condicionado a ela para receber certas impressões, para esperar certas séries bem tipificadas de emoções, ele deve galgar num verdadeiro esforço de resistência, empreender a decolagem, apreciar o menor filme de autor, filme que, por definição, não se conforma às normas fixadas pela tradição da sala escura. Uma vez no escuro, é preciso que o espectador permaneça acordado para compreender qualquer coisa no filme que se recuse a considerá-lo como um vigilante adormecido. (O condicionamento, o hábito, exercem, aqui, um grande papel: o espectador médio, por menos que tenha freqüentado as salas escuras, só terá curiosamente retido, de suas experiências ao estado de semi-adormecido, isso que nelas foi pura repetição, uma identidade, um conformismo: sua cultura cinematográfica apaga o extraordinário e só retém os clichês, as convenções, que passam então aos seus olhos como tendências naturais do cinema, tudo aquilo que o contraria passando, a contragolpe, por monstruoso ou por falho; e nós sabemos também que as crianças “mergulham” com rapidez nas narrativas mais complexas e menos taxadas, não se assustam diante das mais febris e breves elipses, manifestam uma abertura de espírito que uma longa prática do cinema como “diversão” tem, por efeito, de nunca encerrar.

É por isto que, sem dúvidas, o cinema de autor se limita a ser tolerado, e ainda de muito mau humor, pelo espectador. É que há um hiato entre a condição do espectador na sala escura e a condição de receptividade ou de participação lúcida que o exige todo o filme que não é de “consumação”. Por quê? Ou o filme constituiu o prolongamento natural da sala obscura, anti-câmara dos sonhos, e então o espectador, estando excluído do mundo, nega os outros e se nega a si mesmo tanto quanto o outro; ele está sozinho, segue o fio confortável e doce de um sonho que o envolve como num casulo; o mundo que ele tem sob os olhos desfila suas figuras com a bonança de um sonho; há uma hipnose, uma simpatia que tanto a infração às formas prévias quanto aos temas prometidos estilhaçaria dolorosamente – ou isto, ou bem o filme se vê, apesar e além da sala escura, prolongamento e comentário do mundo de fora; então o espectador está perdido: por um lado, ele permanece sujeito ao condicionamento da sala e se torna carregado, por ela, em direção à satisfação de suas expectativas – que o filme não pode oferecer –; por outro, ele se vê confrontado pelo filme ele mesmo (indivíduo) e os outros, incansavelmente transportado das imagens para o mundo, processo de retenção da consciência que a sala escura, por sua vez, contraria.

Podemos, então, adiantar que há uma antinomia entre o cinema responsável (que de Griffith a Renoir e de Lang a Godard nós pensamos ser o cinema moderno) e o lugar de seu exercício. O mal-entendido nasce de que o cinema moderno (que é uma afronta do mundo enquanto arte: ver Godard) deve sempre passar pelo escuro das salas. É necessário ao cinema moderno salas às claras, que não absorvem ou aniquilam, como o faz a escuridão à clareza vinda da tela; que a façam irradiar ao contrário, que coloquem um a face do outro, bem como a igualdade do personagem e do espectador, saídos todos os dois das sombras.

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O que caracteriza o cinema moderno é precisamente o fato de que o herói do filme é o espectador; que o filme constitui, para o espectador, a aprendizagem de seu papel ingrato e central. Como compreender um cinema que nos coloca em cena se não podemos saber onde estamos e quem somos? O cinéma-vérité, a enquete filmada, o testemunho, a entrevista, tudo isto em que os grandes cineastas do passado foram precursores e que teve tantas influências, diretamente ou não, nos de hoje, é a mais afiada ilustração desta necessidade de clareza, desse ato de consciência, necessário hoje ao novo cinema tanto quanto ao novo espectador. O intenso uso, por parte da televisão, dos métodos do cinéma-vérité não é acidental: o pequeno quadro é o único (se) que abre com freqüência à “sala clara”; ademais, rever na televisão grandes mestres do cinema o confirma: se não somos maníacos pela sala obscura e se não nos higienizamos ao ponto de recriar mais ou menos suficientemente as condições de visão obscura na sala de cinema; se, portanto, nós revemos estes filmes numa semi-clareza propícia à atenção, creio que os assistiríamos de outras e melhores maneiras que em sala, sobre um plano de confiança e igualdade como o são as receitas que não sustentam mais a ilusão e as belezas que não carregam mais sentido.

Pensando bem, esta sala clara é também um sonho: mas não mais o sonho de um cinema que foge: o sonho de um cinema que participaria da vida e seria, enfim, verdadeiramente nossa reflexão sobre ela (é nesse sentido que nós podemos, hoje, “viver um filme”). Como disse meu precursor Mourlet falando de seu Brigitte e Brigitte (1966): “é um filme onde entramos para reencontrar a realidade, e do qual saímos para perder o retiro e adentrar na ficção da rua”. Ninguém duvida que por muito tempo, então, o cinema novo (e, como tal, entende-se: o cinema que nos importa) suscitará esse novo espectador que virá julgar o mundo e se conhecer a ele mesmo, posto que em sua verdade o ecrã manifestará todos os dois. Este novo espectador, retomando as palavras de Sternberg, não deixará de demandar para si “mais luz”.

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AS GRAÇAS E DESGRAÇAS DO OLHO CEGO

Por Felipe Leal

Me diverti imensamente – ao contrário dos rumores! –

(João César Monteiro, 2000)

 

(À exceção de algumas fotografias de Robert Walser, autor da peça em que a obra se baseia, na clínica onde fora misteriosamente internado, e alguns breves e estáticos planos de nuvens, a grande substância do movimento do Tempo,) um filme composto só de vozes, “quintopartido” em cinco personagens, da Branca de Neve à Rainha que lhe encomenda a morte, e uma tela inteiramente preta por quase oitenta minutos: amputaram o cinema, fizeram com que pecasse o pecado último, aquele que de tão inadmissível se resguarda no imaginário das possibilidades trágicas (que violência ao espectador (ou ao consumidor) que um filme se desprograme no meio de sua exibição), acontece aqui como opção feita às gargalhadas. Castraram-lhe a imagem, pois; ainda melhor, talvez o tenham assassinado de vez, posto que não há mais nada a ser olhado.

A autoria é a do anticristo dos cineastas – talvez do Cinema, acreditando-se que suas trapaças à linguagem se estendam a outros campos e infectem a última das artes, em retorno –, o grande travesso, O Louco do Tarô, aquele que conseguiu tornar o próprio filme, a princípio um projeto “tradicional” (entende-se: com imagens, encenação, fotografia), a celeuma que coroa o cinema português com um escândalo processual, cada etapa semelhante a um círculo do inferno da cadeia produtiva, no qual várias vozes e relâmpagos financeiros e estéticos participaram, e que foi resolvido após uma refeição: narra Monteiro que, durante a manhã, havia lido diante dos produtores e equipe duas obras em voz alta, uma das quais “As Graças e Desgraças do Olho do Cu”, e assim decide rodar seu filme, depois do almoço: regido pelo ponto de vista do olho cego. Seria propício, então, pincelar os modos de ver? Re-tracejar as convulsões histórico-estético-políticas que constituíram os estatutos da nossa visão, o espetáculo em forma de quadro, a narrativa ali introjetada, a ilusão ficcional através da quarta parede invisível, etc., etc.?; Associar, assim como Roland Barthes entrelaçou A História do Olho, de Bataille, à história propriamente do olho, do objeto olho, durante a narrativa, e dizer do filme de Monteiro que ele é uma possível história ou encenação da não-visão? Pode-se decerto partir por estes dois percursos, mas por que não se ater diretamente ao óbvio paradoxo que nem sequer se encarapuça no enunciado que propõe uma estética para a obra?

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Como pode um ponto de vista advir, espatifar-se do prisma, de um olho que é, por propriedade, cego, matéria inútil numa cultura que é, sim, não se pode negá-lo, afinal de contas, excessivamente ocular? E não só cego, absolutamente desabituado do contato, porque – se ele foi mencionado como matriz de referência, é preciso mencioná-lo – o olho do cu, isolado, não só não vê, como também pouca energia troca com o ambiente. Esmagado em superfícies ou defronte o mundo, nos seus graus variados de contato e uso, dificilmente a luz lhe chega, porque o campo de visão deste olho é quase sempre interditado pela malha do vestuário que o separa do contato ou da iluminação. Pois eis que, descortinados, então, agora o olho do cu e o da câmera endiabrada de Monteiro, mas sobretudo este último, dá um passo além de Guy Debord ou Marguerite Duras, cujos trabalhos radicais, experiências quase acinemáticas, confrontavam ora o espetáculo, ora o protagonismo das imagens. Portanto, se o paradoxo existe, e o cineasta bem o sabe, porque o cinema é um paradoxo de outra qualidade (o da “falsa” reconstituição do movimento), tanto suas duas proposições não são necessariamente inverdades, se isoladas, quanto a possibilidade de que existam em conjunto não é tampouco inválida: equânime a uma possibilidade de olhar através de outros sentidos ou, agora isoladamente, dotado de uma visão que não se atrele necessariamente ao visível, a potência do olho cego se biparte a partir de uma única raiz de uma faculdade humana perdida que é tão sutil e “hoje” (praga do contemporâneo enquanto ideia tola) atrofiada que é preciso rir dela, ao mesmo tempo que se a explicita.

Antes, as duas raízes: primeiro, parecia ser movimento consensual entre a virada ontológica da filosofia, no que diz respeito aos conceitos sobre o corpo, chefiada pela desabitualização do “corpo sem órgãos”, proposta por Gilles Deleuze (o corpo que podia se remodelar a partir de práticas de si, a exemplo do yoga), e as práticas que propunham imiscuir cotidiano, subjetividade, as vidas e a arte, na verdade performances já inflamadas desde os anos 60 – um movimento consensual que possibilitou a unção de práxis e intelecto nas exibições que essas mesmas vidas atestavam – ironicamente, também através de aparelhagens, ora desejosos ou não, mas sempre conscientes disto – de que é, de fato, possível que minha orelha possa, ao ouvir o caçador questionar Branca de Neve se ela acredita que ele queria matá-la, esta entrando numa confusão lexical prolongada e que, no fim, não responde nada; que o ouvido possa, mentalmente, de alguma maneira, visualizar toda a cena, seus passos (que Monteiro nos permite ouvir), os movimentos da testa ou da boca da princesa, e até mesmo as reações exaustas ou deslumbradas (ponto de vista meu) do caçador. Aquilo que parecia sugestão mágica da antropologia vem se confirmar não mais a partir do relato, mas na prática das vidas que se tentou transpor para uma radicalização estética: retirar da imagem o seu visível para que dela se possa extrair apenas o movimento e os sons, despertando por conseguinte um ouvido-tato-olho.

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É preciso ir um passo além dos sonhos que não fazem sentido: há sonhos (e, portanto, há cinemas) sem imagens – e que fazem sentido, que significam, trazem um lampejo de conexão mental com o sonâmbulo e permitem-no entender. Só que aqui já estamos no pós-já-não-há-mais-sonâmbulos-no-cinema: se é possível pensar a imagem sem olho e se é desejável buscar suportes que o preencham em conjunto com o arriscado enunciado, não será nem mesmo salutar buscá-los nos teóricos do cinema novo ou nos supracitados, nem tampouco se debruçar sobre a possibilidade dos pré-cinemas, o sonho lindo e vigente de que os habitantes de cavernas do que hoje viemos a chamar de território francês tentavam impor movimentação aos desenhos de animais que pintavam nas paredes, através do jogo com labaredas em tochas de luz: não há rastros para explicar aquilo que a linguagem não compreende, ou ao menos na a situação impotente pela qual ela é abordada e na qual se encontra. “Nem tudo ainda foi nomeado”: o eco que fez brotar o Camp, de Sontag, ouve-se em silêncios a todo instante.

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Foi (e é) preciso que o Cinema morresse para nascer novamente (porque já havia morrido com o neorrealismo e com a câmera em movimento e com “o vídeo e com etc., etc.”…, já o sabemos). Ou, antes, que alguém, em prática, relocasse suas bordas de ontologia para um pouco mais distante da posição “final”, ainda impensável, nesse tracejar pontilhado, incoerente, retalhado que é o Qu’est-ce que c’est le Cinéma?, de Bazin, o primeiro eco irrespondível. A faculdade humana é o intelecto; as relações da câmera com nosso olho, invariavelmente intelectuais (o suprassumo do cinema permanece Hitchcock). É porque não posso atingir a natureza integralmente que crio. O submarino existe porque não se pode respirar debaixo d’água, o avião porque não posso voar, o celular porque “é urgente que fale com você agora”; é uma linha de pensamento, e de acordo com ela: não mais “o cinema se constituiu para dar movimento as imagens” (visíveis); agora é possível contentar-se com o: para possibilitar que o movimento do mundo se recrie, e como este é, por essência, invisual: “Com uma pequena perda [sobre o filme ser apenas formado por vozes], é um óptimo filme para invisuais”, afirmou alguém que pode ser Paulo Branco, João César Monteiro ou um outro qualquer, mas não menos importante.

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NÃO DEIXE O CLÁSSICO MORRER

Por Yuri Deliberalli

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Se a morte do cinema é anunciada desde que os tempos são tempos, a morte do classicismo não escapa do mesmo fim. Desde que a “era de ouro” de Hollywood entrou em crise frente as novas demandas (o surgimento da televisão e o cinema mais próximo da realidade) e os precursores da narrativa tradicional, como John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock, por exemplo, adentraram o final de suas carreiras com filmes considerados “menores”, o clássico, assim compreendido como o cinema feito nas décadas anteriores, tornava-se um espectro lançado sobre a nova década (os anos 70).

Mas um espectro não deixa de ter lá sua consistência, de forma que, na essência, o clássico continuava a permear as narrativas que surgiam durante esse movimento de um cinema mais autoral, notadamente em filmes como O Poderoso Chefão (1972) e O Portal do Paraíso (1980), para citar dois exemplos que caracterizam o período inicial e final da Nova Hollywood. Enquanto alicerce das novas modalidades de narrativa, o clássico servia não só como fonte de inspiração desses novos cineastas, mas também como instrumento de resistência e até mesmo de certo rancor por parte daqueles que remanesceram das décadas anteriores, sendo Fedora (Billy Wilder, 1978) um exemplo marcante dessa perspectiva.

Por mais que o pioneirismo experimental de Jean Luc-Godard continuasse dando as cartas do jogo, o classicismo permanecia como a principal escola de estrutura narrativa do cinema, especialmente naquele feito em âmbito mais comercial. E as razões para isso são claras: o clássico afasta o estranhamento formal em prol de uma maior clareza e objetividade da forma com que a narrativa será conduzida. Dá-se preferência à história e ao desenvolvimento dos personagens, ao encadeamento sequencial dos planos e, consequentemente, à facilidade de assimilação ao que se filma. Extrai-se disto o elemento atemporal do clássico, que o faz resistir e persistir ao avanço tecnológico do cinema.

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Com o advento do digital, a defesa do clássico foi transposta também ao campo estético e capitaneada por cineastas de referência como Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson e James Gray. A defesa do clássico se torna, assim, a defesa da película (o 35 mm e o 70 mm, principalmente), dos métodos tradicionais de filmagem e da preservação do distanciamento causado pela experiência cinematográfica no público. E essa defesa se desenvolve de uma maneira até mesmo radical por parte desses cineastas, a ponto de recusarem filmar caso os elementos representativos do cinema clássico sejam extintos ou impraticáveis financeiramente. Tarantino, que anuncia sua iminente aposentadoria há alguns anos, deixa muito claro que o fim da película significa o fim do cinema.

Que morte é essa que ocorre com o fim de uma tecnologia, em se tratando de uma manifestação artística exposta por meios tecnológicos? A defesa da película não deixa lá de ter seu viés saudosista, ao mesmo tempo em que é legítima sob o argumento de que mantém o distanciamento do filme com o espectador, isto é, preserva o caráter de ficção da imagem e resguarda ao público a famigerada “magia do cinema”. Afinal, as 24 fotos projetadas por segundo e a granulação da imagem criam a ilusão de que há captura de um movimento e remontam a uma noção pura e ingênua de cinema, enquanto que o digital, no seu imediatismo, reduz esse caráter utópico e idealista.

Trata-se de uma relação iconográfica que esses diretores possuem com o modelo narrativo clássico e que se justifica a partir de uma intenção de realçar o caráter representacional do cinema em detrimento de uma aproximação deste com a realidade. O clássico fornece um alicerce sustentável – uma premissa narrativa objetiva e clara – para que esses realizadores possam reconfigurar modelos pré-estabelecidos como um exercício referencial ou como uma reafirmação de sua infinita relevância perante os novos tempos e novas tecnologias.

De certa forma, esses cineastas tentam assegurar seus respectivos nomes no panteão do cinema pela via reversa, isto é, por meio da celebração do tradicionalismo e do quão adaptável e indiferente ele pode ser frente ao novo e ao transgressor. E isso se deve à maneira com que iniciaram sua relação com o cinema, quase sempre por meio de uma vivência idealizada (a locadora de Tarantino) ou mesmo acadêmica (a universidade em Gray), o que acaba por evidenciar o método e o olhar de cada um deles frente ao trabalho que executam.

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Enquanto Quentin Tarantino promove constantes releituras de gêneros clássicos consagrados (o blaxploitation em Jackie Brown (1997) e o western revisionista em Django Livre (2012), por exemplo) e executa seus filmes a partir de um jogo de referências, inspirações e emulações que, articulados entre si, criam uma dinâmica formal e narrativa muito própria – um estilo cinematográfico reconhecível -, de forma a contextualizar o clássico dentro do moderno, James Gray se torna cognoscível a partir da preservação da uma forma clássica natural e original, que serve como persistência e combate a qualquer remodelagem pós-moderna da estrutura fílmica, de modo que a modernidade surge do embasamento e maturidade com que concebe o arcabouço narrativo de seus filmes.

Seu último filme, intitulado Z: A Cidade Perdida (2016), é bastante exemplificativo disso. Em primeiro lugar, estabelece uma premissa absolutamente clara e objetiva – Percy Fawcett é um explorador que vai à Amazônia realizar o mapeamento da fronteira entre Bolívia e Brasil e acaba obstinado pela ideia de uma cidade perdida em meio à selva – que não se reserva apenas à conta uma história de um modo sequencial, em que o protagonista possui um objetivo e vai ao respectivo encalce durante toda projeção. Gray, na realidade, se vale dessa premissa contornada por conceitos clássicos para subverte-la a um contexto em que questões de classe são discutidas – Fawcett tinha dificuldades de ascender socialmente por causa do seu sobrenome maculado, de forma que, em sua viagem, descobre que a verdadeira civilidade está nos índios, e não na pomposidade do alto escalão britânico – sem que tal discussão seja um ponto frontal do filme.

Trata-se da utilização do clássico enquanto uma estrutura narrativa permissora de discussões e complexidades, que permite a Gray tratar sobre colonialismo, classe e etnia, bem como questionar o que significa ser uma pessoa civilizada, sob o manto do filme aventureiro, do explorador que vai à selva em busca de desafios. Na visão de Gray, a narrativa clássica abre as portas para o desenvolvimento do subtexto, desde que a história seja bem arquitetada e contada com emoção e elegância, algo que a narrativa pós-moderna encontraria maiores dificuldades de atingir. Segundo ele, desconstruir as bases clássicas pode acabar por encerrar qualquer discussão que poderia ter sido iniciada pelo filme pós-moderno.

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Filmado in loco e em 35 mm, Z: A Cidade Perdida tem o condão de justificar a película pelo seu forte aspecto anacrônico, na intenção de que o espectador tenha uma maior facilidade de ambientação e imersão numa história claramente distante e ficcionalizada. Por outro lado, a utilização da película não deixa de levar essa defesa do purismo cinematográfico para circunstâncias um tanto radicais, como o fato de Gray ser obrigado a levar uma tecnologia logisticamente obsoleta para os confins da selva amazônica e, por isso, ter que treinar uma pessoa específica apenas para dar conta da retirada, armazenamento e posterior transporte da película para o aeroporto, de onde a filmagem do dia seria levada para a Europa, diariamente.

Neste processo, rolos de película danificados durante as filmagens e maiores custos de produção, ou seja, constrói-se uma tática de guerrilha em meio a diversos obstáculos físicos para que se possa salvaguardar uma concepção pessoal do que é fazer cinema.

Ao fim e ao cabo, é a reafirmação do clássico em sua literalidade e não como uma forma que permite conciliar eficiência dramática com as novas tecnologias, ou seja, é a resistência da tradição sobre subversão formal e narrativa, numa ideia de cinema artesanal e datado, mas que dialoga com as questões sociais imutáveis ao longo dos anos. Pode ser um exercício idealizado de se fazer cinema, mas não se pode negar a sua eficácia.

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A RESSACA DO MILÊNIO

Por João Pedro Faro

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Havia algo de paranoico em toda tendência cinematográfica no fim dos anos 90. Isso tanto em manifestações formais (o amaldiçoado Dogma 95, toda a eterna carga de revoltas laterais contra a narrativa clássica que impulsionava maneirismos cada vez mais intensos e experimentais) quanto em recorrências puramente temáticas (a virada do século que traz consigo diversos apocalipses, todas as Matrix, um fim lento do anti-establishment altamente oitentista que dá lugar à descrença revolucionária e ao ambiente já totalmente controlado por robôs e engravatados). É nesse clima quase pós-traumático, de futurismo desacreditado aliado à imagética radical, que Abel Ferrara faz de Enigma do Poder (1998) um monumento ao fim do mundo enquanto coito interrompido.

É curioso ter em mente que o antigo projeto de adaptação do conto de William Gibson seria com o Schwarzenegger, provavelmente gerando uma obra totalmente oposta às intenções do filme de 98. Por mais que a anedota sci-fi do Gibson seja passível ao grande cinema literal (e talvez possamos dizer que esse filme existiu com Vingador do Futuro (1990)), sua decadência e melancolia pertencem a um realizador maldito como Ferrara. Entregar toda a identidade visual do mundo do romancista (o famoso “céu das cores de uma televisão em estática” do Neuromancer, presente aqui em todas as externas) e encontrá-la no tempo atual que à época de Gibson ainda era um futuro distópico. O Japão de Enigma do Poder já é o cyberpunk, desde a abertura que corta da guitarra melódica para a trilha surtada do Schooly D, com todos os exageros de neon asiático explodindo nos créditos. A própria locação em si já é um espaço alienígena para o diretor, não está filmando a Manhattan já mentalmente mapeada pela câmera de todos os seus trabalhos anteriores.

A finalidade de Ferrara em sua tragédia de imagens falsas só é possibilitada por todo o contexto da obra original: É no ultra corporativismo da ficção científica, em seus digitais e hologramas, que reside a matriz do filme. Ferrara se apropria do mundo onde tudo é constantemente registrado em imagens (seja em fitas de espiões, câmeras de segurança ou pornôs caseiros) para, em um intuito puramente experimental, torna-las abstrações dessa realidade. Esse ideal vinha sendo construído desde que o diretor começou a abandonar a sobriedade de projetos como O Rei de Nova York (1990) e retomar, aos poucos, uma energética radical do início de sua carreira Do romantismo agressivo de O Vício (1995) até Oculto na Memória (1997), a tendência de sua imagética é um novo encontro de brutalidade na disposição e no arranjo dos planos. Ao passar da década e na proximidade com o fim do século, esses novos arranjos se tornam cada vez mais essenciais e formadores. Em Oculto na Memória principalmente, prequel espiritual de Enigma do Poder, a demonstração do palácio de vídeo digital do personagem de Dennis Hopper já abre o caminho para o futurismo que Ferrara afirma como um caos semântico na obra seguinte. As tantas telas que cercam qualquer lugar não deixam com que nenhum momento seja observado com total discernimento. Uma verdadeira morte do registro. Afinal, no universo do excesso de informações, qual seria outro fim para as imagens além da perda de um sentido claro?

Nesse processo primordial, não se perde somente as formas claras da imagem, mas também o espaço em que elas se projetam. Não pertencem aos quatro cantos do plano de uma câmera, mas se configuram em paredes, celulares e televisões que não estão inseridas diegeticamente no formato. Elas residem em todos os meios físicos, como se tivessem noção de que são as reais definidoras de qualquer fator dramático da obra.

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Quando Rita Hayworth atirava espelhos em Dama de Shangai (1947), como fêmea fatal máxima, destruía imageticamente os dois homens que viviam em função de seu amor. Sandii (Asia Argento) em Enigma do Poder não precisou de uma arma para fazer a mesma coisa. Aí está a finalidade experimental de Ferrara, onde encontra sua potência: o grande twist da sedutora que trai homens burros é tão essencial quanto o próprio cinema, mas em Enigma essa figura feminina, desde sua primeira aparição, não se restringe apenas ao papel de personagem. Ela é a dona de todas as imagens, sua concretização, sua fisicalidade total. A presença que impulsiona todas as quebras, radicalismos e subversões. Reside em outro plano, intransponível a qualquer um. A prostituta estrangeira misteriosa contratada por dois golpistas para interpretar um papel, fazer um homem se apaixonar e derrubar uma grande empresa, se torna a força maior do universo onde se insere. É a estampa do pecado original do futuro corporativista, a paixão genuína, o tesão apaixonado, e também a única que não é vítima desse mesmo pecado.

O grande conflito de X (Willem Dafoe) é perceber isso, enquanto antes acreditava junto com Fox (Christopher Walken) e Hiroshi (Yoshitaka Amano) estar em controle de Sandii. Impossível. Ela, o próprio corpo da obra, reside em espaço algum. Não é à toa que no conto de Gibson ela é descrita como O Fantasma do Novo Século, feita de ectoplasma. Aqui, ela é feita de digital. Por isso mesmo pode simplesmente desaparecer quando lhe convém, como em seu encerramento que se dá numa breve constatação (“a garota sumiu”).  Sandii é como o fruto final dos meios fílmicos de seu momento na história: uma personagem que está acima de todos esses meios, portanto pode manipulá-los do jeito que preferir. Traz em sua natureza um caráter clássico mas, ao incorporar novas formas de traduzir-se em cinema, surge maior do que ele próprio.

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Enigma do Poder torna o corte o fim de um fragmento da memória. Como estamos sempre acompanhando X pensando em todos os seus momentos em torno de Sandii, cada encerramento de imagem se dá como uma pequena tragédia por si só. Isso não apenas nos 15 minutos finais, onde a recapitulação do romance é inserida narrativamente, mas sim no filme inteiro. Na necessidade de X pela mulher que o traiu e que ele nunca mais verá, cada frame é uma oportunidade de deixar-se dominar novamente por Sandii. A diferença nesses 15 minutos de encerramento é justamente o espaço que X encontra na cápsula/dormitório New Rose Hotel: no cubículo isolado, acha a oportunidade de fugir da overdose de acontecimentos, boatos e conflitos de espionagem de outrora. Naquele cubículo, as únicas imagens que restam são as que buscam rever Sandii e um resumo daquele universo passando em uma televisão (vemos olhos de modelos asiáticas e propagandas, nada mais essencial do que isso). Vai do excesso para o mínimo. Consequentemente, surge o mais doloroso sentimento de ressaca. Mais próximo de seu psicológico, X reassiste o filme mentalmente. Ao fim da ilusão, percebendo que o amor de Sandii nunca existiu, as experimentações de Ferrara atingem a crueldade e tangem o desejo de morrer em X. Encontrar-se na realidade é a quebra mais dolorosa que o cinema pode fazer. Mais dolorosa ainda se essa quebra acontece em sua própria forma, e não apenas no desenrolar do storytelling básico.

Fora de New Rose Hotel, o mundo acaba em vírus, perseguições internacionais e dominações industriais. Porém, a verdadeira dor nisso tudo é X, tão abruptamente, ter que ver sua paixão não com a fantasia de antes e nem como ela é de fato (a figura verdadeira de Sandii ninguém nunca poderá entender), mas sim como uma lembrança interrompida. A melhor lembrança da sua vida. Nesse aspecto tão específico, é válido ressaltar um equívoco muitas vezes atrelado ao Ferrara. Se tanto é reafirmado sobre sua suposta explicitude (e nisso encontra-se alguns dos motivos da vergonhosa recepção crítica da época ao filme), muito se esquece sobre sua ternura e sensibilidade. É, sim, o cineasta do intenso, mas é também de refinamentos únicos. Existe algo mais delicado, mais cuidadoso, do que construir toda a dor do fim de um relacionamento apenas em ressignificação de planos? Basear toda a tragédia de uma paixão falecida em jogos simples de montagem? Se existe, ninguém faz com tanto afinco quanto ele.

Após todo o trauma que configura Enigma do Poder, cabem algumas questões totais dentro um projeto tão introspectivo. Cabe a todos o isolamento pessoal em um cubículo, uma assimilação final de tudo que representa. Encarando o abismo do novo milênio, entende-se melhor tudo que se passou no último. Por isso mesmo a sensação de Enigma do Poder é de um produto final de tudo que foi assimilado imageticamente pelo avanço de empresas multinacionais, implantações digitais e tecnologias de vídeo ao longo do século. Claro, em um igual senso de exaustão desses fatores, culminando na morte de todos.

Se pararmos para pensar que no final do século 19 ainda criava-se o cinema e agora, 100 anos depois, ele já sabe se autodestruir, dá pra perceber como o século subsequente não foi dos mais fáceis para a humanidade. Nada mais compreensível do que pelo menos parte do cinema morrer simplesmente por ter sido traído pela Asia Argento. Se não faleceu por completo, pelo menos contemplou o suicídio.

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CORPOS E MAIS CORPOS

Por Pedro Tavares

Subybaya (Leo Pyrata, 2017)

Para Bazin, a história do cinema tem como horizonte o desaparecimento do cinema. Até lá, essa história se confunde com aquela que de uma pequena diferença que constitui o objeto de uma incessante recusa: sei bem (que a imagem não é a realidade), mas ainda assim… – Serge Daney em “A Tela do Fantasma”.

O mesmo Daney, em A Rampa, questiona: “Como ganhar de um morto?” A resposta, o próprio Daney oferece na sequência: “Ao dar a ele mais um corpo, é claro”. A imagem, o corpo, ganha, há séculos, corpos e mais corpos. Naturalmente, estes corpos passam por adequações de acordo com as conveniências do momento e possibilidades de diálogo entre elas: para o cinema, é o momento de interação com os games, pixels, glitchs, a velocidade extrema ou a máxima calma. Também o momento de experimentações graças aos dispositivos mais baratos e a possibilidade de criação solitária ou com equipe mínima.

Jean-Paul Fargier analisou a condição do vídeo com a possibilidade de sua filha, sozinha, empurrar um carrinho de bebê vazio em “Poeira nos Olhos”; Fargier compara o cinema com um passeio comum e consciente entre pai, filha e um carrinho de bebê. Para ele, o vídeo não habilita a realidade ao encontro, pois no vídeo não esperamos por ela. É por esse viés comparativo que se aceita o experimento de Jacques Tati em Parade (1974), filme que registra o cotidiano de um circo filmado em película e vídeo que Daney chamava de “sondagem no mundo do vídeo”. No filme, um embate de escrever e reescrever o que se vê. Os artistas ganharão dimensões distintas conforme a mudança de dispositivo, principalmente quando estão em ação. Raul Perrone, realizador argentino, é um exemplo contemporâneo de diálogo entre as duas formas: seus filmes mais experimentais buscam, através do digital, o que se entendia por real e mítico nas imagens do cinema. São viagens por diferentes décadas do cinema, sempre a favor de seu suporte – que nunca é usado.

Parade (Jacques Tati, 1974)

Hierba (Raul Perrone, 2015)

Narrativas e artifícios

Em extremos, Brian Taylor e Mark Neveldine, panteão do diálogo direto entre jogos e filmes – ainda que James Cameron, Paul W.S Anderson e tantos outros sejam lembrados -, com Adrenalina e Gamer, filmes que lidam com esvaziamento da função do dispositivo com extrema rapidez, hoje já escapam deste rótulo. Hardcore Henry de Ilya Nashuller tenciona o diálogo com a subjetividade do olhar de quem joga: um filme em POV, ou melhor, um jogo que não se controla, adota-se a passividade completa do domínio da imagem. Eis a questão: o filme está vivo? Com outros argumentos, as mesmas questões são feitas para Lisandro Alonso e Philippe Graundrieux, diretores que geralmente entregam a subjetividade àqueles que os controlam – cada espectador com sua certeza.  

Este embate entre o palpável e intangível (ou seja, vida e morte) se desenvolveu nos últimos anos com inclinação maior por parte de diretores como Jean-Luc Godard e Peter Greenaway, mas hoje o próprio ato de pensar e agir a favor de um filme parte com esta fusão embutida. Artistas como Ben Rivers, Ben Russel, Leo Pyrata e Charlote Serrand, para citar alguns, cada um a seu modo, buscam o material fílmico a partir de um dispositivo que, segundo Fargier, não oferecerá a realidade. 1048 Luas (2017), filme de Serrand, um exercício straubniano, resume-se ao encontro da artificialidade da imagem à dramaturgia. Sleep Has Her House (2016), longa de Scott Barley filmado em Iphone é mais sugestivo em função da imaginação material e do tempo. Mas o caso mais interessante a citar é o de Subybaya (2017), último filme de Leo Pyrata, onde o diretor entra como alvo “de um bombardeio intensivo”, como diria Fargier. Como espécie de um ricochete às imagens, Subybaya será paralisado, oferecendo suas imagens às chamas de hoje, os glitchs e pixels. A utopia encontra outra, um pensamento pessimista do real – a vida – e que não deixa de ser um pensamento sobre a imobilidade de quem “apenas assiste” – a morte.  O mesmo pode ser dito de Cat Sick Blues, filme de horror/terrir dirigido por Dave Jackson que esvazia a figura do assassino a ponto de transformá-lo em um conjunto de pixels. “A cada instrumento, sua destinação, seu impacto”, do mesmo “Poeira nos Olhos” define este momento.

O vilão vira pixel em Cat Sick Blues (2015).

Se o meio é a mensagem conforme Marshall Macluhan, neste contexto já estamos na era profetizada dos dispositivos como extensões dos sentidos. Hoje não é mais sobre expor o método ou escrever e reescrever com o vídeo a artificialidade. A tecnologia e sua essência formam o ambiente. Let the Summer Never Come Back Again (2017), exercício de esvaziamento dramático possível graças ao registro de um telefone celular, no alto de seus 202 minutos, é extremo na briga com o fluxo narrativo, espécie de texto subversivo aos olhos educados – a má qualidade da imagem, a possibilidade da câmera de abandonar seus personagens para buscar outros momentos sem alto custo – nada novo se pensarmos nos filmes em video de Godard -, mas um filme que se afasta da história sugerida.  Daney, mais uma vez, oferece a resposta: “a recusa de um mundo anterior, de um plano anterior”. A realidade está além do personagem e é este o alvo da câmera, ainda que esta realidade nunca seja alcançada. Nunca será, nem mesmo em Parade.

Recentemente o diretor Richard Perry adotou em Base (2017) o storytelling ao uso de uma câmera GoPro junto à linguagem de programa de esportes radicais e criando a partir dessas junções um filme basicamente sobre o dispositivo, seu processo de filmagem/edição e como sua imagem reflete a inconsistência da vida e da imagem – o que é o real? Sobra a ele o encargo de divulgar este ilustrativo e ambíguo obituário além das margens do que se chamava de “filme”.

Base (2017) de Richard Parry

Em busca do irreal

A tendência é que novas imagens sejam produzidas a partir de imagens já existentes ou que se filme ou que já foi filmado outras tantas vezes. Trazer um segundo significado em sobreimpressões, outras ideias além do pensamento original. Isto tampouco é novo na história do cinema. Porém, o processo nunca esteve tão em primeiro plano como hoje. A antologia das imagens parece tão importante quanto o que a sucede como construção analítica, preenchendo o foço entre imagem e espectador. Uma dinâmica particular, independente do real – imagem – mas que o recria em excesso. A busca simulada que cria independência ao real, nunca confundido, mas livre para abundância. É o momento da fartura visual, nem sempre pura e relevante e apta à queixa, longe da questão da figuração ótica e sim pela relação direta à existência, longe de referências, ou seja, a crise de representação. Esta ruptura de vida e morte está justamente no significado da imagem no cinema; como e o que ela representa entre a tela (do cinema, da TV ou do smartphone) e o receptor.

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ENTREVISTA: EDGARD NAVARRO

Por Pedro Tavares

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Premiado no último Fest Aruanda, incluindo o prêmio de melhor filme pelo júri da crítica, Abaixo a Gravidade recentemente encerrou a última edição do Festival de Brasília e de diversas formas marca o início de um novo caminhar para Edgard Navarro. Responsável por filmes de escolhas livres, poéticos e anárquicos, o cinema para ele agora pode estar longe de grandes equipes e orçamentos. Conversamos com Navarro sobre cinema de invenção, processo de produção e claro, seu novo filme, Abaixo a Gravidade.

Do grito “abaixo a gravidade” antes do salto em SuperOutro à face de Bené (Everaldo Pontes) chafurdada na terra em Abaixo a Gravidade há uma elipse de quase 30 anos. E esse intervalo de certa forma dá o tom de Abaixo a Gravidade. Como foi criar essa atmosfera de contestação e constatação com sua tradicional liberdade artística tantos anos depois? O cenário de hoje é pior que o de 89, época do lançamento de SuperOutro?

 Acho que o cenário de 30 anos atrás é tão parecido com o de nossos dias que, infortunadamente, atualiza o filme com relação ao que há de pior no país. Ironicamente, no SuperOutro há uma sequência – a da comemoração da independência – em que vemos uma faixa com os dizeres: “FORA SARNEY, DIRETAS JÁ”. A diferença é que agora não estamos às vésperas de eleições diretas após um jejum de quase 30 anos; vários presidentes se sucederam no poder – Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma… Temer; vivemos um cenário de descrédito das instituições, descrença nos políticos e, pior, desesperança e perplexidade diante de um quadro de cinismo e corrupção nunca vistos… Não, isto não é verdade: se examinarmos bem a história, o Brasil sempre conviveu com essa discrepância social que nos avilta: uma classe empoleirada no comando da nação desde a colonização, com o massacre dos índios e dos africanos escravizados, passando pela organização do Estado com toda a sorte de expedientes escusos pra garantir a manutenção de privilégios à custa de uma maioria que sobrevive em condições precárias, tudo resquício de uma injustiça atávica, primordial. Quanto ao processo de criação do Abaixo a Gravidade, digo que o mote inicial foi a busca de uma generosidade redentora como característica principal de Bené; uma certa inocência, também, e a aspiração ao crescimento espiritual, apesar da decadência, desordem e violência ao redor… Ele almeja uma leveza – parte inerente de seu ideário, como se isso fosse possível; em certo sentido nosso bom velho, em seu afã de pureza, assemelha-se ao louco de rua do SuperOutro. (Não devemos esquecer que este último inventa fantasias suicidas, apesar do humor cáustico que as embala…). Digo que os dois são, apesar da loucura que os separa, partes complementares de um mesmo drama onde se pretende discutir a um só tempo a inviabilidade de ambos em face da realidade hostil que se apresenta e a extrema quixotesca tenacidade que lhes termina trazendo a almejada redenção (e nesse ponto me identifico completamente com ambos).

SuperOutro (1989)

Abaixo a Gravidade possui diversas intenções de um fim de ciclo – as corridas em direção a um novo salto -, seja para a morte, para a liberdade. Mas o filme opta sempre pela persistência, para algo além do corte. Recentemente você disse ao G1 sobre sua vontade de parar. O que vem após o corte? Uma nova forma de fazer filmes para Navarro? Durante a Mostra do Filme Livre em que foi homenageado, você já citava o peso de uma grande equipe ao falar de O Homem que Não Dormia, citando febres, insônia e surtos criativos e como você sempre foi adepto da independência.

Isso é absolutamente verdadeiro: desde que comecei a fazer filmes pesados (com equipes grandes, produção e logística difíceis), voltados pra a busca de sustentabilidade dentro desse nosso mercado quase inviável, considerando o modelo de distribuição existente e a falta de políticas adequadas ao enfrentamento do modelo atual que, não bastasse os vícios profundos criados pela relação de dependência com o cinema estrangeiro (mormente o americano com seu gigantismo), precisa conviver com as produções da Globo Filmes, por exemplo, detentora de uma fatia desproporcional do que sobra, contando em sua distribuição com os milhões de espectadores de sua programação diária; a comparação que nos acode ao juízo é bíblica: Davi contra Golias. Temos uma atiradeira e muita pontaria, mas não contávamos com os golpes baixos de governantes que estão se lixando pra a cultura, uma classe dominante cujos filhotes estão sendo preparados pra serem vencedores e não pra ficarem assistindo a filmes que apontam suas setas contra o peito da estabilidade do sistema; mais: uma educação constituída de forma a manter alienada a grande massa – acho que é evidente o pacto dos homens de negócios com as emissoras de TV, cujo teor essencial de suas programações trabalha no sentido de imbecilizar ainda mais o nosso povo. Uma saída digna pra quem faz arte nesse contexto é realizar projetos de baixo custo com alto poder de alcance, principalmente da camada jovem da população que ainda não foi tão infectada pelo lixo com o qual tentam massacrar suas cabeças sem parar… Existem muitos jovens talentosos acordando pra essa realidade e começando a refletir sobre as questões inerentes aos meios de produção e de distribuição de seus produtos audiovisuais. Minha geração não conseguiu realizar esse plano, mas aposto que essa rapaziada que está chegando agora tem muita chance de conseguir transformar essa realidade… Vou tentar aprender com eles, imitar seu exemplo ao escolher um caminho de independência – repito: única saída digna! Viva o Cinema!

Abaixo a Gravidade (2017)

Ainda é possível ver marcas profundas do que Jairo Ferreira costumava chamar de “cinema de invenção” em Abaixo a Gravidade. Houve revisita aos filmes dessa época ou até mesmo a sua filmografia no processo de Abaixo a Gravidade? Na citada entrevista ao G1, você comenta que gosta mesmo é de passear. Werner Herzog costuma dizer que a melhor escola de cinema é a longa caminhada. Você costuma criar nesse costume?

Tudo o que possa haver nesse novo filme de classificável como cinema de invenção é bem-vindo, mas devo dizer que não procurei criar nada que a priori viesse atender a este ou aqueloutro estilo ou escola; parto sempre de uma necessidade que aos poucos se engendra em meu espírito, talvez como um tumor que precisa ser espremido, ou como um filho inesperado (mas sempre desejado) que vai ter que vir à luz. Aí começa um embate interno levado a consequências muitas vezes danosas; crio sempre em meio a certa agonia… aí penso: tudo bem, agon[1] é uma palavra grega que tem a ver com esse estado de conflito a que nos lança o teatro, em sua raiz, nós, incautos filhos de Prometeu – um deus rebelde. E assim continua o drama do fazedor de arte, a fazer de sua agonia mote pra quem quiser ver; como diz Caymmi numa de suas canções: “dizendo a todo mundo o que ninguém diz.” Se houve revisita? Sim, sempre há; alguém já disse que estamos sempre fazendo o mesmo filme… Herzog me inspirou muito, sempre, mas nesse último filme… Bem, tem um momento de agonia no filme em que escrevo explicitamente numa cartela: “CAMINHAR AJUDA A BOTAR O JUÍZO NO LUGAR”; Quanto ao gostar de passear… também veio quando pensei que haverá o momento em que não terei mais nada pra fazer aqui, quando a missão estiver cumprida… Vontade de não ter mais nada pra fazer por obrigação e me deu uma vontade de passear. E é também uma homenagem a meu amigo, o Mestre Paulino[2], a quem o filme é dedicado; desde que nos conhecemos (ele fez uma participação de destaque em O Homem Que Não Dormia), sempre que vinha a Salvador ele ficava em minha casa; nós passeávamos pra cima e pra baixo; sem saber que eu o observava, sem querer ele me deu a solução dramática pra a personagem Bené, no filme… E no dia 1° de maio deste ano (acredito que não apenas por acaso no dia do trabalho) ele serenamente nos deixou, foi passear no céu…

Há também certo saudosismo no filme. Nem perto do saudosismo de Eu Me Lembro, mas um comentário que guarda certa lamentação sobre a mudança radical no qual Salvador passou nos últimos anos. O que você guarda ao olhar para o dique do Tororó?

Tem um momento que a câmara dá um rolê pela cidade, numa cena em que Bené encontra um velho amigo e os dois conversam. Ali tem uma nostalgia, sim, algo que canta a beleza da cidade que ainda resiste e lamenta que o crescimento desordenado a tenha desfigurado a ponto de Bené não mais reconhecê-la; lamentam também o fato de que nessa terra sempre houve um mandachuva… E para plantar um laivo de esperança no coração do espectador, os dois chegam a um acordo e a uma conclusão irrefutável: “O que nos redime a todos é o tempo, cuidando pra que nenhum desses donos do mundo sobreviva aos próprios desmandos…”

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Edgard Navarro (esq.) e Bertrand Duarte durante as filmagens de “Abaixo a Gravidade”

Uma pergunta sobre o processo: como se dá tua relação com os atores? Como extrair o máximo deles e manter a aura de um “filme livre”?

Tive como preparador de atores um amigo – Fernando Belens – em quem posso confiar inteiramente; além de ser psiquiatra, tem grande experiência no métier. Ele me entregou os atores bem afiados no texto e familiarizados com as situações dramáticas e suas implicações emocionais; assim tudo fica mais fácil. Gosto dessa parte de lidar com o elenco, embora às vezes seja enérgico além do necessário, causando certo constrangimento; mas sei como desfazer essas tensões porque também sou ator e tenho muito carinho pelo trabalho deles que estão ali expostos, vulneráveis; enfim, até agora tem dado certo, e como quero fazer trabalhos menos complexos em todos os sentidos daqui por diante, o que havia de problema ficou no passado, espero.

Falando em “filme livre”, até onde vai a liberdade em seus filmes no processo de criação? Há o espaço pensado para que a imagem esteja sempre em função metafísica?

Sim, desde a elaboração do roteiro que a metáfora central que se constitui na espinha do filme é servida pelos vários setores da produção e todos passam a contribuir dentro de sua competência para que tudo o que há pra ser dito nas entrelinhas seja feito com a ênfase ou a sutileza desejável. É verdade que às vezes um detalhe mal pesquisado por algum dos colaboradores pode me tirar do sério, mas essas tensões fazem parte do processo – nobody is perfect. Por isso durante a pré-produção fazemos reuniões onde tentamos estabelecer certas metas na expressão final – vetor resultante do filme. Mas creio que essas metas devem ser flexíveis, justamente pra deixar espaço à criação livre, ao improviso, ao acaso emergente que pode surpreender. Pra mim quase sempre é melhor sacrificar o que foi escrito a priori em favor daquilo que se oferece: seja uma revoada de pássaros inesperada, uma chuvinha marota que quer aparecer e se enfeita de luz metafísica, ou a performance de um ator ou uma atriz ultrapassando limites estabelecidos pra nos brindar com uma interpretação irretocável e impossível de ser repetida… Em casos como estes, dane-se o texto!

[1] Termo grego – ágon, que significa luta, competição, disputa, conflito, discussão, combate, jogo, e que tem as suas raízes na Antiga Grécia onde, anualmente, eram realizadas competições desportivas e artísticas.

[2]  Luiz Paulino dos Santos, cineasta pioneiro do ciclo baiano, autor original do filme Barravento – que mercê de um episódio seria dirigido por Glauber.

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Festival de Brasília: Mostra Competitiva de curtas – Parte 2

Por Kênia Freitas
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As melhores noites de Veroni (2017), Ulisses Arthur

Tentei (2017), de Laís Melo

Esses dois curtas trazem o corpo feminino como temática e como forma de exploração material do filme. As protagonistas femininas em ambos colocam as relações de afeto e poder que perpassam as vidas das mulheres em evidência. Em As melhores noites de Veroni, de Ulisses Arthur, esse corpo – o corpo da protagonista Veroni – está em impasse: de um lado a clausura de um apartamento apertado, da vida familiar e de um relacionamento em crise com o marido caminhoneiro quase sempre ausente; de outro, as aulas de canto e a performance na noite. O curta de apartamento, usa desse espaço limitado para aumentar o efeito de aproximação com Veroni e o seu cotidiano trivial. Interessa, assim, menos a resolução das incertezas da personagem ou a imposição bem delineada de um conflito narrativo e mais um aproximar afetivo desse corpo feminino e dos seus deslocamentos.

Em Tentei, de Laís Melo, os procedimentos iniciais de entrada no filme são semelhantes: o espaço íntimo de um quarto, vemos inicialmente um casal (homem e mulher) na cama e  acompanhamos os gestos mínimos e silenciosos dessa mulher que se arruma para sair de casa. O procedimento então se altera completamente, estamos no espaço impessoal de uma repartição pública, que descobriremos ser uma delegacia policial. O filme orquestra então de forma engenhosa um plano e contraplano entre Glória (a mulher que vimos sair de casa) e o funcionário público que a atende. Embora ambos ocupem a mesma sala, cada um dos personagens existe em uma pulsação de vida diferente. O atendente segue protocolarmente os procedimentos para registrar a denúncia de abuso e estupro marital de Glória, o seu discurso conforma-se no registro institucional. Glória pouco consegue expressar-se pelas palavras, o seu discurso é aquele que não consegue ser formulado de forma adequada ao protocolo. Plano e contraplano colocam o espectador entre duas imagens que não poderão se encontrar de fato na tela. Por fim, diante da impossibilidade, na sequência final do curta, a esse corpo que não consegue produzir discurso sobre a violência que sofre, o que resta é voltar-se contra si e também contra a câmera, contra a sua transformação em imagem.

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Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz

Nada (2017), de Gabriel Martins

Chico (2016), dos Irmãos Carvalho

Peripatético, Nada e Chico trazem para a tela os corpos e questões da juventude negra, uma juventude que nos filmes negocia entre a própria possibilidade de existir no mundo e os desejos que atravessam uma existência mais plena (menos precária e com significado). Nada, de Gabriel Martins, mergulha na crise existencial da Bia. A jovem de família de classe média e as portas de prestar vestibular, manifesta o seu desejo profundo de não fazer nada: de não escolher uma profissão e não entrar na máquina de moer pessoas da vida adulta.  Equilibrando as diversas reações  (da família, da escola e da amiga) diante do desejo de Bia, o curta tem as suas melhores cenas quando entrega-se plenamente as formas de apreensão do mundo por Bia – no travelling de abertura com o deslizar da câmera nas ruas acompanhado pela trilha musical, na cena em que Bia canta rap no quarto e a câmera entra na coreografia com ela, nos corredores da escola quando a banda sonora do filme fica nos fones de ouvido da jovem em detrimento aos sons do mundo exterior. No fim, após a fuga da garota, o filme devolve aos espectadores um lugar do julgamento ou da absolvição com um “valeu a pena?” que não será respondido.

Chico, dos irmãos Carvalho, nos desloca para uma narrativa de futuro: estamos em 2029, em um regime de exceção em que jovens negros e pobres podem ser presos preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos a marca desse destino. Embora futurístico, é difícil classificar o filme como uma distopia estando este tão próximo das representações e das discussões sociais do nosso presente (a redução da maioridade penal e o encarceramento em massa, para falar dos temas mais óbvios). As escolhas da direção de arte e da encenação são fundamentais também no sentido de inscrever esse futuro como um registro familiar do nosso presente. Na encenação, temos um registro naturalista dos acontecimentos, sobretudo nas relações familiares afetivas e francas entre avó, mãe e filho. Os elementos futurísticos inseridos para marcar cenograficamente esse futuro são sutis (como a tornozeleira prateada de Chico) reforçando essa relação direta com o presente. Então, de fato o deslocamento maior do filme vem não de sua temporalidade, mas da sua resolução pelo cruelmente e amorosamente mágico na cena final.

Peripatético de Jéssica Queiroz acompanha os amigos Simone, Thiana e Michel. Simone quer arranjar um emprego, Thiana estuda para passar no vestibular e Michel está tranquilo jogando videogame. A narrativa pulsa no ritmo da correria de Simone, é preciso deslocar-se pela cidade, usar sapatos e passar por inúmeras entrevistas que não dão certo. Situando-a para além da sua vizinhança e núcleo de amigos, o filme apresenta também uma série de outros candidatos a vagas de emprego (de idade, raça e classe social diversos). Abrindo a subjetividades diversas a busca da personagem. No entanto, a narrativa divertida e de influências pop é bruscamente interrompida pela realidade histórica. As imagens televisivas nos situam então em 2006 no dia em que o protesto de uma facção criminosa e a reação policial contra a periferia da cidade rasgaram São Paulo (e no filme a vida de Michel). O curta se depara assim com um paradoxo de existência semelhante ao dos seus jovens personagens: o desejo de ser e pulsar em um ritmo, e as demandas concretas de precisar existir em outro registro.

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Carneiro de Ouro (2017), Dácia Ibiapina

O filme de Dácia Ibiapina começa por nos apresentar o personagem de Dedé Monteiro, um realizador do Sertão do Piauí que produz cinema popular com poucos recursos, contando histórias fantásticas e de aventura, com muito efeitos especiais inusitados. De início, o documentário trabalha em um registro padrão de entrevista com o personagem e algumas imagens do seu processo de produção. Mas o grande movimento do filme de Dácia Ibiapina é quando este permite-se o gesto de fazer ready made com o cinema de Dedé Monteiro. O curta então perde-se (no melhor dos sentidos da criação livre) nas imagens do cinema do cinema de Dedé e torna-se ele próprio esse cinema popular escrachado de efeitos especiais absurdos e cativantes. Mais do que um filme dentro de outro filme; trata-se de um cinema (o francamente popular) dentro de outro cinema (o do registro documental legitimado por festivais e crítica). Sendo um belo gesto de crença e amor às imagens do cinema.

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Festival de Brasília: Mostra competitiva de curtas – Parte 1

Por Camila Vieira

 O Peixe 1O Peixe (2016), de Jonathas de Andrade

Há algo de perturbador no modo como a duração dos planos de O Peixe evoca a persistência do olhar para um gesto ambíguo de dominação e docilidade. O ritual de pescadores que abraçam os peixes logo após a pesca é encenado em posição frontal à câmera, com zoom que se aproxima dos corpos. A ambientação sonora do mangue repousa sobre a calmaria de cantos de pássaros, chiados de cigarras, barulho das águas em movimento, ruído de folhas que balançam ao vento, entre tantos outros sons da natureza que se harmonizam. De um plano a outro, a ação ritualística se repete com pequenas variações, acompanhando cada processo de morte lenta dos peixes envoltos pelos braços vigorosos de pescadores, que usam a força física para manter uma luta corporal com o animal que agoniza. É um belo filme sobre a relação homem e natureza, mediada pelo toque que produz uma pulsação erótica.

Inocentes 1Inocentes (2017), de Douglas Soares

Compor a imagem com corpos masculinos também é o foco de Inocentes, mas a partir de uma chave de aproximação com o trabalho fotográfico homoerótico de Alair Gomes. Em preto e branco, os planos contemplativos da paisagem dão lugar ao ponto de vista de alguém olhando a praia da janela de um prédio. Homens passam protetor solar, conversam, tomam banho de mar, fazem exercícios. O olhar voyeurístico acompanha o movimento dos corpos, capturados também em instantes fotográficos. Em voz off, um homem imagina narrativas a partir dos rapazes que observa à distância. Mesmo incluindo um rapaz negro – não há registro fotográfico de negros no trabalho de Alair Gomes –, existe uma beleza que Douglas procura preservar em homenagem ao fotógrafo, a partir da opção de filmar apenas jovens com padrão de corpos sarados, deixando de lado a possibilidade de um olhar mais diversificado.

Baunilha 1Baunilha (2017), de Leo Tabosa

O início de Baunilha apresenta uma explicação do mestre Brenno Furrier sobre a máscara na prática de BDSM: um objeto que despersonifica, tira a identidade e o aspecto humano de quem a usa, podendo também manter o sigilo do dominador ou do submisso. Tomando esta imagem da máscara como ponto de partida formal, o curta faz um retrato de Furrier, apenas com planos que mostram fragmentos de seu corpo, sem jamais revelar o rosto do personagem. No começo, a entrevista detalha como funciona a prática, desconstruindo o olhar do senso comum, em contraponto ao sexo baunilha (feito de maneira convencional). Quando o desvelamento do rosto de Furrier para o entrevistador acontece no fora de campo, o documentário dedica-se a um perfil do personagem, explicitando não só as motivações que o levaram a buscar o BDSM, mas também suas relações amorosas e anseios sentimentais no cotidiano.

A Passagem do Cometa 1A Passagem do Cometa (2017), de Juliana Rojas

Em comparação com outros filmes de Juliana Rojas, A Passagem do Cometa mantém um registro seco, sem elementos sobrenaturais ou de horror. Ao tratar do aborto em uma clínica clandestina como tema, o curta optou por ser econômico e direto na narrativa, contextualizada nos anos 80. Por outro aspecto, o filme aprofunda tensões desencadeadas pela própria situação: a entrega do dinheiro, a espera da amiga que chega atrasada, as perguntas da médica, o exame do corpo na maca. O procedimento cirúrgico é explicado de forma científica pela médica, mas há uma elipse que salta para o momento pós-cirurgia, quando parece haver uma sensação de vazio, de falta, sobrepondo as imagens dos objetos da sala com animações em cores neon, que figuram partes do corpo da mulher. Pontuado por um acontecimento que rompe a tranquilidade da clínica, o curta propõe uma indagação para o futuro.

Mamata 1Mamata (2017), de Marcus Curvelo

Diferente da maioria dos filmes interessados em pensar as urgências do nosso tempo histórico diante da conjuntura política brasileira, Mamata não tem a pretensão de seriedade tampouco de afirmação de uma tese. Pelos recursos da comédia e da precariedade do registro caseiro, o filme é a expressão de uma juventude em crise, que vive o próprio fracasso e aponta para o impasse do país. Curvelo se coloca em cena como este jovem solitário, sem saber muito o que fazer diante do próprio fracasso, mas rindo de si mesmo. A ironia e o sarcasmo também mobiliza a montagem inventiva do curta, a partir do uso de imagens e sons que se viralizaram na internet e que, ao serem colocados em uma só sequência, dão conta de momentos absurdos e inusitados, como o hino nacional cantado por Vanusa, junto à imagem do pato, à cambalhota do Vampeta na rampa do Planalto e o choro de David Luís na derrota do time brasileiro na Copa.

Torre 1Torre (2017), de Nádia Mangolini

Usando a técnica da animação para realizar um documentário, Torre parte dos relatos de quatro irmãos da família Gomes da Silva, cujo patriarca Virgílio é considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira. Os entrevistados narram o que recordam da infância e de que modo a ausência do pai e a prisão da mãe afetaram cada uma de suas vidas. Compondo com o figurativo, o traço se desfaz e se refaz a partir das lembranças que permaneceram e as que escapam. A estrutura fragmentada em quatro partes do curta é intercalada pelos nomes dos filhos por ordem crescente de idade e os blocos de narrativa vão ganhando uma progressão maior de detalhes do traço e cores mais vivas, de acordo com o que cada um consegue relatar. O que impressiona é o modo como o curta procura dar conta do desaparecimento do pai, a partir do uso expressivo do branco e de rastros que se dissolvem.

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