Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Tremor

Por Camila Vieira

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É curioso como o longa-metragem O Tremor (Nilanadukkam, 2020), do indiano Balaji Vembu Chelli, propõe uma reflexão crítica em torno do apetite da mídia em se alimentar da tragédia humana. O interesse reside menos em desvelar a máquina de espetacularização dos meios de comunicação como tantos outros filmes já fizeram, mas compreender que comunidades continuam abandonadas à própria sorte em áreas de risco, sem provocar qualquer mobilização permanente de governantes e da opinião pública. Não há noticiário capaz de evitar o histórico sucessivo de catástrofes e abandonos.

Na trama, um fotojornalista é convocado para viajar até a vila de Kookal para registrar imagens de uma comunidade destruída pela ação de um terremoto. De início, o longo percurso cheio de ruas estreitas e sinuosas parece ser mais difícil do que ele imaginava. O contato com a paisagem montanhosa é permeada por imagens de outros incidentes de tremor que atingiram a vila. Um breve plano com a tela de teste com barras coloridas da TV indica que provavelmente são cenas já capturadas por emissoras locais.

Em meio a uma névoa branca densa que cobre a região, o fotojornalista pergunta aos moradores onde aconteceu o terremoto. Alguns dizem que foi em no vilarejo próximo. Muitas casas parecem estar abandonadas. Quanto mais o protagonista adentra no lugar, ele é levado a entrar em contato com fantasmagorias que cruzam seu caminho e que o fazem se perder em outros caminhos.

Enquanto o olhar do fotojornalista procura a racionalidade do registro imediato visível dos fatos, a paisagem oferece a ele indícios de desaparecimentos: moradores apontam para vilas arrasadas que ele não consegue ver. Os planos do filme vão se compondo com brumas esbranquiçadas, presenças que se esvaem, ruas vazias. A força de O Tremor como cinema reside justamente na construção da paisagem como um acúmulo de repetições trágicas no curso da história que se tornam invisíveis ao olhar de quem só quer capturar o momento imediato.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Nova Ordem

Por Camila Vieira

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Depois de vários planos fragmentados que aludem ao que irá acontecer ao longo da narrativa, as primeiras cenas de Nova Ordem (New Order, 2020), do mexicano Michel Franco, apresentam uma aglomeração de pessoas brancas, ricas, bebendo, dançando e se divertindo na confortável e intocável mansão da abastada família Novelo. O local recebe convidados para a cerimônia de casamento da jovem Marianne com um “jovem e promissor arquiteto”, segundo as palavras de Victor, amigo influente que mantém vínculos corruptos de trabalho com o pai da moça. Do lado de dentro da casa, organizam a cozinha os empregados não-brancos de ascendência ameríndia.

Aos poucos, acontecimentos estranhos começam a desestabilizar a teatralização da elite na mansão: a juíza ainda não chegou para realizar a cerimônia, as torneiras jorram tinta verde, uma convidada aparece com o pescoço esverdeado. Até que chega Rolando, antigo empregado da família, para conversar com sua ex-patroa, mãe de Marianne, e pedir dinheiro para a cirurgia de Elisa, sua esposa que está doente. Ela foi expulsa da enfermaria de um hospital público, que evacuou as vagas para acolher manifestantes feridos. Aqui já conectamos as pequenas irrupções já vistas com um grande fora de campo: vários protestos invadem as ruas, enquanto a elite permanece alheia ao que acontece lá fora.

É óbvio que a ex-patroa coloca dificuldade para dar o dinheiro e, a partir daí, explicita-se de forma gritante a desigualdade entre as classes. O filho mais velho quer logo expulsar Rolando. Marianne enfrenta os homens da família para ajudar o antigo empregado (curioso notar como há sempre uma jovem branca, loira, bela, que se coloca como a alma caridosa dos pobres oprimidos pelo sistema). E claro que o enfrentamento dela não será suficiente para romper a estrutura de poder hierárquica mantida pelos homens da família. Mas ela será a mocinha capaz de sair do conforto de sua casa para “fazer alguma coisa”, enquanto sua mansão acaba sendo logo depois invadida pelos manifestantes.

A primeira meia hora até chegar o momento da invasão e do saqueamento da casa dá a impressão de que Nova Ordem quer lançar alguma possibilidade de inversão de poderes dentro das cristalizações sócio-econômicas ordenadas pela máquina capitalista neoliberal. Mas é só um jogo de aparências: Michel Franco orquestra as cenas de forma pomposa e grandiloquente, como se o chamado para a luta armada contra o opressor devesse ser filmado como um espetáculo. Quando a cidade passa a ser sitiada pelo exército, a mesma lógica espetacular é exigida para explicitar a violência tanto em opressores quanto em oprimidos. A direção não se compromete com absolutamente nada que encena e se esvazia tanto em sua indiferença que só entulha cenas pretensiosamente chocantes para sua audiência internacional.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Problema de Nascer

Por Camila Vieira

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Nos ambientes escuros de suas casas, dois personagens alimentam dificuldades em superar a ausência de alguém querido em suas vidas, no longa-metragem O Problema de Nascer (The Trouble With Being Born, 2020), da cineasta austríaca Sandra Wollner. O primeiro é um homem que perdeu a pequena Elisabeth, desaparecida há 10 anos ao fugir da casa da mãe. O segundo é uma senhora já idosa que se recorda todos os dias do irmão Emil, morto em um acidente há 60 anos. A forma dos dois driblarem as ausências em um presente fraturado se dá pela convivência com um androide, que encarna memórias implantadas – e por que não alteradas? – daqueles que se foram.

Como Elli, a ginoide recorda-se do cheiro da terra molhada, dos cigarros, do protetor solar, das inúmeras horas que viveu ao lado do pai, das músicas que ambos ouviam. Ela é a personificação idealizada da criança doce, gentil, inocente, com presença disposta o tempo inteiro diante do homem que ela chama de pai. Mas a figura paterna transparece algo no mínimo estranho nesta relação: ele olha para ela com desejo ao comprar um vestido; ela posa nua e sensual diante dele; e após uma dança incessante, dorme com ela. A cena de sexo não precisa ser mostrada, mas já se sabe que aquele corpo robótico foi avariado. “Mamãe nunca teria deixado, mas ela não precisa saber de tudo”, diz a voz off de Elli.

O que significa o não saber de tudo nesta relação pai e filha que envolve pedofilia? É certo que a ginoide foi programada para satisfazer o desejo do dono, mas sua rostidade remete à criança que desapareceu. Será que a menina fugiu de casa justamente com o intuito de se livrar de um histórico de abusos com este homem que nem sabemos ao certo ser o pai? A pergunta fica em suspensão, até o momento em que a ginoide escapa do aprisionamento da casa, é resgatada por um terceiro e volta a um novo enclausuramento doméstico, desta vez na casa de Anna.

Como Emil, muda-se o gênero para androide. A voz agora é de um garoto, que brigava muito com sua irmã no passado. Na nova casa, não há tempo suficiente para elaboração de outra vivência em meio ao trauma. As diferentes memórias de Elli e Emil implantadas no mesmo ser robótico acabam por se confundir e se misturar. O estrago na estrutura familiar permanece. Apesar do interessante ponto de partida, O Problema de Nascer limita-se à abordagem unidimensional das relações humanas pelo que há de pior nelas, sem se permitir alcançar outras experiências.

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Cozinhar F*der Matar

Por Camila Vieira

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Para explicitar a espiral de violência perpetuada por masculinidades tóxicas dentro das relações familiares no longa-metragem Cozinhar F*der Matar (Cook F**k Kill, 2019), a diretora eslovaca Mira Fornay conduz a narrativa por sucessivos jogos de inversões de poder. A trama começa com o desespero de Jaroslav, um motorista de ambulância, que está sofrendo uma crise de relacionamento com Blanka. De início, ele parece ser o bom pai de família, que está realmente preocupado com seus três filhos pequenos, que foram deixados na casa da avó. Jaroslav alega que sua esposa o está chantageando para conseguir o apartamento da mãe, a intimidadora Dorojka, que reclama ao filho: “Não sabe cuidar de sua própria esposa, sem ela intimidá-lo?”.

Dorojka está morando com Gustav, pai de Blanka, em um mísero apartamento estreito no subúrbio, em que mulheres do bairro cercam Jaroslav e ele quase é atingido por uma jukebox que é jogada da janela de um vizinho – essa cena inclusive será repetida algumas vezes, com pequenas variações dos instantes prévios à queda do objeto. Quando Blanka é vista pela primeira vez em cena, o filme desvela quem realmente é a vítima de toda a tragédia. Gustav diz a Jaroslav que não deseja ver o genro tratar Blanka da mesma forma que ele trata Dorojka. Então, começa o relato de uma cena de violência doméstica que aconteceu no passado em que Gustav espancou a mãe de Blanka. Só que, no presente, o relato de Blanka é concretizado cenicamente como uma reconstituição em que Jaroslav é espancado por Gustav.

Gustav e Jaroslav são os agressores de Dorojka e Blanka. “Amei sua mãe, mas tinha medo dela”, diz Gustav. “Eu a amo exatamente como você amava a mãe dela”, diz Jaroslav. As duas frases declamadas pelos principais personagens masculinos de Cozinhar F*der Matar são a expressão máxima da manutenção do relacionamento abusivo, que intimida, chantageia, violenta e mata mulheres. Ao virar a chave do filme, a diretora Mira Fornay parece lançar o desejo de denúncia da estrutura de poder do patriarcado, cujas violências são perpetuadas de geração para geração (e aí faz sentido entender como o filme se modela a partir das repetições).

No entanto, é justamente por recorrer ao jogo de sucessivas cenas de agressão que o filme inclusive coloca as mulheres à mercê de encarnar no próprio corpo a monstruosidade da violência. E quando Fornay opta por fazer isso, Cozinhar F*der Matar parece estrangular a si mesmo com a própria estratégia almejada.

 Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Suor

Por Camila Vieira

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A sequência inicial de Suor (Sweat, 2020) é a tautologia do privilégio de uma digital influencer. Em um shopping mall, Sylwia Zajark uma mulher branca, loira, magra e bela faz uma demonstração de uma aula de fitness para seu público branco que deseja ser como aquela mulher. Depois dos gritos motivacionais e selfies com sua audiência, ela respira fundo e prossegue sua jornada, ao som de “She’s got the look”, de Roxette. Ela ainda tem muito trabalho a cumprir: fazer uma live para mostrar entusiasmada que sempre usa a escada no lugar do elevador de seu prédio, apresentar um shake do Olympus Nutrition para compensar a insatisfação do patrocinador e se encontrar com seu agente que está tentando agendar sua aparição em um programa de televisão.

O diretor sueco Magnus von Horn quer mostrar com Suor que a vida de uma digital influencer também pode ser muito difícil. Longe da câmera do celular, ela não escolheu estar solteira e se sente muito triste, da mesma forma como comentou sobre tal sensação em um vídeo postado em suas redes sociais. O desabafo espontâneo imediatamente viralizou e seus patrocinadores começam a ficar preocupados com a exposição indevida de tristeza da jovem.

A partir desse deslize da personagem em meio a sua rotina de construção idealizada da imagem do bem-estar, Suor vai desvelando outras informações sobre Sylwia para que o espectador tente ser empático com suas lágrimas. A única companhia dela é seu cachorrinho Jackson. A mãe parece ser ausente e fazer pouco caso das conquistas da filha. Um stalker aparece em frente ao prédio para perturbar sua tranquilidade.

É curioso como inclusive uma cena em que a protagonista reclama ter recebido uma embalagem em caixas plásticas – para deixar claro na condução da trama que se trata da rotina de uma influencer ecologicamente responsável e que devemos nos compadecer dela. No entanto, a mesma nem questiona uma empresa grande, como a Fiat, que há bem pouco tempo foi denunciada por fabricar automóveis adulterados para burlar possíveis testes de emissões de poluentes.

O único momento em que há alguma ironia a explicitar o quanto esse jogo com o neoliberalismo deve ser realmente questionado é a sequência do aniversário da mãe de Sylwia. Ao ver a imagem da moça estampada na capa da revista Women’s Health, um dos convidados exclama: “Você parece uma estátua!” – ao que ela responde com um “obrigada” constrangedor. O outro pergunta se foi usado photoshop, ao que se sucede com a queda inesperada de um jarro de flores da mesa. Mas é apenas uma sequência de desarranjo que passa ligeiro, tanto quanto uma madrugada de abusos e violências que é administrada rapidamente pela personagem. Afinal de contas, ela precisa continuar sorrindo para seus 600 mil seguidores.

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mães de Verdade

Por Camila Vieira

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Há algo nos planos de Mães de Verdade (Asa Ga Kuru, 2020), de Naomi Kawase, que traz na própria materialidade indícios do estilo da cineasta japonesa: alguns takes com movimentos suaves a filmar os corpos dos personagens; outros em que a luz estourada do sol invade os espaços; ou mesmo aqueles em que o vento balança os galhos das árvores. Fazer do invisível uma força tátil é um dos elementos que marcam a filmografia de Kawase dentro da constelação do cinema contemporâneo.

No entanto, o modo como a narrativa engendra sucessivos encadeamentos esquemáticos parece a todo custo diluir a pujança da construção das imagens e dos sons de Mães de VerdadeDepois do plano inicial do mar junto ao som da mãe que chora amalgamado ao grito do bebê que nasce, acompanhamos uma cena de bela intimidade entre mãe Satoko Kurihara e seu filho Asato. A partir daí, o que vem na sequência desaba todo o esforço de contiguidade sensorial até então conquistado em prol da amarração da trama: Asato supostamente empurrou um colega na escola e, após todo o rebuliço da mãe do menino machucado, instaura-se em Satoko a desconfiança de que seu filho possa ter realmente cometido tal ato.

Como posso duvidar do meu menino?” – a pergunta de Satoko já introduz uma suposta hesitação dentro do seu papel de mãe, que prende o filme à necessidade de jogar um flashback em que ela aparece com o marido Kiyokazu a conversar sobre a vontade de ter um filho. Desejo impossível a princípio, já que a azoospermia de Kiyokazu impede de ter filhos biológicos. O marido se desespera, lança a possibilidade do divórcio e – que milagre do acaso! – aparece um infomercial de uma agência de adoção na televisão que só falta colocar em letras garrafais que nada está perdido para o pobre casal.

Não é para pais encontrarem os filhos. É para os filhos encontrarem os pais” – eis o slogan da agência Baby Baton que convence Kiyokazu a decidir pela adoção. O casal mora no 30o andar de seu confortável e intocável prédio, enquanto é muito óbvio que Hikari, a mãe biológica de Asato, deve ser construída como a mãe jovem, que será rejeitada pela família tradicional japonesa, que se tornará uma mulher a sobreviver de trabalhos precarizados, que levará uma vida carregada de culpa e sem conforto algum.

Na medida em que o esquematismo do roteiro impõe esse imediato contraste entre mães – pasmem! -, descobrimos que Asato não empurrou seu coleguinha na escola e – ufa! – família Kurihara pode voltar para seu conforto, porque aquele suposto acidente foi só uma desculpa para forçar uma dúvida e logo depois lançar a certeza de que o menino é adotado. É necessário ainda prosseguir com as amarrações frouxas e os subterfúgios dramáticos, como trazer Hikari de volta para reivindicar o garoto e introduzir um flashback sobre a trajetória dela de sofrimento até chegar ali.

No meio desta platitude de previsibilidades, talvez seja possível encontrar algum respiro breve de suspensão em uma sequência: aquela em que Maho, uma das adolescentes grávidas da Baby Baton, celebra seu aniversário em um churrasco com a vizinhança e as amigas da ilha. Os planos voltam a ficar instáveis, escutamos uma voz off feminina a interpelar aquelas personagens em closes e vemos a sombra de uma mulher que filma com uma câmera na mão. Seria a mesma Kawase em cena a reconstituir aquele plano de sua sombra em Caracol (Katatsumori, 1999)? Mas logo o plano se dissipa e Mães de Verdade volta a ser um filme de apaziguamento do já esperado. Se em Caracol, a diretora abraça o mistério na relação com sua avó para tratar de maternidade, já não  espaço para qualquer opacidade em Mães de Verdade, porque agora o que interessa é decodificar as imagens ao bom entendimento e deixar de lado o enigma que é a própria vida. 

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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Olhar de Cinema: Nasir

Por Camila Vieira

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Inspirado no conto A Clerk Story, de Dilip Kumar, a estrutura dramática do longa-metragem Nasir, do indiano Arun Karthick, também assume ser concentrada e compacta. É a história de um homem comum, Nasir Bhai, que trabalha em uma loja de tecidos. Ele tem uma família; dorme, se acorda e sai de casa todos os dias para trabalhar; fuma alguns bidis (cigarro local) e interage fortuitamente com personagens corriqueiros que aparecem no meio do caminho. Ele demonstra preocupação em ajudar a família: carrega potes de água para casa e entrega o almoço do sobrinho na escola.

O protagonista pertence a uma minoria muçulmana em uma comunidade predominantemente hindu. O alto-falante nas ruas anuncia que a procissão do festival hindu está perto de acontecer. Mas Nasir não se preocupa e continua a cumprir sua rotina, ainda que surjam problemas que afetam sua vida. As pessoas ao redor de Nasir também parecem viver um dia de cada vez. Os momentos em que a valorização do comum fica evidente no longa-metragem são os que mostram a interação entre os colegas funcionários da loja de tecidos. O protagonista recita para eles um de seus poemas que termina com o verso “o que é a vida senão solidão e silêncio?”

Nos trechos em que os personagens dormem, os peixes pintados nas paredes e refletidos nos abajures parecem compor a atmosfera de quem também sonha apesar do enfrentamento diário cotidiano. Mesmo que seja difícil entregar uma encomenda em um lugar distante ou guardar o pouco dinheiro que se ganha para melhorar de vida, Nasir é um personagem em constante movimento. Ele não se paralisa diante das adversidades, ainda que, ao fim de tudo, o infortúnio apareça para ameaçar sua existência.

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Olhar de Cinema: Um Filme Dramático

Por Camila Vieira

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Na cartela final de Um filme dramático, explica-se que “as ideias, as histórias e as imaginações” do filme são das crianças e pré-adolescentes creditados e que também são estudantes do Colégio Dora Maar, em Saint-Denis, subúrbio de Paris. O longa-metragem foi realizado durante quatro anos de encontros com os alunos, dentro do que o realizador francês chama de processo colaborativo, a partir de uma encomenda feita pela comissão do distrito que construiu a escola.

No entanto, o que há na operação do filme que leva o espectador a crer que seja realmente fruto de um processo colaborativo? É certo que estão ali os planos filmados pelas próprias crianças. Elas filmam relatos feitos em frente à câmera sobre os acontecimentos cotidianos (como se fossem pequenos filmes diários) ou takes com passeios pelas ruas (em que muitas vezes, a grande diversão é descobrir o efeito de um zoom). A beleza dos planos criados pelos estudantes paira justamente na câmera que treme, na voz que titubeia, na incerteza do que filmar ou não. Mas em boa parte do filme, o que vemos é uma câmera controlada, a observar o que acontece entre os estudantes na sala de aula.

Essa câmera sempre atenta que não quer vacilar e que está ali a serviço da captura dos “melhores momentos” de interação entre os estudantes foi guiada por dois diretores de fotografia, Claire Mathon e Raphaël Vandenbussche. Eles fazem parte da equipe formada por Eric Baudelaire, que também contou com a participação da montadora Claire Atherton no processo de escolha de quais imagens caberiam ou não para o longa-metragem que se vende para o mundo com a chancela de “filme colaborativo com os estudantes”.

Nestes planos controlados, acompanhamos discussões até bem interessantes entre as crianças. Em determinado momento, elas repercutem sobre os imigrantes na França e se o governo do país é ou não racista. Em outro, elas falam sobre o que pode ser um filme ou o que caracteriza um documentário. Dentro de um debate acalorado sobre a importância do registro do som, um dos estudantes explica para os outros que, se um documentário perde o som, ele se torna dramático ou ficção científica. Na mesma sequência, vemos uma menina bater uma claquete e, no início, o som está sem sincronia com a imagem e, quanto mais a garota bate a claquete, o som começa a se sincronizar. No entanto, a brincadeira de disjunção sonora é proporcionada pela edição controlada de Um filme dramático.

Eric Baudelaire quer fazer com que os espectadores acreditem que seu filme seja colaborativo com as crianças, mas ele também faz questão de assinar sozinho a direção de seu próprio filme. O que se forja na construção de Um filme dramático é a roupagem do “filme fofo com crianças que filmam” e que tem muito pouco ou quase nada de colaboração efetiva dos estudantes no pensamento criativo do longa-metragem. Se Um filme dramático começa justamente com um plano instável de um céu escuro com uma estrela flutuante a ser filmada por uma criança com a câmera na mão que diz ser preciso estabilizar aquela imagem, o gesto de Baudelaire é tornar seu filme estável o suficiente para seu prazer individual como cineasta.

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Olhar de Cinema: Trouble

Por Camila Vieira

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Trouble começa com uma reportagem dos anos 1960 em que aparece o protestante David Coleman, aos 19 anos, em Belfast. Ele estava desempregado e prometia se casar com uma jovem católica. A união do casal desafiava os conflitos permanentes entre as duas religiões naquele território. Décadas depois, a imagem de Coleman na juventude e seu envolvimento político na capital da Irlanda do Norte conduzem a diretora estadunidense Mariah Garnett a realizar um filme sobre ele. David é o pai de Mariah e hoje mora na Áustria. A realização de Trouble foi uma forma da diretora estadunidense conhecer melhor seu pai ausente – com quem se correspondia apenas por cartas e teve o primeiro contato presencial quando ela completou 27 anos.

Ao retomar fotografias e informações do passado, David até fala bastante sobre sua família, o contexto político de Belfast e seu envolvimento como membro ativo do People’s Democracy, partido estudantil e trabalhista. Mas ele prefere relatar tudo do conforto de sua casa e recusa a proposta que Garnett faz de viajar à Irlanda para reencontrar seus amigos e familiares. A relutância do pai leva a diretora a construir uma estratégia bastante inusitada para seu filme: ela se veste tal como seu pai aparecia na reportagem e performa seus gestos e suas falas nas ruas de Belfast, como se fosse o jovem Coleman nos anos 60.

Ao preencher tais lacunas da memória com suas reconstituições históricas pela performance de seu próprio corpo em cena, Garnett brinca o tempo todo com a forma do filme e subverte a convencionalidade de um documentário de família. É um jeito queer de pensar e fazer cinema, em que o realismo dos depoimentos e das imagens de arquivo vai cedendo espaço para as divertidas encenações em que Garnett atua como o pai dela. Se desde o início já não era possível recuperar integralmente o passado de seu pai, a magia de Trouble encontra-se em assumir o artifício como estratégia de reposicionamento das falhas e das fissuras da memória e de inventar novos gestos narrativos para os códigos dos filmes biográficos.

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Olhar de Cinema: Traverser (Após a Travessia)

Por Camila Vieira

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Na Costa do Marfim, uma reza coletiva acontece em volta do túmulo do patriarca de uma família. Uma mãe e sua filha rezam, choram e retomam o caminho para casa. Na Itália, rapazes acabam de chegar e um deles é o marfinense Inza Touré, conhecido por todos como Bourgeois. Ele esteve preso na Líbia, acaba de aterrissar em território italiano e precisa chegar até a França, onde almeja melhorar suas condições de vida e conseguir sustentar sua mãe e sua família que lá ficaram na Costa do Marfim.

O documentário Traverser, de Joël Akafou, acompanha os percalços de Touré em sua rotina de sobrevivência em território europeu. Ao fazer uma chamada em vídeo para sua mãe, ele chora e ela o consola: “Diante da adversidade, você deve ser forte”. Mais tarde, ele olha para a fotografia da mãe e diz em voz alta: “Sou seu herdeiro, seu filho, seu sucesso, sua evolução. Tenho que lutar por você, mamãe”. Mas a Europa expulsa Touré a todo instante: ele não encontra oportunidades para permanecer por muito tempo em um só país. Ele pula de casa em casa e depende da benevolência de mulheres – Aminata, que pagou três vezes sua fiança na Líbia; Michelle, que o hospedou na Itália; e Brigitte, que pretende o receber na França.

Um dos amigos de Touré pede para que tenha cuidado para não enganar as mulheres que aparecem em seu caminho. “Minha vida é difícil. Estas são as condições em que sou obrigado a sobreviver”, explica Touré. A rotina como imigrante não abre novas possibilidades de escolha para Inza Touré, que mal consegue dinheiro para fazer uma travessia segura até a França. Em uma roda de conversa com outros amigos imigrantes na Europa, um deles fala: “O que estamos vivendo aqui não é uma vida! Estamos todos em um mesmo ‘barco’ na África”. A promessa de uma vida melhor na Europa é um horizonte ilusório que explicita as marcas da colonização.

Com Traverser, o diretor Joël Akafou volta a acompanhar a jornada de Touré, que também foi o personagem principal de Vivre riche, seu primeiro longa-metragem. A filmagem em cinema direto torna visível a proximidade entre quem filma e quem está sendo filmado, sobretudo quando a vida de Touré encontra paralelos com a própria experiência de Akafou como imigrante africano na Europa. A direção propõe se colocar ao lado dos anseios e das incertezas de Touré, sem julgamentos de seus atos.

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Olhar de Cinema: Responsabilidade Empresarial

Por Camila Vieira

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O dispositivo criado por Jonathan Perel para realizar Responsabilidade empresarial é muito simples: filmar as fachadas de empresas que tiveram papel ativo na repressão e na perseguição de trabalhadores durante a ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983. Enquanto vemos as imagens, escutamos a voz over de Perel que lê trechos do livro Responsabilidade Empresarial por Crimes Contra a Humanidade, Repressão de Trabalhadores durante o Terrorismo de Estado, publicado em 2015 pelo Ministério de Justiça e Direitos Humanos, no final do governo da então presidenta Cristina Kirchner, hoje atual vice-presidenta da Argentina. As informações contidas no livro expõem o envolvimento de cada uma das empresas e de seus proprietários em ações criminosas contra trabalhadores, principalmente sindicalistas.

Filmados sem tripé, os planos assumem a leve flutuação da câmera na mão de quem registra – o próprio Perel – sem a possibilidade de pedir autorização às empresas (já que tal solicitação provavelmente colocaria tanto filme quanto o realizador em risco). As filmagens foram feitas dentro do carro do diretor, que acoplou os microfones na parte externa do veículo. Mas ao mesmo tempo em que há a instabilidade do take, a frontalidade de cada plano junto à narração objetiva dos dados do relatório de crimes faz do documentário um contundente documento histórico, bastante cru, incisivo, sem rodeios.

A sucessividade dos planos com detalhes de números de vítimas assassinadas, torturadas, presas, desaparecidas, sequestradas desloca o espectador do seu presumido conforto ao ver um filme em uma sessão de festival. O acúmulo de crimes relatados provoca vertigem e nos leva a pensar o que o desvelamento de um passado pode nos dizer sobre o que acontece no presente. Por mais que seja um filme que lança luz sobre o passado cruel de derramamento de sangue na Argentina e que é constantemente apagado pelas forças locais, Responsabilidade empresarial é a denúncia do jogo permanente de interesses entre Estado e empresas privadas. Diante da conjuntura de pacto neoliberalista e ascensão do reacionarismo da extrema-direita em vários países do mundo, seria interessante que o filme pudesse circular e ser distribuído para um público mais amplo e não ficasse restrito ao circuito dos festivais internacionais.

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Olhar de Cinema: O Ano do Descobrimento

Por Camila Vieira

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A textura dos planos traz a materialidade do vídeo Hi-8. O ambiente filmado é um bar/restaurante em Cartagena. Os personagens em cena vestem figurinos que parecem ter saído dos anos 90, mas eles conversam sobre o tempo presente. Eles estão vivendo os anos 2000, mas de algum modo tudo o que vivem hoje reverbera um passado não muito distante da Espanha. Em 1992, as Olimpíadas de Barcelona e a Expo Sevilha divulgavam a Espanha como moderna, desenvolvida e dinâmica para o público estrangeiro. No entanto, o país vivia uma crise interna social, política e econômica, com desempregos em massa e 127 manifestações em 180 dias. Em O ano do descobrimento, a simulação dos anos 1990 criada pela direção de fotografia de Sara Gallego e a encenação proposta pela direção de Luís Lopez Carrasco nos convoca a pensar que mesmo quem vive o presente na Espanha é atravessado pelas consequências de um passado próximo.

Com o recurso do split screen (a tela dividida em dois quadros), o diretor apresenta 45 personagens diferentes que interagem no espaço fechado de um bar/restaurante, durante as 3 horas e 20 minutos de duração do filme. Mas a montagem cria uma dinâmica bastante singular. Em muitos momentos, um close é colocado ao lado de outro, como se fosse uma conversa em que se vê o campo e o contracampo ao mesmo tempo. Em outros momentos, os closes colocados um ao lado do outro, aos poucos revelam conversas distintas com outros personagens fora de campo. Alguns olham para os lados, mas não sabemos exatamente para quem; se é ou não é para o personagem que está presente no quadro ao lado. As vozes que ressoam nos dois quadros também se interpõe e se misturam. A estratégia produz uma instigante ambiguidade temporal ao filme, sobretudo quando os planos são intercalados por noticiários e propagandas dos anos 1990.

O documentário é dividido em três partes e um epílogo. Começa com conversas entre jovens sobre seus empregos: muitos deles trabalham em jornadas longas, sem folga; outros estão desempregados e desabafam que se sentem doentes, deprimidos e sozinhos. Diferenças salariais, relação entre chefes e operários, educação pública e movimento sindical são alguns dos assuntos principais abordados. Na última parte do filme, os mais velhos acrescentam informações sobre o passado na Espanha: o histórico de lutas em Cartagena, a repressão do franquismo, os engajamentos no Partido Comunista, as crises na produção industrial que afetaram milhares de empregos, a ameaça de fechamentos de fábricas e a terceirização que culminaram em diversos protestos pelo país. “As pessoas se uniram nas manifestações, mas o conflito foi ficando duro. Esse humor se tornou medo e medo se torna raiva e raiva se torna violência”, explica o sindicalista José Ibarra Bastida. Ao contextualizar a situação da Espanha com o tempo presente de ascensão mundial da extrema-direita, ele constata de forma bastante lúcida que o capitalismo venceu.

O ano do descobrimento começa e termina com dois jovens diferentes que relatam sobre sonhos recorrentes. O primeiro narra sobre um reencontro com seus amigos de infância em um sonho, em que os rostos deles aparecem envelhecidos e, mais tarde, ele se dá conta de que todos estão mortos. O último relata que, no seu sonho, não consegue esmurrar um nazista de perto, como se sua mão deslizasse e não conseguisse dar um soco. Entre a figuração da morte e a impotência da luta, os desejos dos mais jovens parecem figurar uma fantasmagoria da estagnação. Mas é preciso mais uma vez retomar uma frase de Ibarra: “A solução não é sindicato. A solução é política”.

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Artifício apocalíptico: alegoria e corpo em Medo do escuro

Por Camila Vieira

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O primeiro plano de Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo, apresenta em contra plongée dois prédios abandonados. Entre eles, é possível avistar o céu ser invadido por imensas nuvens brancas que estão a passar e que ocupam completamente o azul com uma grande e densa névoa. É uma atmosfera de um lamento fúnebre, uma figura ameaçadora como uma luz gigantesca e destruidora. Um holofote de um tempo de aniquilação das vidas. Aqui me amparo em Sobrevivência dos Vagalumes (2011), de Georges Didi-Huberman (2011), quando alerta para a luz feroz dos projetores que levarão ao desaparecimento dos vagalumes. Por meio do ofuscamento dessa luz branca, reina o fascismo triunfante.

Como seria possível para um corpo resistir ao fascismo que vai se disseminando pela paisagem de Medo do escuro? Antes de arriscar uma resposta, será preciso entender como o filme articula duas vontades singulares. O primeiro gesto é do levante, convocado pelas próprias palavras de Ivo Lopes Araújo sobre o filme. Um levante que se desdobra na própria feitura do filme. É toda uma cena artística de Fortaleza que é convocada como força coletiva dentro do filme: poetas, performers, músicos. O ator principal é Jonnata Doll, cantor e performer. A trilha musical do filme era executada ao vivo por um quarteto de músicos – Ivo Lopes Araújo, Vitor Colares, Uirá dos Reis e Thaís de Campos. Exibir o filme era uma aventura de viajar junto com um grupo. Cada exibição tinha o caráter de uma experiência única. Medo do escuro é um filme em processo, um work in progress. É até difícil exibir em uma sala de aula, porque sua experiência parece ser da ordem do provisório.

O provisório leva ao segundo gesto. Um filme rodado em 16mm, com película vencida, em que se tinha três horas de material bruto para resultar em um filme de 55 minutos. Cada take filmado era um take único. Seria preciso confiar na performance dos atores para que o filme acontecesse. Confiar na potencialidade do fragmento como estratégia para uma dramaturgia possível. Performance e fragmento compõem diferentes modos de articulação do que se encena, em uma vontade de instaurar um cenário pós-apocalíptico. Medo do escuro aposta no artifício como experimentação estética a partir da construção de imagens alegóricas, na tentativa de estremecer as relações contíguas com um real previamente conhecido.

Abrir caminhos para sentidos múltiplos e provisórios é fazer também uso da alegoria como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção no solo petrificado da significação. Tomo aqui o conceito de alegoria em Walter Benjamin (1984) para quem a alegoria configura-se como resistência ao símbolo. Diz Benjamin na Origem do Drama Barroco (1984): “alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens”. Nada na alegoria é definitivo.

O pesquisador Rainer Rochlitz dedica um trecho de seu livro O desencantamento da arte (2003) para compreender de que maneira a alegoria é elemento importante para construção de uma teoria da arte para Benjamin: “A alegoria não é aqui simplesmente um tropo, uma figura de estilo substituindo uma ideia por outra que lhe é análoga (…) a alegoria é não somente o princípio formal de um certo tipo de arte – desse ponto de vista, ela se opõe ao ‘símbolo’ ou a uma arte definida como ‘simbólica’ – mas ainda, mais que um conceito retórico ou mesmo poético, um conceito estético que remete à coerência de uma visão de mundo”.

Não se trata de compreender a alegoria como “uma técnica lúdica de figuração metaforizada”, como explica Rochlitz, mas como expressão, um conceito estético. Na alegoria, a face hipocrática da história se oferece ao olhar do espectador como paisagem primitiva petrificada. É “a história, naquilo que ela tem de intempestivo, de doloroso, de malogrado”, afirma Benjamin. A alegoria benjaminiana é uma recusa radical de qualquer reconciliação simbólica. Está mais próxima de uma experiência da história com um olhar profundo que, segundo Benjamin, “transforma, de um só golpe, as coisas e as obras”.

Se preferirmos enfrentar a força da alegoria nas imagens de Medo do escuro, parece ser preciso sempre retornar ao filme e, a cada nova exibição, pensar de forma diferente em relação ao que está sendo colocado em jogo. Ainda segundo Rochlitz, “a alegoria faz aparecer a fragilidade do símbolo, sua vitória sempre provisória e momentânea sobre a ‘arbitrariedade do signo’. A escritura expressiva da alegoria é destrutiva”. Ao lançar mão de imagens alegóricas, Medo do escuro provoca determinadas rupturas no olhar. Penso não apenas naquilo que conseguimos ver dentro de um campo limitado de uma tautologia das imagens, mas como o filme opera buracos, rachaduras, ausências em uma certa platitude da visibilidade, que a nós parece já estar acomodada e domesticada. Em outras palavras, seria possível pensar junto com Didi-Huberman que aquilo que vemos também nos olha.

Considero gestos de operações de figuras cinematográficas em que a imagem acaba por rachar, cindir, ser perturbada por rastros, marcada por vestígios que colocam em questão ou em suspensão regimes de visibilidade do contemporâneo que podem conduzir às tiranias de uma mirada realista naturalista ou de uma interpretação simbólica. Na alegoria, uma imagem não está a serviço de um modo de ilustração ou simbologia de algo dado no mundo, mas como potencial dialético que intercepta o símbolo ao convocar o provisório, o fragmento, o vestígio. De acordo com o pensamento benjaminiano, “na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora. O falso brilho da totalidade se extingue”. A imagem como fragmento e ruína dentro do cinema abre uma conexão com o artifício.

Ângela Prysthon (2015) argumenta que o realismo preponderante da década de 2000 vai cedendo lugar a ambiguidade do que ela chama de “realismo sob rasura” em que o artifício dilacera o real. “Choque deliberado entre o realismo e o artifício excessivo que desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos em plots mais banais”. Para a pesquisadora, a transfiguração ou desfiguração do real em filmes que apostam no elogio do artifício acabam por inventar mundos alternativos com o cinema. “Os filmes propõem potentes heterotopias fílmicas, exercícios de resistência ao real ou premonições sombrias, e se revelam extremamente pertinentes para pensar o contemporâneo”.

A alegoria pode ser pensada como conceito estético que, no cinema, vincula-se a uma estratégia do artifício. Para Benjamin, a alegoria é “um objeto de saber, aninhado em ruínas artificiais, cuidadosamente premeditadas”. Em Medo do escuro, tais ruínas artificiais engendram volumes de corpos e superfícies de paisagens entregues ao esvaziamento, às forças sensíveis dos vestígios em que o ver nada mais é que uma experiência dos rastros. Figurar a história como catástrofe, como acúmulo de ruínas, é o que mobiliza Medo do escuro. Um jovem sobe os andaimes de um prédio abandonado e cata papeis em meio a escombros para fazer uma fogueira e se aquecer. Ele deambula por uma cidade desolada, tomada por entulhos, em ruínas.

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As ruínas em Medo do Escuro não são apenas a constituição aparente da paisagem. Elas são imagens do provisório e do fragmento que a alegoria evoca e, de algum modo, roçam a fragilidade e o desamparo de uma cidade como Fortaleza, povoada por edifícios e ruas abandonadas. Lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, pairam em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade. Como ainda é possível habitar uma cidade em ruínas? Como criar bolsões de resistência neste cenário pós-apocalíptico? Contentar-se com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam, pode ser uma estratégia. O gesto é o mesmo do protagonista que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar restos.

Medo do escuro projeta cenários de paisagens em ruínas em que personagens encontram novas formas de sobrevivência. O filme é entulhado por escombros de prédios, em ruas esfumaçadas, com personagens em meio a fragmentos de espelhos e lixo. Prysthon compreende que “essas imagens de ruínas e de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real”. Mas é justamente a transfiguração que está em jogo nas imagens de Medo do escuro que faz com que a paisagem possa reverberar a sensação de ocupar qualquer grande centro urbano, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordena remoções constantes da população. A ruptura se dá neste lugar em que já não é possível reconhecer imediatamente a cidade de Fortaleza como lugar de representação, mas a construção de um espaço alegórico em que tudo parece ruir.

Se o levante se dá na práxis do filme, há um gesto iconoclasta em relação à imagem simbólica já desgastada do levante: jogar o coquetel molotov com o rosto coberto por uma máscara. Não há em quem atirar a garrafa incendiária – a cidade está vazia – e a máscara não é uma forma de esconder a identidade de um rosto – o ar está tóxico. É uma ação para o nada, que termina com a sensação de cansaço, muito comum ao que parte de nós vive no corpo. Um trio de agressores observa e ataca. Os corpos dos poucos sobreviventes entram em convulsão ou desencanto. São constantemente agredidos e abatidos. Há o gesto de acolhimento de uma garota em abrigar o corpo do jovem para um intervalo de cura. É preciso acolher em momento de necessidade de ajuda.

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Os lampejos intermitentes de Medo do escuro – espelhos reluzentes, reflexos do sol e o brilho nos corpos dos personagens – parecem vislumbres de um possível que permitem aos corpos continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo impulsiona os personagens a recomeçar. Em uma morada hostil, talvez não haja força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? O que esse filme pode convocar em meio a uma nova barbárie?

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A imagem narcísica do agressor irá se desfazer como um espelho quebrado e o céu voltará a ficar azul. O impulso de resistência parece estar guardado no corpo: ele extravasa em um movimento de dança, como os vagalumes que dançam na alegoria lançada por Didi-Huberman. “Nós podemos experimentá-la a cada dia – a dança dos vagalumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o momento mais fugaz, de mais frágil”. Enquanto houver força para se tornar vagalume, o corpo resistirá como ser luminescente, dançante, errático, intocável. Eis que a questão em jogo é política e histórica.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

________________. As passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

______________________. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

PRYSTHON, Ângela. “Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 66-74, 2015.

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. Bauru: Edusc, 2003.

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Editorial: O cinema e as formas do trabalho

Por Camila Vieira

Lumiere_saida de operarios

Como invenção da experiência moderna, o cinema desperta o olhar para o trabalho como atividade da vida cotidiana e, desde seu advento, intensifica a percepção da existência do dinamismo laboral para o desenvolvimento de uma região. Em 1895, os irmãos Lumière filmam a saída dos operários da fábrica da família em Lyon, na França. O registro em breves 45 segundos é marcado pela singularidade histórica de uma época: a passagem de mulheres e homens da classe operária, da clausura da fábrica para a rua, em pleno boom da industrialização nas grandes cidades europeias.

A proposta da nova edição da Multiplot é pensar a presença do trabalho ao longo da história do cinema, seja nos registros documentais, nas narrativas ficcionais ou mesmo nas configurações do experimental. O conjunto de textos apresentados nesta edição não pretende compor uma genealogia do trabalho no cinema, mas pensar filmes em que as formas do trabalho tornam-se relevantes para a construção de poéticas cinematográficas, que podem ser diversas de acordo com a criação de cada realizador.

O cinema pode ampliar a sensação de brutalidade e esgotamento da força de trabalho – Mudar de vida (1966), de Paulo Rocha; e Stromboli (1950), de Roberto Rosselini – e criticar a intensificação do poder laboral na exploração dos desejos e das formas de vida – No coração do mundo (2019), de  Gabriel Martins e Maurílio Martins. Ou explicitar o trabalho como instrumento de perpetuação das heranças do colonialismo e das marcas da escravidão, como em A negra de… (1966), de Ousmane Sembene.

Há filmes capazes de engendrar formas fílmicas que implodem a perpetuação do trabalho mecânico doméstico – Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman – e outros que exaltam a eficiência laboral e a industrialização no crescimento da malha urbana – Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov. Uma comunidade de camponeses no pós-guerra italiano e a reflexão sobre o trabalho produtivo e os usos da terra mobilizam Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a realizar Operários, Camponeses (2001). O desequilíbrio entre patrões e empregados no ambiente da fábrica é o ponto de partida para Oito horas não fazem um dia (1972-1973), de Rainer Werner Fassbinder.

Se a história do cinema nos oferece um apanhado de imagens diversas de trabalhadores, será preciso então fazer um movimento de retorno ao filme dos Lumière, como faz o ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Não é um retorno que se paralisa no passado, mas compreende o presente a partir dos gestos que perpetuam a organização do mundo do trabalho. A máquina da alienação proletária também movimenta a força dos operários para longe da fábrica ao fim do turno diário.

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Máquinas de monitoramento, vigilância e captura

Por Camila Vieira

Uma sala com uma cadeira vazia. Um homem prepara uma câmera fotográfica no canto direito do quadro. Dois policiais trazem uma mulher, que é obrigada a se sentar na cadeira. Aos olhos vigilantes dos três sujeitos, ela retira o casaco, o chapéu e arruma o cabelo. O fotógrafo faz os últimos retoques em sua roupa e depois aciona a câmera. Ela vira o rosto em outra direção. Os policiais seguram à força seus braços e sua cabeça, para que ela fique imóvel e com o rosto em frente à câmera. Enquanto permanece imobilizada, ela faz caretas. O enquadramento fica mais próximo do rosto da mulher que continua a contorcer o rosto, até chorar em desespero. A cena aqui descrita de A Subject for the Rogue’s Gallery (1904), de A.E.Weed, é uma alusão a um acontecimento bastante comum nos departamentos de polícia do final do século XIX: o modo como os presos resistiam ser identificados pelos bancos de fotografias dos procurados pela polícia (os chamados rogue’s galleries).

Logo após sua invenção, a fotografia é imediatamente usada para fins criminológicos e para alimentar coleções de retratos de suspeitos e criminosos. Era uma prática comum incentivar a exibição pública de tais imagens. A tarefa policial passa a depender do reconhecimento dos sujeitos mediante as fotografias, mesmo que ainda sem organização e procedimentos muito claros. Como a técnica fotográfica àquela época ainda necessitava de um tempo maior de exposição, as pessoas a serem retratadas logo encontraram uma tática de resistência à captura violenta de suas imagens: contorcer as expressões faciais para impedir uma fotografia nítida do rosto.

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Se o advento do dispositivo fotográfico atrela-se ao poder de quem produz imagens e ao modo como o corpo do outro será controlado, a violência da captura perpetua-se simbolicamente em outros aparatos técnicos que marcam a modernidade. Em 1878, o fisiologista francês Étienne Jules-Marey desenvolve o fuzil cronofotográfico – um tambor forrado com uma chapa fotográfica circular, que produzia 12 frames por segundo. A técnica deste curioso invento ótico foi pensada com o intuito de capturar as fases consecutivas de um movimento, mas está radicalmente associada ao gesto de apontar e disparar.

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No contexto contemporâneo, o disparo na captura das imagens parece ceder lugar a uma forma de controle silencioso e de monitoramento dos corpos: o reconhecimento facial. Em julho de 2019, imagens de rostos envelhecidos povoaram as redes sociais em uma espécie de nova febre que viralizou em poucos dias. O uso massivo do aplicativo FaceApp reacendeu o debate em torno da privacidade na internet e do uso de dados pessoais para manutenção de um grande banco de reconhecimento facial. Com o avanço da inteligência artificial e de softwares de mapeamento de rostos em seus diversos ângulos e expressões, o reconhecimento facial é uma ferramenta tecnológica que vem sendo usada a serviço de uma hipervigilância que se normalizou. É um mercado que movimenta bilhões de dólares, sem regulamentação clara e fiscalização. Academias de ginástica, bancos, companhias aéreas e empresas de telefonia usam a ferramenta. Smartphones são desbloqueados com a imagem dos rostos de seus donos.

O reconhecimento facial vem sendo usado em larga escala nas grandes cidades como tática para identificação e reconhecimento de suspeitos de crime, terroristas, foragidos e indivíduos com mandado de prisão, que são rapidamente capturados pela polícia. Aqui no Brasil, o governo da Bahia e do Rio de Janeiro implementaram uma ostensiva prática de vigilância por câmeras com reconhecimento facial para auxiliar o trabalho de agentes de segurança pública. Tais programas são criticados pelas imprecisões dos algoritmos com falhas de identificação que levaram a prisões de pessoas inocentes. Nos próximos três anos, o metrô de São Paulo será equipado com um número maior de câmeras com tal tecnologia. Em outros países, manifestantes já estão usando estratégias de contra vigilância. Em Hong Kong, protestos recentes envolveram bloqueios da visão das câmeras por meio de lanternas laser e destruição de torres de reconhecimento facial.

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Em Imagens da Prisão (2000), Harun Farocki já anunciava como a economia das políticas de vigilância está presente em instituições que operam por táticas de controle: as prisões, os asilos, os internatos, as fábricas, os supermercados. O filme é um grande apanhado de imagens restritas ao espaço institucional (os circuitos internos das câmeras de vigilância e os aparatos digitais de monitoramento) e articuladas com trechos de filmes da história do cinema. Farocki reflete sobre dois tipos de enquadramento na produção das imagens de vigilância: a fila ordenada e o retrato do indivíduo ou do grupo. “Nos rostos, busca-se algo para o qual não há uma definição. Isto é o que a câmera atrai”, diz o narrador. Se o próprio rosto transgride o gesto de captura, novas ferramentas intensificarão as formas de fiscalização dos corpos. No mesmo filme, aparecem os aparelhos biométricos para controle de acesso, como a identificação pela íris. O mapeamento dos clientes no supermercado torna os corpos dos consumidores meros pontos que circulam na tela do computador, com códigos que registram a lista de compras.

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A quem interessa a produção em massa de tais dispositivos de controle e vigilância? Quem gira a grande máquina do capital? Empresas de desenvolvimento de softwares de reconhecimento facial cada vez mais sofisticados lucram a serviço da segurança pública. Além de produzir imagens sem autorização e consentimento de quem está sendo filmado, as falhas nos dispositivos apontam para uma base de dados discriminatória. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Stanford e o Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), três grandes sistemas de reconhecimento facial no mundo – IBM Watson, Microsoft Cognitive Services e o Face++ – apresentaram diferenças gritantes de erros de identificação de acordo com o gênero e a raça. Com homens brancos, as falhas não chegam a ultrapassar 0,8%. Com mulheres negras, o índice de erro alcança 34%. São instrumentos criados para cercear a liberdade de quem já é historicamente apartado dela e se configuram como uma ameaça permanente aos direitos civis.

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