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HOMEM-ARANHA 2: Sobrenatural como manifestação do caráter humano

Por William Andrades

O Homem-Aranha 2 (2004), de Sam Raimi, evidencia um caráter super-heróico que potencializa o sobrenatural enquanto fantasia de cunho heróico ao mesmo tempo que define um contexto dramaturgo tanto de mito quanto de humanidade. É um filme que foca na identificação e admiração do mito, ao mesmo tempo que disseca a questão de como o sobrenatural age no mundo real. Talvez seja o filme de super-herói que mais abraça a ideia de discutir os temas que o subgênero traz consigo. A ideia da figura mítica que tem uma vida dupla; o dever moral do altruísmo; o sobrenatural como manifestação do caráter humano… Afinal, o que Peter Parker (Tobey Maguire) faz que o torna um super-herói?

Sam Raimi é uma escolha certeira para os filmes do Homem-Aranha. Vindo do cinema de horror, o diretor entende do universo da fantasia, de potencializar o ridículo como sério, de manter um certo humor ao mesmo tempo que abraça todas as possibilidades dramaturgas ali. Ele tem sua própria linguagem, usa muito da câmera subjetiva, muitas cores saturadas. Mas aqui o cineasta talvez tenha feito seu filme mais sóbrio. Mesmo assim, ele se dá ao luxo de brincar um pouco. A cena do hospital tanto brinca com seus filmes anteriores (a motosserra, referência direta a Evil Dead, de 1981) quanto com o gênero de horror em si. Após seu fracassado experimento, Otto Octavius (Alfred Molina) está em uma cama de hospital sedado, com os médicos se preparando para remover seus braços metálicos, que despertam e começam a matá-los sem consciência de Otto. Quando Otto desperta, ele vê o monstro que se tornou. A cena usa de todos os gags que o cineasta criou e aprimorou na sua trilogia Evil Dead. Esse cinema muito objetivo que se diverte ao mesmo tempo que cumpre com precisão o horror. Se decuparmos, pode parecer um momento muito deslocado em termos de tom, mas funciona porque o filme tem uma inocência na maneira como retrata a fantasia, e apesar da chacina, ele estiliza o suficiente para dramatizar o momento sem torná-lo ofensivo.

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Desde o início o diretor quer deixar claro o quanto ele acredita naqueles personagens como figuras humanas e com potencial tanto fantasioso quanto dramático, e mescla as duas coisas de uma maneira muito interessante. Toda essa ideia de discutir num nível quase teatral (o filme tem muito mais diálogos do que momentos de ação ou imediatismo) o tema heroísmo não é por acaso, Raimi evidentemente queria tornar as coisas mais clássicas. Existe toda uma encenação, na maneira como ele coloca os personagens na cena de forma organizada para o diálogo, na Nova York vintage começo dos anos 2000, que torna as coisas teatrais. Nos diálogos ele usa os planos/contra planos mais simplistas possíveis, mas que acabam criando algo mais definidor. É formalismo pela técnica e classicismo pelos temas abordados. Ele não esconde nada, filma tudo de uma maneira muito direta e sem chamar a atenção para si. É uma criação de mitologia e de sentimentos feito com muito pouco e de maneira minimalista. Na cena em que Peter confessa para a Tia May (Rosemary Harris) sobre sua culpa na morte de seu tio (Cliff Robertson), apenas o olhar dela pra ele já possui mais sentimento que qualquer filme da Marvel dos últimos 10 anos.

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Existe toda uma questão, bem clichê até, de relações humanas que tem tanto um potencial para o ridículo quanto para o mítico. O segredo que o herói guarda da sua tia, o romance não consumado, o amigo buscando vingança. Ainda que seja um filme bem sóbrio, Raimi já dá indícios da cafonice que ia abraçar no terceiro filme. Aqui, por enquanto, todos os dramas têm uma carga muito pesada, ainda que tenham um humor muito particular. Lembra um pouco o cinema do Shyamalan, cineasta que também se aventurou pelo gênero por acreditar no potencial dramaturgo da fantasia do super-herói e trabalhar bem o humor ali. Existe uma fé naqueles enquadramentos, naqueles sentimentos. O contato humano, a troca de olhares… É enriquecedor.

Raimi trabalha o personagem de Peter de um jeito muito particular. Ele desenvolve o personagem num tom cômico e levemente melancólico. Acompanhamos o seu cotidiano com todos os empecilhos que isso traz. Ele é humanizado através das dificuldades e prazeres mundanos, seja chegar no horário na faculdade ou receber uma festa surpresa de sua tia. Todos os conflitos do personagem são estruturados nessas dinâmicas muito comicamente realistas, como por exemplo a cena da festa no planetário. Peter não apenas briga com seu melhor amigo e vê a mulher que ama sendo pedida em casamento por outro, mas ele se frustra nos intervalos desses momentos. São pequenas gags do protagonista tentando pegar algo que uma garçonete está servindo e alguém pegando primeiro, ou ele pegando um copo que estava vazio.

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Isso que torna mais na frente uma cena tão importante, onde ele questionando se deve sacrificar seus sonhos para ser o Homem-Aranha, recebe uma visita de sua vizinha, uma pessoa desimportante em sua vida, lhe oferecendo um pedaço de bolo. Raimi dedica mais ou menos um minuto de filme a essa cena supostamente desinteressante. Acontece que, esse breve respiro, esse momento de aconchego e intimidade do personagem, dá a sutileza humana que ele precisa. Ele não é apenas uma peça nessas dramatizações todas, o fator identificação é mais importante que a ambição pelo épico que o arquétipo traz. Peter recebe, em resumo, uma boa e simples ação. Esse momento o revitaliza com os quadros mais simples que um diretor poderia elaborar. Mostra um certo contraste, “quebra” a construção do personagem que vinha seguindo um certo padrão de ridicularizá-lo/ocupá-lo.

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Em seguida, Peter vai visitar sua tia, que não via desde que a contou que era o culpado pela morte de seu tio. Ela está de mudança (os afazeres mundanos como escopo dessas discussões é algo que se mantém por todo o filme), sendo ajudada por uma criança que admira o Homem-Aranha e questiona Peter sobre onde ele está. Peter diz não saber, diz que o Homem-Aranha precisou de um tempo, que queria fazer outras coisas. Sua Tia diz que o menino quando crescer quer ser o Homem-Aranha, e Peter pergunta o porque. Então ela começa o que pode ser o discurso mais definitivo sobre super-heróis, daqueles momentos enriquecedores que o cinema de herói não via desde que Richard Donner e Christopher Reeve mostraram ao mundo que o homem podia voar, em 1978. Ao mesmo tempo em que temos certas pistas de que ela pode saber sobre o alter-ego do sobrinho, o diretor não se importa com isso (algo que seria pensado primeiro em um filme da Marvel ou DC atual). Ela fala (ou seria o próprio Raimi?) sobre o poder do super-herói em uma criança, da sua figura de coragem e sacrifício, sobre como as pessoas reagem a essa figura mítica, como o admiram, querem ter apenas um deslumbre seu pelos céus que lhes dá esperança para continuar mais um dia.  Peter percebe não apenas que o Homem-Aranha é muito maior do que ele, mas que de uma certa forma o ajudava a continuar no dia a dia. É um discurso tanto definidor para o gênero quanto para o filme em si. E ao final da cena, ela pede para que ele a ajude na mudança.

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A ideia do sobrenatural no filme, do lado místico das coisas, é apenas um mote para potencializar discussões muito humanas e diretas sobre heroísmo e sacrifício. Os dons são retirados de Peter no momento em que ele passa a perder sua vontade. Não pode haver heroísmo sem sacrifício, sem altruísmo. É esperto do Raimi simplesmente não se preocupar em como os poderes dele vão e voltam. Não existe uma explicação científica como nos filmes da Marvel ou um realismo limitador como nos da DC. Aqui existe um universo particular onde antes é pensado os fatores humanos e depois os fantásticos. O mito é feito por seres fantásticos que representam condições humanas, e o Raimi disseca isso.

Existe outra cena muito emblemática. Peter, sem poderes, se depara com um incêndio no bairro. Ele decide se afastar como um civil comum, mas ao saber que tem uma garotinha ainda presa no prédio, ele decide entrar e salvá-la. Essa cena, por si só, já é poderosa. Até aí você tem todas as questões definidas numa cena de ação. O herói enquanto indivíduo, o perigo como potencializador do altruísmo. Mas, enquanto se recupera, Peter descobre que havia mais alguém no prédio que morreu. Ele percebe que precisa se mistificar para ser um super-herói. Peter enquanto pessoa, não é o suficiente. Apenas o mito pode transcender. E isso se torna uma questão catártica mais adiante no filme.

A cena do trem é o momento chave da trilogia. Primeiro, temos todas as questões morais postas à prova. Peter, mesmo se morrer, irá parar aquele trem e salvar aquelas pessoas. Segundo, temos os conflitos que antes eram implícitos agora realmente encarados pelo protagonista. É o momento em que o personagem percebe que não precisa deixar de ser Peter para ser o Homem-Aranha. Mas para ser um super-herói, ele precisa ser o Homem-Aranha. O indivíduo por si só não basta, ele precisa do sobrenatural para se mitificar. As pessoas no trem o reconhecem como um sujeito comum, mas também o engrandecem enquanto mito.

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O sobrenatural se encaixa como um reflexo do estado humano do protagonista. Os poderes que dependem da força de vontade, os braços mecânicos que se alimentam do desespero de seu hospedeiro. A questão de Raimi não é subverter (o que poderia se esperar em um plot de herói sem poder) o sobrenatural mítico, mas evidenciar o que faz de Peter Parker um super-herói. Ele destrincha todo o mote do gênero em prol de um estudo muito humano das questões que transformam a fantasia. Existe um tom muito cômico nessa ideia, quase que como um “Peter Parker vai a terapia”. Essa ridicularização e mitificação é essencial. Peter só consegue se enxergar como humano quando não tem os poderes. “Agora eu sangro se bater em mim”, diz ele a Mary Jane (Kirsten Dunst). Nesse tempo sem poderes ele precisa se provar sem a máscara, e isso envolve os fatores mais humanos (confessar a sua tia que a morte de seu tio é sua culpa) e até coisas mais heróicas, como salvar uma garotinha de um incêndio. O sobrenatural age como potencializador incontrolável do caráter. Testar o sujeito, dizer que ele pode ou não ser um super-herói. Uma discussão de dentro para fora. O filme de super-herói que mais desconstrói e engrandece o gênero.

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GREEN SNAKE: Fé e demolição

Por João Pedro Faro

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Das poucas definições possíveis para Green Snake (1993), a que João Bénard da Costa escreve para Narciso Negro (1947) parece a mais coerente: “Para amar Black Narcissus é preciso uma boa dose de infantilismo (…) É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura (…) Digamos simplesmente que Black Narcissus é um filme fantástico e erótico.” Da perversão religiosa às limitações da castidade, tudo caminha para desfechos brutais em Green Snake. Nessa progressão encontra-se não só todo esse “cinema do excessivo” (em tudo que está enraizado de horror, mistério e ação em qualquer imagem que Tsui Hark cria) mas, principalmente, no que lhe é mais custoso: os limites e as interseções entre o etéreo e o explosivo. Hark emerge no Wuxia as recorrências temáticas do gênero (a magia, as feiticeiras, os templos, as vinganças divinas) para tornar tudo que é místico, invisível e infilmável em uma experiência terrena consequentemente destrutível.

O fantástico e o erótico

A narrativa lendária, sobre duas irmãs feiticeiras cobras disfarçadas de humanas e suas complicações com um monge guerreiro, flutua sobre interesses cinematográficos muito mais sensoriais. Hark lembra que a maior qualidade de uma obra fantástica é deixar fantasiar-se, fazer com que a riqueza de seu cinema se dê unicamente pelo misterioso. Partir do princípio da fé, de uma compreensão incompleta, mas de um encantamento perfeito. O misticismo fílmico de Green Snake instaura-se como uma verdadeira reza, desde a canção de abertura até a iluminação fabulosa. Assim, esses fatores podem ser devidamente subvertidos e transformados em uma presença hostil. Aos poucos, tudo no filme se mostra potencialmente catastrófico, não apenas em sua narrativa mas essencialmente em sua forma.

A montagem de Green Snake sempre parece tender à uma progressão conflituosa, que prioriza uma movimentação ágil engrandecedora tanto de uma sensibilidade quanto de uma hostilidade. Como se todo raccord fosse parte de uma conjuração mística, de um golpe mortal ou dos dois ao mesmo tempo. Se o cinema sensorial é sempre atribuído à uma espécie de meditação, Green Snake transforma essa ideia mostrando que as sensações mais violentas e intensas também fazem parte desse estado de espírito. A harmonia encontra a batalha, pois nesse universo elas não só coexistem como são essenciais para a existência uma da outra. É da concentração, da paz interior, que o monge busca reconhecer o maligno e invocar a força para derrotá-lo.

Justamente no personagem do monge (Vincent Zhao) que se configura muito da essência de Green Snake, o que torna muito de sua visão de mundo definidora na narrativa. Nele, quebra-se a ideia de que a fé é um fator unicamente benevolente. Pelo contrário, pode ser o fator de perseguições obcecadas, do clamor agressivo por uma justiça absolutamente torta. É primordial para o filme que uma figura definida por sua áurea religiosa e estritamente conservadora se torne moralmente ambígua, na maioria das vezes questionável. Para Hark e as raízes libertárias que moldam todo seu cinema, de Dangerous Encounters of the First Kind (1980) à Alvo Duplo 3 (1989), a autoridade é sempre um instrumento de opressão dotada de um maniqueísmo simplório. Os religiosos que perseguem as irmãs feiticeiras, acusando-as de serem demônios, são sempre os agentes do ridículo. Como a irmã Green (Maggie Cheung) aponta em um dos confrontos: “Taoístas idiotas, mal sabem a diferença entre o bem e o mal”. No cerne da obra, a inconstância dos espaços e dos personagens também se aplica aos aspectos mais básicos de vilania e heroísmo. Como a tendência é a de que tudo seja pervertido, essa diferenciação entre o bem e o mal se prova cada vez mais equivocada.

GREEN SNAKE

Além da religiosidade, de aspectos sensoriais que evocam a violência, tudo que entende-se por sexual ou apaixonado também faz parte dessa transição para o destrutível: A irmã White (Joey Wong) que se apaixona pelo humano comum (Husi Xien), quebrando toda a lógica de espaço e iluminação de seu entorno quando está junto com ele. Green, que após uma crescente inveja de sua irmã, seduz o monge, testando os limites de seu voto de castidade e gerando toda uma libertação brutal que o monge precisa conter (basicamente todo o conflito do ato final é gerado porque o monge se excita quando se relaciona com Green, criando nele uma ira que precisa expurgar da terra esse elemento desestabilizador). O toque, o ato de sentir o outro e a delicadeza de suas intenções confundindo-se com o que é pecaminoso e condenável. Uma relação constante que o monge faz entre tudo que é “do homem” ser destrutivo, por mais que todo seu divino destrua muito mais do que o humano. E a ingenuidade em tentar decifrar tudo que seria parte desse “humano” em Green (um dos grandes momentos do filme, quando pede ao amante de sua irmã para ensiná-la “o que é desejo”). E ainda no próprio relacionamento entre o casal de irmãs, a relação entre elas é constantemente abalada por necessidades mundanas que encontram em sua nova vida. Como se relacionam os seres sobrenaturais? Como isso pode ser quebrado e deturpado pelo convívio com os homens? O espaço que habitam com seus novos corpos ajuda a deixar ainda mais tênue o limite entre o humano e o não-humano, ocorrendo uma quebra do comum em ambas as partes.

A noção de que qualquer gesto pode ir contra o sagrado ajuda a integrar a fantasia de Green Snake em um exercício de limitações mesmo dentro de uma obra tão formalmente livre. As cenas de sexo onde a câmera voa e transita entre as locações, como se num estado de elevação, ainda vão gerar consequências demolidoras, onde essas mesmas locações serão colocadas abaixo e esses personagens passarão do erotismo para guerra. As mais serenas sensações carregam o peso consequente das mais intensas tragédias.

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Dom divino e maldição

Green Snake é de uma potência tão única que consegue trazer para si em toda sua conjuntura uma das questões mais primordiais que existem: como separar a sensibilidade com o sobrenatural entre maldição e dom divino? Esse fantástico que se espalha em todos os enquadramentos, que está em qualquer imposição formal e narrativa, traz aos seus personagens a sofisticação espiritual ou a danação pelos pecados? Hark se interessa, a todo momento, por essas perguntas (como trazido anteriormente, as perguntas são sempre mais importantes para a fantasia do que as respostas). O questionamento conflitante entre os protagonistas envolvidos numa grande corrupção de seus arquétipos é centrado nessa separação entre o místico “puro” e o que de alguma forma está envolto pelo mal (“Você diz que há amor nos humanos. Não poderia haver amor no mal também? Estamos juntas há 500 anos, deve haver amor entre nós também”, aponta uma irmã feiticeira para a outra). E na complexidade de tantas abstrações, Hark oferece aos seus personagens apenas o que está concretizado desses questionamentos (“Vamos ascender aos céus, para que os Deuses sejam nossos juízes”). No plano terreno, a presença fantástica jamais poderá ser julgada.

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No confronto final, a fé já se tornou integralmente um caminho para a batalha. Dentre sacrifícios, Green e o monge são os únicos sobreviventes dentre os quatro personagens centrais. Nesse momento, retoma-se aos poucos o ideal de harmonia: os dois inimigos se reconhecem um no outro, pela tragédia e pelo pecado em comum. Mais uma vez, a ideia religiosa maniqueísta dá lugar à ambiguidade das sensações, das motivações e do espírito. A fé agora passa a guiar Green e o monge para os questionamentos. Sobre as ruínas de um templo budista absolutamente destruído (existe concretização imagética mais poderosa?), ambos percebem a grandiosidade do irresoluto e do fantástico. Na despedida entre os personagens, permanece uma efemeridade que Hark evoca nos conjuntos mais primorosos desde o princípio da obra. Para um filme que abre com uma marreta esculpindo uma pedra e se encerra com uma gota de água caindo, é seguro dizer que em seu desenvolvimento o bruto e o sensível encontraram um plano relacionável.

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CAMOCIM (2017) – Quentin Delaroche

Por Pedro Tavares

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Como uma grande jornada de coadjuvantes, oposto a boa parte dos filmes da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Camocim tem como objetivo investigar os novos protocolos e cartilhas de campanhas políticas. Longe de Entreatos (João Moreira Salles, 2004) e mais próximo de Aprendi a Jogar com Você (Murilo Salles, 2015), o filme de Quentin Delaroche se debruça nos meandros que mantém a cabo eleitoral Mayara longe de escândalos e o entrelaçamento que micro e macro oferecem na briga entre “azul” e “vermelho”, como uma grande gincana política.

Mesmo com o objetivo de Mayara em levar o amigo César Lucena à vitória na campanha para vereador, há a grande questão da idoneidade, ainda que toda ação esteja ligada mais ao circo que ao pão e água: são micaretas, festas e o famoso jogo de corpo a corpo. Mayara está longe de uma personificação nestes casos; seu objetivo é a vitória, mas a inevitabilidade de estratégias mais festivas coloca sua postura em cheque. Esta duplicidade entre a ordem e o sucesso é muito funcional no filme de Quentin Delaroche. Ela leva à afirmação da importância de toda conversa política entre os moradores de Camocim de São Félix, independente de seus fins. É o pensamento sobre a dimensão de cada palavra e gesto numa briga folclórica.

Portanto, quem se adequa é o olhar; Camocim é um filme que aceita seus entornos e regras no princípio e escolhe a observação como melhor caminho de testemunhar este espelho do macro que é esta campanha/gincana, colocando, finalmente, a política como status de jogo de interesses maiores e Mayara é conscientemente uma peça deste jogo com a noção de que suas ações tem um limite moral e de tempo. Caso vença, César seguirá sozinho, caso perca, a consciência de Mayara estará limpa. E à câmera de Delaroche interessa somente esta encruzilhada moral e existencial de Mayara, ainda que o passado da cidade esteja permeado nos eventos com certo negativismo.

Tanto Quentin quanto Mayara lutam, em diferentes formas, para não se adequar à arbitrariedade que este ritual impõe. Não se trata de sobrevivência e de iconoclastia, mas de significados imensos – exibidos em retalhos como um grande retrato do Brasil. Camocim, portanto, concretiza o momento sem restaurar o passado do país. O interesse geral está nos gestos que compõem significados sobre o estado crítico que o país se encontra; ainda que Delaroche não procure ostensivamente a saída, ele entrega aos jovens este caminho quando Camocim deixa de ser um fluxo de imagens políticas para ser enfim, um filme sobre pessoas.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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PLATAMAMA (2018) – Alice Riff

por Gabriel Papaléo

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É curioso ver em Tiradentes um filme de 2018 cuja estética se aproxima do cinema observacional, depois de toda a renovação formal que filmes como A Vizinhança do Tigre e Branco Sai, Preto Fica propuseram há alguns anos, porque agora essa ideia de cinema tornou-se uma grife, uma ideia de pertencimento diante dos festivais. Parece que o formato é uma ferramenta para estruturar uma obra visando acomodá-la numa plataforma de exibição, quase como um gênero – e diante de Platamama essas intenções entram em conflito com os próprios personagens.

O retrato atento de Choco e sua família, bolivianos que vieram para trabalhar no Brasil, permanece expondo tanto o cotidiano dos retratados quanto a densidade política desse contexto; o olhar politizado de Alice Riff busca trazer as fraturas da rotina daquelas pessoas ao contextualizar desde o letreiro inicial as dissonâncias sociais presentes na vivência daquela família, teoricamente acossada no território brasileiro, mas a potência do panorama reside no processo das questões do dia-a-dia que todos ali passam por – especialmente Choco e sua mãe. Enquanto o garoto busca na música e no afeto dos amigos produtores uma expressividade em contraponto ao trabalho quem tem com a mãe, a mãe encara no trabalho apenas o meio de conseguir a sobrevivência e conforto nesse ambiente estrangeiro, e o que de fato persiste no filme é a vontade de construir um conforto de lar representativo desses personagens diante das adversidades.

É a partir da ideia de pertencimento cultural que Riff desenvolve melhor o olhar observacional, e a espontaneidade dos personagens, o que é a melhor coisa do filme. A família procura no Youtube as novelas locais e músicas em espanhol que tocam durante a narrativa, seja como foco da cena seja como pano de fundo, e falam sobre essa cultura através do microcosmo doméstico como uma forma de contato com essa casa distante. O retrato se complexifica, ainda, na figura de Choco, um jovem cujo sonho de ser rapper o aproxima de um imaginário trap gangsta oriundo dos Estados Unidos que o coloca tanto em contraste como complemento seja identificação com um ambiente que nunca está presente em corpo, mas em atmosfera e memória.

A mão do observacional de tese pesa por vezes, trazendo um clima de medo que se revela pouco eficaz em planos como os das chegadas do ônibus, em uma narrativa que sabe privilegiar pequenos momentos, mas sabe concentrar a maior parte da projeção em cenas como a no aniversário, que preocupam-se mais com uma atenção a seus personagens e a expressão deles diante do mundo, e as formas de resistência ali praticadas para existir e se sentir pertencente ao país que residem. Às vezes essa atitude é mais política que qualquer dado econômico.

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O NÓ DO DIABO (2017) – Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abe, Jhesus Tribuzi

por Gabriel Papaléo

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As maldições historicas das terras brasileiras vem acertar as contas fisicamente com os opressores. Toda essa herança que o solo do país carrega pela violência na qual foi fundado e mantido vem através de uma interessante ressignificação mitológica sobre as lendas que são tradicionalmente orais e literárias no país, uma ideia de apropriação de gênero para comentar uma resistência cultural através da fantasia.

A forma que o segundo curta, dirigido por Gabriel Martins, se destaca vem muito pela disposição de marcar os rituais e a estrutura do terror e inseri-lo num contexto de pavor emocional, de lastro na personagem vivida pela sempre ótima Clebia Sousa, e cuja disposição para o gênero em linguagem não se contém apenas em emular zooms e utilizar o gore pontualmente. É um exemplo das possibilidades que o filme abre mas não concretiza, um ideal de antologia curiosa por ter uma unidade muito clara, e que busca uma atualização do gênero no Brasil como resistência do oprimido de forma similar ao recente As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra.

O flerte com diversos subgêneros do suspense e horror (o filme de cerco, o filme de possessão, o horror de corpo, o medo e delírio no deserto) demarca essa disposição de combate através do retrato de uma realista aumentada fantasiosa justamente para tentar denunciar a violência contra oprimidos ou devolver justiça às tensões raciais.

Essa intenção se perde muito por conta da direção dos outros quatro curtas, focados em estruturas consagradas e se bastando nisso. Por mais que a unidade da antologia chame a atenção, mostrando um trabalho de contextualização historica e espacial em um formato que tradicionalmente não se preocupa demais com isso, existe em O Nó do Diabo um visível interesse maior nas consequências e representações da narrativa que na estrutura e processo dos gêneros nos quais opera. O quarto curta é o que melhor exemplifica essa tendência: o sequestro do acid western para criar um conto de loucura no deserto aliando a uma consciência de classe para expor o abismo de tratamento étnico no Brasil é uma iniciativa com potencial, mas se sabota no momento que o filme exige atmosfera e um visual que dê conta dessa jornada psicológica sem apelar para o mito das palavras. O sertão nunca é ameaçador porque a câmera não o trata como tal, por mais que o texto diga que é. Sobram apenas os simbolismos imagéticos, esses aos montes, com o círculo do flare comentando o eterno retorno das ações, a caveira da morte, a água 

A solução novamente se apresenta no curta de Martins: o cuidado no qual os instrumentos de tortura são filmados dá uma dimensão palpável para toda aquela ameaça, mas são apenas nesses momentos que o filme torna-se um interessante ensaio sobre a mitologia vingando o racismo do Brasil, e não o exercício de gênero burocrático que está em tela.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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LEMBRO MAIS DOS CORVOS (2017) – Gustavo Vinagre

Por Pedro Tavares

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O espaço da sala de Júlia, a personagem
de Lembro Mais dos Corvos, denota todo sentido do filme: Júlia está sempre pressionada em algum canto do cômodo. Uma forma de defesa que é logo interrompida por Gustavo Vinagre, pois sua câmera lutará por toda duração para coloca-la como centro, como protagonista, sempre em close. Há mais um sentido nesta batalha imagética: a grande brincadeira de questionar a veracidade de tudo que é visto.

Nesta duplicidade, é Júlia quem se destaca como grande personagem. O pilar necessário para que este exercício se sustente. A sala, uma zona mística para que Júlia exponha sua vida – um grande mosaico sobre intolerância e amor – na gangorra entre distopia e um controle de alegorias como o escape necessário para que o filme não seja um grande panfleto, remete à sala de aulas que Eduardo Coutinho investigou a vida de alunos de escolas púbicas do Rio de Janeiro em Últimas Conversas. Mas se no filme de Coutinho a insegurança e questionamentos sobre o que o público quer ou não ver e ouvir estava na direção, em Lembro Mais dos Corvos este peso está em Júlia.

Ainda que tudo cerque a função de humanizar sua personagem, isso não significa que o filme esteja engessado ao processo.  Júlia, uma grande atriz, com palavras, modifica o ecossistema do plano, como se sua sala fosse um grande chroma key e existisse a possibilidade de levar, pelas mãos, o público a lugares distantes. Novamente Coutinho vem à mente, pois em seu último filme, desejava entrevistar crianças em busca da pureza e da completa verdade e em Lembro Mais dos Corvos parece que este desejo poderia se realizar com um adulto – ainda que no cinema tudo esteja em cheque: o próprio dispositivo, o corte, a claquete, as roupas, bebidas e claro, as palavras.

Centralizar Júlia vai além da demanda dramática e de toda mensagem embutida em seus depoimentos. A insônia da personagem, tal qual o filme, é mais um obstáculo a se passar. Em extremos como estes citados, o espectro de uma parabólica sobre o macro, àquele que Júlia observa de longe, com uma câmera, com binóculos ou através de suas reconstituições em filmes, é o que interessa a Vinagre. Colocar Júlia da mesma grandeza que o mundo.


Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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BAIXO CENTRO (2018) – Ewerton Belico, Samuel Marotta

Por Pedro Tavares

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Como forma de registro da aura do centro de Belo Horizonte, Ewerton Belico e Samuel Marotta fizeram de
Baixo Centro dois filmes distintos; há uma capa de ficção científica – na forma de registro de ruas, vielas, passarelas, passagens e na atmosfera que a cidade é composta. Há também um filme slacker que se aproxima muito do cinema de Pedro Costa, em principal aos filmes do início de carreira do diretor português.

Esse slacker é, de longe, mais interessante que a sugestão de uma ficção científica, de um mundo apocalíptico e abandonado. Quando Belico e Marotta investigam seus personagens através de citações e articulações verbais – ou encontros para se recitar um estado de espírito, Baixo Centro é um filme gigante. Em contraponto a dupla sente a necessidade de um registro soturno, algo próximo à sensação de ter a câmera-fantasma numa cidade fantasma. Entre altos e baixos dessas apostas, Baixo Centro é um filme de estruturas sólidas e pouco sofre narrativamente com estas mudanças.

São transições radicais, mas que entre si traçam certa identificação com o desejo de declarar diversos sentimentos em relação a Belo Horizonte. O teatro formal que produz as vidas sem rumo e de poucos desejos de ação reforçam a densidade de um ensejo político e como ele está numa bifurcação muito interessante, mais interessado em seguir o caminho do filme e não de seguir uma necessidade maior que muitos filmes contemporâneos têm feito.

De certa maneira, Belico e Marotta colocam em prática a máxima de Farocki, transformando velhas imagens com um novo sentido. O filme das vielas é um teatro, o urbano, a ficção científica, e, entre eles, uma grande concepção de discurso político e como isso guia as ruas de Belo Horizonte diariamente como palco da sobrevivência e de manifestações: Belo Horizonte que é destinatária de uma grande carta de amor.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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DIAS VAZIOS (2018) – Robney Bruno Almeida

por Pedro Tavares

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Dias Vazios, à priori, é um filme de referências. À medida que o filme se desenvolve, surpreende como Robney Bruno de Almeida suspende o arco dramático para que essas referências estejam sempre inerentes ao que se vê e, a partir disso, construir o conceito básico do filme: a tragédia adolescente dos anos 90 e 00.

Como pilares narrativos, embaraçados em cada quadro estão a morte de Kurt Cobain, a chacina de Columbine e a HQ A Morte de Super-Homem, lançada nos idos dos anos 90.  No campo, o encontro que fundamenta o conto comum da juventude entediada em ambiente inóspito, reféns do tempo e da religião refletem desejos altamente arriscados. Dividido em três atos, o filme usa com clareza cada um desses pilares como uma espécie de confronto à possibilidade de construir uma vida neste ambiente. Ora de caráter ilustrativo, ora transformado em verbo e também como ação concreta, Kurt, Columbine e o Super-Homem aqui vão além de suas representações na cultura pop, respectivamente.

Nesta engenharia de encadeamentos, Dias Vazios em muitos momentos deixa de ser intuitivo, uma obra que sugere os espaços para os gritos de socorro, mas tende a ser burocrático como uma cinebiografia, pelo desejo da materialidade em uma história sobrenatural. De tentar eliminar toda força iconoclasta construída para se tornar um filme de desejos frontais, diretos à imagem como instrumento básico – a arma que é apontada, a página virada, os discos e cruzes. É um filme que não sugere a extensão desse círculo, da inospitalidade e da autodestruição como meio de fuga – para Robney interessa o uso do tempo e da angústia como suporte, apenas.

Os entornos de Dias Vazios não seguem o conceito de imortalidade. A ideia de eternidade deste sentimento é abortada. O ciclo acabará, pois a cidade também chegará ao fim, por mais que se reze. Portanto, ressiginificar os gestos também não é uma opção para o olhar como uma contradição à proposta principal. Os códigos do filme são moderados tal como sua mise en scène, para, nos minutos finais, novamente, encontrar um caminho estreito e a declaração de um fracasso iminente para seus personagens, mas não para o filme.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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ARA PYAU – A PRIMAVERA GUARANI (2018) – Carlos Eduardo Magalhães

Por Pedro Tavares

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Nos primeiros minutos de
Ara Pyau – Primavera Guarani logo é confirmada a tendência de distanciamento à possível comparação aos seus filmes-irmãos, ao menos de tema. O recente Martírio (Vincent Carelli, 2016), a dobradinha de Andrea Tonacci Conversas no Maranhão (1977) e Serras da Desordem (2006) e Taego Awã (Marcela e Henrique Borela, 2016). Surpreende que a estrutura seja o principal elo com a mensagem de resistência do filme. As primeiras imagens, enganosamente de um cotidiano feliz, formam uma mera apresentação.

Invocar um épico, um clima de batalha é o que Ara Pyau – Primavera Guarani faz. O filme apresenta seus personagens, motivações, preparação e enfim, a tão aguardada batalha contra o sistema. Manter o território e consequentemente suas tradições e a dignidade estão na segunda camada que o diretor Carlos Eduardo Magalhães constrói. Portanto, o objetivo, está em outro plano; interessa mais ao diretor o processo. Captar o que está entre atos ou sugerir a importância delas para passos maiores. Um espectro é construído a partir disto, longe de talking heads, estatísticas e imagens de arquivo – quando usa é em forma avançada, como o áudio de um jornal da Rede Globo para explicar, já próximo ao final do filme, sobre contra o que se protesta.

Essa tendência fica mais em evidencia quando o grande confronto está por vir: a trilha, os planos, os cortes; Ara Pyau – Primavera Guarani não é mais um documento sobre a opressão do governo paulistano e sim sobre soldados em prol de um objetivo. A guerra é verbal e veloz, uma espécie de contraponto a tudo que o filme se propõe. Quando existem ações, elas estão em função da estética e não do peso que elas trazem num contexto histórico. É o anticlímax que não esmaece o filme, mas que de certa forma diminui toda grandiosidade que Carlos Eduardo Magalhães procura. Ainda que existam outras ideias acerca desta aposta – a principal delas de colocar este problema como uma situação corriqueira para os índios -, fica uma lacuna enquanto a câmera se distância dos índios e das autoridades.

Vale o sentido antropológico que Ara Pyau – Primavera Guarani prega mais nas pequenas ações que nas palavras. E o filme constrói essas gangorras de opções diversas vezes, como se fosse obrigatoriedade cimentar as imagens pelo verbo – exibe um ritual e pouco tempo depois sacramenta a fé dos índios pelas profecias de um futuro melhor, por exemplo. Junto ao falso sentido épico, o filme se faz pendular. Que nas sugestões funciona melhor que nas afirmações.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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IMO (2017) – Bruna Schelb Correa

por Pedro Tavares

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Durante o debate sobre Era Uma Vez Brasília durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o diretor Adirley Queirós afirmou o seu interesse pela negação da fala e a incompreensão. Poucas horas depois veio IMO. Um filme totalmente dedicado ao jogo de compreensão, debruçado no lugar social e o contexto histórico feminino. Surpreende que em um filme com esta proposta encadeie em sua abertura e encerramento seus momentos mais claros a respeito desta proposta. Na mesma mata, por onde os créditos passam está o suposto paraíso de onde Adão extinguirá Eva como um canibal e que oferece espaço para uma assombração.

Dividido em três atos, IMO é simples nos seus códigos – há de entender ou não, mas em algum momento a resposta virá. Mesmo que não seja a resposta desejada. E nestes códigos existem momentos muito interessantes como a opressão de um telefone sucedido por uma voz masculina que também oprime; a mão masculina que inibe o desejo – nem sempre uma maçã é o símbolo do pecado -, ou a obrigatória vaidade (se o olho te faz pecar, arranque-o).

IMO é um filme que sugere a reflexão dos componentes de sua fórmula: a História, o lado social e, entronizadas, como as performances podem potencializar qualquer intenção de discurso ao abolir por completo as palavras – um crescendo que culmina numa cena de jantar onde uma mulher é o banquete. É a ideia de que o mundo agora demanda este arquétipo, talvez o mais passível de uma compreensão não rebelada – mais como um ponto final a uma discussão que se estende nos últimos anos.  Portanto, se o gesto é a forma mais genuína e o corte o caminho mais claro para a formatação deste discurso, IMO também é um filme que invariavelmente está em função da reencarnação de um cinema como uma defesa efusiva e não como um ataque direto – provavelmente a porção mais ativa do cinema brasileiro contemporâneo.

O filme de Bruna Schelb Corrêa é, portanto, mais sobre o exercício de filmar o que se deseja e a lógica de seu valor imagético e como ele chegará aos espectadores, suficientemente vivo para justificar-se silenciosamente. À imagem, sua força e verbo. Em tempos que muito se fala e pouco se ouve, é um filme necessário.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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NAVIOS DE TERRA (2017) – Simone Cortezão

por Gabriel Papaléo

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Os lugares de trabalho e a relação emocional distante com quem os utiliza. Existe o diálogo forte com a tendência contemporânea da observação de ações cotidianas de trabalho cujo maior força foi o cinema de Lisandro Alonso com La Libertad (2001), e toda a contextualização do navio cargueiro, com suas sombras e mecanismos hostis, confere toda a atmosfera mística palpável que os filmes do argentino tem de melhor.

O rigor formal da diretora Simone Cortezão no scope é contundente e intui todo um mundo ao redor apenas pela sugestão, através do desenho de som que lembra sempre da influência do mar e o isolamento que isso traz, e os planos mais abstratos remetem a filmes como Behemoth (2011) nessa proposição de um ambiente apocalíptico construído apenas de fragmentos de máquinas. 

Navios de Terra torna-se um filme menos interessante, no entanto, quando usa do texto para evidenciar suas metáforas sobre o mercado e o peso do capitalismo na vivência dos que o mantém girando; a postura sisuda dos personagens, os monólogos sobre montanhas e afins, a exacerbação da metáfora numa fala particularmente expositiva – quando o protagonista “confunde” os contêineres à montanha da associação com a jornada infinita do trabalhador no capitalismo, uma historia recorrente durante a narrativa.

O registro da China no ato final, desestabilizado e agressivo com sua textura que remete a do celular, traz novas ideias ao filme justamente por economizar nos diálogos, ao propor um descobrimento aos poucos de um mundo distante em visual, temática e principalmente linguagem. A difusão da narrativa entra em conflito com a concentração inicial, e libera Cortezão para explorar a dimensão mitológica de uma terra estrangeira temporária. Essa intenção vem com reducionismos como do velho asiático sábio no pé da montanha – o que desbalanceia a narrativa – mas mesmo que se perca quando explicita sua vocação ambiciosa no tom Navios de Terra propõe um mundo sempre a instigar.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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MADRIGAL PARA UM POETA VIVO (2018) – Adriana Barbosa, Bruno Mello Castanho

por Gabriel Papaléo

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Logo no prólogo, Madrigal para um Poeta Vivo relaciona toda a ideia de um homem que encontra a comunhão de sua alma com a natureza, que apenas pelo andar nas pedras de um rio já denota uma intimidade com o ambiente.

Que a fuga do escritor Tico não seja naquele molde de escape da cidade mas sim um refúgio na natureza apenas como lazer momentâneo, já demonstra que o interesse daquele homem não é fugir da realidade dura que tinha no alcoolismo, morando na rua, ou estando num hospital psiquiátrico; o enfrentamento é a bandeira do escritor, sua dor não é glamurizada como ferramenta de trabalho, e ele faz questão de negar os clichês do processo de escrita – o que inclui esse retiro espiritual pra natureza como forma de clarear os pensamentos.

O filme de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho é muito feliz ao retratar as visões da mídia televisiva sobre Tico, tendendo sempre ao discurso legitimador de uma ideia de mérito na jornada dupla de trabalho como coveiro e escritor, na felicidade fabricada diante das circunstâncias mais adversas do cotidiano difícil do protagonista – e é nessa sinceridade de apresentá-lo focando no processo de escrita, no encantamento do olhar dele para com o mundo, que o filme ancora sua força.

É quando procura uma personalidade imagética diante do relato que a encenação do filme se dissolve. Existe força inegável na jornada do escritor, ainda mais no caráter elegíaco da obra póstuma, mas parece que a câmera baseia toda a estrutura do filme em manter-se na superfície da sedução das palavras de Tico. Tudo é muito singelo nesse retrato carinhoso com a morte do escritor, mas as entrevistas e o tempo dilatado de inúmeras divagações anti-sistema do protagonista expõe uma montagem que esgarça a concisão do curta Ferroada, exibido em Tiradentes ano passado, e que cujo material é praticamente similar ao de Madrigal.

A dissonância vem menos do projeto ser evidentemente uma versão dilatada de Ferroada, e mais pelo olhar de Tico não ter encontrado um paralelo nas imagens que sugere. É muito menos um poema ou um madrigal, e mais um tributo – e como tal se limita quando investe na informação emocional dos depoimentos.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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INAUDITO (2017) – Gregorio Gananian

Por Pedro Tavares

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Em 2016, Paula Gaitán dirigiu o longa Sutis Interferências, uma espécie de filme No Wave para o músico Arto Lindsay. Uma dissonante versão de Blank Generation (Amos Poe, 1976). Um ano depois, nasce o seu filme complementar: Inaudito investiga as mesmas dissonâncias por caminhos inversos através da figura de Lanny Gordin. O filme apresenta o protagonista através de uma cartela, mostrando sua importância no processo de transformação de músicos como Gal Costa e Gilberto Gil. Em diante, o que se vê é puro encadeamento de signos e sensações.

A Lanny Gordin está a câmera; para nós, sua liberdade – uma liberdade desafinada, mas que o próprio diz apreciar. A Gregório Gananian cabe levar uma reserva de experimentos como forma de ilustrar o estado de espírito de seu protagonista durante a odisseia de Gordin na China (país de nascimento) e Brasil (país de amadurecimento). Surpreende que em Inaudito há um filme de ficção incompleto; uma compilação de momentos e performances que cabem à sugestão de uma antologia sensorial.

Embaraçados, o “filme aberto” e a “ficção” servem mais como uma oferta ao seu objeto de análise que um grande tributo. Lanny, em seu mundo free justifica qualquer tentativa de Gananian de se aproximar deste núcleo que o personagem apresenta – ou diz apresentar – à sua maneira. Sentenças e mais sentenças, uma maneira de dialética a favor do que a câmera busca – ou teima em buscar.

Inaudito não é um filme de progressões; ele vai ao extremo oposto, no princípio de performances monocórdicas e carregado de uma certa nostalgia nas palavras de Lanny Gordin. O que o personagem estima é a liberdade e o que Gananian faz é achar as formas e meios de encontra-la ao recuperar sua história.


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O AUTOR ATERRORIZADO: SUBYBAYA

Por Bárbara Felice

Subybaya (2017) começa com o som de um VHS sendo rebobinado. Voltar, chamar a atenção pro objeto, pro dispositivo; retomar, restaurar, manipular uma mídia. A questão de gênero é a próxima informação que apresenta a protagonista: uma mulher cisgênero sai de um banheiro masculino. Me engajo e espero por experimentações e revisões do olhar cinematográfico misógino, que ocupa tanto o cinema comprometido com a invenção estética quanto aquele de prioridades industriais.    

É um tom de escracho que paira. A personagem feminina dá ao filme estrutura a partir de um arco de empoderamento de sexo/gênero pautado na exploração de sua sexualidade. Na primeira de muitas cenas de festa, ela emana um desejo hesitante manifesto na tentativa de participar da interação erótica de um casal, mas há um sem-jeito para a situação e ela se retira.

A atriz trabalha o sorriso de ingênua, a direção de arte capricha no look de princesa. Esse arco de empoderamento será pontuado por cartelas com citações de autoras feministas. A primeira é de Simone de Beauvoir, a citação que aponta ser mulher como construção social. A segunda é Virginia Woolf, autora do ensaio Um teto todo seu, sobre a condição da mulher artista. O arco de empoderamento vai progredindo entre encontros ruins e mais festas. E, então, uma citação de Camille Paglia entra pra marcar o aspecto caricaturesco, como se o filme estivesse sendo regido por um autor homem branco babaca (lembro das inflexões cristãs bazanianas nas quais transparecem as relações entre autor e deus/criador). Não posso, contudo, compactuar com o custo simbólico dessa aventura formal. Camille Paglia é colaboracionista, e pareá-la com a tradição feminista é inconsequente. Por mais que o filme seja construído através de vozes heterogêneas e que dentro de tal estrutura não se caiba uma confusão entre o que se é dito e o que se endossa no plano da realidade social, seus procedimentos são irresponsáveis. Ele não consegue ter o rigor discursivo necessário pra tratar do assunto. Se aceito que o arco narrativo baseado na libertação por vias da sexualidade merece ser ironizado, eu me posiciono em um lugar moralista do movimento de mulheres, que com frequência desboca em práticas vexatórias do prazer. Se aceito que não deve ser ironizado, eu repudio que esse arco narrativo seja pontuado pela presença de Camille Paglia, notória por reafirmar papéis de gênero opressores apesar de se autointitular feminista. E mesmo que a piada seja contra o “autor que cita Camille Paglia”, não é lugar de um homem (e aqui não falo de Leo Pyrata, mas Leonardo Gama) fazer esse comentário colateral sobre um conflito interno a um movimento político no qual seu papel deveria ser de escuta e não de posicionamento público a partir de lugares de fala privilegiados, como concursos de financiamento estatal para projetos artísticos. Leonardo Gama parece desconhecer esses meandros do práxis feminista e as consequências desse tipo de posicionamento. Decepção dupla: o tema que me levou à sessão, o feminismo das telas, não será discutido satisfatoriamente, ao mesmo tempo que esfria certo interesse meu pelos arranjos estéticos do filme na evidência da ironia mal conduzida, historicamente irresponsável.

Em seu último terço, Subybaya muda de ritmo: a marcha de espera e atenção à protagonista se transforma em desenrolar ligeiro de ações do filmes formalmente ensimesmados. Ouvimos vozes de mulheres, até então não apresentadas visualmente, enquanto, na imagem, a protagonista lava uma pia de louças (no que parece ser o dia seguinte de outra festa). O movimento do filme é autodestrutivo: as vozes comentam a narrativa, explicitam seus problemas em relação à representação de gênero, criam e performam oralmente suas impressões e até confabulam sobre a reação de espectadoras. O desenvolvimento da personagem avança mais um pouco e chegamos a uma espécie de resolução do conflito no fim do segundo ato. Depois de se livrar de um encontro ruim, a personagem é abordada por um outro homem que lhe oferece um drink. As bebidas chegam na ausência dela e o homem, interpretado pelo próprio Leo Pyrata, quem assina direção roteiro e montagem, mistura sedativo em uma. Ela volta do banheiro transparecendo alguma desconfiança, ele faz, em tom de brincadeira (asquerosa), um jogo de misturar copos para confundi-la. Então, close ups de rostos de mulheres parcamente iluminados começam a entremear o filme em flashes durante essa tentativa de assédio. Os planos abrem, estamos em um cinema, as mulheres conversam sobre a representação e o destino da protagonista no filme outra vez e assim as identificamos como as personagens-espectadoras feministas, até então sem corpo.

A discussão das espectadoras-personagens faz um crescendo de indignação com o próprio filme, até que uma delas se dirige ao primeiro plano da imagem, desenha uma espiral de areia no chão e abre um ritual de bruxaria (o estereótipo raso me faz perguntar se o filme é além de equivocado, também mal-intencionado). A imagem se decompõe, é rearranjada e a mágica as leva da sala de cinema ao universo do filme, onde interferem na situação de assédio da personagem linchando o personagem-autor.

A sequência do linchamento termina com seu plano mais longo: uma mulher negra, a única que não surra o assediador-autor, nos encara de cima pra baixo enquanto respira com raiva. Digo “nos encara” porque, nesse plano, espectador, câmera e personagem partilham o mesmo ponto de vista. Eu, espectadora, mulher na platéia, divido o ponto de vista com um personagem-estuprador, interpretado pelo diretor do filme, na sessão do primeiro longa-metragem sobre problemas da teoria feminista do cinema (o ataque à narrativa de Thriller, da Sally Potter, por exemplo, que Subybaya rouba como processo, não está lá, por acaso) que vejo na Mostra de Tiradentes. Esse filme sobre feminismo e cinema não foi feito para mim, mas para homens. Trata das implicações aos homens nesse processo de diversificação dos sujeitos da cultura. Mais ainda, feito para alguns homens, já que só quem conhece o rosto de Leonardo Gama tem a informação de que existe ali a intencionalidade de um artifício de casting que adiciona significado sobre o problema do autor homem branco heterossexual (com exceção dos espectadores minuciosos que lêem créditos). Subybaya oferece identificação para os que se intimidam diante da intervenção feminista na imagem em movimento, para os que não sabem responder à crise do homem branco heterossexual como único sujeito produtor de cultura possível.

Não consigo ser empática com os sentimentos do agressor, do dono do olhar masculino, do, como indicado nos créditos: diretor estuprador.

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A crise do autor já teve desdobramentos diversos: Roland Barthes mata o autor em 1967 para que o leitor nasça e adquira autonomia no processo literário. Com isso, se afasta da tendência biografista que procura na identidade e narrativa do artista as gêneses causais e de maior legitimidade para as obras de arte. A proposta de Barthes questiona a autoridade, característica essencial do autor, e reconhece no leitor a possibilidade de uma relação ativa com o texto, interface com a qual ele de fato se relaciona no processo de leitura. Michel Foucault, porém, em resposta direta ao ensaio de Barthes, traz pro centro da discussão a ideia de autor como uma função social que posiciona, como consequência, indivíduos hierarquicamente num campo de forças e não depende só de acordos da crítica literária, mas tem consequências práticas em outras instâncias. Barthes, ao fazer nascer o leitor, de fato caminha para ampliação da autonomia no campo cultural de grupos que tinham sua legitimidade de criação e manifestação no espaço público limitadas por não atenderem a determinados atravessamentos de privilégio.

Aparecem, então, outros sujeitos que não só aqueles com acesso aos meios de produção cultural e que, agora, tem autonomia de interpretação limitada somente pelo texto (livro, filme, enfim) em si e não mais por essa entidade impalpável: o autor que está além da obra. Por causa dessa permanência no mundo, Foucault sugere que as viúvas do autor guardem seus lencinhos, pois ele ainda respira. Assim, um nome de autor com uma marca de gênero tal e não tal possui determinada circulação pelos espaços de disputa discursiva; um outro que recorra a uma língua ocidental e não oriental também; a opção por assinar em grupo (ou não assinar) tem presença como informação textual, mas tem, também, essas implicações de privilégio, que não se resolvem isolando a obra do contexto.

Como dito, que seja um homem e não uma mulher a assinar o primeiro longa que vejo em Tiradentes disposto a discutir frontalmente problemas da teoria e crítica feminista do cinema (que, quase completamente sem adesão dos pensadores do cinema brasileiro, se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra) é sim sintoma de algo. Quando, então, colocamos o filme no mundo, algumas perguntas: quais são essas obstruções que impedem o fluxo de uma maior produção de mulheres no cinema brasileiro independente? Quais obstruções seguram esse debate mais específico por parte de mulheres artistas e intelectuais e que se vale, fatalmente, de um caminho já trilhado por teóricas (infelizmente não brasileiras, apesar do crescimento considerável dessa produção na última década )? Quais são as obstruções para as artistas e intelectuais que se ocupam com as hierarquias entre os gêneros expressas no audiovisual?

Mesmo que tradicionalmente seja o autor (aqui com sua qualidade de assediador confessa) quem violenta simbolicamente a representação da figura feminina, o filme opta, na cena da surra, pelo ponto de vista do diretor-estuprador sendo vitimizado (e não uso o termo com ares de inversão à toa) por mulheres. Não é a catarse para a mulher espectadora que o filme busca. Se fosse, veríamos o rosto do agressor cedendo aos socos das feministas; sangue esse de fato catártico e subversivo (quem não precisa da subversão pra manter o próprio sangue correndo, tende a se satisfazer com a subversão formal, inofensiva fora do reino da estética). Male tears do autor que estrebucha ao perder seus privilégios no campo dos discursos, mas que ainda os mantém em sua maior facilidade de acesso tanto à criação artística quanto à discussão mais intelectualizada sobre a estética, o cinema e as políticas de representação.

No vai e volta entre Barthes, Foucault e nos desdobramentos mais recentes dessa problemática, não é toda autoria que perde sua função, mas a autoria de um sujeito específico: do autor masculino, branco e heterossexual que assiste hoje, aterrorizado, a intervenção feminista que ameaça sua autoridade e seus privilégios. E é a esse terror que Subybaya responde.

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AS IMAGENS SÃO CAMPOS DE BATALHA

Por Luisa Marques

Corpos e subjetividades estão em disputa constante. “Your body is a battleground” (1989) é um trabalho da artista americana Barbara Kruger e foi produzido no contexto de protestos em apoio à liberdade reprodutiva da mulher, nos Estados Unidos.  Mas a própria Kruger já sabia que, além dos corpos, outros importantes campos de batalha se impuseram ao longo do século XX: as superfícies das telas e suas imagens tecnicamente reproduzíveis.

Toda imagem é um terreno compartilhado para ação e paixão, uma zona de tráfego entre coisas e intensidades.
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  O que pode uma imagem?

Difícil encontrar resposta precisa. José-Marie Mondzain pergunta se de fato as imagens podem matar – ao que parece concluir que nenhuma imagem, por si só, tem tamanho poder e autonomia. E também que não são os conteúdos das imagens que despertam e propagam a violência, mas os dispositivos imagéticos. Para ela, são as agências humanas e as relações que travamos com as imagens – como, e em função de quê, as organizamos – que reproduzem e disseminam a violência. Sua inclinação humanista quer lembrar que o que dispara o gatilho é a mão.

Mondzain acredita que a imagem por si só não é agente, nem mediadora, e que necessitamos do discurso como intermediário. Uma questão de importância para a filósofa parece ser: o que fazemos com as imagens e como elas podem (ou deveriam) ser mediadas pela linguagem.

Sem necessariamente entrar em conflito direto com as ideias de Mondzain a respeito das imagens e sua relação com a violência, o controle e a sujeição, podemos ir em busca de abordagens um pouco mais delirantes, produtoras de estranhamentos. Gostaria de trazer pra jogo algumas obras, ensaios, especulações, piadas e provocações da artista e escritora alemã Hito Steyerl. A seguir, a descrição de um pequeno vídeo seu, chamado Strike:

Começa com uma tela vazia. A palavra STRIKE surge, em letras capitais brancas, contra um fundo preto. Então uma mulher aparece, vestida de preto. Ela se aproxima de um monitor LCD desligado e atinge sua superfície uma vez com um cinzel, deixando uma teia de fraturas de várias cores pela tela, antes que tudo retorne, em fade-out, para o preto. Tudo acontece em menos de 30 segundos. E então começa de novo.

A palavra “STRIKE”, inscrita na tela de plasma, pode referir-se à greve de trabalhadores – uma primeira impressão faria intuir. Pode referir-se especificamente à greve dos trabalhadores da arte, por exemplo. Mas também pode referir-se à greve de nossos corpos contra os dispositivos de imagem. Para que não sejamos localizados, sugados ou explorados pelas telas, podemos nos armar, mascarar e disfarçar.

Por outro lado, a greve também pode ser das próprias imagens: nesse caso elas se recusam a existir do modo que queremos que existam. A essa altura, devem  estar cansadas de serem tão requisitadas. Elas querem ter o direito de errar. Querem poder dormir ou chiar. Elas têm se contorcido e distorcido quando as forçamos a ocuparem o espaço total da tela – só porque gastamos todo o nosso salário com um aparelho de televisão “o mais HD possível” (se é que isso é possível). Não adianta avançarmos com martelinhos e cinzéis: elas revidarão com glitchs de desenhos complexos, drop frames rebeldes ou, quem sabe, com emojis de foice e martelo, gifs de batatas cheias de prego, pedradas de píxel.

“A palavra ‘strike’ – seja usada no sentido de bater em algo, seja no de recusar-se a trabalhar como forma de protesto organizado – implica colisão, ruptura, resistência.” Escreve a crítica de arte Amelia Groom, que prossegue: “no momento em que a palavra [strike] reaparece na tela à nossa frente, deve ser lida na forma imperativa do verbo – provocando-nos, enquanto corpos frente a este espaço de representação, a intervir nela.” Bata, atinja, ataque, reaja, entre em greve, – a tela diz –, que de meu lado reagirei também.

Groom observa: quando Steyerl aparece na tela à qual assistimos (instalada na exposição) e atinge a tela mostrada no vídeo, pretende chamar atenção para a materialidade – e vulnerabilidade – do aparato de visualização. A intenção de Steyerl é expor o que está por trás das construções imagéticas, ou “para além do conteúdo pictórico das imagens.” São as condições materiais das imagens que determinam o que pode ou não ser visualizado – e de que formas.

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    Imagens do mundo

    Longe de serem opostos em um abismo intransponível, imagem e mundo são, em muitos casos, apenas versões um do outro.

Diz-se que a primeira fotografia do planeta em que vivemos, vista do espaço, foi captada em 1946. A imagem teria sido feita por uma câmera de cinema acoplada a um foguete, lançado das areias do Novo México por um grupo de militares e cientistas americanos. Na ocasião, a câmera voadora afastou-se velozmente do chão e a 65 milhas perdeu impulso, entrando em estado de tontura e rodando descontroladamente até cair de volta à Terra, em poucos minutos. Depois do choque, a câmera estava totalmente destruída, mas o filme, que havia sido devidamente protegido, estava intacto. Quando as imagens foram projetadas, via-se apenas grãos de prata e tons de cinza. Aquela era a imagem do mundo.

Na ocasião, o foguete lançado era um dos muitos foguetes alemães V-2 capturados pelos americanos ao final da Segunda Guerra Mundial. Desde o fim da disputa, os V-2 passaram a ser usados para experimentos científicos no deserto do sul dos Estados Unidos, com fins de estudos de “temperatura, pressão, campos magnéticos e outras características físicas da inexplorada atmosfera.” Os experimentos prosseguiram pelos próximos 4 anos.

Já em 1947 podia-se ver imagens da Terra a mais de 100 milhas espaço acima; devido à maior altura e recuo atingidos pelos foguetes, foi possível ter imagens mais amplas e montar os frames de modo a construir uma visão mais panorâmica do planeta. Aos poucos, as imagens parciais da Terra foram sendo divulgadas em jornais e revistas americanos. Clyde Holliday, engenheiro que desenvolvera a câmera lançada, já previa o futuro destinado à tecnologia. São suas as seguintes palavras, publicadas na National Geographic em 1950:

Os resultados destes testes apontam para um tempo em que as câmeras serão montadas em mísseis teleguiados para explorar territórios inimigos em guerras, mapear regiões inacessíveis da terra em tempos de paz, e mesmo fotografar formações de nuvens, frentes de tempestades e áreas encobertas de um continente inteiro em apenas algumas horas. (…) Toda a área de superfície do globo poderá ser mapeada desta forma.

Vista da Terra de uma câmera acoplada a um V-2 #13, lançado em outubro de 1946.

O mundo inteiro

Até fins da década de 60, apenas imagens parciais da Terra haviam sido vistas. Stewart Brand, um biólogo hippie-eco-ativista da contracultura com interesse em LSD e Cibernética (além de ex-paraquedista do exército americano), começou uma campanha curiosa em 1965, na Califórnia. Ele produziu bottons com a seguinte frase inscrita: “Por que ainda não vimos uma fotografia da Terra inteira?” (Why haven’t we seen a photograph of the whole Earth yet?), e os distribuiu pelas ruas de São Francisco e em universidades da Califórnia a 25 centavos cada. Brand discursava sobre como a imagem inteira do planeta poderia criar uma nova consciência ambiental, gerada pelos sentimentos de pertencimento e unidade que a suposta integridade do globo terrestre despertaria.

Naquela época, nos Estados Unidos, havia a crença de que a NASA já tinha fotos da Terra inteira, mas que por algum motivo não as liberava ao público. Se não era o caso, acreditava-se que, no mínimo, já havia condições tecnológicas para fazer esse tipo de foto, e algumas pessoas como Brand não entendiam por que a NASA não se empenhava em produzi-las. Se foi sua campanha que surtiu efeito, não sabemos. Mas o que se conta é que em 10 de novembro de 1967 um satélite ATS posicionado 22.300 milhas acima do Brasil capturou a primeira fotografia colorida da Terra inteira. A imagem foi transmitida por sinais de rádio em 2.400 linhas separadas, até sua formação completa, que foi vista poucos dias depois. Era, finalmente, a “imagem do mundo inteiro”. Mas sabemos que era apenas uma imagem oficial de uma face do planeta produzida por uma instituição norte-americana de pesquisa científica (e que, sem dúvida, servia e serve a jogos geopolíticos complexos). A história dessa fotografia diz muito sobre a consciência em torno do que as imagens podem fazer. E também diz muito sobre o que significa ter propriedade dos meios que vão produzir e distribuir imagens do mundo para o mundo. Assim são criadas narrativas de realidades. Mas uma imagem pode dar conta de um corpo inteiro em três dimensões? Ou nas superfícies que olhamos há sempre algo que ficou de fora?

    Fora da imagem

O termo imagem (originalmente baseado em imitação) significa, em sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo distingue e estabelece um tipo de experiência visual que não é a experiência de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negativo – no sentido de que a fotografia de um cavalo não é o próprio cavalo – a fotografia é uma imagem. (…) Uma pintura não é, fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela é algo semelhante a um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintura abstrata, não carregar nenhuma relação visível com um objeto real. A fotografia, entretanto, é um processo pelo qual um objeto cria sua própria imagem pela ação da luz sobre o material sensível.

São palavras de Maya Deren citadas por Ismail Xavier em O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977). Trata-se de uma discussão já clássica em torno do caráter indicial da imagem fotográfica: “um signo que se refere ao objeto que (…) denota em virtude de ter sido realmente afetado por este objeto”. O debate, no meio cinematográfico, já tinha sido apontado por André Bazin.

No ensaio “A ontologia da imagem fotográfica” (1945), Bazin escreve sobre a natureza indicial da fotografia: eram imagens que sempre remetiam, necessariamente, a algo que tivesse acontecido ou existido previamente. A fotografia possibilitava a “criação de um universo ideal à imagem do real”. Um duplo. Bazin também acreditava numa condição de “objetividade essencial” que dava à imagem fotográfica poder de credibilidade. “Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico, em substituição ao olho humano, denomina-se precisamente “objetiva”.” As condições técnicas que então possibilitavam a fotografia proporcionavam a criação de imagens a partir de referentes bem definidos, de modo que não tínhamos por que duvidar que o objeto representado tivesse, em algum momento, existido. Somos tomados pela ilusão do realismo da imagem fotográfica, que é aumentada pelo cinema e pela relação que ele estabelece com o tempo e a ilusão de movimento.

Outra característica própria à imagem fotográfica é que se forma a partir de um campo de visão retangular captado pela lente. Somos lembrados que o quadro cinematográfico é um recorte da realidade. Mas Xavier nos aponta o que Noël Burch já escrevera sobre o campo de visão em seu Práxis do cinema (1969): que o retângulo da imagem também define o que está fora dele – todo um espaço que existe e se estende para além do campo imediato do que se vê. Se existe o espaço que a tela contém – “inscrito no interior do enquadramento” –, também há o espaço deixado de fora da tela – “exterior ao enquadramento”. Nesse sentido, o que o enquadramento recorta também define o que é deixado de fora da imagem. Burch escreve sobre esses dois espaços: o que foi enquadrado é facilmente definível pelo campo de visão; já o espaço fora da tela mostra-se um pouco mais complexo, dividindo-se em “seis segmentos”.

O que está fora da tela é definido primeiro – e mais diretamente – pelas quatro bordas do quadro: direita, esquerda, superior e inferior. Um pouco menos óbvio é o espaço por trás da lente da câmera, que pode ser complexificado em um limiar entre o diegético (aquilo que faz parte da realidade do filme enquanto universo e narrativa próprios) e a quebra da quarta parede, que revela a ilusão de realidade. O sexto segmento evidencia ainda mais essa quebra da ilusão: diz respeito ao que está por trás dos cenários ou de um de seus elementos: “tem-se-lhe acesso saindo por uma porta, contornando o ângulo de uma rua, escondendo-se atrás de um pilar… ou atrás de uma outra personagem. Em extremo limite esse segmento de espaço encontra-se atrás do horizonte.”

Em geral, no cinema, o espaço fora da tela pode ser intuído pelo espectador através de entradas e saídas de corpos (objetos ou personagens) ou pelo olhar de um personagem para uma direção que não seja englobada pela tela. Outro caso que indica o espaço fora da tela é o exemplo do fragmento, quando “o enquadramento recorta uma porção limitada” de um corpo ou objeto. A parte visível denota a presença de todo o objeto ou corpo, mesmo que seu restante esteja fora do campo de visão. Tanto a parte visível indica uma continuação daquele corpo, quanto também indica a existência de um espaço contíguo o qual não vemos, mas podemos intuir, deduzir ou imaginar. Ainda há os exemplos em que o espaço fora da tela é sugerido por sons que vêm de fontes que não vemos, ou seja, de fontes sonoras extracampo. Esses espaços extracampo podem ser eventualmente alcançados através do movimento contínuo da câmera, que revela novos campos de visão e reforça a característica centrífuga do cinema e sua tendência à expansão.  O espaço que antes estava fora do recorte passa a ser capturado: visível – passível de ser visto – e visado – alvo de foco e atenção.

É natural, portanto, pensar a representação pictórica (por exemplo, a fotográfica) enquanto uma atividade que implica visibilidade. O que é escolhido para ser “representado” – aquilo que é tornado visível através do enquadramento recortado pela lente da câmera – torna-se visado. Essa condição, apesar de dar destaque e importância ao objeto representado, também o expõe à observação e à vulnerabilidade – portanto à possível análise, classificação e captura – frente a um observador que em algum nível controla a imagem. Mas será que a posição desse observador por trás da câmera – aparentemente impassível – é mesmo tão estável?

Sabemos que, com o advento da imagem digital, essas relações se complicam. A difusão das imagens digitalmente construídas (de animações básicas a CGI, passando por after effects), enquanto entretenimento de massa, mostra-nos que as discussões há muito tiveram que ser redirecionadas. Sem dúvida, a relação estabelecida entre as imagens digitais e seus supostos referentes torna-se cada vez mais complexa ou mesmo inexistente. Muitas delas não são fotografias, uma vez que não são produzidas através das lentes de câmeras. Mas, nesta abordagem, podemos ainda nos ater a algo que é chamado de fotografia e que, ao mesmo tempo, vem redefinindo os paradigmas dessa natureza imagética.

Hito Steyerl, How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File, 2013

Em seu vídeo How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File (2013) que nos instrui, em sete lições, sobre como não ser vistosHito Steyerl afirma que uma das maneiras de tornar-se invisível – de desaparecer – é tirando uma foto. Quando alguém tira uma fotografia, fazendo a ação de segurar a câmera na altura do olho, acaba por esconder o próprio rosto atrás do aparelho. Dessa forma, pode tornar-se (parcialmente) invisível para quem está à sua frente – ao mesmo tempo em que a capacidade de visão direcionada ao objeto é aumentada pelo poder de alcance, zoom e foco da lente.

Mas essa situação vem mudando nos últimos anos, já que as câmeras fotográficas embutidas em smartphones têm criado novas realidades e ontologias fotográficas. Uma primeira constatação é que atualmente a grande maioria das lentes nos smartphones são reversíveis, como Hito Steyerl nos lembra em entrevista. Não é que não percebamos esse dado cotidianamente, quando fotografamos com nossos telefones, mas às vezes esquecemos o que isso implica. A artista sugere que as novas lentes acabaram com o fora-de-campo, ou com boa parte desse espaço antes inapreensível. O que antes era uma extensão dada à imaginação e às possibilidades de fuga da captura, agora é apenas um contracampo que pode ser acessado imediatamente, ao toque de um dedo: escolho apontar para o outro ou para mim. As câmeras agora têm olhos nas costas.

Atualmente, não é absurdo afirmar que alguém que fotografa pelas lentes de um smartphone está sendo tão analisado quanto o objeto fotografado – e não é só pela qualidade reversível das lentes. Registrar uma imagem hoje implica documentar para a rede, em tempo real, tanto a sua realidade em volta quanto a sua subjetividade. Ao tirar uma foto, você expõe em que local está, quando e com quem, por exemplo. Você registra suas preferências e, assim, seu comportamento pode ser processado e usado para os mais diversos fins. Você está tão exposto quanto o alvo da “objetiva”. Como Steyerl sugere, essas mudanças trazidas pelas novas tecnologias fotográficas – suas lentes e softwares – fazem cair por água abaixo boa parte das teorias tradicionais da fotografia e do cinema (pelo menos enquanto teoria da imagem contemporânea). O lugar do sujeito que observa e representa um objeto exposto à lente torna-se muito mais complexo. Agora, aquele que enquadra também pode ser enquadrado e as condições que implicam visibilidade e invisibilidade criam novas e múltiplas nuances.

Além a reversibilidade da câmera dos smartphones, existem outros fatores envolvidos nessa nova ontologia fotográfica. Boa parte dessa mudança de paradigma está relacionada à “inteligência” das novas câmeras, que vêm sendo desenvolvidas com base no que tem sido chamado de fotografia computacional, que “conecta tecnologias de controle em robótica, reconhecimento de objeto e aprendizado de máquinas.” Existe um novo padrão na formação dessas imagens computacionais, no que concerne à diferenciação entre informação e ruído.

Em seu texto “Proxy Politics”, Hito Steyerl questiona a natureza das imagens fotográficas captadas por smartphones, que são a grande maioria das fotografias que circulam hoje em dia nas redes sociais e em boa parte da comunicação de internet. Ela pergunta: no que consistem essas imagens, tão recorrentes em nossos meios e determinantes das nossas relações? Para responder, menciona uma conversa que teve com um desenvolvedor de câmeras e softwares para smartphones: ele explica como a tecnologia empregada nas câmeras atuais mudou em relação à fotografia tradicional. As lentes pequenas e precárias dos dias de hoje, adaptadas para caberem nos telefones, são insuficientes e acabam captando muito ruído. Aparentemente, mesmo as câmeras de smartphones que prometem imagens de altíssima resolução têm esse problema. O que acontece com a fotografia final, portanto, é fruto de um algoritmo desenvolvido para limpar o ruído da imagem. Esse algoritmo, basicamente, é o que separa a informação do ruído.

Segundo a narrativa de Steyerl, vinda de seu interlocutor “especialista”, o que acontece com essas câmeras contemporâneas é o seguinte: seu sistema escaneia todas as fotos armazenadas no telefone, inclusive as que estão nos aplicativos de redes sociais. A partir daí, todas as imagens existentes no aparelho, ou aquelas que se associam ao usuário do aparelho via redes sociais, são analisadas. As imagens, então, são comparadas. Um algoritmo, a partir dessa base de dados, passa a prever, ou melhor, “completar” o que falta das próximas imagens que serão fotografadas. O que antes era ruído ou falta de informação passa a ser suprimido e digitalmente substituído por informação aleatória com base nas imagens precedentes, ou seja: com base na memória armazenada na máquina.

De fato, a imagem, enquanto informação, passa a ter sua composição baseada em fatores matemáticos, em cálculos sobre um repertório existente. Esse repertório é o universo de possibilidades e suas combinações são baseadas em probabilidades. O algoritmo é desenvolvido para “adivinhar”, a partir das mensagens transmitidas anteriormente, quais imagens devem ser produzidas, como elas devem ser completadas. As decisões de quais imagens “novas” serão criadas acabam sendo apostas pouco arriscadas, porque são tentativas de emulação do que já foi visto. Nesse sentido, a eliminação dos ruídos é compensada com pouca informação (se pensarmos que informação é novidade, surpresa). Os dados estão lá para serem comparados, cruzados e interpretados pela máquina. “A câmera se torna um projetor social, mais do que um gravador. Mostra a superposição daquilo que ela acha que você quer somado àquilo que os outros pensam que você deve comprar ou ser.”

Mas Hito Steyerl atenta para um detalhe importante: nem tudo está mapeado e exposto – ainda existem espaços inatingidos. Em especial, ela nos lembra de um pequeno espaço que permanece opaco e inacessível à maioria das pessoas – um extracampo geralmente ignorado. Trata-se do espaço dentro da câmera, “onde algumas operações desconhecidas acontecem em formas de ‘embelezamento’ e algoritmos de censura.” É nesse espaço programado que o invisível opera as possibilidades do visível. A caixa preta se atualiza, mas não se distancia muito da filosofia especulativa de Vilém Flusser em suas análises da imagem técnica: as imagens fotográficas que produzimos são programadas por aparelhos, que por sua vez são baseados em informações programadas por programadores, que por sua vez são programados por maiores instâncias dos contextos econômico-social e político-cultural: “[a]s fotografias são realizadas de algumas das potencialidades inscritas no aparelho.” É um sistema “jamais penetrado totalmente e pode chamar-se caixa preta. (…) Pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado.”

    Verticalidade e (in)visibilidade

A invisibilidade é uma tela que às vezes funciona de ambos os lados – mas nem sempre. Ela funciona em favor de quem quer que esteja controlando a tela.

Gostaria de trazer de volta a imagem da Terra “inteira” vista do espaço. Podemos pensar também, como foi esboçado há pouco, no que é deixado fora da tela – ou fora dessa imagem da superfície da Terra. Uma vez que essas ideias foram convocadas, gostaria de suspendê-las brevemente. Enquanto elas permanecem suspensas, podemos trazer uma discussão proposta por Hito Steyerl em “In Free Fall: A Thought Experiment on Vertical Perspective” (2011).

Trata-se de um ensaio escrito e abre com a seguinte imagem mental: a queda livre. Lê-se nas primeiras linhas: “Imagine que você está caindo. Mas não há chão”. Na ocasião, a falta de chão sugerida por Hito Steyerl faz referência ao pensamento de alguns filósofos contemporâneos que apontam para a falta de um terreno fixo e comum na contemporaneidade; a falta de um solo estável e consensual de onde possam partir discussões metafísicas. Mas se estivermos mesmo caindo, como a artista alemã propõe que imaginemos, não estamos caindo em direção a um solo fixo. A falta de chão implica queda livre que jamais alcança um fim – é o que Steyerl sugere. E depois pergunta: mas por que não percebemos a queda?

Não percebemos que estamos caindo porque o movimento é sempre relativo a um referente, a um objeto fixo que nos faça perceber o deslocamento de nossos corpos. Na queda livre o senso de direção se perde, assim como a relação estável com o horizonte: a possibilidade de um horizonte se desmancha frente a nossos olhos. Desorientados, nossa sensação de equilíbrio é chacoalhada e as perspectivas se contorcem e multiplicam: “surgem novos tipos de visualidade.”

Há também outras mudanças em nossa percepção quando estamos caindo:   perde-se a consciência dos limites e contornos do próprio corpo. Aparentemente, não se percebe mais a separação entre o seu corpo e os outros em volta – a impressão de integridade e unidade de um corpo e as noções de identidade e subjetividade são abaladas. Nas palavras de Steyerl: “Pilotos têm relatado que a queda livre pode desencadear uma sensação de confusão entre o ‘eu’ [self] e o avião. Ao cair, as pessoas podem sentir-se como sendo coisas, enquanto as coisas podem sentir que são pessoas.” Essa desorientação total dos sentidos que causa embaralhamentos e mudanças na percepção, portanto, é o que acontece quando há perda de um horizonte estável.

Desse ponto do texto, Steyerl esboça um breve histórico do horizonte e da perspectiva linear: lembra-nos, como vem sendo amplamente discutido na teoria da arte, do caráter construído do ponto de vista único e estável frente a um ponto de fuga em horizonte fixo. Como é sabido, esse é o modelo no qual a percepção moderna do espaço e o senso de orientação do sujeito moderno se deram. A perspectiva linear, paradigma ótico definidor da modernidade, decorre justamente dessa construção que forja a estabilidade de um único observador e o coloca no centro da imagem – em última instância, no centro do mundo. Steyerl nos lembra o óbvio: o observador em questão é muito específico – aquele (homem branco e europeu) dominante que expande seu território e impõe sua cultura:

Nem é preciso dizer que essa reinvenção do sujeito, do tempo e do espaço foi um conjunto de ferramentas adicionais para permitir a dominação ocidental e o domínio de seus conceitos – bem como para redefinir padrões de representação, tempo e espaço.

Não bastasse servir de instrumento para conquista, sujeição e hegemonia, como Steyerl nos aponta, a perspectiva linear ainda baseia-se em uma série de negações, como podemos observar no exemplo da curvatura da Terra: “[Na perspectiva linear o] horizonte é concebido como uma linha plana abstrata sobre a qual os pontos em qualquer plano horizontal convergem.” Evocando o historiador da arte Erwin Panofsky, a artista também nos lembra que a perspectiva linear considera sempre um espectador monocular e imóvel enquanto regra; jamais contempla a possibilidade de um olhar em movimento.

Mas Steyerl chama atenção para o declínio dessa perspectiva ao considerar que o paradigma visual dominante está mudando. Para ela, a transição de paradigma já podia ser notada em algumas pinturas do século XIX, como o exemplo de dois quadros do inglês William Turner, The Slave Ship (1840) e Rain, Steam and Speed – Great Western Railway (1844). Nessas pinturas, os horizontes se contorcem, dissolvem, são perturbados e questionados pelo olhar e pelo gesto do pintor que, segundo consta, prendeu-se ao mastro do navio em movimento e pôs parte do corpo para fora da janela do trem a fim de observar e pintar. O ponto de vista se desloca: põe-se instável, em mobilidade. Ainda que não tenha negado a existência de um horizonte, Turner atentou para sua condição mutante – eventualmente borrada e inapreensível.

Com o século XX, as atualizações de apreensão do tempo e do espaço prosseguem, e o cinema é fundamental para a operação e o entendimento dessas mudanças de paradigma perceptivo. Muito devido à montagem, que altera a suposta linearidade do tempo e remonta os espaços – produzindo novas (não) linearidades e geografias criativas –, o cinema amplia as possibilidades da perspectiva espaço-temporal.

Além do cinema, Steyerl menciona uma série de condições da modernidade e de sua relação com a técnica que passam a influenciar não só os modos de produzir e ver imagens do mundo, como também modificam as percepções do meio. A física quântica, a teoria da relatividade, a invenção da aviação, a publicidade e a “reorganização da percepção” operada pelas duas grandes guerras são alguns dos exemplos que tiveram forte influência nessa mudança de paradigmas espaço-temporais. Sem dúvida, a própria exploração do espaço sideral foi também um fator decisivo na transição que tirou o espectador de uma suposta terra firme, de um ponto de vista estável, colocando-o em uma posição que possibilita a visão de cima para baixo: próximo ao olho de Deus – ou dos mortos, como sugere o filósofo camaronês Achile Mbembe.

Não é difícil associar esse novo ponto de vista, que traz consigo uma nova imagem do mundo, às experiências com câmeras acopladas em foguetes, mencionadas no início do capítulo. O que também se pode notar é que, por mais que fossem experimentos de teor “científico”, estavam diretamente atrelados à atividade militar e só existiram por conta de resquícios da guerra – os tais foguetes alemães apreendidos. Quando a “corrida espacial” começou – e com ela, suas imagens feitas dos foguetes e satélites – também estava associada a uma guerra, mesmo que, supostamente, fria. Mas como demonstram Paul Virilio em Guerra e cinema (1984), Friedrich Kittler em Mídias ópticas (1999) e Harun Farocki no filme Imagens do mundo e inscrições da guerra (1989), as técnicas de imagem estão ligadas às técnicas de armas e táticas de guerra e exploração desde muito antes.

Alguns exemplos mais atuais relacionando imagem, verticalidade e militarização podem ser brevemente citados: o teórico alemão Thomas Elsaesser associa as construções de imagens da cultura e do entretenimento e os paradigmas de percepção espacial contemporâneos a um complexo que mistura entretenimento (por exemplo, o cinema 3D), vigilância e militarização – o que ele chama de military-surveillance-entertainment complex:

(…) as imagens estereoscópicas e os filmes em 3D fazem parte do novo paradigma, que está transformando nossa sociedade de informação em uma sociedade de controle e nossa cultura visual em uma cultura de vigilância. A indústria cinematográfica, a sociedade civil e o setor militar estão todos unidos neste paradigma de vigilância que, como parte de um processo histórico, busca substituir a “visão monocular”, a maneira de ver que definiu o pensamento e a ação ocidentais nos últimos 500 anos. É este meio de ver que deu origem a uma vasta gama de inovações como a pintura de painel, a marinha colonial e a filosofia cartesiana, bem como a todo o conceito de projetar ideias, riscos, oportunidades e cursos de ação no futuro. Os simuladores de voo e outros tipos de tecnologia militar fazem parte de um novo esforço para introduzir o 3D enquanto padrão de percepção – mas o desenvolvimento vai ainda mais longe para incluir a vigilância. Isso engloba todo um catálogo de movimentos e comportamentos, que estão intrinsecamente ligados ao monitoramento, condução e observação de processos em andamento, e que delegam ou terceirizam o que foi uma vez referido como introspecção, autoconsciência e responsabilidade pessoal.

Já o arquiteto e teórico israelense Eyal Weizman aborda a verticalização na arquitetura  política da guerra, mais especificamente no conflito Israel-Palestina. Se antes o poder geopolítico era distribuído em superfícies planas como mapas – com fronteiras mais simples e bem definidas –, atualmente, com a perspectiva verticalizada, novas complicações se dão. Weizman demonstra que desde 1967, quando Israel ocupou a Faixa de Gaza, vem sendo desenvolvido naquela área um grande projeto israelense de planejamento estratégico, territorial e arquitetônico – com tecnologias de vigilância, técnicas e armas de guerra – que envolve o que ele chama de “ocupação dos céus”.

Se antes havia a suposição de um terreno estável onde o observador se fixava para criar imagens, hoje, ainda que essa suposição se mantenha, observa-se esse terreno de cima para baixo, com maior distanciamento. Para Steyerl, “(…) esse chão virtual cria uma perspectiva de visão geral e vigilância para um espectador distante e superior que flutua com segurança lá em cima”. Essa é a nova forma de ver através das telas com a qual nos acostumamos: vemos as imagens de cima e acreditamos abarcar uma totalidade, com tons de superioridade. O que acontece agora é uma falsa ilusão de controle e orientação a partir de uma suposta totalidade apreendida, que muitas vezes está ao alcance de nossos dedos – que aproximam, selecionam, aumentam e giram os espaços-imagens como objetos leves em nossas mãos. Em outros casos, os dedos não agem diretamente na superfície da imagem, mas acionam ou programam disparos que afetam violentamente outras vidas.

Atualmente, nesse “military-surveillance-entertainment complex“, os super-heróis voadores e exploradores da ficção juntam-se aos operadores de drones, os telecomandos e os dispositivos robóticos que acionam a realidade da guerra. A sombra desse corpo que paira acima – agora descolado de seu operador – não denota apenas a verticalidade, mas também a assimetria de combate e a vigilância. Comandados à distância, os drones rompem com uma antiga ética bilateral de combate – pois projetam “poder” sem projetar vulnerabilidade. Como escreve Grégoire Chamayou em seu Teoria do drone (2015), “A visão aqui é uma visada: não serve para representar objetos, mas para agir sobre eles, para apontá-los. A função do olho é a da arma.”

Flusser dizia que “existe um caráter de vodu em cada imagem”. E podemos dizer que ainda hoje esse caráter persiste. Como Chamayou observa (2015), atualmente as imagens transmitidas por drones são alvo de cliques que têm o poder de ferir ou matar. O cursor, em forma de seta (ou flecha), é o que aponta as imagens substitutas do inimigo, o que remete à antiga prática de alfinetar imagens de cera ou bonecos de alguém que se queria atingir:

As metáforas da localização do alvo em uso no vocabulário dos operadores [de drones] apresentam ressonâncias perturbadoras em relação a essa prática arcaica: to pinpoint (alfinetar), to nail (pregar)… O que era uma prática mágica converteu-se em procedimento de alta tecnologia.

Hito Steyerl, How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .Mov File, 2013

 

    Mundo de imagens

A tirania da lente fotográfica, amaldiçoada pela promessa de sua relação indicial com a realidade, deu lugar a representações hiper-reais – não do espaço como ele é, mas do espaço como podemos fazê-lo – para melhor ou pior. Não há necessidade de renderings caros; uma simples colagem em chroma-key produz perspectivas cubistas impossíveis e concatenações implausíveis de tempos e espaços.

Imagens não são representações, mas formas de armas biológicas que devem ser desenvolvidas e implantadas com base em um conhecimento da ecologia global da informação.

 

A realidade vive em e consiste de imagens – pelo menos atualmente – é o que afirma Hito Steyerl em conferência performática proferida em 2013, parte de um colóquio intitulado The Photographic Universe | Photography and Political Agency? Segundo a artista, isso acontece porque as imagens começaram a atravessar as telas e a se materializar na realidade. Mas elas não cruzaram as telas sem sofrerem transformações; essas imagens se modificaram profundamente, machucaram-se, estão danificadas. Por isso, para Steyerl, “a realidade em que vivemos consiste nos escombros das imagens”. Como a autora já argumentou em textos, performances e entrevistas, muitas das imagens atuais não são mais representações objetivas ou subjetivas da realidade, de condições preexistentes. Elas próprias são coisas: nódulos de energia e matéria que migram por diferentes suportes, proliferam-se, moldam e afetam pessoas, paisagens, sistemas sociais e políticos.

Essas imagens, que há algum tempo vêm atravessando as telas, são associadas, pela artista, aos processos de transição democrática na política latino-americana dos anos de 1980 – bem como em países do leste europeu depois do ano simbólico de 1989. Esses países deveriam implementar democracia e livre mercado, ou seja, transformar-se no que uma civilização ocidental era ou acreditava ser; as nações dos (então) “Segundo Mundo” e “Terceiro Mundo” precisariam incorporar uma noção bem específica de liberdade – precisariam “adaptar-se a essa imagem” da democracia ocidental. Steyerl elucubra sobre esses processos de transição, que para ela implicaram

(…) um processo de transformação contínua, que em teoria faria qualquer lugar por fim assemelhar-se ao ego ideal de uma nação ocidental padrão. Como resultado, regiões inteiras foram sujeitas a renovações radicais. Na prática, a transição geralmente significava expropriação desenfreada acompanhada de uma diminuição radical da expectativa de vida. Na transição, um futuro neoliberal brilhante marchou para fora das telas e foi percebido como falta de cuidados médicos acompanhada de falência pessoal, enquanto os bancos ocidentais e as companhias de seguros não só privatizavam as pensões, como também as reinvestiam em coleções de arte contemporânea.

Um exemplo que encarna essa noção de transição em forma de evento – o qual a própria Steyerl menciona em sua conferência – pode ser visto no filme Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujică, feito integralmente a partir de imagens de arquivo, found footages captados na ocasião da deposição do então ditador da Romênia, Ceaușescu, em 1989.

O que Steyerl desenvolve na conferência, que diz respeito a uma certa condição das imagens nos dias de hoje, parte em boa medida do filme de Farocki e Ujică, sem dúvida. Antes, porém – mesmo que possivelmente via Farocki – remete ao que Vilém Flusser argumenta em uma palestra de 1990: que as imagens são catalisadoras de eventos. A abordagem de Flusser é o que propulsiona a realização de Videogramas de uma revolução e, consequentemente, influencia a perspectiva de Hito Steyerl a respeito da agência das imagens nas últimas décadas.

Em dezembro de 1989, uma série de protestos ocorreu nas cidades romenas de Timisoara e Bucareste. Depois de alguns dias de tumultos, enquanto Ceaușescu dava um pronunciamento público, alguns manifestantes que lutavam para derrubar o ditador não tomaram a praça, o palanque, nem um prédio do governo; mas invadiram o estúdio da televisão estatal. Uma vez tomado o estúdio de TV, eles invadiram, através das telas, as casas das pessoas que assistiam ao pronunciamento ao vivo. A transmissão oficial, portanto, foi interrompida pelos manifestantes que ocuparam o estúdio e deu lugar a palavras de ordem como: “Somos vitoriosos! A TV está conosco!” Na ocasião, o teatro de operações para a derrubada do poder não foi um campo de batalha, mas o estúdio da emissora estatal e as telas de TV nas casas da população. Para Flusser, esse evento foi decisivo porque evidenciou as importantes mudanças que se davam nas relações entre política e imagem – demonstrou perfeitamente a influência que as imagens já exerciam sobre a vida social e política naquele ponto. Na visão de Flusser, uma nova situação na cultura da imagem se daria a partir dali.

Videogramas
Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujică

O crítico de cinema André Brasil faz uma descrição eficiente do momento em que o estúdio da emissora é invadido, como se vê em Videogramas… No texto que contempla o filme, há uma boa evocação de imagens mentais que ajudam a transmitir a sensação de turbulência: a estabilidade da tela é violentada por um tremor físico manifestado na materialidade da imagem – e na falta de imagem – transmitida pela câmera.

A imagem da TV estremece, não simplesmente devido a uma falha técnica, mas porque é todo o espaço em torno que treme. Revoltada, uma multidão invade o local e começa a tomar as ruas e os prédios. O ditador pede calma. Como último recurso, a televisão corta a imagem para um fundo vermelho. O áudio continua, com uma voz que pede tranquilidade à população. Há ali uma defasagem entre o áudio que segue e a imagem que foi cortada. Essa defasagem materializada pela cena midiática mostra outra mais importante: o que a cena explicita é o momento preciso em que a história fissura, fende, o momento de passagem entre as imagens de um mundo que, agora, se transforma em outro e que, por isso, demanda novas imagens. Este é um momento político no sentido forte e exige uma visibilidade diferente, uma outra cena.

    Os eventos rolaram em direção à imagem

Diferente do que José-Marie Mondzain sugere, Hito Steyerl acredita que as imagens podem agir como intermediárias, mediadoras. E a ação sobre elas pode desencadear situações irreversíveis. Nessas circunstâncias, elas não mais representam objetos, mas mediam operações no mundo.  Em um contexto diferente de Flusser – que na ocasião de sua fala discursa sob impacto principalmente do vídeo e da televisão – Hito Steyerl, em seu texto “Too Much World”, discute a imagem digital na era da internet como meio de comunicação de massa, em circustâncias nas quais as imagens se proliferam de formas nunca antes vistas: “O mapa não apenas se torna igual ao mundo, mas o excede.”

De todo modo, as perspectivas se tocam: Flusser acredita que, quando as imagens se tornam muito fortes e influentes, passamos a usar nossas experiências no mundo para que elas nos orientem nas imagens. Dá-se a mesma reversão entre mapa e território: a imagem se torna a realidade concreta e o mundo passa a ser apenas um pretexto. Flusser prossegue: “Essa reversão entre o mundo da experiência e o da imaginação é chamado pelos profetas de idolatria”, uma forma de paganismo. Isso explica por que Platão quisesse proibir a arte e as imagens na República.

Já no início dos anos 90, Flusser afirmava que o propósito de tudo era, àquele momento, existir para ser fotografado, filmado, capturado em vídeo (algo que Warhol já pressentira, à sua maneira). Certa vez, a artista pernambucana Bárbara Wagner, em uma observação colocada da plateia de uma conferência, mencionou como os dançarinos e dançarinas populares de frevo do Recife haviam mudado sua forma de dançar nas últimas décadas. Uma dança que costumava ser tão tridimensional e expansiva nos seus movimentos rotatórios para todos os lados (braços e pernas fazendo setas, lanças para todos os sentidos) passou a ser, à medida que a câmera da televisão se postava para registrar o evento, cada vez mais bidimensional e chapada, de superfície. Ora, os dançarinos não queriam abrir mão de suas frontalidades em relação à câmera. Assim, não era só a câmera que transformava os corpos em sinais digitais e superfícies (imagens), mas a própria ideia daqueles corpos se pensando como imagens já mudava seus movimentos e suas vontades de existência, já fazia deles um pouco mais planos, frontais, superficiais – ou no mínimo menos expansivos. Trata-se de um exemplo claro e simples de como, de fato, as imagens podem ser pensadas como ativadoras e modificadoras de realidades. Os bailarinos de frevo colaram suas frontalidades à lente da câmera, se colaram às imagens. Os eventos “rolaram em direção à imagem”. Eles seguem acontecendo um após o outro, cada vez mais rápidos, querendo ser tomados por imagens. O que aconteceu na Romênia, portanto, em 1989, não foi um evento registrado por imagens, mas imagens que detonaram um evento.

    As imagens caminharam através das telas   

Mas se as imagens começam a vazar através das telas e a invadir a matéria de sujeitos e objetos, a principal consequência, bastante negligenciada, é que a realidade agora é amplamente composta de imagens; ou melhor, de coisas, constelações e processos antes evidentes como imagens.

Como já foi dito, Hito Steyerl toma os processos de transição democrática na política como marcos que deflagram também a transição das imagens das telas para a realidade. A alemã acredita que as imagens passaram a habitar coisas, pessoas, paisagens e ambientes inteiros. Elas nos cercam. São parte do meio. Não são apenas representações ou projeções, são principalmente objetos em três dimensões, às vezes em forma de corpos humanos: em seu texto “A Thing Like You and Me” (2010), a artista vai mais longe em sua especulação e sugere que além de vivermos entre imagens, nós mesmos – os seres humanos – nos tornamos imagem.

Já na conferência performática realizada no colóquio The Photographic Universe, em Nova Iorque (2013), Steyerl busca “provar” essa condição atual do mundo – de um meio constituído por imagens – através de um exemplo que demonstra como a ficção geopolítica mencionada no capítulo anterior pode controlar os graus de opacidade e transparência das imagens (sua capacidade de ser vista). Um bom exemplo – do qual a artista lança mão – para entendermos por que vivemos entre imagens é a camuflagem militar. A camuflagem é a arte de misturar-se ao meio; ela nos ensina que precisamos conhecer muito bem o ambiente em que vivemos se quisermos nos adaptar a ele. Hito Steyerl, portanto, chama atenção para a importância da camuflagem: a incapacidade de adaptação ao meio pode ser letal.

Em sua apresentação, Steyerl faz uso de uma série de imagens de slides digitais projetadas sobre uma tela ao fundo. Essas projeções servem para fins de ilustração – geralmente literal – da fala. Uma das primeiras fotos mostra um uniforme com estampa de camuflagem pixelada, desenvolvido pela Marinha americana (pioneira no desenvolvimento desse tipo de camuflagem). Mas por que motivo camuflar-se com roupas estampadas por píxeis?

Conferencia New School

Conferencia New School 2Slides usados por Steyerl na conferência performática

Se soldados se camuflam como píxeis para sobreviver, isso significa que o mundo em torno deles consiste em píxeis. Muito da realidade, portanto, está nas imagens moribundas que vagueiam pela superfície: algumas falharam, outras são constelações e operações “congeladas” em imagens que se transformam ao cruzarem as telas. Elas se reproduzem nos mais diferentes meios, fundem-se umas às outras, formam aglomerações, criam vida própria e afetam outras formas de vida. Também são afetadas: cortadas, coladas ou comprimidas. Perdem resolução, foco e definição. Diminuem: ficam mais leves e ágeis. Espalham-se como vírus, duplicam-se como genes, em forma de memes. Metamorfoseiam-se e camuflam-se, mudando de cor e de sentido. São “traduzidas, mal compreendidas, comprimidas, encodadas, deformadas”.

Ao constatar essa situação, Steyerl propõe que façamos uso de atributos e ferramentas que possam atuar efetivamente sobre esse novo meio imagético, que sejam mesmo capazes de interferir sobre a atual “paisagem midiática” em que estamos imersos. Algumas das possibilidades mais potentes que se abrem nesse contexto são a montagem e a pós-produção (de forma mais abrangente), que neste contexto não remetem à noção do pastiche pós-moderno. Nesse sentido as seguintes palavras de Nicolas Bourriaud, por mais que façam referência específica à criação artística, aplicam-se bem à proposta sugerida por Steyerl:

[Na palavra pós-produção], o prefixo “pós” não indica nenhuma negação, nenhuma superação, mas designa uma zona de atividades, uma atitude. Os procedimentos aqui tratados não consistem em produzir imagens de imagens (…) nem lamentar que tudo “já foi feito”, e sim em inventar protocolos de uso para os modos de representação e as estruturas formais existentes. Trata-se de tomar todos os códigos da cultura, todas as formas concretas da vida cotidiana, todas as obras do patrimônio mundial, e colocá-las em funcionamento. Aprender a usar as formas (…) é, em primeiro lugar, saber tomar posse delas e habitá-las.”

Hito Steyerl acredita que não é mais possível compreender nosso tempo e espaço presentes sem também entender as técnicas produtoras e pós-produtoras de imagem (“cinema, fotografia, modelagem em 3D, animação ou outras formas de imagem em movimento ou estática”). Ela sugere que “[o] mundo está imbuído do estilhaço de antigas imagens, bem como de imagens editadas, photoshopadas, remendadas a partir dos spams e da sucata.”

As imagens atravessaram as telas. Como nos ensinou Flusser, tornaram-se gatilhos e catalisadoras de eventos. A atual camuflagem militar, ao incorporar padrões digitais às estampas, demontra que o mundo atualmente também é feito de imagens. Para sobreviver neste mundo, precisamos nos mesclar ao meio: precisamos nos transmutar em píxeis se quisermos nos adaptar, mas também podemos nos tornar ruído – e cortar a transmissão dos sinais vigentes.

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