CineBH: Abaixo a Gravidade (Edgard Navarro, 2017)

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Dos autores e dos casos clínicos

Por Felipe Leal

Alguns filmes fedem a seus autores. Não se confunde um Haneke, uma Chytilová, um Linklater ou um Naruse, sejamos francos. É mais que uma marca; talvez uma questão persistente ou quem sabe um conjunto de signos totalizantes fora de nosso alcance, mas que invariavelmente se imprimem. Outros filmes, ainda, são quase que produtos de uma cissiparidade das moléculas do próprio autor: pode-se dizer que são quase ele, não fossem as diferenças de meio. Apesar da linguagem um tanto figurada, isto não é um exagero, e pelos mais variados motivos, que costumam variar da defesa ideológica ferrenha ao ensaio performativo de si, alguns indivíduos fazem da subjetividade que lhes é singular e de um fora que é a técnica mais propícia de si um poderoso dispositivo de descobertas vibráteis. Tampouco essa parcela de linguajar deve parecer abstrata: o que quer que exista na arte e que ainda não a fez se tornar toda um círculo cancerígeno de esferas ego-cêntricas separadas é o seu poder de ecoar num corpo (vibrar, desvelar), sendo a alquimia dos que “melhor” a “fazem” um enigmático estudo do si diante/para/a despeito/impreterivelmente do/o/ao outro.

Nosso caso, se mostrará, é infinitamente mais mesquinho. Um desses motivos para elencar o objeto em questão como essa colisão entre autor e seus espelhos-crias rugiu sem timidez à introdução de Abaixo a Gravidade (2018), a ocasião sendo a pré-estreia nacional do filme num pequeno palco de Belo Horizonte, ironicamente no interior do Cine Humberto Mauro, que se um dia já foi acusado de regurgitar preceitos morais sobre suas histórias, ao menos narrou diante dos deuses. Mas sobre essa anedota vivaz falaremos em breve.

Em princípio, nada surpreende ou se encrespa num relevo que agite o típico plano misto entre a dormência da câmara escura e a excitação iniciais. Já o vimos dezenas e dezenas de vezes, uma câmera rodopiar, sobreposições vistas de baixo se misturarem, vozes aludindo a um excesso prévio àquele devaneio, o personagem revira os olhos (deve olhar sempre para cima, segundo a tábula básica do transe) e, ao menos narrativamente, porque em estilística de tela nossa submotricidade responde bem, algo foi feito: se alguém aqui surta, isto que vemos deve ser um porvir. Há, então, uma queda, e é ela que acompanharemos. Curioso que exista uma outra anedota advinda do continente americano e que diz Pulp Fiction (1994) ter inaugurado o bloco inicial de uma obra como prelúdio-ruptura temporal entre futuro-presente. Mas se o assalto “any of you fucking pricks move, and I’ll execute every mother fucking last one of you”, seguido de Dick Dale and His Del-Tones, enquanto anedota, faz rir aqueles que assistem à crítica buscar origens e partidas aos eventos cinematográficos, comparado à engenhoca temporal de Edgard Navarro, segundo a qual apenas extraímos que o porvir é tosco e faz seguir um presente ainda mais incompreensível, é como colocar Federico Fellini e Miguel Falabella numa balança. Ninguém nunca ousaria supô-lo.

Everaldo Pontes, que nos seus mais de vinte e cinco títulos, não importando o grau de acompanhamento de todo o resto da obra, sempre foi uma força da natureza, torna-se aqui uma presença pura. Maravilhosamente xamânico, mas como que reduzido a um eco; uma carga reprodutora de iconicidade particular pela tensão de seu físico, mas que não deixa de produzir por outrem, em nome dele. As pistas já foram entregues, a anedota, ainda tolhida. Então, uma confusão se segue e permanece. Dividido num aparente binômio miserabilidade-epifania-sofrimento/abundância-egocentrismo-boa vida, e só “aparente” porque tudo de fato insiste em se embaralhar, Bené (Everaldo) é o asceta perfeito. É digno de destaque: ele mal precisaria abrir a boca para chafurdar num enunciado mais comercial que a bandeira de seu autor pode suportar, não fosse seu filme um certo atestado de um delírio preocupante. Em suas estantes, Osho, em sua mesa, cestos, paladar, ações, relações, tudo é melancias, leguminosas orgânicas, yoga, caridade. Mas eis que não, não basta que tudo já esteja explícito. Cai-se na própria armadilha, e com a boca arreganhada: os diálogos parecem impressos de uma pós-sessão de Reiki ou culto espírita ou evangélico – nunca se sabe bem, a suspeita é que ele de fato seja um comercial da Benetton –, ou melhor, um cartão-postal vivo de qualquer dessas manifestações espirituais. E por que não, se também a trilha sonora, uma vez compilada, bem seria o melhor tracklist da heterogeneidade brasileira para se importar ao exterior?

Quase a absoluta (do filme inteiro) plenitude de quase todas as cenas – veja bem, agora não do efeito de todo das cenas do filme, mas do interior completo, minutagem cronometrada, de cada uma destas cenas – é infestada de um arranjo musical desfilando como perfeito acompanhante do espírito da vez. Há uma embalagem clara e vital, e nos dois primeiros sentidos que a palavra pode suscitar. Se ele (sempre Bené, sempre Navarro, sempre Deus) faz um despacho, irrompem as vozes de mães-de-santo e a batucada (?) em volumes lancinantes e mixagens respiratórias, porque o falatório sagrado decorado também precisa de espaço sonoro; quando pratica técnicas asiáticas, os címbalos e cítaras tremulam até os interiores de igrejas (?). A qualquer momento um axé poderia ter rasgado o ar nas ladeiras de Salvador, e não teríamos nos surpreendido. Só que o mundo de Navarro é perfeito além disso, ele se lhe espelha numa precisão assombrosa, tanto em montagem quanto em cálculo teórico. Cortinas de um apartamento luxuoso ascendem e revelam uma imensa favela de camadas e contornos. É o apartamento de MYSELF, apelido de seu psicanalista, que por sinal fala conosco diversas vezes, “de saco cheio” e berrando improprérios (palavrões!!!) à câmera, um genioso ato de quarta parede e de irritação.. cênica? com o analisado.

MYSELF surge quase literalmente do nada, complemento desse mundo cristalino de todos os ricos que são necessariamente ególatras e dos pobres que são precisamente miseráveis, artistas inevitáveis e, claro, alvos do coração caridoso de Bené e da câmera “antropológica” de seu autor. O que une os polos desse mundo problematizado é, pasmem, o dinheiro, esse demônio que uma vez extraído do mundo nos pulverizaria de todas as moléstias (suma, McDonald’s!), mas também, pasmem, as calças e fraldas com um filete de excreção. Sim, por um fino subtexto de próstata e doença, a epifania encontra seu signo em derrières: os vovôs se sujaram. A este ponto de, digamos, projeção – perigoso não cair em duplos, logo quando eles seguem agora -, de uma narrativa que, a bem da verdade, espelha sua tese e personas de maneira simetricamente estruturada, e por isto inocente, a este ponto, se o espectador não engoliu uma porção estranha de incongruências e misturas e não introjetou para si que tudo que é dito precisa ser urgentemente mostrado, e vice-versa, ele certamente já supôs, e o fará ainda melhor diante da anedota um tanto dúplice que agora deve ser reproduzida do modo mais fiel, mesmo porque curto, ele já supôs, enfim, que Bené e todo o seu horizonte/eixo possível de ações e representações é um manifesto límpido e afetado do próprio Navarro. Não perdamos tempo, então, com o penoso maquinário chacoalhante que vem trazer qualquer manifestação dessas mesmas diversas religiões – são dignos de cosplayers de primeira exibição. Direto às provas.

Pedido a introduzir Abaixo a Gravidade defronte ao palco supracitado, ao qual compareceu expansivo e alegre juntamente com produtora executiva e montadora, o microfone em mãos mal consegue conter um peculiar êxtase aparentemente vindo dos fundos de seu ser. Só que estamos enganados, ele se diz artista, e também diz dos artistas (dele), que “captam a energia das estrelas”. Mais que isso, ele afirma, agora a si e de si mesmo: “(sou) cavalo dos Deuses, de Exu, de Oxóssi (aponta e ergue pano da camisa, ilustrativa do último)”. Descobrimos que o artista pode (decidir) ser muitas coisas. Os turbulentos ideários de artistas concebidos por Woody Allen ficariam escandalizados com tamanha expressão e expressividade. Não se surpreendam, ainda estamos falando estritamente do filme, só que o de fora. O microfone é passado à última mulher da equipe, tão responsável e autora quanto ele, mas o artista interrompe sua fala uma, duas, três vezes, em beijos, declarações. Há de ser um caso clínico, porque ele vem de assalto para dizer que vai chorar, não consegue não o dizer, “gentileza gera gentileza” estampados na camiseta de sua persona ego-trip, todos os slogans da obra, vociferados na calmaria de um “gratidão”, se entrechocam num feixe de verdadeira iluminação, aquela dos que assistem boquiabertos. Eureka! Deve ser de fato um mistério, o lugar de onde descende o emissário para nos irradiar. Deve ser assim tão típico do artista… Mas chorar por quem? Já não é mais complexo ter certezas. É, afinal, um espetáculo que se consiga incendiar tamanhos entusiasmos nessa usina de produção autorreflexa. Sintomas conjunturais?

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A Mulher dos Cachorros (Laura Citarella e Verónica Llinás, 2015)

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A vida do intervalo

Por Felipe Leal

Aviso: os dois últimos parágrafos do texto podem conter spoilers sobre a trama.

Breves palavras antes que se chegue à obra, que é A Mulher dos Cachorros (La mujer de los perros, 2015): “depois que uma história é contada”, comenta Anne Carson, poetisa/ensaísta canadense, “há alguns momentos de silêncio”. É uma reflexão, dizemos sem medo, sobre términos. O mesmo serve para o cinema: o que acontece quando um filme é contado? Ele termina. Seu prolongamento, talvez, não. A vida continua, decerto, e se o faz já manchada pelo suplementar, esse misto de reconhecimentos, despertares e desapontamentos, o cordão permitiu que algo fosse transmitido. Há, então, uma diferença só superficialmente simples entre antes e depois. Quão conscientes estamos nós e os fabricantes desse espaço chamado “durante”? Um mínimo!, se prontificariam em alertar muitos, como se o efeito de uma obra pudesse ser medido em quantidades. Teorias de espectatorialidade, especulação de malabares translúcidos que não param de se multiplicar nas mãos de quem deseja perguntar e se depara com intermináveis variáveis, as veredas de apreensão se bifurcam e bifurcam – e não chegamos a respostas. Afinal, não temos que. Carson, no entanto, propõe uma: [o que acontece quando uma história termina é que] “meus olhos estão às suas costas”.

O método é puro, simples em sua abertura ao complexo. Como a produtora, como suas ações, estamos diante “de uma maneira de tomar decisões e de viver”, palavras de Citarella. Três anos dispersos em finais de semana de filmagens. Os fabricantes: cinco mulheres, doze cachorros, um lema-protocolo lançado com doçura por uma das realizadoras, filha aos braços em comentário pré-sessão (ela não havia começado?!), posto que são duas no ferro da direção, também só superficialmente, e uma delas tomará a tela como a Mulher (aquela dos cães). Detenhamo-nos, então, sobre o título, ele já lança pares de olhos. A Mulher dos Cachorros. Ela pertence a eles? É uma identificação, um atrelamento, e, se sim, feito por quem? Eles lhe servem como complemento ou reflexo simbólico? Jamais. Ela está no meio deles ao ponto de devir-cadela? Nosso tatear aterrissa em preciosa mina. Porque o que temos com certeza é a passagem das estações para aquela que vive da terra, do “lixo” e contra a chuva; variações cromáticas de tamanha iridescência que o céu se destaca e parece composto em degraus de verdade; o decurso dos dias, que também podemos chamar de tempo, a foice e o cultivo que assolam a pele e o vivido, da cadela ao industrial… esse cotidiano é, enfim, um que se faz. Nada está dado, ainda que alguns se adiantem com impressionantes ferramentas.

Engana-se quem pensa estar diante de uma estilística puramente temporal, sendo tão subsequente quanto notória a apelidação “cinema de fluxo”. O arrastar é apenas um desdobramento, há dezenas de outros implodindo na tela, e o cansaço de alguns é mais ato-reflexo de um fora sistêmico do que de uma lógica interna. O cinema tem e não tem tudo a ver com a impaciência. Mas o tempo, se maior letra da equação, densifica-se em todos os corpos, precisa descer em respostas – tudo o que fazemos, ainda que engolindo certa futilidade feita transparente e pouco incômoda, não é contra ele? E em face da necessidade de respostas, que só a ponta da matéria vem confirmar serem mais ou menos automáticas, a Mulher é indubitavelmente um quase ininterrupto ponto de contato com os cães, sem no entanto deixar de ser humana, “bruta”. A perspectiva inicial, entre os cipós, troncos e galhos e a Mulher que caça, é a dos cachorros, e repentinamente, como se se entrelaçassem, também a do espírito. “Ele” assiste às suas costas de tempo sedimentado, “eles” farejam, a física motora ameaça ir à todas as direções ao mesmo tempo, há dezenas de possíveis fazeres face o objetivo, o desejo. Há uma verdade sobre estar á espreita: tudo pode acontecer, acontecendo.

Não comandamos cães. A domesticidade é, deles, apenas um aspecto. A selvageria, romantizada, não contempla um viver em eterno alerta. Por isso Citarella e Llinás não tratam de duplos. Nas zonas de contato, é o quesito das ações que batalha com o tempo. E como se encadeiam, há também um devir-cão se impregnando na montagem: em momento algum se sabe onde as ações iniciadas neste quadro vão culminar, nem muito menos o que se faz, porque o que se faz é composto. Não há respostas simples, mas, pior, porque essa incompletude desmontada e refeita cintila bem nas armadilhas, gambiarras e coletas, mas explode quanto aliada aos bichos: entre a morte enquanto acontecimento (morrendo, não “morrer”) e o lidar dos vivos, nesse intervalo astuciosamente trabalhado pela atriz e nos cachorros, não há jogo mais intricado que as fabricantes possam simular que não aquele das decisões quaisquer e aparências.

O cachorro abandonado morre, e nem Ela nem nós o sabemos ainda. Se suspeitamos, o deslize da lente ao lendário rosto da Mulher afasta tal acontecimento do centro. No último plano, o indiscernível volta a se instalar, só para que se possa rir de todo o desejo de ordem que é nossa civilização e que a Mulher escolhe estar à margem. Ela entende os médicos, divide da companhia de uma amiga(s), reconhece que rouba objetos, mas o mundo da mulher não é, não tem de ser, porque o cinema trata de possíveis, o das gorduras e ingestão de líquidos, o dos impostos, tampouco o do matrimônio. É algo muito além de uma questão moral. O último plano é um de infinito. Aquilo que pensávamos morto escolheu repousar. Talvez os cachorros o soubessem – nós não, não somos os “espectadores dos cachorros”. Uma possível tristeza, quer compartilhada com o vizinho ou não, se torna outra coisa. As mulheres criam uma situação-limite, o espectador se vê com uma resposta-assalto.

Mas ainda é preciso falar do rosto da Mulher (Verónica Llnás). Diversas vezes ele carrega uma interrogação cálida tão difícil de comportar quanto extasiada de partilhar. Queremos que dure. Em que ela pensa?, é também se perguntar por que os rostos de quase todos os homens pouco interessam, e por que se fez, se produziu, que o de quase todas as mulheres contivessem mistérios. Porque, de fato, contém? Já falamos de olhos antes. Mas estes guardam uma diferença, ela, também, montada, desfeita como os fios de um novelo cuja última repuxada revela o rosto não de uma ovelhinha, mas de um cão, e ele estira a língua. O par esverdeado da Mulher é todas as coisas que não compreendemos, mas que têm seu lugar. Ela não precisaria esboçar um semi-sorriso para criar tais linhas. Os olhos são anteriores à boca, e talvez aqueles signifiquem a placidez momentânea da não-ação. É nisso que ela difere dos cachorros. É também aí que, aos nossos [olhos], é a mais fiel e verdadeira das cadelas. Fiel ao mundo se fazendo, à redução do epitélio e da energia cinética ao gerúndio. Que este mesmo mundo possa tratá-la como aquém ou em paralelo com os cães é uma, aliás duas tristes  outras histórias.

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CineBH: Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018)

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Neorrevolução, ou a fadiga dos princípios

Por Felipe Leal

No princípio – estamos falando desta obra de particular e polissêmico nome “Sol Alegria” (2018) – dois estouros: 1) uma glória e 2) um tempo já suficientemente alardeado para não se representar com inerente sobrecapa um tanto engessada, sintomática, cansada. O presente de hashtags e neofascismos enquanto distopia atual – o futuro acinzentado já se enraizou aqui e está à espreita, como bem reitera sua cultura de palavriados resumidos e revoluções tornadas signos ao ar. Como bom esteta, Tavinho pinta-o bem. Chegamos, então, à glória: um travelling de prostitutas e travestis em despedida num porto no mínimo fassbinderiano. À luz escarlate desse tempo devasso e de ruínas implícitas, parecem santas em desfile imperial. Vão à Dubai e se despedem numa comicidade quase realista, o mundo do trabalho e o da sexualidade colidindo aos olhos de cobiça e travessura dos marinheiros internacionais de outrora-agora. Não há menores e maiores, todos são pulsantes pelos gestos que encarnam e torcem. Um inglês afetado, falado e interpretado ao ouvido risonho, atiça o pictórico de delírio já quase literalmente atmosférico. Há algo de Ray, de Fuller, dirão alguns.

Dito simplesmente: (só que) o sonho cai. Ou melhor: sobe em exageros ao olimpo dourado da utopia dentro da distopia. Como num slogan que não precisa mais se entrelaçar ao artifício, porque o enunciado agora é o próprio artefato replicado, tudo acaba por não só parecer, mas desejar o repetitivo do “hino” que já encapsula qualquer política ou ideal ou estética, dito de forma cada vez mais histérica. Há, claro, antes do Eldorado, uma fuga, neste caso da caretice, como não vem a surpreender também por escolha da repetição em dela se distanciar a todo custo. Todos riem abertamente o tempo inteiro, como se para espantá-la. Ainda no decurso de seu início, num frenesi de louras, luvas, maletas e tapa-olhos, até mesmo os planos, sobretudo eles, vibram nesse traço verdadeiro de uma liberdade que é não precisar anunciar sua própria expansão. Mas o motivo da queda repentinamente se revela, e numa outra queda semi-simbólica que é o último instante de vida não autoafirmada aos berros. A família à la Bonnie & Clyde, tendo os cadáveres de um pastor e piloto às costas, salta de paraquedas ao Sol Alegria das freiras e do solo fértil de maconha, pistolas e espingardas. Pode-se logo pensar que a questão que se impõe é uma de caricatura, mas, a bem da verdade, pouco importaria se esses ícones religiosos traficassem cinco outras drogas, órgãos, fadas ou literaturas proibidas. Permanece que a podridão do solo seja uma de não amadurecimento.

Outros pensarão que os ombros do próprio cinema também já pesam com seu histórico de tais signos cristãos pervertidos e desmontados em exímias “máquinas de guerra” (o termo é o brado final de Sol Alegria, não por acaso aplicado aos corpos), e poderíamos culpá-los em revirar os olhos? Não deveria importar, digamos, a facilidade trêmula de alguns e o escandaloso sísmico de outros? Pasolini, Ferrara, Powell & Pressburger, Norifumi Suzuki, Russell, Fellini, muitos de fato já fizeram o signo falar, e do vulgar esgarçado ao febril possessivo. E, no entanto, aqui, parece às freiras que lhe exigiram que atuassem como adolescentes recém-descobertos num universo de sensações cannábicas.

Distante sequer de qualquer binarismo “aquém/além” que possa colocar-lhe em perspectiva, se comparado ao efeito da materialidade de qualquer espécime de nosso cinema boca de lixo, Tavinho e Mariah, para criar um filme que se assume enquanto criador de alegria diante de tamanho momento de seriedade e conservadorismo circundantes, acabam como o estalo eventualmente irritante de um disco emperrado: a não ser que a esquizofrenia impotente, multiforme e colorida sirva de epifania estética, as cenas se seguem numa rota sem liga (é possível, hoje, afirmar assim tão facilmente que a liberdade do conteúdo extravasando para a forma, se mais arroubada por enunciados e justificada pela altura do grito do que propriamente tensionada, é suficiente para sustentar a teoria do filme louco de amor?). Pode-se até supor, com leveza, que todas as cenas foram criadas ali, no instante de uma euforia induzida de festividade e de riso diante de figuras estas também já cansadas. Por trás de toda comicidade deve haver algo de brutalmente sério na intenção, ou nem o circo mais encantado se sustenta.

Girando em torno de si mesmo em sucessivas reencenações de um espetáculo de quatro membros livres e pregadores da revolução pelo cu, pelo… pelo… livre?, pela arte, mesmo que poucos minutos antes tenha ele mesmo contrariado um demônio chamado art pour l’art, porque aparentemente ainda não conseguiu superar 1) uma ideia de sexualidade enquanto grande vernáculo, campo minado e resposta para todas as transformações mundiais, e 2) esse pestilento discurso que hoje podemos afirmar que sempre retornará, ele que diz que, uma vez permitidos todos os corpos para trepar e “ser o que quiserem” (são), e com quem bem entenderem, os sujeitos então se tornarão automaticamente libertos e felizes diante de si mesmos e para outros – porque ainda não superou toda uma sintomática infantilóide, ainda que pertinente na origem de seus apelos, Sol Alegria não consegue fazer outra coisa que não poetizar eternamente o sexo e o ar respirável, a juventude enquanto lugar de retorno e única e obrigatória potência criativa. O grande louro adornando a cabeça de seus jovens, os filhos, é a insistente oralidade sexual em belos contornos de vermelho e verde, como se ainda tentando resgatar o neon eternizante que reifica o apolíneo nos corpos – mas, mais uma vez, só belo, estéril –, de um lado, e do outro, uma porção de frases e vestuários que, tão logo se mostram expressivos e verborrágicos, não há como dizê-lo de outro modo, se exaurem, porque só resguardam a espetacularização da troca perpétua.

Está talvez tudo posto às clarezas: o filme é um eterno apregoar do camarim, do não-pronto, do carnavalesco, e ao eletrizar o passar de seu tempo entre a própria multidireção desnorteante que lhe é ontogênica e o vocabulário que, mal vomitado da boca, só consegue fazer cócegas nas rochas contra as quais batalha, assim se encerra: uma brincadeira entusiasmada e rica de termos para formulação, mas frágil em montar novos significados. Riem, riem, riem, beijam até que o corpo reaja seco. E o rear projection é esse símbolo derradeiro de um espelho incongruente. Reflete em transições e jogos cheios de artifícios dinâmicos, mas o que a face mostra são os rostos mastigados, remastigados, cuspidos e reaproveitados do bon vivant que não cria para ninguém além de si mesmo.

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LIÇÕES DE HISTÓRIA

Por Felipe Leal

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    É possível arriscar que para Hou Hsiao-Hsien –, que aqui logo chamaremos de ‘HHH’, e não mais por razões de abreviação e sinalização textuais do que pelo que será suscitado enquanto marca indelével e incandescente de autoria, a pequena memória enquanto produtora de história(s) – a luz está para seu cinema assim como a madeleine molhada de chá está para Proust: basta um encontro para que as funções vitais se espraiem em uma multiplicidade de estilhaços, para que o músculo palpite diferente, em busca não de um elo temporal perdido, mas de uma incidência em gradiente luminoso que possa salvaguardar a liberdade como um dia se olhou para fotografias para além da descartabilidade incessante do presente; cristalizar os sucessivos roubos da possibilidade de erigir ou semear futuros diante do país que não pôde respirar livre após a ocupação japonesa, logo recaiu num subsequente governo opressor sob a bandeira continental sangrenta da China. E se o toque do elemento-função, aqui, não fará reverberar as camadas involuntárias daquilo que já foi, ao menos não pelos mesmos princípios, o motivo se esconde neste início de filme que é um duplo nascimento: da luz, que retorna à casa depois de um apagão (e dá nome ao filho) e que não é para Hou senão a matéria bruta, inicial, do mundo.

Pelos mesmos princípios, não, mas decerto pela mesma “aquosidade” dos meios, das técnicas: do epicentro-objeto, Proust extrai as ondas do rememorar infectado, embriagado do exercício imaginativo de uma prosa que serpenteia pelo irresgatável, tornando-o o tempo vivo do amor, o fruto do imaginável; em A Cidade das Tristezas (1989), para a memória daqueles quatro irmãos e agregados destroçados pela guerra, HHH, se já não havia afirmado por obra (testemunho) e palavra a imperiosidade de seu fluxo observatório, distanciado, um laissez-être peculiarmente interativo, vem aqui densificar os gestos, dotá-los com a propriedade de capturar o movimento histórico para fazer o social pesar sobre o particular, e deste, somente deste, mostrar os frágeis fios do tempo que, à conjunção e entrelaçar dos milhões, compõem a verdade da memória, quase literalmente incrustando a equação física em tela: massa sobre um volume: à exceção da imagem violentamente frontal de Hinome, escancarada referência a Ozu, num instante precioso em que só a “rostidade” do cinema pode imaginar a tristeza de todos os mortos, desaparecidos e loucos, todos os planos são a equalização, a trazida a um mesmo grau de todos os ocupantes de um espaço e da extensividade do mesmo.

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O som irrompe de quíntuplas direções e imanta os microacontecimentos – é simultaneamente que os colegas discutirão desemprego, mentalidades escravocratas e intelectualidade e que o par fará confissões um ao outro sobre a surdez dele e sereias de vozes encantatórias, mas também que a melodia doce emanando do toca-discos e que perturba o ar e as folhas esvoaçando através da janela possa não tanto produzir quanto tornar momentaneamente uma dádiva a percepção do enamoramento, quando num corte da montagem um giro de perspectiva fará da luz um novo padrão sobre o rosto e a camisa simples abotoada, uma dobradiça de claros e escuros que culminam no corpo alegre ao fazer mímicas para se expressar. Sabemos que ela se apaixonou, ali, não pelo olhar de Wen-ching, pelas idiossincrasias de seu movimento ou pelo que ele havia escrito no bloco de notas, mas, antes, pelo todo, o momento que é-sendo pela mobilização de todas as suas partes. Não é por acaso, muito menos por autoria tornada palatável pela firmeza e abismo da proposição, que HHH dirá do seu interesse no cinema que este não é o de relatar histórias, mas fabricar ambientes, ou antes ambiências: é no espaço e no que fazemos dele/com ele que os fantasmas se amontoam, que as memórias se dispersam e onde povoam. Que a literatura tenha não só popularizado, como também facultado que lançássemos olhares sobre objetos antes talvez “quaisquer” – os espelhos, as baratas, os subsolos e os duplos, as neblinas e as mansões –, parece curioso que a escolha cênica (moral!) de Hou não consiga não retirar do mundo, também, certos véus, descobrir a tessitura transparente da História.

Ora, há aí quase uma teoria da espacialidade posta em prática, mas cujo requerimento único é o de deter-se, ficar à espreita, pacientar, deslizar o globo ocular, apalpar, com ele, a descamação do fluxo mnemônico já há muito desimpedido das tolices lineares. James Benning já o disse muito bem e sua carga expoente de dedicação, em matéria fílmica e visão-do-mundo, desdobra e reflete o léxico que vem a inseri-lo na santidade disto que veio a se chamar de slow cinema: não interessa de quê, nem para quê: o aprendizado é uma função do tempo. É preciso, em outras palavras, dar, ao tempo, tempo – para que algo advenha em forma de uma apreensão sobre o que se vê, se ouve, se cheira, se sente no epitélio. Mas, se as perguntas refutadas sinalizam à situação espectatorial esse momento indivisível e de certo modo obsceno de co-criação, “co-dotação” do sentido (é angustiante, terrível, sentir-se observado observando algo), aquela que pode interessar é sobre o porquê: por que se aprende no tempo?, e sua resposta não poderia ter se aferroado sobre uma superfície mais triste na filmografia de Hou do que a de A Cidade das Tristezas. Ainda que Flores de Xangai (1998) ou A Assassina (2015) re-explodam as potências sensitivas e pictóricas em estilísticas tão assombrosas quanto, é somente aqui que ainda um outro elemento basilar – a narrativa – se afeiçoa dos movimentos fugidios e sinuosos da memória.

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Nos flashbacks, há uma redução dupla, pois que eles são menos que explicativos ou próximos de qualquer apregoação causal-justificativa: o retorno ao passado de Hou é antipedagógico e também, fator curioso, a princípio só parece reiterar aquilo que as cartas, anotações e palavras fazem emergir. Mas, vê-se logo, o princípio e a resultante mais uma vez se igualam: é só por poder ser livre por natureza, na circunscrição daquela obra, que a memória flutua livremente nesse desbotado melancólico pelos espaços e gestos mortos. E quem assim o promulgou, que a memória não servisse que a si mesma? Aqueles que esculpem ou os que se enamoram do tempo, tornam-se ondulantemente passivos em relação a ele, sua passagem se estirando em interconectividades indispensáveis? Quem, não tivesse partido das orelhas atentas ao acariciar do vento e dos olhos deslumbrados e cerrados a contemplar, chegaria a transmitir a história do mundo que está nas coisas, não mais tão-somente nas fortificações ou nos milhões em campo, mas também nas lâmpadas e fotografias, bonecas e cartas?

Porque é isto: é por isto mesmo que Hou insiste no rádio, aquele ambiente de uma coletividade imóvel a auscultar a macroestrutura que a atinge, nos planos que multiplicam as bordas e instauram subnúcleos, inserem passantes, participantes, o mundo em energia cinética e em sotaques até então imperceptíveis pelas suas nuances; a bem da verdade, Hou é Wen-ching enquanto pensamento cristalizado, nem que por um breve momento, e ching é toda a epítome do cinema do primeiro, por reverso: ao preparar-se para tirar a fotografia que veio talvez a imortalizar a cena mais impiedosa e memorável da obra, aquela que inegavelmente canaliza toda a tristeza cabível aos massacrados num instantâneo posado de casal e filho, ching detém-se diante do contracampo antes de ir sentar-se com a família, mãos à câmera, olhos “na cena”, como se ao mesmo tempo lançasse um último olhar à felicidade e antevisse que aquela captura os salvaria da morte, aliás: do esquecimento.  A dedicatória é a tarefa básica do cineasta e que vem ali a ser transmutada num momento eminentemente heroico, a junção de todas as figuras ao mesmo tempo, num só lugar, sentimento fechado temporariamente – mas só àqueles que param para contemplar e lembrar, imaginar e antever.

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Encontro-Gênero

Por Felipe Leal

“Quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”

Como terminologia inserida no campo orbitacional do Cinema, a palavra “gênero” encontra duplo entroncamento: ora seu sentido mais veloz à mente, o conjunto de certo modo protocolar de traços estético-narrativos que caracterizam um tipo de filme, uma etiqueta classificatória que admitimos como rasa, ainda que já mais que “necessária”; ora o chamativo para a divisão entre os gêneros masculino e feminino, embora esta conotação só provoque uma segunda e fácil associação devido aos atravessamentos políticos a que o cinema se acostumou desde que virou “novo” em diversos países do globo. Porque associar-se ao político parece-nos hoje ter sido feito num estalar de dedos, pensar em gênero como divisória significativa dos estudos das forças masculinas e femininas como representações dentro da grande tela foi uma possibilidade argumentativa também sempre à vista.

Curioso, pois, que ambas as significações sejam impensáveis se dissociadas (quer juntas ou separadamente) de qualquer olhar que se empreste a Howard Hawks. Da ficção científica ao horror, da aventura ao faroeste, do policial ao melodrama, da comédia ao romance, e nas dosagens mais improváveis, mas também, e provavelmente sempre, um choque de motricidade dramática canalizado pelo encontro entre Homem e Mulher – maiúsculos. Não há escândalo jornalístico, torneio nacional, rinoceronte ou missão de guerra que não passe pelo embaralhamento inevitável entre as duas forças – não necessariamente expressas num homem e uma mulher personificados, mas sempre como uma resultante desastrosa. Aliás: diz-se logo desse encontro que ele também será invariavelmente marcado por duas outras questões estruturais: a (aparente) inconciliação entre esses dois quase fenômenos – e a subseqüente trapalhada seriada –, e a subversão espontânea dos papéis tidos como “clássicos” para os gêneros.

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Explico toda a deriva teórica: se houvesse uma cena na extensa filmografia de Hawks que pudesse conter a personificação de todo seu jocoso embate (porque o entrave, aqui, sempre acabará no mais inocente dos risos) ela estaria em Hatari! (1962), num diálogo tão absurdo quanto é o seu entendimento para a personagem que o provoca. Anna (Elsa Martinelli) pergunta a Pockets (Red Burton) por que o personagem carrancudo de John Wayne não gosta de mulheres, só para receber como resposta: “porque ele acha que elas são um problema”. Anna concorda, uma vez que esse estágio de aceitação nunca foi problemático às mulheres de Hawks: diferente dos homens, o caráter explosivo do encontro já lhes é introjetado: elas só não conseguem evitá-lo, e por conseqüência fica inferido que nunca haverá escapatória ao Homem. As inevitabilidades começam a surgir. Anna pede-o, então, que lhe fale sobre Ele – todo protagonismo masculino de Hawks será sempre uma personificação de seu ideário, ao passo que os outros homens que povoam a trama serão exemplos, decerto, mas exemplos menores. Pockets pressuriza a garota um pouco mais, é preciso fazê-la entender: diz a ela que, se ele lhe trata mal, se não é gentil com ela, é bem possível que ele esteja comendo na sua mão. “Pockets, podemos falar um mesmo idioma? Se é bom, é bom, se é ruim, é ruim”.

E antes que ele lhe diga a máxima que tornará a Questão um cristal puro de transparência e absurdo ao mesmo tempo, Hawks torce a convenção e traz outro fato incontestável à mesa: é a mulher que, paradoxalmente, na trapalhada que adiciona, também simplifica tudo. Não lhe custa ser clara e objetiva, agir de acordo com o sentimento que brota, sua práxis corre paralela ao que sente; não: dessa vez, é Ele que a confunde, que não consegue agir com congruência. É que, ainda nas palavras do infantil Pockets, “quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”. E daí em diante, uma vez que o homem aceita, de seu lado também, o sentimento, ou seja, quando os indícios se dão a ver e ele começa a tratar sua paixão com a crueldade hilária que atesta a provocação de uma repulsa tanto interior quanto externalizada, fica instaurado, às maneiras concebidas pelo autor, o paradoxo inescapável que é a fricção entre ambos homem e mulher: ele não consegue aceitar o terreno mnemônico do sentimento, e a falta de tato fará com que aja como uma criança: emburrado diante do objeto que lhe provoca o empecilho, tampouco consegue sair de sua órbita; olha-lhe de esgueira, não dá o braço a torcer, se necessário (ou seja: quase sempre) será áspero, pragueja contra a vida por ter lhe enviado aquilo, e no entanto está lá, diante Dela, sempre.

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E fala-se do sentimento para o homem como um espaço atrelado à memória porque entre eles, os sexos, ainda haverá uma outra diferenciação primordial: ainda que não explícita, haverá sempre uma outra mulher como evento traumático, aquela mesma que lhe servirá como prova cabal de que não pode haver acordo entre os sexos, e a partir da qual ele tomará a atitude resoluta de um touro de não mais se envolver. Novamente, bem como funcionam os sinais para um infante, o homem tomará para si suas resoluções que não conseguem se mascarar: é precisamente ao se interessar por uma mulher que ele demonstrará menos agradabilidade e doçura. E mesmo que não me pareça haver protocolos para o passado das figuras femininas, posso arriscar que, ainda que a explosividade caótica do encontro sugira que aquele pode muito ser o primeiro de suas vidas, divido-me: ou parece que há certo costume inocente em tratar com aquele tipo de força bruta, ou todo homem, por mais que aparente carregar o frescor da paixão impossível e nova, será a Ela uma experiência diante qual nunca poderá haver previsibilidade ou controle. Interessa, enfim, o seguinte: da força do atrito, nascerá uma inversão de papéis já em virtualidade, e que será causa incontornável da confusão, parte porque um dos lados não consegue assumir honestamente o que lhe surge, parte porque a outra agirá exatamente como Ele deveria agir. E os exemplos infestam as imagens de Hawks.

Em A Noiva Era Ele (1949) Ann Sheridan fará Cary Grant se travestir de mulher, peruca improvisada com o rabo de um cavalo vivo, obviamente depois de um sem-número de provações quase mortais, para concretizar seu casamento, encontrando um furo no código de união entre agentes de países diferentes e deixando curiosamente dúbia a certeza sobre os gêneros, ainda que toda a burocracia dali em diante o coloque em mais intempéries; Katharine Hepburn e Cary Grant, muito possivelmente por empurrão ininterrupto dela, perseguirão um leopardo chamado ‘Baby’, floresta adentro no interior americano, nomenclatura funcionando como prenúncio da união e símbolo de qualidade da mesma: mais uma série de encrencas. No mesmo Levada da Breca (1938), segunda comédia mais afiada do realizador em quesitos de timing, ainda outras situações em ritmo screwball envolverão confusões de cárcere e furto não-planejado, tudo provavelmente impulsionado por um osso encomendado e que embalou a narrativa em seus círculos de inconciliação.

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Numa das últimas pérolas de Hawks, O Esporte Favorito dos Homens (1964), uma prova de que através das décadas o autor manteve-se, sim, como um desbravador dos gêneros, mas que a comédia é seu campo de expertise, Paula Prentiss fará – e aqui enfatizo a incapacidade do Homem de escapar das paradoxalmente ardilosas e inocentes mãos Delas – Rock Hudson, que nunca pescou na vida, inscrever-se num torneio de pesca, quase ser atacado por um urso, quase se afogar, imprensado numa bóia salva-vidas maior que seu corpo, acidentalmente precisar consertar o vestido curto e rasgado de uma loura fatal, só para acabar em meio à chuva, num colchão improvisado, boiando num lago de pesca com a mesma figura infernal e apaixonada que o colocou ali.

E esta é bem a sacada de Hawks: sem em nenhum momento trazer qualquer juízo de valor negativo sobre as figuras femininas, sobre elas recairá, contudo, a absoluta certeza de que, uma vez atrapalhadas, serão a ignição de sucessivos obstáculos à vida masculina, e no entanto nem este lado conseguirá resistir às investidas, nem ao outro será possível se conter: uma vez apaixonadas, e sempre de seu jeito atrapalhado, elas, buscando compreensão sobre a sucedânea de mal-entendidos, atiçarão, neles, a dualidade “repulsa por auto-preservação”/”atração por impossibilidade de existir sem Elas”. Uma última observação servirá de panacéia final para a estrutura bola-de-neve: atravessando o código do happy ending, essa espécie de décimo segundo mandamento da ficção até as proximidades da época em que Hawks não mais faria filmes, se à toda conclusão de sua obra romântico-cômica o final com conjunção dos dois enamorados funcionou exemplarmente, ora com uma trapalhada final que vencerá o homem por cansaço, ora por uma objetiva e direta percepção de que não há mais como conceber uma vida sem aquela mulher, apesar de tudo aquilo, quero defender, ainda, que ali não há exatamente um final, pelo menos não enquanto término absoluto. Porque ao mesmo tempo em que a luz se apaga e seu gesto é o de um encerramento, este o é apenas por convenção. Ainda que por um segundo, arrisco que todos os olhos que emprestamos para aceitar a ficção estimularam o nervo imaginativo a um verdadeiramente último ato: pensar que, a partir dali, a história daqueles que viemos acompanhando continua, e que no caso daquelas concebidas por Hawks aquele abraço ou beijo final que aparenta solucionar todo o atrito é na verdade um entre-atos, um intermezzo falsificador: o encontro entre o masculino e o feminino é insolúvel e inevitável, fonte ininterrupta de um conflito sem o qual, entretanto, é impossível estar no mundo.

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O ENCONTRO DO CINEMA COM SEU ONIRISMO

PANDORA, OU A CHAVE DOS SONHOS

Texto traduzido da sexta edição (out-nov) dos Cahiers du Cinéma, 1951.

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Nós não podemos conter o sorriso, ainda que a voluptuosa mulher à esquerda de James Mason diga bem acima, no ecrã, tudo aquilo que já pensamos aqui embaixo: a saber, que tudo isso é de fato um pouco intenso: este piloto que precipita seu carro em direção ao mediterrâneo para provar seu amor a uma mulher, como outros o fariam comprando um buquê de rosas. Um pouco intensa, também, esta mulher que, súbito, de um minuto a outro, se lança ao mar, e logo depois, ainda completamente despida, à descoberta de um navio fantasma e sem tripulação, onde, sozinho, um jovem soturno dedica seu tempo a pintar quadros à maneira de Chirico[1]. E terá você alguma vez visto noites semelhantes, em que a escuridão passeia por todas as cores do arco-íris, com raios luminosos da lua que se arranjam, todos eles, somente para iluminar a figura radiosa de Ava Gardner?

Nós sorrimos e, depois, de assalto, experienciamos um belisco no coração: ele é tomado de vergonha repentina, e desejamos que a pessoa ao lado silencie. Que se cale de uma vez por todas: por que, se nem todos os pilotos sacrificariam seus carros em nome do amor, por que Ava Gardner resistirá ainda um pouco mais ao canto das sereias masculinas? Por que, agora, este matador que carrega a morte no rosto não penetrará na arena deserta, entregue à noite, para oferecer o sacrifício de um touro a uma espectadora única?

Se fizéssemos uma crítica séria de Pandora, seria conveniente lamentar que seu diretor Albert Lewin acreditou ser necessário se vestir da responsabilidade de garantia sobre a veracidade das lendas, na ocorrência de identificar categoricamente na figura do jovem pintor da embarcação fantasma um capitão de navio que havia sido condenado, há não menos que três séculos, a não morrer por ter assassinado sua mulher – e que vagaria eternamente pelos oceanos caso não encontrasse, diante de qualquer ancoramento, uma outra mulher que aceitasse morrer por ele. Albert Lewin nos faz assistir em comprimento, largura e cores o processo do capitão, crente, sem a menor dúvida, de que, uma vez que as coisas são inscritas na película, não há como duvidar de que sejam verdadeiras. Como se, caso contrário, as lendas não tomassem toda sua força de persuasão no equívoco e no possível. E como preferimos que se deixe entender que o pintor pode muito bem ser o famoso holandês voador, não há nada que nos impeça de pensar, além disso, que ele também pode ser – por que não? – um misantropo ocioso.

Mas Pandora não é um filme que se empresta ao desejo de uma crítica austera. Ele vale menos e mais que isto. Ele faz sorrir, e ao mesmo tempo sonhar com um cinema que fosse desembaraçado de seus gângsteres e policiais, mães-solteiras e irmãs caçulas de famílias pobres, com um cinema cujos heróis fossem gloriosos como a morte e as heroínas lindas como a noite.

Cinema involuntário, como dizemos da “poesia involuntária[2]”. As agruras de Pandora são tão comoventes quanto suas qualidades, e em seu próprio excesso, suas falhas de gosto a ligam à grande tradição barroca. É tão frívola quanto à capa de uma revista, mas quando viramos a página de súbito somos imersos em pensamentos sobre as noites de Julien Cracq, todas fartas em perambulações e encontros secretos, no meio de dunas prateadas pela luz da lua. Sim, por que não existiriam elas, estas noites violetas e minerais, violentas e petrificadas, que sempre findam à beira-mar, sobre a areia ensopada pela luz da alvorada recém-iluminada, embaladas pelos últimos ruídos do jazz, debaixo de uma antiga estátua mutilada, ao som dos gritos felizes de uma jovem embriagada cujo vestido de baile se vira repentinamente, porque ela acaba de desejar bom dia ao mar que passa sobre suas mãos?

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Jean-Pierre Vivet

[1] Giorgio di Chirico, pintor italiano precursor do surrealismo.

[2] Terminologia usada pelo poeta francês Paul Éluard para teorizar uma poesia que surgisse do “acaso”, ao contrário de uma escrita que seguisse os desejos voluntários de seu autor.

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Um salto para o homem: Mission to Mars e a jornada científica do herói

Por Felipe Leal

É comum ao meio crítico e cinefílico apontar a Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) de Kubrick como a gênese estético-operacional da ficção científica para o cinema, relegando à obra seminal de Meliès um lugar de reserva, um conjunto localizável no pré-linguagem, lugar onde as funções narrativas mais convencionais ainda não estavam cristalizadas e o artifício teatral podia pulular livre. De certa forma, então, narrativa das origens do homem e ao mesmo tempo originária, ou ao menos realizadora primeira, dos códigos visuais do gênero, 2001 é a matéria ”original” dos riscos e sobre-escrituras que gerariam o palimpsesto dentro do qual se inscreve Missão: Marte (Mission to Mars, 2000) . Mas é preciso deixar De Palma para depois. Aprofundemo-nos na ficção científica para chegar na sua apropriação. O que ela nos diz? Seu primeiro termo parece significar, a princípio, duas coisas: uma dupla consciência do caráter ficcional da obra (já sabemos estar diante de uma mentira, mas parece ser preciso reforçá-la em nomenclatura, como que para sobrecarregar, impregnar o trabalho de artifícios), e um abraço da ciência enquanto matéria-prima a servir de propulsão e engendrar a trama sob os efeitos (especiais, sim, mas também consequências) de algum cientificismo – e sabemos que este é quase sempre a tecnologia – que a faça respirar, ganhar vida.

Mas este primeiro significado parece concentrar ainda uma outra inferência: a reiteração pelo nome e o suposto artificialismo extra que propomos aqui têm a imagem perfeita numa breve cena de Kubrick: de sua cabine pessoal, o astronauta-chefe liga para a filha na Terra. Não há nenhum arroubo estilístico para o plano, composto numa distância mediana entre o televisor e o pai sentado; mas da janela vemos a lua em proporções anormais, vizinha à nave como se aquela fosse uma visita rotineira e disposta através do vidro do quadro de maneira nunca vista antes em imagens de qualquer tipo. 32 anos antes de De Palma e 48 antes de nosso presente, o que o plano dá a ver é que a aceitação daquela lua gigantesca devia ser plena no instante em que surge. A possibilidade de que se podia conceber uma nave de decoração ”moderna” daquela forma, própria para a virada do segundo milênio, e de que numa breve cena uma superlua, magnífica em sua presença, se entregasse ao prazer visual do fascínio megalômano da ficção – esta possibilidade só é possível em si mesma se pensada de mãos dadas com a naturalidade que a origina e a segue. E de fato, dentre todos os gêneros que o cinema consolidou para si, aquele que mais demanda organicidade, que o que se vê faça parte de um sonho que agora eu compartilho como pulsão liberta, é a ficção científica.

Ora, se há uma aproximação na verdade bastante concebível entre o monolito negro de 2001 e o próprio cinema, é porque de certa forma ambos funcionam como expansores – o primeiro responde ao toque do macaco ao entregar-lhe a percepção do osso, possível primeiro gesto de consciência que anuncia a alvorada do homem; o segundo é fruto deste, e de uma forma indireta, ”também do monolito”, e serve-lhe na medida em que possibilita o impossível. Cria um mundo com certa aderência ao real, mas que não corresponde às suas vontades ao mesmo tempo. Retira-nos algo para entregar uma outra coisa exta-ordinária. Por que se diz, então, que Missão: Marte é uma obra de mau gosto mastigada do filme de Kubrick? E mesmo que nunca o tivessem dito, por que associar, aqui, os dois filmes? O mais velho parece dizer coisas sobre a origem do homem e até onde ele pôde chegar, mas só para que o acidente daquilo que ele criou o faça retornar a sua própria gênese; o mais novo invariavelmente chega, também, até as origens da humanidade, da vida na Terra, mas toma, ou como há de se defender aqui, aparenta tomar o caminho grosseiro dos clichês do gênero, é acusado de abuso, vulgaridade. A ideia não é defender De Palma e apontá-lo como injustiçado, buscando ferramentas para defender um conjunto de na verdades. Tampouco revisitar a obra e surrupiar dela aquilo que ainda não tinha sido visto, para que o novo olhar se renove e dê valor ao seu conjunto. A súplica é para que se enxergue Missão: Marte pelo que De Palma, como autor, é.

E não se pode discutir a obra sem seu início, espécie de prólogo e praticamente única cena concebida para a Terra. A leveza dos planos situacionais e de apresentação, os movimentos serpenteantes de De Palma, câmera sempre arma gerenciadora de afetos, em que cada dobradura traz um pequeno núcleo distinto daqueles que sabemos serem os astronautas da missão – todo aspecto introdutório, a princípio, guarda mais do que um simples começo. O pai que acalenta o filho diante da separação, o piloto que convive com o espectro da esposa morta, o casal enamorado e excitado com as aventuras da grande viagem; todos são exatamente o que parecem, mas são também o dispositivo dos excessos de sentimentalismo que irá explodir a partir de todo acidente da trama. E como parece ser regra da ficção científica que a tecnologia falhe, que o desconhecido, num primeiro contato, seja hostil, a catástrofe estará sempre à espreita. A questão é que, a bem da verdade, se há algo vulgar em Missão: Marte, esse elemento vexatório não é tanto a obviedade das flexões da trama, mas o tratamento afetado que se empresta às resultantes de tais eventos. Eleva-se o drama da mulher que está prestes a perder o marido, ambos flutuando entre a nave e marte num plano absurdo, diante de um entrave de separação e morte que dura demais, vai e volta, arrisca mais um salvamento, faz com que gritem e chorem; mais além, o extraterrestre que vem lhes dizer sobre a origem da Terra chora uma lágrima ”desnecessária”, antropomorfiza-se em um rosto triste; o reencontro com o astronauta perdido em Marte tem seu grau de emocionalismo distorcido pelas pressas em explicar tudo e dar conta das baixas dos tripulantes da primeira missão.

Mas é preciso alcançar a moldura, as formas, aquilo que dá espaço e movimento a toda a narrativa que na verdade poderia ser dividida em três. Há, primeiro, uma espécie de apelo tipicamente americano ao avanço do colonizador, ao encontro de possível vida no planeta vermelho e que vai se travestindo com o sentimentalismo nobre do ”encontro de uma conexão com outras formas de vida”, não por acaso estabelecido num vídeo caseiro e alegre e dito pela esposa morta. E há também a clara operação de resgate, que vai se desdobrando através das catástrofes e culminando, enfim, numa terceira ramificação da narrativa, que é o encontro com a ameaça do novo mundo. O que sustentaria essa tríade senão um autor, este que alarga o deslumbre do Cinema provocando as suas formas? Como negar a aproximação entre o balé de sinfonias de Kubrick e o abuso magnânimo da gravidade que De Palma emula? Aliás, é bem aí que pode residir uma das marcas de sua autoria: seu cinema é a eclosão de um espetáculo, a junção de forças narrativo-estéticas para criar acontecimentos, durações e blocos de excitação de que o olho sensível (câmera-espectador) partilha como voyeur presente.

E que prazer visual, aquele causado pela fresta intimista dos enamorados que trocam carícias flutuando na gravidade espacial, num vai-vém dançante de corpos, só para depois tentarem salvar um ao outro em meio à imensidão do universo que a câmera enquadra, recorta para constituir uma ideia da amplitude incalculável do infinito, literalmente dois organismos minúsculos no espaço sideral, defronte o vermelho destrutivo de Marte, este que é destino, vilão e ponto de gênese daqueles mesmos corpos. De Palma dá sua narrativa das origens do homem na medida em que só o cinema poderia mediá-la. O salão de puro branco em que os sobreviventes entram, seguido do escuro absoluto que vem a materializar o extraterrestre-mãe, encantado pelo pano de fundo dos planetas, como numa instalação que infiltrou o filme para torná-lo quase tátil: é a denúncia velada do cinema como puro maquinário, sortilégio farsante de uma arte que é fruto do homem e serve para ludibriá-lo. O limite daqueles astronautas foi Marte, e de Marte retornam para a imagem do embrião de si mesmos, como o bebê que encerra a Odisseia no Espaço. Início toca fim. Espectador é levado às beiras da excitação e da emotividade pela própria recriação do olhar total que é o cinema – o paradoxo do organismo científico que ele ainda não conseguiu superar. Criamos a tecnologia para ir até onde o corpo, organismo perfeito mas restrito, não chega, e ela nos devolve o sonho que é toda a possibilidade do impossível.

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Loft (Kiyoshi Kurosawa, 2005)

Por Felipe Leal

De uma forma ou de outra, pode-se dizer que todo o cinema japonês circunda questões que rebatem, como numa mesa de pingue-pongue, entre a sociedade e o indivíduo. Semelhante a uma projeção de dramas interiores, os problemas se ampliam e tomam forma, no ecrã, através da massa do todo, encontrando vazão pela menor quantidade de pressão, como se a bolha de sabão já estivesse ali, esperando para ser estourada, a despeito de sua quase invisibilidade. Curiosamente, no país, as expressões públicas de sentimentalidade são praticamente interditas, servindo ao cinema o papel de médium, de ente que fala por. Pois nesse duelo de forças há quem jogue há 40 anos, apropriando-se precisamente do sentimento mais forte para quem a expressão da individualidade foi tomada – o horror -, transmutando-o em gênero, inscrevendo este em outros, e ainda abrindo espaço para reflexões delicadas sobre o próprio cinema. Este homem é Kiyoshi Kurosawa.

O horror de Kurosawa priva-se de sustos e assombrações histéricas, como ditam as leis de seu país. Tudo se resolve, a princípio, em movimentos de câmera. No caso de Loft (Rofuto, 2005), uma escritora com problemas vai até o campo para retomar a fluência da história de seu novo romance e, de uma noite para outra, vê-se envolvida no misterioso caso de um arqueólogo e sua múmia milenar. Ou melhor, de um movimento para outro: a câmera sobe em um discreto tilt, revelando o homem e um corpo dentro de um saco, quase como um espectador plantado bem atrás dela, que permite-se enxergar também. Mas não há acaso algum em tal ato. A partir daí, como o é em toda a filmografia do diretor, o filme se revela como um crescendo de descobrimentos, micro-revelações – porque o horror, na verdade nunca antes tão interiorizado, custa a se exibir – sensíveis das coisas pelas lentes prosopopeicas da câmera.

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E aí os eventos se sucedem em camadas de contiguidade analógica. O tempo se arrasta e os detalhes vão surgindo como peças soltas; o que era um filme sobre múmias acaba vestindo a roupagem de um drama psicológico sobre assassinato e memória, para pouco depois tomar elementos de um romance cheio de complicações. Nada é avisado, tudo se exibe sorrateiramente, por meio de trocas energéticas em que os tons narrativos implodem e explodem como bem desejam. Ao assistir a filmagem em time-lapse de uma múmia em observação no final dos anos 20, a protagonista pergunta ao assistente de cinema o que é aquilo, ao que ele a responde ser uma técnica utilizada para observar as coisas no decorrer do tempo, já que a técnica reduz a quantidade de frames vistos por segundo. Ora, não é exatamente o que acontece diante de nós, com o cinema? Alterar o tempo para ver melhor, para enxergar as coisas de maneira mais apropriada, ou da maneira que se quer? Se a narrativa não sabe ela mesmo o que é, que a câmera nos faça, pelo ato de ver, participar da indiscernibilidade.

A questão aqui parece retornar à maneira de articular, então, o horror. É claro que o gênero só funciona para Kurosawa quando intimamente atrelado àquilo que não pôde ser posto para fora e permanece a ruminar, eventualmente tornando-se uma aparição. É essa manifestação do assombro que tem ignição no particular e parte para o social, maculando a normalidade da vida que não pode mais se sustentar como antes, já que ela naturalmente não se perturbaria sozinha. Mas o movimento não começou ali, ele já é uma devolução, regorgita da boca do todo, da sociedade adoecida, e penetra, lamacento como o vômito da escritora, na intimidade dos indivíduos. A natureza do horror precisa desse círculo para se entender como verdadeiramente assombrosa.

Se o gênero em questão comumente não deixa ver a destruição do indivíduo por aquilo que é monstruoso, Kurosawa entende que sequer é necessário esconder: o ato daquilo que corrói não precisa ser velado precisamente porque, a nível psicológico, ele ataca muito mais profundamente. Não é à toa que a psicologia, o espiritismo e a metafísica sejam temas recorrentes em sua filmografia. Assim como a personificação da múmia ameaçou estilhaçar a crença do arqueólogo, homem da ciência, o cinema não é menos cruel por possibilitar que nós vejamos o mundo de outras maneiras. As coisas mais horríveis da arte de Kurosawa se introduzem de maneira sutil, em sua simplicidade daquilo que é natural – por termos nós mesmos as invocado- e não o é – por fazer parte de um outro plano – ao mesmo tempo. Talvez assim também se preserve a natureza das imagens que vemos. Talvez por isso precisamos do horror.

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A Academia das Musas (José Luis Guerín, 2015)

Por Felipe Leal

Uma câmera que se torna invisível para filmar um experimento pedagógico. Embebe-se dos artifícios de uma experiência cuidadosamente acompanhada para, a partir da naturalidade, apagar os rastros da própria enunciação. E não seria curioso que, num filme-projeto em constante flerte com o documental, cuja força motriz é o embate passional e ideológico entre professor e alunas, o próprio espectador seja acometido de perturbadora sensação de que ele, também, é instruído e incitado? Por um momento, quase que suspenso do próprio assento da câmara escura e imiscuído no campo minado de opiniões daquele espaço que é quase uma eclésia grega. Sobre a literatura do período clássico, o sábio diz: ”reconhecíamos, no texto, a própria vida”. Eis que A Academia das Musas (2015), de José Luis Guerín, é a paráfrase dessa máxima – reconhecemos, neste cinema, a própria vida.

Quando conceituou, ele mesmo, o que viria a chamar de ”cinema de poesia”, Pasolini decerto reconheceu aquilo que precisava para o seu cinema. Uniu práxis e poiésis para tratar o fílmico como semiologia da realidade, cuja expressão de sentido brotaria somente através do próprio autor. Mas essa conceituação linguística do cinema funciona apenas como um germe. Ao passo em que Guerín e Pasolini concordariam numa classificação de ”morto-vivo” para um mundo sem poesia, aquele busca, nas origens da literatura, o ponto em que a condição humana é debitária da linguagem em si. O projeto: modificar o mundo através da poesia. O mundo, em posição de corpus: dependente da inspiração. Quem são as musas? Ou seria melhor demandar: como tornar-se tal entidade mitológica?; onde buscar por tal fonte de inspiração?

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Quase sempre em aparições através de vidros, Guerín não parece permitir que suas afrodites jamais possam ser vistas em totalidade de clareza. Como um gênio que ainda não pode ser assim chamado por circunstâncias de desconhecimento, sempre reféns e assombradas pelas palavras do erudito que as provoca, somente o que ele diz pode dar-lhes sentido. ”As palavras dele te tornam mais bonita que as minhas”, confessa o amante de uma das alunas. Pois a musa aqui é antes um ideal do que um ser. Nenhuma delas aparenta tornar-se musa por tarefa pessoal, por mais verborrágicas e reflexivas que se apresentem em suas encruzilhadas. Procuram a elevação em brechas derrapantes, já que apenas musas podem reconhecer a si mesmas.

Como projeto diegético e como texto, A Academia das Musas é o reconhecimento de que somos reféns da linguagem. Não basta estar presente. Recusar participação no mundo é dar dois passos para trás. Se a poesia – muitos já o atestaram – tem função, ela é a de iluminar este mundo. Quando não atravessado pela musa, o desejo de tocá-lo torna-se eros esvaziado, vontade solipsista. Toda a afetação e previsibilidade do amor como tópico parecem fazer sentido na contestação de Guerín.  Ainda nos anos sessenta, Susan Sontag diria, ao definir o Camp, que muitas das coisas que nos circundam ainda não foram nomeadas. Teria sido então por amor àqueles objetos, constituintes de uma sensibilidade, que ela os emprestou nome? Numa cadeia de fortuitas dependências, amor, desejo, inspiração, literatura e cinema se entrelaçam. E quem poderia promover tais tessituras, senão a musa?

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A Casa (Sharunas Bartas, 1997)

Por Felipe Leal

Na sua relação essencialmente dupla, todo filme é, assumidamente ou não, um convite, e como todo convite, o mínimo de participação é requerimento básico, como se, ao assumirmos o desenrolar daquele mundo, devêssemos, também, observá-lo, tomar a imagem como algo que faz sentido de existência. Longe, se preferir, do que nossas percepções do real alcançam, porém devendo a este um mínimo de colamento, de obediência às suas leis. Tudo é uma suposição. Mas para Sharunas Bartas, sobretudo em seu A Casa (1997), o ato de participação é diferente de e não pressupõe de forma alguma o entendimento. Primeiro porque suas imagens parecem pertencer ora ao domínio do onírico, ora impulsionadas por brechas de subjetividade, não estabelecendo, portanto, qualquer relação que implique em uma lógica narrativa aos moldes de nossas percepções mais instantâneas; segundo, o motif de Bartas é puro em material e em conteúdo – só há luz, rostos, movimentos e sentimentos.

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Abre-se o filme com a mansão, a luz e a voz de um homem que denuncia, amargurado e sereno, o distanciamento emocional que teve com a mãe (também a pátria?), em carta direcionada à mesma. Ironicamente, após um desfile de pombos burgueses banhados em luz quase sobrenatural e divina, o primeiro ato humano em cena é acordar. Acordar para onde, quando tudo o que se segue está mais próximo de uma emulsão de líquidos inconscientes? Mas não seria este o verdadeiro despertar? A questão é que as assombrações que percorrem os cômodos da casa nunca foram tão humanas, por mais ausentes que pareçam. Aliás, talvez a própria ausência constitua os fios que as colocam em movimento. Como o homem cuja jaqueta está revestida de jornais velhos e que seleciona páginas de livros a serem queimadas, é o horror da história lituana que queria ser esquecida.

Se, em entrevista, Sharunas assume que aquilo que mais busca é o simples, embora este agora requeira força moral, tempo e esforço, por que não assumir que a casa de seu filme seja antes o invólucro, a jornada em que somos lançados, a despeito de nossa vontade, para enfrentar as quimeras do simples – o tempo, a memória, a família, o desejo -, e que  os barulhos que a casa provoca à distância estão ali para lembrar que existe algo além daquilo que vemos e ouvimos (que nos permitimos ver e ouvir, na verdade), preso em quartos, atravessando corredores e empurrando caminho através das janelas de nossas subdesenvolvidas sensações e percepções.

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A trajetória de Bartas está mais próxima, ou tangencia tanto quanto, do cinema de Marguerite Duras do que aquele realizado por Tarkovsky ou Béla Tarr. É certo que a filosofia quase marasmática possa estar impregnada na imagem e que, diferente da experiência da francesa, exacerbadamente verbal, os passeios pela  casa tenham o silêncio como força motriz, mas há algo ali que remete constantemente ao peso do tempo, maçante e invencível, como testemunha a mulher que, ajoelhada e nua ao lado de uma porta, parece perseguida pela imagem da criança correndo, quem sabe o doce símbolo da sua infância feliz. O protagonista se deita em meio a jovens nuas, hespérides guardiãs de um jardim que só floresceu ao final e cujos frutos de ouro são a própria passagem desse tempo – ou pelo menos seriam, não houvesse tanto pessimismo n’A Casa. E os idosos que a povoam tem rostos marcados, olhos calejados porém vivos em excesso. Seriam mesmo assombrações? Duras escreveu: ”muito cedo na minha vida ficou tarde demais.” Sua herança, como a de Bartas, é esse espaço de vida cristalizado.

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História Escrita com Água (Yoshishige Yoshida, 1965)

Por Felipe Leal

Quase toda a implicância dos gestos políticos depende de um referencial muito delicado. Dizer que uma das erupções que o movimento das novas ondas no cinema provocou foi o desvelamento, ou antes um novo tratamento, de conteúdos tão particulares quanto do domínio geral, anteriormente impronunciáveis, pode ser superficial, mas aí, também, encontramos certos resíduos de uma verdade. É que o peso de tratar o sexo, a política e as instituições mais tradicionais da forma que os japoneses o fizeram me parece cair no infeliz paradoxo do conjunto de uma obra cuja significância foi tão monumental quanto (ainda) pouco compreendida – e sequer conhecida. Não é que ela possua maior pujança pelos atributos revolucionários que experimentou perante uma sociedade tradicional e complexa, mas é inegável a aliança entre a provocação pelo agenciamento conteudístico e o absurdo rigor estético a que toda uma geração de cineastas se entregou. Quer simpatizem com uma terminologia – Nuberu Bagu – imposta exteriormente ou não, o impacto da proximidade existiu, e seu emaranhado de conexões resultou numa das filmografias mais importantes para o cinema.

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Como cidadãos políticos, como seres imersos em uma cultura intricada ou como alvos, eles mesmos, das sexualidades sobre as quais discursam – tudo parece emprestar propriedade a cineastas como Teshighara, Oshima, Suzuki e Imamura, mas até que ponto a figura da mulher tem validade nesses cinemas, considerando que o olhar sobre elas parte de uma particularidade que, ainda que investigativa, é masculina? Escrita e filmada, a resposta de Yoshishige Yoshida foi: ”não é possível que as mulheres pensem que o sexo é um indicativo de sua força; que transar, para elas, é um veículo de expressar esse poder”. Quando se desvencilha, em 65, dos estúdios da Shochiku para conceber História Escrita com Água (Mizu de Kakatera Monogatari), Yoshida foi além do passo inicial transgressor e forneceu à figura mais simbólica e enigmática de uma cultura o espaço de se construir – utilizando-se ostensivamente, aliás, de Mariko Okada, a própria esposa.

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Quando no mesmo espaço de tempo temos um filho desafiando a mãe a confirmar-lhe um caso extraconjugal que data da época em que seu pai padecia de tuberculose, e ela, num elaborado jogo de cena, ajoelha-se contra a luz e deixa criar, atrás de si, uma fantasmática sombra, há aí toda a síntese imagética da obra. Obra esta ancorada inteiramente no gesto: antes do Bergman de Sonata de Outono, temos a mãe que presenteia o filho com o próprio cordão umbilical que os uniu; antes de Greenaway, a água como metáfora para o terreno fluído, profundo e simbólico do amor e da maternidade (no Japão, cenas de amor também são traduzidas como ”cenas molhadas”). Se para Camille Paglia a independência da mãe é a primeira e mais importante conquista para o homem, o filme de Yoshida é também a representação deste ensaio. Em fluxos sensíveis de consciência e tempo, reconstruímos a experiência de Shizuo a partir da infância. Na abundância de ângulos em que a mãe é capturada, por extensão, assim fragmentado também se dá o vínculo entre mãe e filho. Yoshida parece beber do cálice de Nicholas Ray e aferra-se ao signo como recurso.

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Imersos nas coreografias de uma gestualidade que encontra ânimo na sutileza e na sensualidade dos corpos – sempre modificados, claro, pela luz -, eros e thanatos se entrelaçam nos abraços e impossibilidades do toque. Shizuo parece não poder consumar o amor com a esposa até que algo seja sacrificado entre mãe e filho. Em um instante impenetrável e quase sagrado, semelhante ao acolhimento de Bibi Andersson por Liv Ullmann em Persona, ele propõe que os dois morram ingerindo comprimidos, ao que se deita na barriga da mãe e a imagem então assume movimentos pendulares. Como significar, então, essas oscilações? O espaço do cinema é um de referências e implementações inconscientes. Por mais escorregadia que possa se tornar a tarefa da atribuição, também seria quase criminoso não perceber os movimentos que constituem um legado fílmico, dentro de e a partir das costuras em que todo o campo cinetográfico vem tomando forma. Felizmente, haverá algo de maneirista e de inaugural na genialidade.

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The Connection (Shirley Clarke, 1962)

Por Felipe Leal

Duas coisas precisam ser registradas antes que se fale propriamente sobre The Connection. A primeira diz respeito a uma surpresa perante o quase completo desconhecimento da obra de Shirley Clarke, quando esta se localiza precisamente dentro de um contexto de intensa produtividade e efervescência cultural – os Estados Unidos dos anos 60; a segunda, uma espécie de apelo e constatação, é que acredito que toda essa obra, um amálgama de elementos sociais e teóricos sobre a arte, merece uma série de cuidadosos estudos, por seu caráter qualitativo, desafiador e de precioso documento histórico.

O filme (também) é aberto com duas constatações, através de um letreiro: as imagens que veremos foram abandonadas pelo diretor e entregues ao seu cameraman, que as uniu com com a maior honestidade possível. O conteúdo delas é o de uma falsa espera. A espera pela conexão que dá título ao filme: alguém nomeado Cowboy deve fornecer, a um apartamento cheio de junkies, um suplemento de heroína. Fala-se em ”falso” porque o filme em si é uma mentira, um documentário mais do que conscientemente inventado e que consegue unir um jogo de suspeitas sobre o próprio cinema, a criação de um microcosmo antropológico-laboratorial, um registro sobre o cenário da contracultura norte-americana e um dos mais inventivos e radicais dispositivos de diálogo com a figura do espectador (conosco), para dizer o mínimo.

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Embebida de prévios experimentos com a dança e a coreografia, é tão assombroso quanto lógico que Clarke tenha extraído tamanha espontaneidade e uma quase selvageria da orquestração precisa dos movimentos que os junkies, entre eles desocupados e músicos de jazz, realizam dentro do apartamento, cuja semelhança com o espaço cenográfico de um teatro não é ocasional: se foi exatamente nos arredores dos anos 60 que a arte teatral conseguiu estilhaçar a quarta parede que separava a diegese do público, The Connection foi o inteligente escape que o cinema encontrou para testar a si mesmo. Quando Jim Dunn, diretor diegético, pula pra frente da câmera e tenta coordenar a animosidade que tomava conta dos junkies, pedindo a eles que ”ajam naturalmente”, há aí uma ruptura, ou melhor, uma delicada transição: o que aproxima aqueles corpos da perfomance? O que esperar quando é exigido da atuação que ela seja a mais natural e mundana possível?

O problema (ou, no caso do filme, solução?) é que, uma vez que se iniciam suas interferências, para melhor dar forma a tais ”atuações”, o estímulo, o pecado original já foi desvelado. Como admitido no próprio filme, uma mão, quando atravessada pelas lentes da câmera, ”deixa de ser uma mão e se torna um assunto de seleção cinematográfica”. Num contexto em que os delírios do cinema verité proliferavam crenças na verdade absoluta das imagens, a própria vertente observacional do cinema direto americano estando infectada, encontramos aqui escape para um outro arroubo de genialidade. A questão é: ao mesmo tempo em que Clarke se monta de um dispositivo de mobilização de crença que só encontraria equidade precisos 10 anos depois, com o Punishment Park de Peter Watkins, ela se utiliza de um diretor diegético para promover uma reflexão sobre o próprio fazer fílmico. Jim Dunn não é somente Shirley Clarke, mas todo e qualquer diretor, na medida em que o cinema nunca conseguiu e nunca conseguirá escapar da modelação do enquadramento e daquilo que nele se desenrola, não importa o quão honestamente se tente fazê-lo.

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Pior: quando Jim é questionado sobre essa honestidade do filme que está tentando realizar, por não ser ele mesmo um junkie, descemos ainda mais um nível na espiral montada por Clarke. Qual a validade do regime de autoridade que se coloca sobre o diretor, quando quase sempre há um destacamento entre ele e a realidade que tenta articular? Por mais que este pareça ser um filme anti-cinema e que questione com violência as proposições mais básicas do documentário, em última instância, nós somos o alvo principal, na medida em que o cinema não existe sozinho. Para que a experiência seja completa, necessita-se de um pedido involuntário cuja única exigência é a crença do espectador, por mais que o olho fique comumente restrito ao limites do que é visivelmente estruturado.

Mas também não é por acaso que Eiseinstein fica creditado como uma das propostas estéticas de Jim Dunn. Naquilo que possui de raro registro – lendas do jazz como Freddie Redd e Jackie McLean tocam incessantemente durante o filme -, The Connection atravessa quase 55 anos para ecoar o que a Nouvelle Vague, talvez o movimento mais apaixonado do cinema, sustentou: uma câmera e uma ideia podem não ser as garantias para fazer nascer um bom filme, mas é a maneira de montar, de orquestrar a vida que torna o mundo o material mais inesgotável e potente que conhecemos; ou seja, para bem ou para mal, o mais poderoso instrumento de que o cinema dispõe, e, por extensão, nós, é o olhar.

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Hill of Freedom (Hong Sang-Soo, 2014)

Por Felipe Leal

Duas palavras parecem ”encantar” o cinema de Sang-Soo Hong, no sentido mais amplo de tornar vivo, emprestar magia: olhar e prazer. A primeira, como condição mais básica da arte cinematográfica; a segunda, como força motriz que movimenta e encadeia todos os seus personagens e narrativas. Duas palavras que, no entanto, são escorregadias, na medida em que podem simplificar algo que já toma para si uma aparência de informalidade, de pouco polimento. Sou de opinião contrária: poucos se vestiram com trajes tão enganosos, pois tal cinema não poderia ser mais calculado ou referencial.

Com Hill of Freedom (2014), Hong prova estar mais próximo de nomes como Shohei Imamura – ”Pergunto-me se outros cineastas são tão interessados nas pessoas como eu” – e Eric Rohmer do que apresenta traços tarantinescos. Os zooms incisivos que o caracterizam pedem nada mais que olhemos mais de perto; mais de perto para o que cimenta nossas relações, assim como para aquilo que as norteia. Com planos de reencontrar Kwon, coreana com quem teve um caso, Mori (um japonês) acaba passando por e causando pequenas provações morais nas pessoas que habitam a pousada onde se hospeda e o café que frequenta – cujo nome dá título ao filme.

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A partir das cartas que deixou a Kwon, que, com o passar das tentativas, não tinha mais esperanças de encontrar, revivemos – nós e ele – seus pequenos encontros, aparentemente seguindo uma ordem narrativa que pertence a dois. Mas não é por acaso que Hong parece questionar a quem pertencem aquelas histórias. Parte do que vemos teve vida a partir das cartas, decerto, mas quem pode conferir confiabilidade ao resto? Ou seja, tudo o que aqui é proposto parece pertencer a uma retomada. Voltamos, então, à pergunta basilar: é possível, ou mesmo necessário, conferir confiabilidade ao cinema em si? Que porção de mentira ou ocultamento há nas narrativas que contamos?

Mas o movimento de retorno ao início, buscando eixos de ação, também vibra no interior dos personagens. ”Você tem um cheiro tão gostoso”, diz Mori, ao que sua amante responde ”Você é tão, tão bonito”, e isto parece definidir sua aproximação. Não são simplesmente homens e mulheres adorando aspectos superficiais um do outro: aqui, Hong parece mais dotar seus personagens de um arquético infantilizado – gesto arriscado e consciente, num país onde pensar o coletivo e refrear os impulsos está acima de tudo. Pois se é raro que encontremos crianças em seus filmes, apresenta-se aqui um segundo ardil. Elas estão lá, mas intrinsecamente, sempre guiadas pelas satisfações do corpo.

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Três vezes é perguntado ao protagonista se a sua viagem à Coréia tem fins de negócios ou prazer, três vezes ele não sabe respondê-la. Retomamos, então, o prazer. Ao passo em que o álcool está sempre presente, incitando afetos sexuais e discordâncias emocionais, é somente em Hill of Freedom que é possível trazer à luz o núcleo que faz pulsar o cinema de Hong. Aquilo que gostamos, que nos faz buscar prazer no outro e no mundo é a bússola desses encontros, assim como da nossa relação com o cinema. Prazer visual, do olhar, se afinal juntamos as duas palavras-chave. Não seria esse o fim do cinema? Como nos filmes de Sang-Soo, talvez não caiba a nós responder.

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