Cinema, dinheiro e marmitas

Por Geo Abreu

As condições do país-brasil se (con)fundem com as condições do cinema brasileiro na atualidade.

Trilhando um trajeto particular pelos programas de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes – e assumindo sem pudor que escolho os filmes realmente curtos – emendei sem pensar muito a respeito: Ácaros, de Samuel Marota, Dinheiro, de Arthur B. Senra e Sávio Leite e Corre de Marmita, de Luiz Pretti e Phillipe Urvoy. 

Apesar da escolha ao acaso, executar os filmes nessa sequência fez muito sentido. Algo de continuidade em movimento ascendente, tanto pelo ritmo imposto pelos filmes quanto pelas temáticas conjugadas. Em Ácaros somos apresentados a uma imagem sem definição, “pequena”, “ruim”. O movimento da imagem é intenso, sugere trabalho, conhecimentos específicos, ação. Na saída daquele fosso acompanhamos um belo movimento de câmera que revela a grandeza de uma sala de cinema em ruínas, metáfora concreta dos dias que correm. Trabalho arqueológico de história do tempo presente executado em quatro minutos. As salas de cinema de rua minguam no mundo neoliberal, cujo tempo liso escorre em enxurrada, fazendo de tudo ruína.

E qual o papel do dinheiro nessa história? Uma convenção tão antiga e agora, mais do que nunca, espiritualizada por códigos digitais e transferências em tempo real? Em Dinheiro, somos apresentados ao histórico do papel que passou a representar um índice de troca entre entidades de naturezas diferentes. Várias versões do papel moeda brasileiro, seus brasões, generais, ditadores, cidades, índios – como na capa de um álbum do Sepultura – completamente deslocados como escala de valor em relação à sua representação numa nota de mil cruzeiros. Vibrando na tela, notas de dinheiro e notas fiscais servem de moldura para frases icônicas sobre o capital e suas contradições. Outros quatro minutos densos em que a montagem impõe o ritmo, e através dele se conecta ao filme que escolhi na sequência.

Corre de Marmita é ágil como a urgência que sugere. Seus onze minutos transcorrem como o pensamento acelerado que é necessário para se equilibrar na cidade: entre celular, deslocamentos e sobrevivência. O curta conta a história das pessoas envolvidas numa ocupação urbana no centro de Belo Horizonte que, em meio a luta pela permanência da ocupação, produzem ações de assistência à população em situação de rua distribuindo marmitas. No contexto da pandemia de Covid-19 o filme fala de direito à moradia, insegurança alimentar e outros arranjos de vida. Seguimos o grupo por andanças nas ruas e coleta de doações, enquanto a montagem do som atua sobre as diversas conversas que se cruzam, produzindo um mosaico de opiniões não-jornalísticas sobre o período, sem moralizar escolhas e temas. Além de uma visão sobre redes de solidariedade, Corre de Marmita fala sobre criação/manutenção de redes na luta por alternativas à comidificação do dia-a-dia. A dificuldade que é escolher cair fora e tentar viver sem ser esmagada pelo rolo compressor do capitalismo neoliberal e seus esquemas de produção de escassez é um tema que instiga. Observar o crescimento do número de pessoas em situação de rua e a precarização dos profissionais do audiovisual (e das artes em geral), ambos fenômenos que espelham o mesmo processo, e notar o aparecimento de filmes que sejam sintomas disso é usar o cinema como ferramenta dialógica, como instrumento da história do tempo presente, a catalogar os agoras. Esse conjunto de três filmes consegue sintetizar e pôr em movimento entendimentos sobre brasil-mundo e cinema-brasil.

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Um lugar ideal para fantasmas-banana

Por Geo Abreu

The day Carmen Miranda died
They put a photograph in the magazine
Her dead mouth with red lipstick smiled
And people cried, I was about ten
But today, but today, but today, I don’t know why
I feel a little more blue than then

Pintando o céu do Aterro do Flamengo com tons de rosa e amarelo, um feixe de luz passeia
em busca de pouso. Em meio a arquitetura moderna tardia, um círculo de concreto que
mais parece um olho chama atenção: do centro do olhar brota um enorme coqueiro, como a
coroa de um abacaxi perdida no espaço.

Carmen Miranda finalmente encontraria ali um lugar para descansar. Seus despojos,
devidamente imantados de energia caótica, ocupariam um lugar naquele estranho
mausoléu ao ar livre, onde os fantasmas eram livres para brincar.

Luisa Marques e Darks Miranda, dupla de cineastas e performers, se ocupam do encontro
entre projetos modernistas brasileiros em Maldição Tropical, curta que opera o cruzamento
entre a ambiciosa construção do Aterro do Flamengo e a chegada – sempre apoteótica – da
memória de Carmen Miranda ao lugar.

Construído sob os escombros de dois morros, Castelo e Santo Antônio, responsáveis pelo
aterramento da região em que o complexo foi erguido, o Aterro apresenta assim uma dose
de desespero e fantasmas próprios: as histórias soterradas em sua construção ainda
pairam por lá, pesando a beleza do lugar mais até do que as construções em concreto que
a compõem.

Misterioso e lânguido, o espaço é composto por uma intrigante mistura de vegetação
exuberante, como os abricós de macaco e palmeiras gigantes que, vivos em meio a
paisagem urbana e hoje antiquada do centro do Rio de Janeiro ganham um aspecto
extrínseco e antinatural.

A partir de aproximações produzidas pelo encontro com materiais de arquivo e imagens de
Banana is my Business, documentário de Helena Solberg, as diretoras conectam espaço e
personagem como duas pontas soltas de projetos modernizantes e passadistas de Brasil.

Impressionantemente conectada a esses aspectos de pouca naturalidade e exteriodade que
o parque apresenta, também a Pequena Notável, cantora portuguesa que assumiu o Brasil
como seu e que acabou aprisionada por essa personagem coroada de frutas e balangandãs
paira sob aquele espaço até finalmente escolher um lugar para se fixar.

Assim, o Museu de Carmem Miranda, com seu olho-palmeira, mais do que serve ao
propósito de conjugar mais esta camada de informações ao complexo do parque onde
estruturas mudas e geométricas ajudam a acumular versões mal acabadas da história
desse ex-país do futuro.

Apesar de todo concreto e verde usado na construção do Aterro, Luisa Miranda trabalha a
cor do céu em tons e mesclas entre rosa e amarelo, desconectando o horizonte azul e
adaptando espaço aquele fantasma já bastante distante da figura original a que se refere.
Bailando ao redor do museu, a performer executa movimentos suaves e divertidos
singularizada apenas por uma coroa-abacaxi que imediatamente nos conecta aquela
espécie de Barbie Carmem que ganha vida ao sair de uma caixa do museu.

Jogando com memórias que evocam a história do país mas também do cinema – Uma Noite
no Rio, Banana is my Business – e atualizando o fantasma dessa figura icônica em relação
ao maior parque urbano do mundo à beira mar, Luisa Marques talvez tenha produzido
aproximações de materiais distintos de igual grandeza, explicitando a natureza de parque
de diversões fantasmas daquele espaço lindo e hipnótico.

Ao apresentar o cadáver e a máscara mortuária de Carmen Miranda, o filme também liberta
a mulher por trás daquelas roupas e saltos da prisão de imagem fadada a replicação. Alegre
e melancólico, o fantasma de Carmen se diverte livre pelo Aterro, equilibrando sua pequena
coroa em decomposição, em companhia de espectros os mais variados, principalmente o
fantasma sempre atualizado de Brasil-mundo.

Pelo dito aqui pode não parecer, mas essa é uma das mais belas homenagens a essa figura
icônica de bananas e abacaxis tropicais. Um salve à filha da Chiquita Bacana, que nunca
entra em cana porque é família demais. Puxou a vovó, não cai em armadilha. E distribui
banana para os animais 🍌

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À sombra do híbrido biológico mecânico

Por Geo Abreu

Uma das principais alegorias do humano moderno pode ser resumida à cena em que Charles Chaplin aperta parafusos na linha de produção de uma fábrica em Tempos Modernos. Essa automatização ligada a movimentos repetitivos e condições ultrajantes de exploração seria o começo de uma linha evolutiva que muito em breve encontraria com a humanidade no estágio de completa transformação de ser biológico em máquina segundo as projeções de fantasmagoria da época.

O conceito de antropoceno trouxe para essa matéria novas questões e o cinema como lugar de elaboração das projeções humanas vem explorando os fantasmas do antropoceno como em Pajeú, filme de Pedro Diógenes ou Fog Dog, filme de Daniel Steegmann Mangrané. As contaminações químicas do solo e da água perpetradas por resíduos industriais tratados de maneira irresponsável, além das camadas de substâncias tóxicas que compõem a atmosfera provenientes da indústria química, tem contribuído para o desaparecimento de diversas espécies como também para o surgimento de híbridos ainda não classificados. 

A pergunta que nos assombra hoje é: de que formas essa combinação de elementos exógenos é capaz de nos afetar? Sugiro mantermos essa pergunta em mente enquanto encontramos com Titane, o longa dirigido por Julia Ducornau.

O encontro 

Arisco, o filme não entrega muita explicação para o que se desenrola na tela. Em dois atos bem marcados, acompanhamos a saga de uma figura híbrida que trava com o mundo embates extremamente violentos. Sua fúria expõe o drama que a atravessa: compreender as razões que movimentam as pessoas comuns. Titane, como o próprio título sugere, carrega consigo algo de extraordinário, um segredo, do qual o filme vai nos revelando apenas aspectos parciais, embalados em signos que podem ser facilmente lidos como adesão a assuntos que estão em alta no debate público.

Sem oferecer qualquer elemento que configure a exterioridade daquela personagem – nem estrangeira, tampouco extraterrestre – a primeira parte de sua história gira em torno da sua pouca adesão ao projeto humano expressa por uma curiosidade mórbida sobre os limites do corpo e das relações intraespecíficas. 

Desde pequena a jovem Titane esgarça a convenção da empatia, levando ao extremo todas as relações que trava, testando cada uma delas a partir de balizas muito próprias. Da tentativa de chamar a atenção do pai, provocando assim um acidente que lhe deixa uma marca profunda, até a performance provocativa em cima do carro – que atrai a primeira vítima que conhecemos -, suas atitudes desafiam a ideia de que sentimentos como dor e amor são condições inerentes à nossa natureza. 

Apostando no horror biológico como em filmes anteriores seus –  Júnior e RAW – Ducornau segue explorando o assombro que nosso corpo e suas constantes mutações são capazes de produzir, se aproximando pelo uso do neon e das parábolas cristãs a Divino Amor de Gabriel Mascaro. Indo um pouco além, a diretora projeta esse futuro de híbridos biológicos mecânicos cujos primeiros exemplares estão prestes a chegar.

Sangue e óleo

A jornada de Titane então é a da busca pela porção de humanidade que a compõe. Consciente de sua raridade, expressa sua sexualidade de forma predatória, com fluidez por escolhas às mais diversas a fim de explorar as possibilidades, como numa pesquisa de ordem urgente da qual depende a própria continuidade de sua existência. e aqui fica a certeza de que ela poderia assumir a forma de qualquer coisa de aspecto maquínico: mulher, homem, carro. Árvore, nunca.

À medida que as escolhas da protagonista se radicalizam e ela decide assumir a identidade de outra pessoa o filme se transforma, seguindo o movimento da personagem. Acolhida por um homem solitário e carente, Titane passa então a projetar-se num ambiente extremamente masculino, guiado pela figura desse pai que não mede esforços para inseri-lo em sua rotina. 

Desconhecendo os segredos do filho reeencontrado, o pai estabelece uma curiosa relação entre sua família recém reunida e a santíssima trindade: ele, no centro da corporação que comanda, atuando como um deus para seus subalternos; o filho, como jesus (e maria ao mesmo tempo); e um “milagre” que parece ser a verdadeira chave dessa história. 

A partir de então acompanhamos o sofrimento do protagonista frente a sua atual condição e os mistérios que carrega: a barriga que cresce e precisa ser escondida e o óleo que escorre pelas tetas e ferimentos, reforçando a distância entre ele e os meros mortais. Uma alegoria interessante para esse tipo novo que parece gerado a partir de fluidos inócuos, incapazes de carregar em seus genes informações básicas e ancestrais sobre o que seja humano. 

Assim caminhamos para o final que está longe de ser a redenção da espécie, senão apenas daquele pai que finalmente encontra um filho para chamar de seu. Diferente do caráter milagroso assumido pela criança nascida ao final de Divino Amor, o que Titane nos apresenta é uma pessoa que parece ser a primeira de uma série, aquela que consolida a fusão humano-máquina depois de todo petróleo e demais substâncias tóxicas às quais temos sido expostas. Um tipo novo, um híbrido biológico-mecânico do qual pouco sabemos.

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Olhar de Cinema: O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr.)

Por Geo Abreu

Um traço que podemos encarar como característico do cinema produzido nesses anos pandêmicos é a atenção ao material de arquivo como fonte, fato interessante se pensarmos no nível individual a partir da quantidade de imagens produzidas no mundo todos os dias e o dilema que se impõe diante da necessidade de arquivamento e destinação desse material, enquanto num nível coletivo, mais do que nunca é preciso lutar por condições de preservação e memória do cinema brasileiro. E aqui, amigues, cada uma deve encontrar o local de criar uma barricada, trabalhando diligentemente para digitalizar materiais, expor internacionalmente a situação dos principais acervos, criar programas para restaurar, exibir e produzir memória sobre filmes pouco conhecidos e assim por diante. 

Em Sonho do Inútil o cineasta José Marques de Carvalho Jr assume a posição de revisitar a história de um grupo de amigos que alcançou sucesso produzindo vídeos de aventuras domésticas e autoflagelo, mixando os arquivos desse período com imagens produzidas no reencontro com as figuras que compunham o grupo. 

A condução desse trânsito entre passado e presente produz momentos de perturbação no fluxo da narrativa, deixando o espectador a deriva em alguns momentos pois, além de algumas quebras temáticas, há um choque provocado pela construção precária das distinções entre as imagens daqueles personagens nos diferentes momentos em que a narrativa se desenrola, fato que segue até que se firme o bloco do reencontro entre o diretor e seus amigos, que ganham tempo de tela para falar de suas trajetórias enquanto finalmente são postas em relação suas imagens antigas e atuais. Inclusive minha aproximação com o filme se deu pela desconfiança de que aquela história fosse se desdobrar numa pegadinha de falso documentário, algo que só se desfez a partir dos blocos de apresentação do cotidiano atual dos personagens e do tom sóbrio assumido a partir dali.

No final das contas tudo isso me manteve atenta à ação, a espera pelo encontro com um jogo que se mostrou menos opaco do que eu pude supor, sublinhando a importância do audiovisual como ferramenta de encontro, amizade e pesquisa num contexto em que parecem existir roteiros pré-definidos a respeito de quais histórias aqueles rapazes poderiam contar. 

No mais, interessante observar que a reputação criada pelo grupo com seus vídeos engraçados se manteve no tempo, transformando-se em atenção dada aos trabalhos posteriores do diretor, que podem ser acessados no canal do YouTube que leva o nome dele – JmarquescarvalhoJr – e cujos números de visualizações/curtidas fazem pensar sobre outra dinâmica de produção de caminhos para desenvolvimento de uma carreira no cinema brasileiro, que passa tanto por experimentação de formatos, relação direta com a distribuição e a recepção dos filmes. 

Entre a atualidade desse modo de habitar o ecossistema do audiovisual e o tom de saudade de um passado simples de brincadeiras entre amigos, O Sonho do Inútil nos faz pensar em juventude, a vida nos subúrbios das metrópoles brasileiras e na força simbólica de portar uma câmera.

Visto no Olhar de Cinema

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Às mulheres que seguem, ignorando o falatório

Por Geo Abreu

Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.

De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.

Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.

A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?

O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.

Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.

O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.

Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados. 

A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?

É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?

Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.

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O que deve o cinema marroquino da década de 1970 filmar?

Por Geo Abreu 

about some 1

Um balcão de bar com pelo menos três homens envolvidos numa clássica conversa bêbada, em que alguém recusa um trago e provoca grande desfeita, indo do registro de uma conversa entre amigos à inimizade fortíssima ainda na apresentação do filme. Todo esse movimento filmado à distância, com planos compostos e muito aproximados, envoltos numa névoa de vapor alcoólico e cigarros que compõem também uma escolha formal: um entendimento não muito claro sobre quanto da ação do filme é representação ou cinema verité; convivendo com essa dúvida até que ela deixe de fazer sentido, seguimos  até o final do filme, carregados pela trilha sonora e a construção desse tecido fino que impede uma visão clara dos limites entre verdade e encenação.

Foram pelo menos seis visualizações em dois meses e uma obsessão por About Some Meaningless Events (1974), de Moustafa Derkaoui, que espero exorcizar nesse texto. Ao redor de alguns eventos aparentemente sem sentido, avoluma-se uma série de pequenos conflitos: desde a falta de recursos para o pagamento dos atores até o exercício do flerte entre as poucas mulheres no bar e a equipe de filmagem, que sai às ruas para perguntar que filmes o público marroquino gostaria de ver no cinema.

Moustafa Derkaoui termina o curso de cinema em Lodz, Polônia, e na volta para casa junta uma equipe – que inclui seu irmão – para sair às ruas de Casablanca e investigar o estado geral das coisas. A pergunta sobre que cinema querem os marroquinos parece pura desculpa para a aproximação de tipos interessantes, homens mais velhos com cara de sábios, bêbados, mulheres bonitas. No final das contas, das respostas mais simples às mais elaboradas, o que os interlocutores de Darkaoui querem ver no cinema são episódios da vida dos homens comuns; “filmes históricos que contem a história do nosso país”.

about some 2

Escrevo esse texto na semana em que Mangue Bangue, de Neville D’Almeida, e Memórias de um estrangulador de loiras, de Júlio Bressane, ambos feitos no mesmo ano de 1971 e impedidos de circular durante a ditadura militar brasileira, voltam a público num dos mais importantes repositórios de filmes nacionais a disposição do público comum, o site/comunidade Making Off[1]. Na mesma década, no Marrocos, uma equipe de cinema tem seu filme exibido publicamente uma única vez antes de o ver impedido de circular em seu país. Corta para quarenta e cinco anos depois: o filme marroquino volta à público a partir do encontro entre ele e uma pesquisadora num acervo catalão, circula em festivais e mostras especiais e motiva textos surpresos com a força do discurso sobre um cinema nacional, vivo e sagaz, que se põe em relação com a vivência popular da cidade, num contexto de imagens colonizadoras às quais aquele público se via rodeado.

A intenção em pontuar a coincidência no reaparecimento de alguns filmes da mesma década, impedidos de serem exibidos por motivos políticos, é a dimensão de como operam esses regimes de silenciamento de discursos críticos e de uma classe artística que se distancia das representações vinculadas a esse tipo de poder: o impedimento na existência de algumas obras acompanha o desaparecimento físico de centenas (em alguns casos milhares) de pessoas.

Voltando ao filme em si,  a trilha jazzística, elegantemente potente em modular a temperatura das sequências, muitas vezes soa como mais uma camada das conversas que se sobrepõem no ambiente do bar e da rua, compondo uma textura sonora envolvente que nos prepara para a tensão, em especial na cena do assassinato, belamente coreografada e exposta a um ritmo mais lento que lembra muito um prender fôlego diante de algo assustador que se presencia. Depois da apresentação dos personagens e ambientes, a ação se concentra na construção desse conflito entre o estivador e seu chefe, chegando ao ápice da tensão nessa bela cena de luta/dança que muda os caminhos do filme.

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Aqui sai o tom de reencontro com a cidade, seus personagens e ambientes, para um enclave meta referente. A equipe se reune para discutir o caminho do material que tem em mãos: imagens do assassinato de um homem. Quais as implicações em manter aquele episódio na versão final do filme? Uma informação chega até eles: aquela morte tinha um fundo político. Como processar essas imagens diante da complexificação do registro? A sequência dessa discussão me parece tão didática quanto deve ser comum na realidade de produção de filmes em territórios em disputa, cenário próximo de muitas realizadoras brasileiras. Vale a escuta cuidadosa do embate de ideias nesse momento do filme.

Nos aproximamos do final e da sequência da entrevista na cadeia, que eu colaria na parede se pudesse. O que me perturbou ao assistir About Some Meaningless Events foi a construção de um terreno aparentemente leve de abordagem de personagens populares, que reivindicam presença nos filmes de seu tempo e de seu país, e cuja força arrasta esta equipe cinematográfica, jovem e curiosa, até o fundo de questões políticas de natureza muito comum em todos os estratos sociais, a corrupção. As violências explicitadas pelo estivador, que também é artista, nos provoca e convida a rever as próprias escolhas estéticas (ou, pelo menos, deveria). Apesar de toda a auto importância que os cineastas se dão enquanto profissionais capazes de encapsular as memórias do tempo presente, filmar coisas que nunca teremos coragem de fazer, senão em termos fictícios, é o mais alto grau dessa prática?

O que mais pode a equipe de cinema realizar? Todos os filmes são em alguma medida políticos? É possível imprimir leveza na construção de um discurso crítico de base popular em confronto com a violência do cotidiano?

Com muito cuidado e alguma desconfiança no uso da palavra acredito que Darkaoui e sua equipe tenham conseguido realizar um filme popular sobre a classe trabalhadora de Casablanca na década de 1970. Pena que a maioria de seus personagens não o puderam ver na sala de cinema.

[1] Agradeço ao Samuel Lobo pela contextualização e atualização das notícias sobre as raridades do cinema nacional que caem na rede vez por outra e a equipe do Making Off pela inestimada contribuição ao acesso.

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Karioka – Takumã Kuikuro, 2014

Por Geo Abreu

“Takumã Kuikuro leaves his village in Alto-Xingu, Mato Grosso, with his wife and children, to live in Rio de Janeiro for a while”.[1]

Ta

Ku

Ti

Ü

Ka

Kagihutü / aʒiutˈ

Carioca / kaɾjˈɔkɐ /[2]

Imagens do Rio de Janeiro visto de Niterói, Praia de Icaraí, Museu de Arte Contemporânea, aeronave, Oscar Niemeyer. Das imagens conhecidas passamos a uma voz que preenche fortemente o vazio na tela, tomando a atenção.

A língua Kuikuro, do ramo Karib, vibra em materialidade e se impõe trilhando uma linha condutora entre nós e as imagens. A legenda que acompanha parece acessória a certa altura. Poderíamos prescindir dela? Na paisagem sonora do filme, além do barulho do mar e da música de Carlos Malta e da banda Pife Muderno, somos levados por uma cadência cuja mecânica necessita estalar a língua no céu da boca e compor fonemas em T e K, gerando palavras que ganham presença e se aproximam de nós como uma antiga canção de ninar, distante na memória, salva em algum lugar do corpo como arquivo.

karioka 2

Tomada por esse dispositivo que crio na relação com o filme (e que me mantem alerta), sigo observando a cidade conhecida sendo descrita por um homem de sunga vermelha, sentado em algo muito baixo, em conversa com uma mulher, que é mãe e avó. Sorrio quando ela diz ter entendido o que significa kagihutü (G com som de R; T+U+trema soa como T+A+~; sílaba final forte; pegada gutural): pessoa que nasce na cidade do Rio de Janeiro.

Naquela conversa algo se revela sobre o termo que nomeia o filme e que eles apreendem como revelação dupla sobre a natureza mesma do lugar e de quem nasce lá. Será que a palavra carrega algo de força ou segredo compartilhado, encapsulado nesses fonemas, e por isso fascina tanto o cineasta e seus interlocutores? Entrevemos alguma relação com o movimento das águas doces, até porque Carioca Era um Rio[3] cuja nascente está esquecida em meio a esgoto e entulhos.

karioka 3

No episódio sobre a estranheza da água salgada – que não lava e serve apenas para brincar -, um primo entra na conversa e traz para jogo a definição mais simbólica e distante do meu quadro de referências que já vi sobre a cidade: o Rio de Janeiro como cidade “colar de miçangas.”  Banhos de mar nos permitem acumular miçangas o suficiente e levá-las para casa. Essa ideia de acúmulo aponta o que exatamente? Memórias? Beleza? Algo conhecido que se aproxima como fricção entre a água arenosa e o sensorial das miçangas sobre a pele? Nenhuma das alternativas anteriores ou talvez todas elas: miçangas são feitas de diversos materiais como pedra, ossos, conchas, vidro[4]. Tentar a aproximação desse sistema cognitivo via conhecimento branco me leva a usar ferramentas ligadas à transcendência e me fazem cair sentada de bunda na areia.

Um tanto derrotada, desisto de acompanhar o relato audiovisual da viagem da família Kuikuro via banda sonora e retorno à prática das imagens em busca de algum sucesso em me aproximar de Takumã e sua câmera.

//Desplugo a cabeça oca do aparelho sonoro e ajusto as lentes.//

Ainda na conversa que nos conduz pelo filme, vemos mãe e filho falando sobre o ruído que existe na produção de imagens do Rio de Janeiro.  Uma defasagem produzida no confronto entre discurso jornalístico, via TV, e jogos de ficção. Entre noticiários e novelas, favelas, violência e tragédias se contrapõem às praias do Leblon e Ipanema, que parecem bonitas – e são mesmo, alguém sublinha, enquanto vemos crianças brincando na areia com o mar ao fundo. Mais uma vez os cariocas enquadrados entre as figuras de mar e morro.

A necessidade de produção de sentidos através de imagens, do entendimento dessa engenharia, leva Takumã ao Rio de Janeiro em companhia da esposa e dos filhos. Este curta é um trabalho seu de conclusão do curso de Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Num dos momentos mais poéticos do filme, nos afastamos da posição de importância de Takumã como cineasta Kuikuro e seguimos, via montagem, os pensamentos de sua filha, a menininha de rosto absorto e cabelos ao vento que, retornando à sua aldeia, mantém em lembrança os momentos de brincadeiras com adultos e crianças da cidade, o episódio com a música de Anitta, o banho de mar com os irmãos. E assim nos encontramos frente a um cineasta apenas, em exercício livre, treinando esta outra gramática que quer manejar. Selamos um pacto sem palavras.

A mediação que Takumã exerce abre frentes e lança no tabuleiro do jogo cinema outras chaves de interpretação do mundo via imagens e sons, trazendo para o cenário da encenação frente às câmeras sua mãe e irmãos, pai, avô, além da língua Kuikuro. Nesse exercício as forças parecem seguir duas linhas diferentes: numa, o cineasta que deve representar sua aldeia em circuitos de legitimação artística; noutra o simples aprendiz de ofício, aquele do olhar em formação, passível de erros e acertos, e sobretudo, livre para experimentar e criar formatos. No choque entre essas duas possibilidades alguns limites de ação se impõem a ele e sua câmera? Como produzir os desvios ou respiros?

karioka 4

As escolhas estão com ele. De alguma forma, embalada pelo ritmo metálico e robusto das palavras em Kuikuro me vem a vontade de acompanhar sua trajetória e pensar sobre ela, elaborar estratégias de aproximação e distância em gestos bem conhecidos e naturais, como numa brincadeira, a que tentei produzir no começo do texto, quando o reconheci via audição como alguém tão próximo quanto um primo que eu não (ou)via há tempos.

[1] Sinopse do filme na plataforma Mubi.

[2] Transcrições fonéticas feitas via plataforma online. A biblioteca da ferramenta não possui a opção “kuikuro” como idioma.

[3] Carioca Era Um Rio, Filme de Simplício Neto. Rio de Janeiro, 2013. Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=Uzj-9m4ZYW

[4] Trecho retirado do verbete Miçanga na Wikipedia

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As cidades de nossas juventudes: A Cidade Onde Envelheço

“Tu queres envelhecer aqui?”

Por Geo Abreu

a cidade onde envelheço 2

Nos parágrafos da carta-poema de Paulo Mendes Campos a Otto Lara Resende[1], um mineiro exilado conta a outro sobre a apreensão necessária para “distinguir cada céu, conseguir de cada um a intimidade singular’, abaixo do céu implacavelmente azul do Rio de Janeiro da década de 1940. A melancolia daquelas palavras, que buscam conforto na novidade e encontram desolo na certeza da humanidade excessiva que não nos abandona nunca,  Paulo Mendes Campos parece até um poeta português inventando lonjuras: “Ninguém me chama / Ninguém me espera / Ninguém me denuncia”.

No filme de Marília Rocha, A cidade onde envelheço (2016), encontramos as experiências de lonjuras de Francisca e Teresa, duas portuguesas que escolhem Belo Horizonte para viver por um tempo da vida (ou para sempre?). Logo de cara, o primeiro dispositivo é reconhecível: o estranhamento do que parecia conhecido. De Belo Horizonte, essa cidade que, na última década tem sido cenário de tantos filmes que circularam pelo país e fora dele, se transformando em referência de Brasil e de cinema brasileiro. A presença de Neguinho (Wederson Patrício) nos remete àquela periferia de Contagem apresentada em A Vizinhança do Tigre, que nos aproximou de tantas periferias e garotos como aqueles. A pesquisa das amigas portuguesas sobre a vida naquela cidade nos leva a estranhá-la bem quando se pensava saber muito sobre ela.

Falando ainda de estranhar o conhecido, identificamos também uma inversão no uso de outro dispositivo comum, já que é o cinema quem costuma aproximar lugares desconhecidos de pessoas que muitas vezes não iriam até eles de outra forma que não pelos filmes. Aqui, ao contrário, visitamos o lugar conhecido pelas lentes de duas mulheres que possuem outro sonho feliz de cidade, Lisboa. A comparação é inevitável e esbarra justo em um dos elementos que produz o mistério do mineiro: a falta de mar! Que provação é essa das portuguesas que escolhem uma cidade sem mar para viver alguns anos da sua juventude? Que estado melancólico elas gostariam de experimentar, afinal? O tigre que se avizinha mostra as garras e lambe o sal do próprio corpo.

Se lançar a conquistar mundos, como não usar essa expressão recorrente a respeito da gente portuguesa? E quando essa gente que atravessa o Atlântico pela primeira vez são mulheres? Vale dizer que o olhar que lançamos sobre as duas moças lisboetas não nos devolve clichês. Alguém diz que Marília Rocha evita trabalhar os conflitos, que poderiam encaminhar a história para outros rumos e, a bem da verdade, ainda que as amigas sejam tão diferentes e se espantem com as atitudes uma da outra, o que vemos é apenas acolhimento, ainda que entre-dentes.

a cidade onde envelheço 1

Além dos conflitos que poderiam surgir do próprio universo do filme, existem outros a serem evitados, como o fato das moças estarem num país que já lhes serviu de colônia e serem brancas e ouvirem músicas angolanas ou ritmos eletrônicos misturados a outros de origem africana. Nada de fado ou de poetas portugueses e suas cartas e poemas coloniais sobre o encontro com o Brasil.  Nisso tudo se esbarra com amizade, a leveza de um balé íntimo a que temos acesso e a ideia de um cosmopolitismo que transcende as fronteiras entre o que foi colônia e o que ainda possa ser colonialismo.

Eu escolhi enxergar a história de Francisca e Teresa como um espelho do que foi ter sido jovem, mulher e migrante em outras cidades que nunca me devolviam imagens de mim mesma e às quais tentei me adaptar diversas vezes, a buscar intimidades singulares com cada um que me cruzasse o caminho. Onde pude experimentar novidades excitantes e luminosas como as que vemos Teresa curtir para, com o passar do tempo, chegar à mesma conclusão que Francisca – processo nada fácil – e embarcar de volta para casa num avião da TAM.

O que retenho desse filme é a importância dos pequenos gestos cotidianos: tomar chá com as amigas em chávenas sem par; chegar bêbada em casa e acordar todo mundo para um café da manhã diferente ou para continuar dormindo todos juntos naquele sofá-cama que já recebeu tanta gente; descobrir um disco “novo” do Jards Macalé num sebo perdido do centro de mais uma cidade antiga que fará parte das nossas vidas e que marcará a seu modo um tempo em nós.

[1] Trechos desta carta são lidos em off pela personagem Teresa a certa altura do filme. Aqui o link para um texto completo: https://www.correioims.com.br/carta/carta-a-otto-ou-um-coracao-em-agosto/

 

 

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Olhar de Cinema: Canto dos Ossos

Por Geo Abreu

Alguns limites para a liberdade

“O difícil é ter que recomeçar sempre”

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Assisti Canto dos Ossos pela primeira vez na Mostra Tiradentes SP para uma semana depois rever na programação do Olhar de Cinema. Comprei o segundo ingresso no dia seguinte ao primeiro visionamento. Filmes feitos entre amigos costumam me animar, mas o que me empolgou mesmo foram as potências de invenção que se apresentam na história dos amigos Naiana (Rosalina Tamiza) e Diego (Maricota).

Acompanhar os filmes feitos por Jorge Polo, Catu Rizo e Helena Lessa (as duas últimas diretoras de fotografia de Canto dos Ossos) tem sido garantia de boas surpresas posto que eles formem uma trupe de bruxas e magos, que fazem do cinema essa mistura de elementos díspares, palavras sussurradas, conjuramento de feitiços e produção de rituais que servem aos mais diversos fins, sendo vencer o tempo a ideia que atravessa todos eles (os fins e os filmes).

Os rótulos de fantasia ou filme de terror me deixam encabulada. Tem muito mais coisa por baixo das unhas compridas cobertas de vermelho.  Chega um momento do filme que a primeira ligação que faço é com Desejo e Obsessão de Claire Denis. Acompanhamos o envolvimento entre Diego e um amigo: após um susto inicial, se estabelece uma movimentação violenta, algo de kink, de perversão consentida, experimentação de quase morte como prazer. A liberdade que se vê aqui como texto se cruza com a liberdade criativa das disjunções e dos personagens que precisamos decifrar a partir do próprio repertório e esbarram na ideia de imortalidade como prisão, na necessidade de fuga e mudança constante, na consequência de existências livres que se metem em problemas todos os dias.

Deve ser cansativo para Naiana, Diego e seus amigos, pois a cada gesto que afirma suas naturezas se esbarra em alguma força contrária, e a tensão que daí surge muitas vezes é sublimada para que se prossiga a jornada sem chamar atenção, enquanto em outras é preciso tomar partido e lançar o corpo no contra-ataque. A figura da criatura enfaixada de voz cansada e antiga pode muito bem ser um demônio à Hellraiser, uma imagem perdida em algum sonho Lynchiano ou o homem que vendeu o mundo naquela música do Bowie. Faz tanto sentido que ela seja decrépita e carcomida como a juventude possa se restaurar do combate tomando um banho de mar.

Essa mesma juventude é atraída magneticamente, os grupos se formam, convivem por um tempo e se espalham pelo mundo novamente. Velas são acesas e rituais online são necessários para manter a conexão. As verdades que eles compartilham podem servir a criação de discursos em linguagens diversas. É cômodo transmutar o sangue que se espalha nas ruas e na TV aberta em signo estético de vida em explosão, experimentação ao limite, riscos, dúvidas e beleza? Mostrar as garras passa a ser cômodo sim em algum momento e é necessário que assim seja.

A monstruosidade como figura de expansão é para mim a grande mensagem de Canto dos Ossos. O ranger de velhas estruturas, como o cinema, mascaram o desejo de que algo os faça mover para tombar, e ser testemunha desse movimento é tão precioso que me deixa feliz em meio a tanta merda concentrada no ano de 2020.

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Anotações sobre o grau zero da diferença: o cinema de Apichatpong Weerasethakul e curadoria como cura (e como isso tudo se aproxima de uma ideia de revolta)

Por Geo Abreu

Era um dia de isolamento social e eu voltei ao cinema de Apichatpong Weerasethakul na tentativa de explicar aos alunos de iniciação ao vídeo os motivos e temas do cinema de fluxo. O filme era Tropical Malady, do qual eu pouco lembrava. Esse reencontro com o filme de 2004 me levou também ao cinema contemporâneo brasileiro, que há décadas parece girar num movimento de sempre-retorno macunaímico, cinema de índio, de preto, de arigó, de favelado, na tentativa de se afirmar nacional e universal, de se conectar com cinemas semelhantes, encontrar uma voz perdida que conte histórias de maneira desregulada, mística e doente.

Abraçar essa pecha de doença tropical, de sub-bactéria infernal, é algo que o Apichatpong faz e com doçura. Primeiro achei que tinha me conectado a obra dele porque a cor dos filmes e das pessoas [entre amarelo, preto e marrom, com muito verde de fundo] me lembrava a Amazônia. Fantasmas (aka visagens), onças, macacos e xamãs, a testa ensebada dos protagonistas, os dentes desalinhados, o sorriso infantil, as casas de madeira, distante do cinema comercial comédia-de-shopping, e próximo de quando abro qualquer janela pra rua de casa.

Em maio acompanhei as discussões entre curadores do Cachoeira Doc, a edição online realizada em meio a pandemia e que se autodenominou Festival Impossível com uma Curadoria Provisória & Filmes para se estar junto nesse período de confinamento. Nessa aposta de curadoria a conectividade entre os filmes se dava pelo entendimento da ação curatorial como cura; a curadoria como constelação de possibilidades de imagens que gostaríamos de ver e das quais precisamos – sem saber – para entrarmos num processo de libertação de tantos anos de apagamentos e silenciamentos em certa produção cinematográfica. É libertador demais pra um realizador de periferia assistir a Relatos Tecnopobres[1], de João Batista Silva, e finalmente encontrar eco num festival de cinema. Se procurarmos bem, a ideia de revolta que liga essas minhas anotações a proposta do dossiê da Multiplot está entre isso e a antipropaganda das comédias-de-shopping.

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Ainda sobre o cinema de Apichatpong, alguns estudos[2] apontam nele aspectos do perspectivismo ameríndio, esse modelo filosófico baseado em traduções de cosmologias indígenas que operam numa lógica relacional de predação e da centralidade do corpo como materialidade fundamental de expressão da cultural, e lendo algumas entrevistas do diretor, sabemos que há menos de filosófico que de intuitivo na abordagem dos personagens em seus filmes. Aqui cabe mencionar que cada vez mais teóricos indígenas têm sido chamados a dar opiniões sobre um mundo que se acaba, como naquela letra do Caetano em que um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e aquilo que ele dirá surpreenderá a todos, não pelo exótico, mas pelo óbvio no fim de tudo.

As florestas tailandesas ganham estatuto de pessoa nos filmes do Apichatpong, assim como as montanhas do Vale do Rio Doce conseguem se comunicar com os Krenak, como diz o Aílton. Parece tão difícil pra nós, criaturas urbanas, voltar a esse grau zero da diferença e imaginar que estejamos mesmo todos conectados e que performar identidades fixas não faça sentido num jogo de perspectivas mutáveis, que variam de acordo com as trocas de cenários e dos atores em cena. Em estado de vigília permanente acreditamos que trocar a casa de taipa pelo prédio de concreto traz segurança e nos tornamos cínicos ao descobrir que deus não existe quando as notas do caixa eletrônico acabam bem na nossa vez.

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Aproximar esse cinema e essa teoria antropológica baseada no erro comunicativo e na necessidade da tradução diplomática de conflitos – você também vive com a sensação de que uma palavra infeliz pode virar literalmente uma arma apontada pra sua cara? – é interessante pra mim e pros meus porque fortalece – atenção pro óbvio – a nossa existência como pessoas, valida nossas/outras perspectivas, e nos permite uma aproximação precária a esse sistema excludente: o cinema (eu poderia ter escrito capitalismo aqui, mas como não há fora, resolvi assim). Aqui vai um beijo pro meu amigo André Sandino que um dia me disse que a gente trabalhava com um negócio que não foi feito pra gente, sabe Geo?

Se há uma revolta aqui é com protocolos de cinema comercial que excluem modelos precários de contar histórias e suprimem diversos relatos tecnopobres de avançar e encontrar com seus públicos. E a escolha por filtrar o mundo através do perspectivismo pode ser entendido como um motim programático contra a narratividade comercial. Assumir que o corpo seja a única máquina e a única câmera possível, saudar a centralidade desses corpos invisíveis e elaborar suas histórias é uma das armas que devemos forjar para recomeçar o mundo.

Curar festivais de rua e montar um telão no meio da praça e elaborar pensamentos difusos sobre o mundo entre o barulho da Baía do Guajará ou da Guanabara, tiros, gritos, co(r)pos tilintando e uma imagem enorme, um frame do filme, do qual só lembraremos do essencial amanhã. Esse modus operandi Exu, de conexão e fruição, de estabelecimento de ligações entre sentidos dispersos, como partículas de saliva que a gente tem precisado evitar é o que forma o melhor do pensamento macunaímico. Já que a tranquilidade agitada dos filmes do tailandês Apichatpong parece difícil de alcançar por aqui é preciso abordar a realidade como possível.

 

[1] http://www.cachoeiradoc.com.br/festivalimpossivel/relatos-tecnopobres/

[2] https://www.redalyc.org/jatsRepo/814/81457433002/html/index.html

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Hotel Mekong (Apichatpong Weerasethakul, 2012)

Por Kênia Freitas

“Entre a ciência da expressão, se ela considera seu objeto por inteiro, e a experiência viva da expressão, se ela é bastante lúcida, como haveria corte?”

Depois de ganhar Cannes, qualquer Apichatpong lota uma sala de cinema. Acontece que o cineasta tailandês – ele poderia ser brasileiro, congolês ou até americano, mas o fato dele ser tailandês faz uma baita diferença naquilo que produz, por isso, desculpem o rótulo -, está mais preocupado com o desenvolvimento de seu projeto estético-político, e muito tranquilo, segue experimentando.

Com a vídeo-instalação Phantoms of Nabua, exibida no Brasil na Bienal de São Paulo 2010, Apichatpong confirmou que suas investigações audiovisuais estão para além do cinema, ou como dito numa entrevista à época de Tio Boonmee e da Bienal: as fronteiras entre cinema e videoarte para ele são bem fluidas .

Hotel Mekong, filme de 61 minutos, trabalha camadas de ficção e documentário que, em verdade, levam o experimento de Joe a outro nível. Construindo uma antinarrativa que, ora pende para um texto ficcional, ora para conversas em tom descontraído, mas sempre pautadas por assuntos cotidianos e personagens muito improváveis surgidos do repertório de cultura popular… da Tailândia? De um bairro específico de Bangcoc? Aliás, googleando descobri que uma tentativa de tradução da palavra Bancoc (que na verdade é uma abreviatura) pode ser “A cidade dos anjos, a grande cidade, a cidade que é jóia eterna, a cidade inabalável do deus Indra, a grande capital do mundo ornada com nove preciosas gemas, a cidade feliz, Palácio Real enorme em abundância que se assemelha à morada celestial onde reina o deus reencarnado, uma cidade dada por Indra e construída por Vishnukam.” Ufa. Como diria o Merleau-Ponty “ora, como atribuiríamos ao não sentido aquilo que, nas línguas empíricas, excede as definições do algoritmo ou da ‘gramática pura’, se é nesse suposto caos que vão ser percebidas as novas relações que tornarão necessário e possível introduzir novos símbolos?”

O mais interessante nessa história é como os procedimentos usados por Apichatpong levam a pensar numa fluidez [cada dia mais ajustada] entre estética e política. E se no começo do texto pontuei o fato dele ser tailandês não foi à toa. Uma das melhores questões de Tio Boommee é sem dúvida a entrega de um material que ultrapassa o filme: uma sensibilidade não totalmente compartilhada, pautada no estranhamento e no maravilhoso. Aliás, até o maravilhoso dessa vez foi ultrapassado, seja pela contínua execução da trilha sonora, ou pelo simples descompromisso com a tal ‘suspensão da realidade’. No final das contas o que me faz – senão compreender de todo, mas – ser entusiasta dos filmes de Apichatpong Weerasethakul é sua maneira de apresentar o mundo por uma ótica muito particular, ludicamente liberando procedimentos padrão de visualidade e abrindo espaço para a realização da excedência [e tudo isso sem errar a mão].

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Holy Motors (Leos Carax, 2012)

Por Geo Abreu

n-1 (uma tal multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear)

Contemporaneidade pós-tudo, era da representação na época de sua memealidade técnica. Profanar o esquema de signos representativos e se perguntar em quais nano-espaços de tempo é possível respirar sendo apenas o cara sem roupa em frente a um gato que nos olha, como naquela parábola do Derrida. O animal que logo sou (e sigo sendo) anda sempre de coleira, e se encoleriza muito pouco.

Se o cinema pode ser uma fronteira do maravilhoso em tempos de cinismo, Leos Carax maneja suas ferramentas na direção da surpresa. Na apresentação do filme durante o Festival do Rio, no palco do Odeon, diz ele sereno que, se você não entender, tudo bem. Espere até amanhã de manhã. Logo em seguida somos lançados à multiplicidade de Denis Lavant, que dá a volta ao dia em 80 mundos: maquiagem, figurino, perucas e uma limousine branca.

Vigoroso em todos os contos que o filme apresenta, é possível reconhecer o ator pela lembrança de sua presença corporal em filmes como Sangue Ruim, Os amantes da Pont-Neuf., Sr Merda, etc. Mas só por isso. Em cena, ele representa vários personagens que inadvertidamente chegam em uma determinada realidade para lhe abalar as estruturas. Provocações, redefinição de papeis e de estruturas narrativas. Instigante até o osso. Holy Motors é desses filmes que te fazem sair do cinema pensando em como criar novas relações com a realidade e assim, talvez, construir subjetividades ainda não catalogadas.

São tantas as camadas apresentadas que é possível escrever textos muito particulares sobre cada uma. O ato performativo como empoderamento; a crise da representatividade – essa mesma que levou gente às praças para protestar em vários lugares do mundo, aqui trazida ao universo particular de um homem que vive 24h mudando radicalmente de perspectiva – até a crise dos valores de nossa sociedade hoje. Ou é a narradora aqui que vê essas questões em todo lugar, o tal do zeitgeist de uma época perpassando estética, política, redes sociais e o escambau de quatro.

Se não existe fora, qual o caminho pra dar um drop out? Inventar mundos. Nisso Leos Carax e Denis Lavant tão de parabéns.

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Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970)

Para início de conversa, uma cena retumbante: Copacabana como microuniverso do mundo-Brasil, todas as cores e contradições banhadas a um sol de deixar qualquer um lelé. De cima do morro ouvimos o narrador cantar a pedra da incrível genealogia que fez surgir Sônia Silk (Helena Ignez). Ela, seu vestido vermelho e sua oxigenada cabeleira contemplam com aflição o reino que lhe cabe como latifúndio.

Assistir aos filmes de Sganzerla hoje e escrever sobre parece bastante oportuno. Em meio a esse novo momento, em que o Brasil se vê em condições de traçar o próprio caminho político e uma boa discussão sobre os retrógrados rumos que o novo ministério da cultura vem tomando ocupam as páginas dos principais jornais e redes sociais, o pós-tropicalismo de Sem Essa, Aranha e Copacabana Mon Amour recriam verdades brasileiras anteriores, aspectos ancestrais captados pela antena sensitiva de Sganzerla.

Num tempo em que estivemos desautorizados a definir a palavra futuro, tudo o que restava para ser pensado aguardava alguém que o soubesse conceituar, justamente como agora. Nosso bandido predileto tomou pra si a responsabilidade, como o ouvimos dizer no documentário A Miss e o Dinossauro: “Falei o que eu acho porque tô interessado em transformar, porque o cinema é um fator transformador. Agora, se ninguém se tocar, a responsabilidade é minha, mas a culpa é dos outros”.

Seriam necessárias várias análises de fôlego que pensassem os aspectos políticos e estéticos (esses dois âmbitos indissociáveis e horizontais) ainda que o diretor afirme seguir por uma lógica do sexto sentido, sem conceitos apriorísticos ou lógica pré-concebida. Ainda assim é possível dizer que Sganzerla produziu a recombinação entre uma antropofagia revisitada unida a toda carga de cultura pop que permeia o mundo-Brasil. Pop de popular, um pouco diferente do pop de Warhol. Pop de macumba, de cerveja no bico da garrafa e pedintes que falam um inglês fuleiro.

Alheios à pajelança criada, os personagens desfilam suas incoerências, exemplificando em unidades celulares a relação do país com sua realidade em conflito, e Rogério Sganzerla constrói imagens com mais força que as 500 páginas de um tratado de sociologia brasileira, triunfando ao significar culturalmente o Brasil a partir dele mesmo. Aos críticos cabe  assinalar que ele foi ajudado pela plasticidade das imagens, em projeto que poucos acadêmicos conseguiram igualar, talvez pela dureza dos academicismos.

Um movimento instigante e ao mesmo tempo feio/belo de ser visto. Os personagens, a paisagem, as cores captadas, guardam em si signos de potência e degradação do qual a narrativa retira sua força. Copacabana morro e praia como espelho da dicotomia sufoco e colosso. Corpos abandonados à deriva num presente contínuo, sem perspectivas de futuro.

Assim é que conhecemos Sônia Silk, mulher que perambula absorta numa espécie de solipsismo vertiginoso ou embriaguez de todo sempre, impedida de enxergar o que lhe espera pela frente, mas consciente da força de sua beleza e dos inevitáveis jogos de azar a que isso a transporta. Sonia maldiz a pobreza, a velhice, os tarados, enquanto é perseguida a todo canto por um fantasma com o qual já aprendeu a conviver. Vidimar (Otoniel Serra), o irmão de Sonia, também berra seus desejos e delírios a beira mar, admitindo a paixão-tabu por seu patrão.

Entre delírios de sol escaldante e pontos de macumba, todas as forças e orixás convocados para se contar essa história apenas reforçam a crueza da realidade subdesenvolvida nas capitais brasileiras em época de desenvolvimentismo, palavra escabrosa que hoje reaparece no cenário político, mais uma vez envolvendo as mãos em nossos pescoços, suplicando furiosa para que calemos nossa potência monstruosa, essa tal antropofagia, coisa que aprendemos a desenvolver desde o primeiro choro, quiçá ainda na barriga de mamãe.

E tudo que se conta e se mostra em Copacabana Mon Amour é fruto desse inconformismo, de se saber fera e de se pôr oxigenada, e mesmo assim ter as forças contidas por inimigos vorazes (fome, miséria, analfabetismo, calor) que nos puxam as rédeas sempre que ousamos mostrar os dentes e dizer que viemos ao mundo pra triunfar a despeito de todas as mazelas.

E Sganzerla se põe como o cronista desse assassinato a luz do sol, assassinato em massa da potência cultural brasileira. Ele nos põe cúmplices apenas para que passemos o resto dos dias com o peso de saber que nossa força emana de algo muito particular que nem nós mesmos compreendemos, mas que ajudamos a matar um pouquinho cada dia. Cada um de nós um pouco Soninha Silk, feras incompreendidas.

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