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AS GRAÇAS E DESGRAÇAS DO OLHO CEGO

Por Felipe Leal

Me diverti imensamente – ao contrário dos rumores! –

(João César Monteiro, 2000)

 

(À exceção de algumas fotografias de Robert Walser, autor da peça em que a obra se baseia, na clínica onde fora misteriosamente internado, e alguns breves e estáticos planos de nuvens, a grande substância do movimento do Tempo,) um filme composto só de vozes, “quintopartido” em cinco personagens, da Branca de Neve à Rainha que lhe encomenda a morte, e uma tela inteiramente preta por quase oitenta minutos: amputaram o cinema, fizeram com que pecasse o pecado último, aquele que de tão inadmissível se resguarda no imaginário das possibilidades trágicas (que violência ao espectador (ou ao consumidor) que um filme se desprograme no meio de sua exibição), acontece aqui como opção feita às gargalhadas. Castraram-lhe a imagem, pois; ainda melhor, talvez o tenham assassinado de vez, posto que não há mais nada a ser olhado.

A autoria é a do anticristo dos cineastas – talvez do Cinema, acreditando-se que suas trapaças à linguagem se estendam a outros campos e infectem a última das artes, em retorno –, o grande travesso, O Louco do Tarô, aquele que conseguiu tornar o próprio filme, a princípio um projeto “tradicional” (entende-se: com imagens, encenação, fotografia), a celeuma que coroa o cinema português com um escândalo processual, cada etapa semelhante a um círculo do inferno da cadeia produtiva, no qual várias vozes e relâmpagos financeiros e estéticos participaram, e que foi resolvido após uma refeição: narra Monteiro que, durante a manhã, havia lido diante dos produtores e equipe duas obras em voz alta, uma das quais “As Graças e Desgraças do Olho do Cu”, e assim decide rodar seu filme, depois do almoço: regido pelo ponto de vista do olho cego. Seria propício, então, pincelar os modos de ver? Re-tracejar as convulsões histórico-estético-políticas que constituíram os estatutos da nossa visão, o espetáculo em forma de quadro, a narrativa ali introjetada, a ilusão ficcional através da quarta parede invisível, etc., etc.?; Associar, assim como Roland Barthes entrelaçou A História do Olho, de Bataille, à história propriamente do olho, do objeto olho, durante a narrativa, e dizer do filme de Monteiro que ele é uma possível história ou encenação da não-visão? Pode-se decerto partir por estes dois percursos, mas por que não se ater diretamente ao óbvio paradoxo que nem sequer se encarapuça no enunciado que propõe uma estética para a obra?

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Como pode um ponto de vista advir, espatifar-se do prisma, de um olho que é, por propriedade, cego, matéria inútil numa cultura que é, sim, não se pode negá-lo, afinal de contas, excessivamente ocular? E não só cego, absolutamente desabituado do contato, porque – se ele foi mencionado como matriz de referência, é preciso mencioná-lo – o olho do cu, isolado, não só não vê, como também pouca energia troca com o ambiente. Esmagado em superfícies ou defronte o mundo, nos seus graus variados de contato e uso, dificilmente a luz lhe chega, porque o campo de visão deste olho é quase sempre interditado pela malha do vestuário que o separa do contato ou da iluminação. Pois eis que, descortinados, então, agora o olho do cu e o da câmera endiabrada de Monteiro, mas sobretudo este último, dá um passo além de Guy Debord ou Marguerite Duras, cujos trabalhos radicais, experiências quase acinemáticas, confrontavam ora o espetáculo, ora o protagonismo das imagens. Portanto, se o paradoxo existe, e o cineasta bem o sabe, porque o cinema é um paradoxo de outra qualidade (o da “falsa” reconstituição do movimento), tanto suas duas proposições não são necessariamente inverdades, se isoladas, quanto a possibilidade de que existam em conjunto não é tampouco inválida: equânime a uma possibilidade de olhar através de outros sentidos ou, agora isoladamente, dotado de uma visão que não se atrele necessariamente ao visível, a potência do olho cego se biparte a partir de uma única raiz de uma faculdade humana perdida que é tão sutil e “hoje” (praga do contemporâneo enquanto ideia tola) atrofiada que é preciso rir dela, ao mesmo tempo que se a explicita.

Antes, as duas raízes: primeiro, parecia ser movimento consensual entre a virada ontológica da filosofia, no que diz respeito aos conceitos sobre o corpo, chefiada pela desabitualização do “corpo sem órgãos”, proposta por Gilles Deleuze (o corpo que podia se remodelar a partir de práticas de si, a exemplo do yoga), e as práticas que propunham imiscuir cotidiano, subjetividade, as vidas e a arte, na verdade performances já inflamadas desde os anos 60 – um movimento consensual que possibilitou a unção de práxis e intelecto nas exibições que essas mesmas vidas atestavam – ironicamente, também através de aparelhagens, ora desejosos ou não, mas sempre conscientes disto – de que é, de fato, possível que minha orelha possa, ao ouvir o caçador questionar Branca de Neve se ela acredita que ele queria matá-la, esta entrando numa confusão lexical prolongada e que, no fim, não responde nada; que o ouvido possa, mentalmente, de alguma maneira, visualizar toda a cena, seus passos (que Monteiro nos permite ouvir), os movimentos da testa ou da boca da princesa, e até mesmo as reações exaustas ou deslumbradas (ponto de vista meu) do caçador. Aquilo que parecia sugestão mágica da antropologia vem se confirmar não mais a partir do relato, mas na prática das vidas que se tentou transpor para uma radicalização estética: retirar da imagem o seu visível para que dela se possa extrair apenas o movimento e os sons, despertando por conseguinte um ouvido-tato-olho.

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É preciso ir um passo além dos sonhos que não fazem sentido: há sonhos (e, portanto, há cinemas) sem imagens – e que fazem sentido, que significam, trazem um lampejo de conexão mental com o sonâmbulo e permitem-no entender. Só que aqui já estamos no pós-já-não-há-mais-sonâmbulos-no-cinema: se é possível pensar a imagem sem olho e se é desejável buscar suportes que o preencham em conjunto com o arriscado enunciado, não será nem mesmo salutar buscá-los nos teóricos do cinema novo ou nos supracitados, nem tampouco se debruçar sobre a possibilidade dos pré-cinemas, o sonho lindo e vigente de que os habitantes de cavernas do que hoje viemos a chamar de território francês tentavam impor movimentação aos desenhos de animais que pintavam nas paredes, através do jogo com labaredas em tochas de luz: não há rastros para explicar aquilo que a linguagem não compreende, ou ao menos na a situação impotente pela qual ela é abordada e na qual se encontra. “Nem tudo ainda foi nomeado”: o eco que fez brotar o Camp, de Sontag, ouve-se em silêncios a todo instante.

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Foi (e é) preciso que o Cinema morresse para nascer novamente (porque já havia morrido com o neorrealismo e com a câmera em movimento e com “o vídeo e com etc., etc.”…, já o sabemos). Ou, antes, que alguém, em prática, relocasse suas bordas de ontologia para um pouco mais distante da posição “final”, ainda impensável, nesse tracejar pontilhado, incoerente, retalhado que é o Qu’est-ce que c’est le Cinéma?, de Bazin, o primeiro eco irrespondível. A faculdade humana é o intelecto; as relações da câmera com nosso olho, invariavelmente intelectuais (o suprassumo do cinema permanece Hitchcock). É porque não posso atingir a natureza integralmente que crio. O submarino existe porque não se pode respirar debaixo d’água, o avião porque não posso voar, o celular porque “é urgente que fale com você agora”; é uma linha de pensamento, e de acordo com ela: não mais “o cinema se constituiu para dar movimento as imagens” (visíveis); agora é possível contentar-se com o: para possibilitar que o movimento do mundo se recrie, e como este é, por essência, invisual: “Com uma pequena perda [sobre o filme ser apenas formado por vozes], é um óptimo filme para invisuais”, afirmou alguém que pode ser Paulo Branco, João César Monteiro ou um outro qualquer, mas não menos importante.

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NÃO DEIXE O CLÁSSICO MORRER

Por Yuri Deliberalli

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Se a morte do cinema é anunciada desde que os tempos são tempos, a morte do classicismo não escapa do mesmo fim. Desde que a “era de ouro” de Hollywood entrou em crise frente as novas demandas (o surgimento da televisão e o cinema mais próximo da realidade) e os precursores da narrativa tradicional, como John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock, por exemplo, adentraram o final de suas carreiras com filmes considerados “menores”, o clássico, assim compreendido como o cinema feito nas décadas anteriores, tornava-se um espectro lançado sobre a nova década (os anos 70).

Mas um espectro não deixa de ter lá sua consistência, de forma que, na essência, o clássico continuava a permear as narrativas que surgiam durante esse movimento de um cinema mais autoral, notadamente em filmes como O Poderoso Chefão (1972) e O Portal do Paraíso (1980), para citar dois exemplos que caracterizam o período inicial e final da Nova Hollywood. Enquanto alicerce das novas modalidades de narrativa, o clássico servia não só como fonte de inspiração desses novos cineastas, mas também como instrumento de resistência e até mesmo de certo rancor por parte daqueles que remanesceram das décadas anteriores, sendo Fedora (Billy Wilder, 1978) um exemplo marcante dessa perspectiva.

Por mais que o pioneirismo experimental de Jean Luc-Godard continuasse dando as cartas do jogo, o classicismo permanecia como a principal escola de estrutura narrativa do cinema, especialmente naquele feito em âmbito mais comercial. E as razões para isso são claras: o clássico afasta o estranhamento formal em prol de uma maior clareza e objetividade da forma com que a narrativa será conduzida. Dá-se preferência à história e ao desenvolvimento dos personagens, ao encadeamento sequencial dos planos e, consequentemente, à facilidade de assimilação ao que se filma. Extrai-se disto o elemento atemporal do clássico, que o faz resistir e persistir ao avanço tecnológico do cinema.

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Com o advento do digital, a defesa do clássico foi transposta também ao campo estético e capitaneada por cineastas de referência como Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson e James Gray. A defesa do clássico se torna, assim, a defesa da película (o 35 mm e o 70 mm, principalmente), dos métodos tradicionais de filmagem e da preservação do distanciamento causado pela experiência cinematográfica no público. E essa defesa se desenvolve de uma maneira até mesmo radical por parte desses cineastas, a ponto de recusarem filmar caso os elementos representativos do cinema clássico sejam extintos ou impraticáveis financeiramente. Tarantino, que anuncia sua iminente aposentadoria há alguns anos, deixa muito claro que o fim da película significa o fim do cinema.

Que morte é essa que ocorre com o fim de uma tecnologia, em se tratando de uma manifestação artística exposta por meios tecnológicos? A defesa da película não deixa lá de ter seu viés saudosista, ao mesmo tempo em que é legítima sob o argumento de que mantém o distanciamento do filme com o espectador, isto é, preserva o caráter de ficção da imagem e resguarda ao público a famigerada “magia do cinema”. Afinal, as 24 fotos projetadas por segundo e a granulação da imagem criam a ilusão de que há captura de um movimento e remontam a uma noção pura e ingênua de cinema, enquanto que o digital, no seu imediatismo, reduz esse caráter utópico e idealista.

Trata-se de uma relação iconográfica que esses diretores possuem com o modelo narrativo clássico e que se justifica a partir de uma intenção de realçar o caráter representacional do cinema em detrimento de uma aproximação deste com a realidade. O clássico fornece um alicerce sustentável – uma premissa narrativa objetiva e clara – para que esses realizadores possam reconfigurar modelos pré-estabelecidos como um exercício referencial ou como uma reafirmação de sua infinita relevância perante os novos tempos e novas tecnologias.

De certa forma, esses cineastas tentam assegurar seus respectivos nomes no panteão do cinema pela via reversa, isto é, por meio da celebração do tradicionalismo e do quão adaptável e indiferente ele pode ser frente ao novo e ao transgressor. E isso se deve à maneira com que iniciaram sua relação com o cinema, quase sempre por meio de uma vivência idealizada (a locadora de Tarantino) ou mesmo acadêmica (a universidade em Gray), o que acaba por evidenciar o método e o olhar de cada um deles frente ao trabalho que executam.

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Enquanto Quentin Tarantino promove constantes releituras de gêneros clássicos consagrados (o blaxploitation em Jackie Brown (1997) e o western revisionista em Django Livre (2012), por exemplo) e executa seus filmes a partir de um jogo de referências, inspirações e emulações que, articulados entre si, criam uma dinâmica formal e narrativa muito própria – um estilo cinematográfico reconhecível -, de forma a contextualizar o clássico dentro do moderno, James Gray se torna cognoscível a partir da preservação da uma forma clássica natural e original, que serve como persistência e combate a qualquer remodelagem pós-moderna da estrutura fílmica, de modo que a modernidade surge do embasamento e maturidade com que concebe o arcabouço narrativo de seus filmes.

Seu último filme, intitulado Z: A Cidade Perdida (2016), é bastante exemplificativo disso. Em primeiro lugar, estabelece uma premissa absolutamente clara e objetiva – Percy Fawcett é um explorador que vai à Amazônia realizar o mapeamento da fronteira entre Bolívia e Brasil e acaba obstinado pela ideia de uma cidade perdida em meio à selva – que não se reserva apenas à conta uma história de um modo sequencial, em que o protagonista possui um objetivo e vai ao respectivo encalce durante toda projeção. Gray, na realidade, se vale dessa premissa contornada por conceitos clássicos para subverte-la a um contexto em que questões de classe são discutidas – Fawcett tinha dificuldades de ascender socialmente por causa do seu sobrenome maculado, de forma que, em sua viagem, descobre que a verdadeira civilidade está nos índios, e não na pomposidade do alto escalão britânico – sem que tal discussão seja um ponto frontal do filme.

Trata-se da utilização do clássico enquanto uma estrutura narrativa permissora de discussões e complexidades, que permite a Gray tratar sobre colonialismo, classe e etnia, bem como questionar o que significa ser uma pessoa civilizada, sob o manto do filme aventureiro, do explorador que vai à selva em busca de desafios. Na visão de Gray, a narrativa clássica abre as portas para o desenvolvimento do subtexto, desde que a história seja bem arquitetada e contada com emoção e elegância, algo que a narrativa pós-moderna encontraria maiores dificuldades de atingir. Segundo ele, desconstruir as bases clássicas pode acabar por encerrar qualquer discussão que poderia ter sido iniciada pelo filme pós-moderno.

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Filmado in loco e em 35 mm, Z: A Cidade Perdida tem o condão de justificar a película pelo seu forte aspecto anacrônico, na intenção de que o espectador tenha uma maior facilidade de ambientação e imersão numa história claramente distante e ficcionalizada. Por outro lado, a utilização da película não deixa de levar essa defesa do purismo cinematográfico para circunstâncias um tanto radicais, como o fato de Gray ser obrigado a levar uma tecnologia logisticamente obsoleta para os confins da selva amazônica e, por isso, ter que treinar uma pessoa específica apenas para dar conta da retirada, armazenamento e posterior transporte da película para o aeroporto, de onde a filmagem do dia seria levada para a Europa, diariamente.

Neste processo, rolos de película danificados durante as filmagens e maiores custos de produção, ou seja, constrói-se uma tática de guerrilha em meio a diversos obstáculos físicos para que se possa salvaguardar uma concepção pessoal do que é fazer cinema.

Ao fim e ao cabo, é a reafirmação do clássico em sua literalidade e não como uma forma que permite conciliar eficiência dramática com as novas tecnologias, ou seja, é a resistência da tradição sobre subversão formal e narrativa, numa ideia de cinema artesanal e datado, mas que dialoga com as questões sociais imutáveis ao longo dos anos. Pode ser um exercício idealizado de se fazer cinema, mas não se pode negar a sua eficácia.

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A RESSACA DO MILÊNIO

Por João Pedro Faro

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Havia algo de paranoico em toda tendência cinematográfica no fim dos anos 90. Isso tanto em manifestações formais (o amaldiçoado Dogma 95, toda a eterna carga de revoltas laterais contra a narrativa clássica que impulsionava maneirismos cada vez mais intensos e experimentais) quanto em recorrências puramente temáticas (a virada do século que traz consigo diversos apocalipses, todas as Matrix, um fim lento do anti-establishment altamente oitentista que dá lugar à descrença revolucionária e ao ambiente já totalmente controlado por robôs e engravatados). É nesse clima quase pós-traumático, de futurismo desacreditado aliado à imagética radical, que Abel Ferrara faz de Enigma do Poder (1998) um monumento ao fim do mundo enquanto coito interrompido.

É curioso ter em mente que o antigo projeto de adaptação do conto de William Gibson seria com o Schwarzenegger, provavelmente gerando uma obra totalmente oposta às intenções do filme de 98. Por mais que a anedota sci-fi do Gibson seja passível ao grande cinema literal (e talvez possamos dizer que esse filme existiu com Vingador do Futuro (1990)), sua decadência e melancolia pertencem a um realizador maldito como Ferrara. Entregar toda a identidade visual do mundo do romancista (o famoso “céu das cores de uma televisão em estática” do Neuromancer, presente aqui em todas as externas) e encontrá-la no tempo atual que à época de Gibson ainda era um futuro distópico. O Japão de Enigma do Poder já é o cyberpunk, desde a abertura que corta da guitarra melódica para a trilha surtada do Schooly D, com todos os exageros de neon asiático explodindo nos créditos. A própria locação em si já é um espaço alienígena para o diretor, não está filmando a Manhattan já mentalmente mapeada pela câmera de todos os seus trabalhos anteriores.

A finalidade de Ferrara em sua tragédia de imagens falsas só é possibilitada por todo o contexto da obra original: É no ultra corporativismo da ficção científica, em seus digitais e hologramas, que reside a matriz do filme. Ferrara se apropria do mundo onde tudo é constantemente registrado em imagens (seja em fitas de espiões, câmeras de segurança ou pornôs caseiros) para, em um intuito puramente experimental, torna-las abstrações dessa realidade. Esse ideal vinha sendo construído desde que o diretor começou a abandonar a sobriedade de projetos como O Rei de Nova York (1990) e retomar, aos poucos, uma energética radical do início de sua carreira Do romantismo agressivo de O Vício (1995) até Oculto na Memória (1997), a tendência de sua imagética é um novo encontro de brutalidade na disposição e no arranjo dos planos. Ao passar da década e na proximidade com o fim do século, esses novos arranjos se tornam cada vez mais essenciais e formadores. Em Oculto na Memória principalmente, prequel espiritual de Enigma do Poder, a demonstração do palácio de vídeo digital do personagem de Dennis Hopper já abre o caminho para o futurismo que Ferrara afirma como um caos semântico na obra seguinte. As tantas telas que cercam qualquer lugar não deixam com que nenhum momento seja observado com total discernimento. Uma verdadeira morte do registro. Afinal, no universo do excesso de informações, qual seria outro fim para as imagens além da perda de um sentido claro?

Nesse processo primordial, não se perde somente as formas claras da imagem, mas também o espaço em que elas se projetam. Não pertencem aos quatro cantos do plano de uma câmera, mas se configuram em paredes, celulares e televisões que não estão inseridas diegeticamente no formato. Elas residem em todos os meios físicos, como se tivessem noção de que são as reais definidoras de qualquer fator dramático da obra.

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Quando Rita Hayworth atirava espelhos em Dama de Shangai (1947), como fêmea fatal máxima, destruía imageticamente os dois homens que viviam em função de seu amor. Sandii (Asia Argento) em Enigma do Poder não precisou de uma arma para fazer a mesma coisa. Aí está a finalidade experimental de Ferrara, onde encontra sua potência: o grande twist da sedutora que trai homens burros é tão essencial quanto o próprio cinema, mas em Enigma essa figura feminina, desde sua primeira aparição, não se restringe apenas ao papel de personagem. Ela é a dona de todas as imagens, sua concretização, sua fisicalidade total. A presença que impulsiona todas as quebras, radicalismos e subversões. Reside em outro plano, intransponível a qualquer um. A prostituta estrangeira misteriosa contratada por dois golpistas para interpretar um papel, fazer um homem se apaixonar e derrubar uma grande empresa, se torna a força maior do universo onde se insere. É a estampa do pecado original do futuro corporativista, a paixão genuína, o tesão apaixonado, e também a única que não é vítima desse mesmo pecado.

O grande conflito de X (Willem Dafoe) é perceber isso, enquanto antes acreditava junto com Fox (Christopher Walken) e Hiroshi (Yoshitaka Amano) estar em controle de Sandii. Impossível. Ela, o próprio corpo da obra, reside em espaço algum. Não é à toa que no conto de Gibson ela é descrita como O Fantasma do Novo Século, feita de ectoplasma. Aqui, ela é feita de digital. Por isso mesmo pode simplesmente desaparecer quando lhe convém, como em seu encerramento que se dá numa breve constatação (“a garota sumiu”).  Sandii é como o fruto final dos meios fílmicos de seu momento na história: uma personagem que está acima de todos esses meios, portanto pode manipulá-los do jeito que preferir. Traz em sua natureza um caráter clássico mas, ao incorporar novas formas de traduzir-se em cinema, surge maior do que ele próprio.

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Enigma do Poder torna o corte o fim de um fragmento da memória. Como estamos sempre acompanhando X pensando em todos os seus momentos em torno de Sandii, cada encerramento de imagem se dá como uma pequena tragédia por si só. Isso não apenas nos 15 minutos finais, onde a recapitulação do romance é inserida narrativamente, mas sim no filme inteiro. Na necessidade de X pela mulher que o traiu e que ele nunca mais verá, cada frame é uma oportunidade de deixar-se dominar novamente por Sandii. A diferença nesses 15 minutos de encerramento é justamente o espaço que X encontra na cápsula/dormitório New Rose Hotel: no cubículo isolado, acha a oportunidade de fugir da overdose de acontecimentos, boatos e conflitos de espionagem de outrora. Naquele cubículo, as únicas imagens que restam são as que buscam rever Sandii e um resumo daquele universo passando em uma televisão (vemos olhos de modelos asiáticas e propagandas, nada mais essencial do que isso). Vai do excesso para o mínimo. Consequentemente, surge o mais doloroso sentimento de ressaca. Mais próximo de seu psicológico, X reassiste o filme mentalmente. Ao fim da ilusão, percebendo que o amor de Sandii nunca existiu, as experimentações de Ferrara atingem a crueldade e tangem o desejo de morrer em X. Encontrar-se na realidade é a quebra mais dolorosa que o cinema pode fazer. Mais dolorosa ainda se essa quebra acontece em sua própria forma, e não apenas no desenrolar do storytelling básico.

Fora de New Rose Hotel, o mundo acaba em vírus, perseguições internacionais e dominações industriais. Porém, a verdadeira dor nisso tudo é X, tão abruptamente, ter que ver sua paixão não com a fantasia de antes e nem como ela é de fato (a figura verdadeira de Sandii ninguém nunca poderá entender), mas sim como uma lembrança interrompida. A melhor lembrança da sua vida. Nesse aspecto tão específico, é válido ressaltar um equívoco muitas vezes atrelado ao Ferrara. Se tanto é reafirmado sobre sua suposta explicitude (e nisso encontra-se alguns dos motivos da vergonhosa recepção crítica da época ao filme), muito se esquece sobre sua ternura e sensibilidade. É, sim, o cineasta do intenso, mas é também de refinamentos únicos. Existe algo mais delicado, mais cuidadoso, do que construir toda a dor do fim de um relacionamento apenas em ressignificação de planos? Basear toda a tragédia de uma paixão falecida em jogos simples de montagem? Se existe, ninguém faz com tanto afinco quanto ele.

Após todo o trauma que configura Enigma do Poder, cabem algumas questões totais dentro um projeto tão introspectivo. Cabe a todos o isolamento pessoal em um cubículo, uma assimilação final de tudo que representa. Encarando o abismo do novo milênio, entende-se melhor tudo que se passou no último. Por isso mesmo a sensação de Enigma do Poder é de um produto final de tudo que foi assimilado imageticamente pelo avanço de empresas multinacionais, implantações digitais e tecnologias de vídeo ao longo do século. Claro, em um igual senso de exaustão desses fatores, culminando na morte de todos.

Se pararmos para pensar que no final do século 19 ainda criava-se o cinema e agora, 100 anos depois, ele já sabe se autodestruir, dá pra perceber como o século subsequente não foi dos mais fáceis para a humanidade. Nada mais compreensível do que pelo menos parte do cinema morrer simplesmente por ter sido traído pela Asia Argento. Se não faleceu por completo, pelo menos contemplou o suicídio.

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CORPOS E MAIS CORPOS

Por Pedro Tavares

Subybaya (Leo Pyrata, 2017)

Para Bazin, a história do cinema tem como horizonte o desaparecimento do cinema. Até lá, essa história se confunde com aquela que de uma pequena diferença que constitui o objeto de uma incessante recusa: sei bem (que a imagem não é a realidade), mas ainda assim… – Serge Daney em “A Tela do Fantasma”.

O mesmo Daney, em A Rampa, questiona: “Como ganhar de um morto?” A resposta, o próprio Daney oferece na sequência: “Ao dar a ele mais um corpo, é claro”. A imagem, o corpo, ganha, há séculos, corpos e mais corpos. Naturalmente, estes corpos passam por adequações de acordo com as conveniências do momento e possibilidades de diálogo entre elas: para o cinema, é o momento de interação com os games, pixels, glitchs, a velocidade extrema ou a máxima calma. Também o momento de experimentações graças aos dispositivos mais baratos e a possibilidade de criação solitária ou com equipe mínima.

Jean-Paul Fargier analisou a condição do vídeo com a possibilidade de sua filha, sozinha, empurrar um carrinho de bebê vazio em “Poeira nos Olhos”; Fargier compara o cinema com um passeio comum e consciente entre pai, filha e um carrinho de bebê. Para ele, o vídeo não habilita a realidade ao encontro, pois no vídeo não esperamos por ela. É por esse viés comparativo que se aceita o experimento de Jacques Tati em Parade (1974), filme que registra o cotidiano de um circo filmado em película e vídeo que Daney chamava de “sondagem no mundo do vídeo”. No filme, um embate de escrever e reescrever o que se vê. Os artistas ganharão dimensões distintas conforme a mudança de dispositivo, principalmente quando estão em ação. Raul Perrone, realizador argentino, é um exemplo contemporâneo de diálogo entre as duas formas: seus filmes mais experimentais buscam, através do digital, o que se entendia por real e mítico nas imagens do cinema. São viagens por diferentes décadas do cinema, sempre a favor de seu suporte – que nunca é usado.

Parade (Jacques Tati, 1974)

Hierba (Raul Perrone, 2015)

Narrativas e artifícios

Em extremos, Brian Taylor e Mark Neveldine, panteão do diálogo direto entre jogos e filmes – ainda que James Cameron, Paul W.S Anderson e tantos outros sejam lembrados -, com Adrenalina e Gamer, filmes que lidam com esvaziamento da função do dispositivo com extrema rapidez, hoje já escapam deste rótulo. Hardcore Henry de Ilya Nashuller tenciona o diálogo com a subjetividade do olhar de quem joga: um filme em POV, ou melhor, um jogo que não se controla, adota-se a passividade completa do domínio da imagem. Eis a questão: o filme está vivo? Com outros argumentos, as mesmas questões são feitas para Lisandro Alonso e Philippe Graundrieux, diretores que geralmente entregam a subjetividade àqueles que os controlam – cada espectador com sua certeza.  

Este embate entre o palpável e intangível (ou seja, vida e morte) se desenvolveu nos últimos anos com inclinação maior por parte de diretores como Jean-Luc Godard e Peter Greenaway, mas hoje o próprio ato de pensar e agir a favor de um filme parte com esta fusão embutida. Artistas como Ben Rivers, Ben Russel, Leo Pyrata e Charlote Serrand, para citar alguns, cada um a seu modo, buscam o material fílmico a partir de um dispositivo que, segundo Fargier, não oferecerá a realidade. 1048 Luas (2017), filme de Serrand, um exercício straubniano, resume-se ao encontro da artificialidade da imagem à dramaturgia. Sleep Has Her House (2016), longa de Scott Barley filmado em Iphone é mais sugestivo em função da imaginação material e do tempo. Mas o caso mais interessante a citar é o de Subybaya (2017), último filme de Leo Pyrata, onde o diretor entra como alvo “de um bombardeio intensivo”, como diria Fargier. Como espécie de um ricochete às imagens, Subybaya será paralisado, oferecendo suas imagens às chamas de hoje, os glitchs e pixels. A utopia encontra outra, um pensamento pessimista do real – a vida – e que não deixa de ser um pensamento sobre a imobilidade de quem “apenas assiste” – a morte.  O mesmo pode ser dito de Cat Sick Blues, filme de horror/terrir dirigido por Dave Jackson que esvazia a figura do assassino a ponto de transformá-lo em um conjunto de pixels. “A cada instrumento, sua destinação, seu impacto”, do mesmo “Poeira nos Olhos” define este momento.

O vilão vira pixel em Cat Sick Blues (2015).

Se o meio é a mensagem conforme Marshall Macluhan, neste contexto já estamos na era profetizada dos dispositivos como extensões dos sentidos. Hoje não é mais sobre expor o método ou escrever e reescrever com o vídeo a artificialidade. A tecnologia e sua essência formam o ambiente. Let the Summer Never Come Back Again (2017), exercício de esvaziamento dramático possível graças ao registro de um telefone celular, no alto de seus 202 minutos, é extremo na briga com o fluxo narrativo, espécie de texto subversivo aos olhos educados – a má qualidade da imagem, a possibilidade da câmera de abandonar seus personagens para buscar outros momentos sem alto custo – nada novo se pensarmos nos filmes em video de Godard -, mas um filme que se afasta da história sugerida.  Daney, mais uma vez, oferece a resposta: “a recusa de um mundo anterior, de um plano anterior”. A realidade está além do personagem e é este o alvo da câmera, ainda que esta realidade nunca seja alcançada. Nunca será, nem mesmo em Parade.

Recentemente o diretor Richard Perry adotou em Base (2017) o storytelling ao uso de uma câmera GoPro junto à linguagem de programa de esportes radicais e criando a partir dessas junções um filme basicamente sobre o dispositivo, seu processo de filmagem/edição e como sua imagem reflete a inconsistência da vida e da imagem – o que é o real? Sobra a ele o encargo de divulgar este ilustrativo e ambíguo obituário além das margens do que se chamava de “filme”.

Base (2017) de Richard Parry

Em busca do irreal

A tendência é que novas imagens sejam produzidas a partir de imagens já existentes ou que se filme ou que já foi filmado outras tantas vezes. Trazer um segundo significado em sobreimpressões, outras ideias além do pensamento original. Isto tampouco é novo na história do cinema. Porém, o processo nunca esteve tão em primeiro plano como hoje. A antologia das imagens parece tão importante quanto o que a sucede como construção analítica, preenchendo o foço entre imagem e espectador. Uma dinâmica particular, independente do real – imagem – mas que o recria em excesso. A busca simulada que cria independência ao real, nunca confundido, mas livre para abundância. É o momento da fartura visual, nem sempre pura e relevante e apta à queixa, longe da questão da figuração ótica e sim pela relação direta à existência, longe de referências, ou seja, a crise de representação. Esta ruptura de vida e morte está justamente no significado da imagem no cinema; como e o que ela representa entre a tela (do cinema, da TV ou do smartphone) e o receptor.

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ENTREVISTA: EDGARD NAVARRO

Por Pedro Tavares

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Premiado no último Fest Aruanda, incluindo o prêmio de melhor filme pelo júri da crítica, Abaixo a Gravidade recentemente encerrou a última edição do Festival de Brasília e de diversas formas marca o início de um novo caminhar para Edgard Navarro. Responsável por filmes de escolhas livres, poéticos e anárquicos, o cinema para ele agora pode estar longe de grandes equipes e orçamentos. Conversamos com Navarro sobre cinema de invenção, processo de produção e claro, seu novo filme, Abaixo a Gravidade.

Do grito “abaixo a gravidade” antes do salto em SuperOutro à face de Bené (Everaldo Pontes) chafurdada na terra em Abaixo a Gravidade há uma elipse de quase 30 anos. E esse intervalo de certa forma dá o tom de Abaixo a Gravidade. Como foi criar essa atmosfera de contestação e constatação com sua tradicional liberdade artística tantos anos depois? O cenário de hoje é pior que o de 89, época do lançamento de SuperOutro?

 Acho que o cenário de 30 anos atrás é tão parecido com o de nossos dias que, infortunadamente, atualiza o filme com relação ao que há de pior no país. Ironicamente, no SuperOutro há uma sequência – a da comemoração da independência – em que vemos uma faixa com os dizeres: “FORA SARNEY, DIRETAS JÁ”. A diferença é que agora não estamos às vésperas de eleições diretas após um jejum de quase 30 anos; vários presidentes se sucederam no poder – Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma… Temer; vivemos um cenário de descrédito das instituições, descrença nos políticos e, pior, desesperança e perplexidade diante de um quadro de cinismo e corrupção nunca vistos… Não, isto não é verdade: se examinarmos bem a história, o Brasil sempre conviveu com essa discrepância social que nos avilta: uma classe empoleirada no comando da nação desde a colonização, com o massacre dos índios e dos africanos escravizados, passando pela organização do Estado com toda a sorte de expedientes escusos pra garantir a manutenção de privilégios à custa de uma maioria que sobrevive em condições precárias, tudo resquício de uma injustiça atávica, primordial. Quanto ao processo de criação do Abaixo a Gravidade, digo que o mote inicial foi a busca de uma generosidade redentora como característica principal de Bené; uma certa inocência, também, e a aspiração ao crescimento espiritual, apesar da decadência, desordem e violência ao redor… Ele almeja uma leveza – parte inerente de seu ideário, como se isso fosse possível; em certo sentido nosso bom velho, em seu afã de pureza, assemelha-se ao louco de rua do SuperOutro. (Não devemos esquecer que este último inventa fantasias suicidas, apesar do humor cáustico que as embala…). Digo que os dois são, apesar da loucura que os separa, partes complementares de um mesmo drama onde se pretende discutir a um só tempo a inviabilidade de ambos em face da realidade hostil que se apresenta e a extrema quixotesca tenacidade que lhes termina trazendo a almejada redenção (e nesse ponto me identifico completamente com ambos).

SuperOutro (1989)

Abaixo a Gravidade possui diversas intenções de um fim de ciclo – as corridas em direção a um novo salto -, seja para a morte, para a liberdade. Mas o filme opta sempre pela persistência, para algo além do corte. Recentemente você disse ao G1 sobre sua vontade de parar. O que vem após o corte? Uma nova forma de fazer filmes para Navarro? Durante a Mostra do Filme Livre em que foi homenageado, você já citava o peso de uma grande equipe ao falar de O Homem que Não Dormia, citando febres, insônia e surtos criativos e como você sempre foi adepto da independência.

Isso é absolutamente verdadeiro: desde que comecei a fazer filmes pesados (com equipes grandes, produção e logística difíceis), voltados pra a busca de sustentabilidade dentro desse nosso mercado quase inviável, considerando o modelo de distribuição existente e a falta de políticas adequadas ao enfrentamento do modelo atual que, não bastasse os vícios profundos criados pela relação de dependência com o cinema estrangeiro (mormente o americano com seu gigantismo), precisa conviver com as produções da Globo Filmes, por exemplo, detentora de uma fatia desproporcional do que sobra, contando em sua distribuição com os milhões de espectadores de sua programação diária; a comparação que nos acode ao juízo é bíblica: Davi contra Golias. Temos uma atiradeira e muita pontaria, mas não contávamos com os golpes baixos de governantes que estão se lixando pra a cultura, uma classe dominante cujos filhotes estão sendo preparados pra serem vencedores e não pra ficarem assistindo a filmes que apontam suas setas contra o peito da estabilidade do sistema; mais: uma educação constituída de forma a manter alienada a grande massa – acho que é evidente o pacto dos homens de negócios com as emissoras de TV, cujo teor essencial de suas programações trabalha no sentido de imbecilizar ainda mais o nosso povo. Uma saída digna pra quem faz arte nesse contexto é realizar projetos de baixo custo com alto poder de alcance, principalmente da camada jovem da população que ainda não foi tão infectada pelo lixo com o qual tentam massacrar suas cabeças sem parar… Existem muitos jovens talentosos acordando pra essa realidade e começando a refletir sobre as questões inerentes aos meios de produção e de distribuição de seus produtos audiovisuais. Minha geração não conseguiu realizar esse plano, mas aposto que essa rapaziada que está chegando agora tem muita chance de conseguir transformar essa realidade… Vou tentar aprender com eles, imitar seu exemplo ao escolher um caminho de independência – repito: única saída digna! Viva o Cinema!

Abaixo a Gravidade (2017)

Ainda é possível ver marcas profundas do que Jairo Ferreira costumava chamar de “cinema de invenção” em Abaixo a Gravidade. Houve revisita aos filmes dessa época ou até mesmo a sua filmografia no processo de Abaixo a Gravidade? Na citada entrevista ao G1, você comenta que gosta mesmo é de passear. Werner Herzog costuma dizer que a melhor escola de cinema é a longa caminhada. Você costuma criar nesse costume?

Tudo o que possa haver nesse novo filme de classificável como cinema de invenção é bem-vindo, mas devo dizer que não procurei criar nada que a priori viesse atender a este ou aqueloutro estilo ou escola; parto sempre de uma necessidade que aos poucos se engendra em meu espírito, talvez como um tumor que precisa ser espremido, ou como um filho inesperado (mas sempre desejado) que vai ter que vir à luz. Aí começa um embate interno levado a consequências muitas vezes danosas; crio sempre em meio a certa agonia… aí penso: tudo bem, agon[1] é uma palavra grega que tem a ver com esse estado de conflito a que nos lança o teatro, em sua raiz, nós, incautos filhos de Prometeu – um deus rebelde. E assim continua o drama do fazedor de arte, a fazer de sua agonia mote pra quem quiser ver; como diz Caymmi numa de suas canções: “dizendo a todo mundo o que ninguém diz.” Se houve revisita? Sim, sempre há; alguém já disse que estamos sempre fazendo o mesmo filme… Herzog me inspirou muito, sempre, mas nesse último filme… Bem, tem um momento de agonia no filme em que escrevo explicitamente numa cartela: “CAMINHAR AJUDA A BOTAR O JUÍZO NO LUGAR”; Quanto ao gostar de passear… também veio quando pensei que haverá o momento em que não terei mais nada pra fazer aqui, quando a missão estiver cumprida… Vontade de não ter mais nada pra fazer por obrigação e me deu uma vontade de passear. E é também uma homenagem a meu amigo, o Mestre Paulino[2], a quem o filme é dedicado; desde que nos conhecemos (ele fez uma participação de destaque em O Homem Que Não Dormia), sempre que vinha a Salvador ele ficava em minha casa; nós passeávamos pra cima e pra baixo; sem saber que eu o observava, sem querer ele me deu a solução dramática pra a personagem Bené, no filme… E no dia 1° de maio deste ano (acredito que não apenas por acaso no dia do trabalho) ele serenamente nos deixou, foi passear no céu…

Há também certo saudosismo no filme. Nem perto do saudosismo de Eu Me Lembro, mas um comentário que guarda certa lamentação sobre a mudança radical no qual Salvador passou nos últimos anos. O que você guarda ao olhar para o dique do Tororó?

Tem um momento que a câmara dá um rolê pela cidade, numa cena em que Bené encontra um velho amigo e os dois conversam. Ali tem uma nostalgia, sim, algo que canta a beleza da cidade que ainda resiste e lamenta que o crescimento desordenado a tenha desfigurado a ponto de Bené não mais reconhecê-la; lamentam também o fato de que nessa terra sempre houve um mandachuva… E para plantar um laivo de esperança no coração do espectador, os dois chegam a um acordo e a uma conclusão irrefutável: “O que nos redime a todos é o tempo, cuidando pra que nenhum desses donos do mundo sobreviva aos próprios desmandos…”

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Edgard Navarro (esq.) e Bertrand Duarte durante as filmagens de “Abaixo a Gravidade”

Uma pergunta sobre o processo: como se dá tua relação com os atores? Como extrair o máximo deles e manter a aura de um “filme livre”?

Tive como preparador de atores um amigo – Fernando Belens – em quem posso confiar inteiramente; além de ser psiquiatra, tem grande experiência no métier. Ele me entregou os atores bem afiados no texto e familiarizados com as situações dramáticas e suas implicações emocionais; assim tudo fica mais fácil. Gosto dessa parte de lidar com o elenco, embora às vezes seja enérgico além do necessário, causando certo constrangimento; mas sei como desfazer essas tensões porque também sou ator e tenho muito carinho pelo trabalho deles que estão ali expostos, vulneráveis; enfim, até agora tem dado certo, e como quero fazer trabalhos menos complexos em todos os sentidos daqui por diante, o que havia de problema ficou no passado, espero.

Falando em “filme livre”, até onde vai a liberdade em seus filmes no processo de criação? Há o espaço pensado para que a imagem esteja sempre em função metafísica?

Sim, desde a elaboração do roteiro que a metáfora central que se constitui na espinha do filme é servida pelos vários setores da produção e todos passam a contribuir dentro de sua competência para que tudo o que há pra ser dito nas entrelinhas seja feito com a ênfase ou a sutileza desejável. É verdade que às vezes um detalhe mal pesquisado por algum dos colaboradores pode me tirar do sério, mas essas tensões fazem parte do processo – nobody is perfect. Por isso durante a pré-produção fazemos reuniões onde tentamos estabelecer certas metas na expressão final – vetor resultante do filme. Mas creio que essas metas devem ser flexíveis, justamente pra deixar espaço à criação livre, ao improviso, ao acaso emergente que pode surpreender. Pra mim quase sempre é melhor sacrificar o que foi escrito a priori em favor daquilo que se oferece: seja uma revoada de pássaros inesperada, uma chuvinha marota que quer aparecer e se enfeita de luz metafísica, ou a performance de um ator ou uma atriz ultrapassando limites estabelecidos pra nos brindar com uma interpretação irretocável e impossível de ser repetida… Em casos como estes, dane-se o texto!

[1] Termo grego – ágon, que significa luta, competição, disputa, conflito, discussão, combate, jogo, e que tem as suas raízes na Antiga Grécia onde, anualmente, eram realizadas competições desportivas e artísticas.

[2]  Luiz Paulino dos Santos, cineasta pioneiro do ciclo baiano, autor original do filme Barravento – que mercê de um episódio seria dirigido por Glauber.

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Festival de Brasília: Mostra Competitiva de curtas – Parte 2

Por Kênia Freitas
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As melhores noites de Veroni (2017), Ulisses Arthur

Tentei (2017), de Laís Melo

Esses dois curtas trazem o corpo feminino como temática e como forma de exploração material do filme. As protagonistas femininas em ambos colocam as relações de afeto e poder que perpassam as vidas das mulheres em evidência. Em As melhores noites de Veroni, de Ulisses Arthur, esse corpo – o corpo da protagonista Veroni – está em impasse: de um lado a clausura de um apartamento apertado, da vida familiar e de um relacionamento em crise com o marido caminhoneiro quase sempre ausente; de outro, as aulas de canto e a performance na noite. O curta de apartamento, usa desse espaço limitado para aumentar o efeito de aproximação com Veroni e o seu cotidiano trivial. Interessa, assim, menos a resolução das incertezas da personagem ou a imposição bem delineada de um conflito narrativo e mais um aproximar afetivo desse corpo feminino e dos seus deslocamentos.

Em Tentei, de Laís Melo, os procedimentos iniciais de entrada no filme são semelhantes: o espaço íntimo de um quarto, vemos inicialmente um casal (homem e mulher) na cama e  acompanhamos os gestos mínimos e silenciosos dessa mulher que se arruma para sair de casa. O procedimento então se altera completamente, estamos no espaço impessoal de uma repartição pública, que descobriremos ser uma delegacia policial. O filme orquestra então de forma engenhosa um plano e contraplano entre Glória (a mulher que vimos sair de casa) e o funcionário público que a atende. Embora ambos ocupem a mesma sala, cada um dos personagens existe em uma pulsação de vida diferente. O atendente segue protocolarmente os procedimentos para registrar a denúncia de abuso e estupro marital de Glória, o seu discurso conforma-se no registro institucional. Glória pouco consegue expressar-se pelas palavras, o seu discurso é aquele que não consegue ser formulado de forma adequada ao protocolo. Plano e contraplano colocam o espectador entre duas imagens que não poderão se encontrar de fato na tela. Por fim, diante da impossibilidade, na sequência final do curta, a esse corpo que não consegue produzir discurso sobre a violência que sofre, o que resta é voltar-se contra si e também contra a câmera, contra a sua transformação em imagem.

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Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz

Nada (2017), de Gabriel Martins

Chico (2016), dos Irmãos Carvalho

Peripatético, Nada e Chico trazem para a tela os corpos e questões da juventude negra, uma juventude que nos filmes negocia entre a própria possibilidade de existir no mundo e os desejos que atravessam uma existência mais plena (menos precária e com significado). Nada, de Gabriel Martins, mergulha na crise existencial da Bia. A jovem de família de classe média e as portas de prestar vestibular, manifesta o seu desejo profundo de não fazer nada: de não escolher uma profissão e não entrar na máquina de moer pessoas da vida adulta.  Equilibrando as diversas reações  (da família, da escola e da amiga) diante do desejo de Bia, o curta tem as suas melhores cenas quando entrega-se plenamente as formas de apreensão do mundo por Bia – no travelling de abertura com o deslizar da câmera nas ruas acompanhado pela trilha musical, na cena em que Bia canta rap no quarto e a câmera entra na coreografia com ela, nos corredores da escola quando a banda sonora do filme fica nos fones de ouvido da jovem em detrimento aos sons do mundo exterior. No fim, após a fuga da garota, o filme devolve aos espectadores um lugar do julgamento ou da absolvição com um “valeu a pena?” que não será respondido.

Chico, dos irmãos Carvalho, nos desloca para uma narrativa de futuro: estamos em 2029, em um regime de exceção em que jovens negros e pobres podem ser presos preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos a marca desse destino. Embora futurístico, é difícil classificar o filme como uma distopia estando este tão próximo das representações e das discussões sociais do nosso presente (a redução da maioridade penal e o encarceramento em massa, para falar dos temas mais óbvios). As escolhas da direção de arte e da encenação são fundamentais também no sentido de inscrever esse futuro como um registro familiar do nosso presente. Na encenação, temos um registro naturalista dos acontecimentos, sobretudo nas relações familiares afetivas e francas entre avó, mãe e filho. Os elementos futurísticos inseridos para marcar cenograficamente esse futuro são sutis (como a tornozeleira prateada de Chico) reforçando essa relação direta com o presente. Então, de fato o deslocamento maior do filme vem não de sua temporalidade, mas da sua resolução pelo cruelmente e amorosamente mágico na cena final.

Peripatético de Jéssica Queiroz acompanha os amigos Simone, Thiana e Michel. Simone quer arranjar um emprego, Thiana estuda para passar no vestibular e Michel está tranquilo jogando videogame. A narrativa pulsa no ritmo da correria de Simone, é preciso deslocar-se pela cidade, usar sapatos e passar por inúmeras entrevistas que não dão certo. Situando-a para além da sua vizinhança e núcleo de amigos, o filme apresenta também uma série de outros candidatos a vagas de emprego (de idade, raça e classe social diversos). Abrindo a subjetividades diversas a busca da personagem. No entanto, a narrativa divertida e de influências pop é bruscamente interrompida pela realidade histórica. As imagens televisivas nos situam então em 2006 no dia em que o protesto de uma facção criminosa e a reação policial contra a periferia da cidade rasgaram São Paulo (e no filme a vida de Michel). O curta se depara assim com um paradoxo de existência semelhante ao dos seus jovens personagens: o desejo de ser e pulsar em um ritmo, e as demandas concretas de precisar existir em outro registro.

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Carneiro de Ouro (2017), Dácia Ibiapina

O filme de Dácia Ibiapina começa por nos apresentar o personagem de Dedé Monteiro, um realizador do Sertão do Piauí que produz cinema popular com poucos recursos, contando histórias fantásticas e de aventura, com muito efeitos especiais inusitados. De início, o documentário trabalha em um registro padrão de entrevista com o personagem e algumas imagens do seu processo de produção. Mas o grande movimento do filme de Dácia Ibiapina é quando este permite-se o gesto de fazer ready made com o cinema de Dedé Monteiro. O curta então perde-se (no melhor dos sentidos da criação livre) nas imagens do cinema do cinema de Dedé e torna-se ele próprio esse cinema popular escrachado de efeitos especiais absurdos e cativantes. Mais do que um filme dentro de outro filme; trata-se de um cinema (o francamente popular) dentro de outro cinema (o do registro documental legitimado por festivais e crítica). Sendo um belo gesto de crença e amor às imagens do cinema.

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Festival de Brasília: Mostra competitiva de curtas – Parte 1

Por Camila Vieira

 O Peixe 1O Peixe (2016), de Jonathas de Andrade

Há algo de perturbador no modo como a duração dos planos de O Peixe evoca a persistência do olhar para um gesto ambíguo de dominação e docilidade. O ritual de pescadores que abraçam os peixes logo após a pesca é encenado em posição frontal à câmera, com zoom que se aproxima dos corpos. A ambientação sonora do mangue repousa sobre a calmaria de cantos de pássaros, chiados de cigarras, barulho das águas em movimento, ruído de folhas que balançam ao vento, entre tantos outros sons da natureza que se harmonizam. De um plano a outro, a ação ritualística se repete com pequenas variações, acompanhando cada processo de morte lenta dos peixes envoltos pelos braços vigorosos de pescadores, que usam a força física para manter uma luta corporal com o animal que agoniza. É um belo filme sobre a relação homem e natureza, mediada pelo toque que produz uma pulsação erótica.

Inocentes 1Inocentes (2017), de Douglas Soares

Compor a imagem com corpos masculinos também é o foco de Inocentes, mas a partir de uma chave de aproximação com o trabalho fotográfico homoerótico de Alair Gomes. Em preto e branco, os planos contemplativos da paisagem dão lugar ao ponto de vista de alguém olhando a praia da janela de um prédio. Homens passam protetor solar, conversam, tomam banho de mar, fazem exercícios. O olhar voyeurístico acompanha o movimento dos corpos, capturados também em instantes fotográficos. Em voz off, um homem imagina narrativas a partir dos rapazes que observa à distância. Mesmo incluindo um rapaz negro – não há registro fotográfico de negros no trabalho de Alair Gomes –, existe uma beleza que Douglas procura preservar em homenagem ao fotógrafo, a partir da opção de filmar apenas jovens com padrão de corpos sarados, deixando de lado a possibilidade de um olhar mais diversificado.

Baunilha 1Baunilha (2017), de Leo Tabosa

O início de Baunilha apresenta uma explicação do mestre Brenno Furrier sobre a máscara na prática de BDSM: um objeto que despersonifica, tira a identidade e o aspecto humano de quem a usa, podendo também manter o sigilo do dominador ou do submisso. Tomando esta imagem da máscara como ponto de partida formal, o curta faz um retrato de Furrier, apenas com planos que mostram fragmentos de seu corpo, sem jamais revelar o rosto do personagem. No começo, a entrevista detalha como funciona a prática, desconstruindo o olhar do senso comum, em contraponto ao sexo baunilha (feito de maneira convencional). Quando o desvelamento do rosto de Furrier para o entrevistador acontece no fora de campo, o documentário dedica-se a um perfil do personagem, explicitando não só as motivações que o levaram a buscar o BDSM, mas também suas relações amorosas e anseios sentimentais no cotidiano.

A Passagem do Cometa 1A Passagem do Cometa (2017), de Juliana Rojas

Em comparação com outros filmes de Juliana Rojas, A Passagem do Cometa mantém um registro seco, sem elementos sobrenaturais ou de horror. Ao tratar do aborto em uma clínica clandestina como tema, o curta optou por ser econômico e direto na narrativa, contextualizada nos anos 80. Por outro aspecto, o filme aprofunda tensões desencadeadas pela própria situação: a entrega do dinheiro, a espera da amiga que chega atrasada, as perguntas da médica, o exame do corpo na maca. O procedimento cirúrgico é explicado de forma científica pela médica, mas há uma elipse que salta para o momento pós-cirurgia, quando parece haver uma sensação de vazio, de falta, sobrepondo as imagens dos objetos da sala com animações em cores neon, que figuram partes do corpo da mulher. Pontuado por um acontecimento que rompe a tranquilidade da clínica, o curta propõe uma indagação para o futuro.

Mamata 1Mamata (2017), de Marcus Curvelo

Diferente da maioria dos filmes interessados em pensar as urgências do nosso tempo histórico diante da conjuntura política brasileira, Mamata não tem a pretensão de seriedade tampouco de afirmação de uma tese. Pelos recursos da comédia e da precariedade do registro caseiro, o filme é a expressão de uma juventude em crise, que vive o próprio fracasso e aponta para o impasse do país. Curvelo se coloca em cena como este jovem solitário, sem saber muito o que fazer diante do próprio fracasso, mas rindo de si mesmo. A ironia e o sarcasmo também mobiliza a montagem inventiva do curta, a partir do uso de imagens e sons que se viralizaram na internet e que, ao serem colocados em uma só sequência, dão conta de momentos absurdos e inusitados, como o hino nacional cantado por Vanusa, junto à imagem do pato, à cambalhota do Vampeta na rampa do Planalto e o choro de David Luís na derrota do time brasileiro na Copa.

Torre 1Torre (2017), de Nádia Mangolini

Usando a técnica da animação para realizar um documentário, Torre parte dos relatos de quatro irmãos da família Gomes da Silva, cujo patriarca Virgílio é considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira. Os entrevistados narram o que recordam da infância e de que modo a ausência do pai e a prisão da mãe afetaram cada uma de suas vidas. Compondo com o figurativo, o traço se desfaz e se refaz a partir das lembranças que permaneceram e as que escapam. A estrutura fragmentada em quatro partes do curta é intercalada pelos nomes dos filhos por ordem crescente de idade e os blocos de narrativa vão ganhando uma progressão maior de detalhes do traço e cores mais vivas, de acordo com o que cada um consegue relatar. O que impressiona é o modo como o curta procura dar conta do desaparecimento do pai, a partir do uso expressivo do branco e de rastros que se dissolvem.

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Festival de Brasília: Arábia

Quem conta sua história?

Por Camila Vieira

O começo de Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, acompanha o adolescente André, andando de bicicleta em longo plano sequência. Nas cenas posteriores, a presença constante do jovem no centro da trama nos interpela como possível protagonista do filme. O garoto chega em casa, na Vila Operária, bairro próximo a uma fábrica de alumínio em Ouro Preto, Minas Gerais. Ele cuida do irmão pequeno, que está doente. A mãe só volta de viagem no fim do mês. A tia Marcia ajuda os dois nas tarefas domésticas. Ela é enfermeira em um hospital comunitário e é amiga de Cristiano, um operário que se acidenta na fábrica e acaba sendo internado. Ao encontrar um caderno deixado por Cristiano, André entra em contato com a escrita em primeira pessoa desse trabalhador e, a partir daí, a narrativa do filme se reposiciona: somos mergulhados na história de Cristiano, que se torna o personagem principal de Arábia.

Deixar André de lado e abrir a porta para acessar Cristiano, mediante sua própria voz, acena para duas estratégias: possibilitar que a vida de um personagem de origem humilde, um operário, seja narrada por ele mesmo e engrandecer o relato de alguém comum que costuma não ter importância dentro da ótica das grandes narrativas oficiais. Se antes escutamos do menino Marcos que “o mundo só tem matação, tiro, morte; não tem milagre”, a trajetória épica de dez anos de Cristiano aponta para o pequeno milagre de um operário que vivencia o cotidiano árduo do trabalho e da migração de cidade em cidade em busca de sobrevivência.

Diferente de outros tantos filmes que usam a voz off como forma de sublinhar ou reforçar o que é visto em uma cena, o relato aprofunda a subjetividade de Cristiano pela sua relação com o passado e adiciona um caráter romanesco às imagens construídas na relação direta com o real. O filme desenvolve a saga do personagem que, após sair da cadeia, não quer mais voltar ao seu bairro em Contagem. Ele decide pegar a estrada a procura de pequenos trabalhos, que lhe garantem o mínimo de trocados para seu sustento. O deslocamento de um lugar a outro faz com que Cristiano se adeque à dinâmica de cada trabalho: coletor e vendedor de mexerica, peão na construção civil, transportador de cargas, mecânico de tecelagem, operário de fábrica de alumínio.

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Em cada um dos espaços de trabalho, os encontros com outros colegas são pontuados por intervalos em que uma espécie de irmandade acontece. A conversa com o caminhoneiro produz um vínculo a ser partilhado: eles comparam qual a carga mais árdua e difícil de carregar – algo que permite ao espectador entender o quão duro é aquele trabalho. Há momentos em que todos cantam juntos, como a cena em que o grupo de operários entoa os versos de “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas. Outras músicas ajudam a dimensionar a relação afetiva do personagem com os espaços e as pessoas, em especial “Três Apitos”, de Noel Rosa, na voz de Maria Bethania; e “Raízes”, de Renato Teixeira.

Arábia parte da história de um personagem para compor um retrato do trabalhador brasileiro em uma conjuntura histórica que perpassa uma década. O interesse não é procurar entender as causas das desigualdades sociais e econômicas dentro da experiência de mundo do personagem, que antes acreditava “não ter nada de importante para contar”. O olhar da direção vai para outro caminho: aproximar-se do modo de vida desse trabalhador, das pessoas que ele conhece – inclusive Ana, o grande amor de sua vida –, e do despertar diante de sua condição como parte da engrenagem que integra a alienação do trabalho.

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Festival de Brasília: Era Uma Vez Brasília

Por Kênia Freitas

O que fazer do Era uma vez Brasília de Adirley Queirós? O filme é o sucessor evidente de Branco Sai, Preto Fica (2014) na proposta de mesclar o documentário e a ficção cientítica a partir das histórias de vida dos personagens reais da Ceilândia/DF. No entanto, Era uma vez Brasília substitui o provocativo “da nossa memória fabulamos nóis mesmos” do antecessor por algo como: “o futuro distópico já está sendo e somos nós”.

Temos assim, a partir das histórias reais de Wellington (preso por invadir um lote para construir uma casa), do Marquim da Tropa (personagem também de Branco Sai…, que levou um tiro após uma violenta batida policial e ficou paraplégico) e de Andreia (uma ex-presidiária em liberdade condicional) a ficcionalização de uma distopia que coincide também com o cenário macropolítico nacional. Nessa trama de sci-fi, Wellington será WA4, preso em 1959 por fazer um lotamento ilegal e mandando para o futuro com a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek. Sua nave perde-se no tempo e espaço e cai na Ceilândia de 2016. Nesse presente distópico, entrecortado pela narrativa real do golpe parlamentar que impediu a presidenta Dilma Roussef, WA4, Andreia e Marquim encontram-se para formar um exército.

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A forma de condução dessa narrativa porém é a da diluição da trama. Os fragmentos que nos situam e explicam o enredo estão entrecortados pelo vagar ou paralização dos corpos e das paisagens de Brasília, Ceilândia e Samambaia. Há uma escolha deliberada pela não fruição narrativa tradicional. Uma opção de negação do prazer diagético do espectador. Mais do que contato ou crença, o que Era uma vez Brasília oferece ao espectador é a frustração. Frustração dos corpos inertes, que contemplam paisagens sombrias que se repetem (a passarela, o metrô, a esplanada). Corpos despontecializados até mesmo quando em deslocamento pelo metrô ou pela nave espacial, em um vagar que não chega a lugar algum. Corpos que atiram contra o congresso e não provocam estrago algum ao poder estruturado. Temos assim, não mais a história dos que se vingam (como em Branco Sai…), mas apenas dos que não morrem.

Essa condução narrativa é imposta, longe de qualquer negociação ou jogo que perpassam os longas anteriores de Adirley Queirós. Como em uma instalação de arte contemporânea, esses corpos desolados e solitários pousam para a plasticidade da câmera e ocupam a tela em planos longos e lentos. Mas diferente da fruição dessas instalações no espaço do museu, o dispositivo cinema obriga aos espectadores permanecerem diante do filme sem respiro. Dispositivo de frustração espectatorial ampliado na exibição do filme em Brasília pelo contato direto com os curtas que abriram a sessão. Chico (dos Irmãos Carvalho) e Carneiro de ouro (de Dácia Ibiapina) são filmes que apostam no poder e na crença de novas narrativas – a do cinema negro e de favela, no caso do primeiro, e a do cinema popular, no segundo.

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Nesse dispositivo de frustração, Era uma vez Brasília aprisiona os espectadores assim como as cidades-prisões do filme aprisionam os personagens. Nesse sombrio luto de 2013, o sol não irá nascer, as balas não atingirão o seu destino, o ruído incessante não dimunuirá. Nessa distopia do presente, no último plano do filme os personagens encaram o espectador e nos jogam na pergunta que abre esse texto: o que, afinal, fazer dessas imagens e desse filme? Um encerramento que parece resumir a sua carta de intenções: Bem-vindo ao Brasil 2017: não há saída!

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Festival de Brasília: O Nó do Diabo

A origem do mal

Por Camila Vieira

A estrutura narrativa do longa-metragem O Nó do Diabo (2016), de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, é dividida em cinco capítulos, que são separados e nomeados por anos específicos, seguindo uma cronologia decrescente do futuro até o passado. A estratégia procura pensar uma dramaturgia em que cada capítulo seguinte encadeia eventos trágicos que, de algum modo, estão conectados ao que já foi apresentado no capítulo anterior. Parece existir uma componente genealógica dentro deste esforço de alinhavar as diferentes tramas, de modo a compor uma grande narrativa em torno das relações de poder e de dominação entre brancos e negros. O espaço é uma fazenda canavieira e o tempo é o intervalo de dois séculos, em que uma espiral de acontecimentos se desdobra em torno da escravidão, do racismo e da propriedade.

Ao desenvolver os conflitos em cada um dos capítulos pela chave do oponente a ser eliminado ou exterminado, O Nó do Diabo parte da construção de dois polos dentro da dinâmica de quem ameaça e de quem se sente ameaçado. De um lado, Vieira é o branco latifundiário, que detém os títulos de propriedade da terra e a força de exploração. Ele é o único personagem presente em todos os capítulos; sua premissa é de uma entidade eterna, como um vampiro que cruza diferentes tempos. Do outro lado, os personagens negros são transitórios de um capítulo a outro, mas eles são convocados a uma força de resistência contínua que passa de geração em geração.

O Nó do Diabo 2

Enquanto Vieira é o corpo que se mantém intacto e impermeável ao tempo, os corpos dos negros que se revoltam estão transmutados, metamorfoseados como figuras monstruosas, que carregam um mal original, o tal nó do diabo. Ao se deixar seduzir pelos códigos do gênero de horror, em especial pela construção do fantástico que apela para a iconologia da monstruosidade (os mortos-vivos, os fantasmas de olhos vermelhos, a jovem incendiária), a insurgência parece se identificar menos com uma problemática de fundo histórico e mais com uma justificativa de gênese do mal. “A terra come tudo. A alma não descansa nunca”, diz o mentor do escravo fugitivo no penúltimo capítulo.

Há eficácia no modo como é explorada a linguagem do cinema de gênero de horror, como o uso do zoom para provocar um efeito, a música com graves que enfatizam a tensão da cena, o sangue gráfico do gore. De um capítulo a outro, os mesmos códigos são pontuados, mas a necessidade de se servir deles apenas aponta para a harmonização de um todo, que não gera dissonâncias capazes de surpreender. A subversão no próprio caráter de estranhamento das figuras monstruosas parece estar inserida no mesmo grau de importância entre tantos outros elementos que o filme abarca.

Mas se existe um embotamento da subjetividade dos personagens insurgentes pelas forças do mal que eles carregam, a existência deles não está separada do tom excessivo e espetacular da perpetuação da violência em O Nó do Diabo. A eliminação do outro e o derramamento de sangue são apenas instrumentos que contribuem para o bom funcionamento e para a eficiência dos códigos do horror na economia narrativa e de mise-en-scène do filme.

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Festival de Brasília: Por Trás da Linha de Escudos

Ambição e ingenuidade

Por Camila Vieira

Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso, é o fracasso de um projeto que ambicionou ser maior do que realmente é. Ao fazer um documentário dentro do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, o grande desafio era encontrar uma maneira de escutar os policiais, pelo gesto de se posicionar do outro lado do front de batalha, já não mais dos manifestantes que protestam nas ruas. Se, para Jean-Louis Comolli, filmar o inimigo é de alguma forma se colocar do lado dele e compartilhar a mesma cena, Pedroso parte da mesma premissa e toma a decisão espinhosa de não partir para o confronto.

No entanto, a postura de não confrontar precisa caminhar junto com a necessidade de desmontar o inimigo em sua própria história e conseguir descrevê-lo com suas contradições para que possa aparecer como tal. Ao longo do filme, Pedroso indaga os policiais, procurando compreender suas motivações dentro da dinâmica de trabalho, enquanto acompanha os diversos treinamentos da tropa e operações habituais do exercício da função. As perguntas jamais são colocadas em tom de ataque, mas de curiosidade em relação a como funciona o efetivo. A fragilidade do filme não repousa na opção pelo não confronto, mas em não conseguir encontrar estratégias que apontem para a complexidade de ser um policial militar dentro do atual contexto histórico do Brasil.

O dispositivo de escuta de Pedroso em Por Trás da Linha de Escudos leva a dois caminhos igualmente problemáticos: a repetição exaustiva dos argumentos dos policiais dentro do discurso oficial (eles sempre respondem que estão cumprindo normas e leis, como braços do Estado, e que não existe espaço para emoção) e a observação do modus operandi dentro do batalhão na linha da aprendizagem de como se tornar um bom policial. O que se obtém nas filmagens parece seguir uma abordagem institucional ou não escapa de perguntas que a própria polícia já se acostumou a ouvir (não é a toa que o primeiro coronel entrevistado não consegue distinguir a equipe de cinema de uma equipe de imprensa qualquer).

Por Trás da Linha de Escudos 2

Se ao lado do batalhão não se produz nada além do oficialesco e do institucional, resta forçar uma pretensão crítica em outro lugar: intercalar com os registros do confronto da polícia com os manifestantes no Movimento Ocupe Estelita em 2014 e com imagens icônicas a serviço de uma certa leitura simbólica do país (a bandeira do Brasil repleta de carrapatos, bonequinhos de manifestantes e polícia em um jogo tabuleiro, o céu da bandeira que se torna escudo com a faixa de “ordem e progresso”). No entanto, o esforço de crítica é acomodado em uma sucessão de imagens que não provocam qualquer ruído no que já foi dito.

Mesmo nos trechos em que se acena um contraponto, como é o caso da sequência em que Pedroso está na ilha de edição e coloca lado a lado a foto de um manifestante sangrando e outra de uma mulher sorridente com os policiais, o olhar é apenas de ingenuidade. Parece que é aí que o cinema abdica da crença em sua capacidade de produzir desvio. O reforço da pose do diretor ingênuo e em crise com o material que tem em mãos é agravado pela arrogância de acreditar que está compreendendo o lado humano do batalhão de choque. Um dos policiais se enxerga como um cidadão comum que também sofre. Mas se o filme não se interessa em investigar isso e se limita a ouvir o policial e não a pessoa para além de sua missão profissional, a busca pelo humano fica só no discurso.

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Festival de Brasília: Café com Canela

Por Kênia Freitas

Sankofa = “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”

Provérbio tradicional Akan da África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim)

“Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edificado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas, políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeidade como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade”.

Edileuza Souza da Penha

 

Dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com canela” nos joga  de início em duas imagens festivas de famílias negras. A primeira, codificada pelas dimensões mais quadradas e pelas interferências na transmissão da imagem, simula o registro videográfico amador da festa de aniversário de uma criança, Paulinho. Na intermitência desse registro encontramos a figura de Margarida, anfitriã e mãe do aniversariante. Margarida e Paulo (o seu marido) registram-se em momento de euforia. Essa simulação da imagem amadora finge organizar o transcorrer do acontecimento, ao mesmo tempo em que o reconfigura pela presença da câmera. Nesses registros do passado, o filme nos apresenta também a personagem de Violeta, menina de idade próxima a Paulinho, chamada por Margarida a compor o núcleo de proximidade familiar no momento do parabéns. A bateria da filmadora acaba e o registro interrompe-se bruscamente no auge da celebração.

A segunda imagem de festa familiar nos coloca em outro fluxo de registro, o do tempo contemporâneo do transcorrer do filme: o quadro amplia-se, as imagens estão nítidas e sem interferência. Estamos em um churrasco na casa de Violeta (agora uma jovem adulta, casada e com dois filhos). Além da sua família, estão presentes poucos amigos próximos: Cidão (a melhor amiga de Violeta), Ivan (o vizinho amigo que acaba de perder o marido, Adolfo) e Margarida (que nos informam, não está mais com Paulo).

É entre essas duas imagens de celebração familiar que a narrativa do filme transcorrerá, situando a segunda imagem de encontro festivo, a do churrasco, como o lugar de chegada, o restabelecimento de uma comunidade como núcleo familiar recomposto entre os personagens presentes. Na colagem dessas duas imagens o filme entrega já no seu começo o seu arco narrativo completo: do aniversário de Paulinho ao churrasco anos mais tarde. Café com canela propõe assim aos seus espectadores um pacto narrativo não teleológico, visto que início e fim estão desde sempre dados. No lugar, o pacto proposto é o de uma circularidade temporal, no qual as diferentes temporalidades (o passado da festa infantil, a atualidade do churrasco e o futuro daqueles personagens) estão em permanente contato e em retroalimentação. Pacto esse que é selado também no bloco inicial de apresentação do filme, no momento em que a sua câmera encara frontalmente os moradores de Cachoeira (cidade do Recôncavo Baiano na qual o filme foi gravado) e estes encaram a câmera de volta. Esse olhar implica e convida diretamente aos espectadores ao percurso narrativo circular do filme de forma não omissa.

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Esse percurso entre a imagem inicial e final já dadas, será o do reencontro e da recomposição dos afetos entre Violeta e Margarida. Encontro que não se dá apenas pelos corpos em presença das duas mulheres negras, mas também dos espaços em que esses dois corpos habitam e no qual se movimentam. Para Margarida esse espaço é o do enclausuramento de sua casa. Após a morte de Paulinho, ainda criança, ela enluta-se e se isola no lar vazio (sem o filho morto e posteriormente sem o marido que também parte, na impossibilidade de permanecer). A casa reflete e é refletida no tormento psicológico de Margarida: as paredes sangram, movem-se para confiná-la, mofam. O tempo nessa casa é o que não transcorre mais, apenas repete-se. Nessa estagnação de vida, os gestos possíveis são os da repetição cotidiana: acender o cigarro, frequentar o café, ir da mesa até o sofá, cobrir e descobrir o espelho, ir a porta do quarto do filho e nunca abri-la. Para Violeta, o espaço habitado é o da fluidez pela cidade, percorrer as ruas com a sua bicicleta vendendo coxinhas e encontrando as pessoas. Movimento contínuo de vida que transcorre ligeiro entre os filhos que vieram cedo demais, o dia a dia de correria compartilhado com o marido, o trabalho, os cuidados com a avó.

É nesse rompante do fluxo permanente que Violeta reencontra Margarida. Encontro que é a princípio violento, ainda que afetuoso. Como retribuição de um gesto de acolhimento no passado da sua então professora Margarida (no momento em que a menina tornou-se órfã dos país), Violeta não aceita aquele isolamento autoimposto. Os espaços e a pulsação das protagonistas chocam-se: as recusas insistentes da professora são respondidos pelos não menos insistentes chamados a vida: “Mas tem que respirar” da jovem. Resultando, por fim, em um primeiro movimento de aproximação de embate e vão. Se os gestos de contato, dessa vez mais sutis, de Violeta prosseguem – com as rosas deixadas em frente a porta de Margarida – é a morte (da avó de Violeta) quem religa as duas imagens (fechando o ciclo temporal e possibilitando enfim que os ritmos das protagonistas entrem em sintonia).

Esse desenvolvimento circular, a partir dos pontos iniciais e finais dados de começo e do transcorrer narrativo como percurso afetivo a ser compartilhado, dá ao filme a sua liberdade de criação. Tendo o espectador não como refém do suspense narrativo, mas como cúmplice do seu desdobrar. Inventividade que transparece em cenas como a inusitada e divertida subjetiva do cachorro, logo após a morte de Adolfo, ou como na conversa entre Violeta e Margarida sobre o que pode o cinema (que termina mais uma vez em uma interpelação direta aos espectadores do filme). Circularidade que nos faz pensar em modos de narrativas ancestrais negras e no provérbio akan Sankofa “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Um retorno ao passado que não é só possível, como é necessário para tornar-se cura. Retorno nos gestos singelos como os de finalmente ultrapassar as portas do quarto do filho morto e de saída para ganhar a rua. Retornos necessários para que a vida finalmente contamine a estagnação e torne-se dança. E necessários também para que o presente possa ser acessado, vivido, e algum futuro imaginado. Esse retorno ao passado (e as primeiras imagens do filme) que não será jamais individual, mas coletivo e compartilhado por Margarida e Violeta, e pela cumplicidade afetiva dos espectadores.

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Festival de Brasília: Construindo Pontes

Diferenças conciliáveis

Por Camila Vieira

Em determinado momento do longa-metragem Construindo Pontes, a diretora Heloísa Passos esclarece que seu documentário partiu do interesse de filmar um lugar de conflito e de convivência. A partir da relação com seu pai, a realizadora não se furta em expor as diferenças entre os dois, tanto de visões particulares de mundo quanto do pensamento sobre a política do Brasil. O pressuposto parece ser um abismo que existe entre Heloísa e Alberto, engenheiro que trabalhou em várias obras de infraestrutura durante o período da ditadura militar.

De início, Heloísa procura entender no passado as raízes do abismo com seu pai. Seu ponto de partida visual é a cachoeira de Sete Quedas, por meio de imagens registradas em Super-8 e dadas de presente pelo pai. A queda d’água desapareceu com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das obras erguidas durante a ditadura, no final dos anos 70. Alberto não foi o engenheiro responsável pela construção da hidrelétrica, mas Heloísa toma o projeto como exemplo de um contexto histórico por meio do qual seu pai coordenou em 15 anos a criação de 22 obras espalhadas pelo Brasil que, segundo o olhar dele, se inserem dentro do único projeto político e econômico que trouxe benefícios para o país.

Enquanto Heloísa pede para Alberto traçar no mapa do Brasil a extensão das obras que participou e exibe imagens de arquivo com fotos da época, os conflitos entre ela e o pai vão surgindo, ainda que ela deixe claro que “a família é o não dito”. Ao tratar da situação política atual do Brasil, ela questiona a arbitrariedade de “um país sem lei”. Durante uma conversa em torno do mandato de condução coercitiva do ex-presidente Lula, Alberto insiste que ela “não se envolva emocionalmente” e reafirma que a ditatura tinha limites de corrupção, com regras rígidas de modernização a favor do sistema econômico.

Construindo Pontes 2

Na disputa de discursos entre pai e filha, Alberto aparenta impassividade e Heloísa mantém a postura de enfrentamento. Mas os desacordos entre os dois jamais são aprofundados e permanecem apenas na lógica do desequilíbrio perceptível de uso das palavras: “Ele fala moça. Eu falo presidenta. Ele fala revolução. Eu falo ditadura”. No momento em que Heloísa narra a história de sua saída de casa aos 22 anos, quando o pai descobriu que ela namorava uma menina, o filme parece apontar para uma ferida não conciliável entre ambos. No entanto, a presença da nova companheira, Tina, dentro da casa durante as filmagens é apenas periférica, sem resquício algum de que aquele acontecimento do passado ainda provoque qualquer incômodo ou dissenso.

Se mesmo a forma como Alberto quer interferir no filme não passa de sugestões como “ter um propósito” ou chegar a “uma concepção final”, as divergências entre ambos são sempre colocadas como exposição de pontos de vistas distintos, que jamais transbordam na constituição da cena. O propósito é a “boa sincronização” do lugar de conflito que até então tinha sido tomado como pressuposto do filme, mas que é inviabilizado pela felicidade estampada nas fotos do álbum de família e pela constatação do  “deixem que eu decida a minha vida” na voz de Belchior.

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Festival de Brasília: Pendular

Oscilar e mudar

Por Camila Vieira

Usado como instrumento para estudar o tempo e o movimento, o pêndulo é composto por dois elementos mecânicos: uma superfície imóvel e uma linha que oscila. Talvez uma forma de aproximação inicial para pensar o longa-metragem Pendular (2017), de Julia Murat, é perceber as diferentes forças que emergem de um ponto fixo. A situação já posta é a relação de um jovem casal e será desta aparente estabilidade determinada que algo irá se modificar, oscilar e produzir movimento. Os personagens sem nome já trazem em si e no próprio ofício a dinâmica do tensionamento pendular: o homem é escultor e trabalha com objetos pesados, grandes, sólidos e rígidos; a mulher é dançarina e dispõe seu corpo ao movimento, à instabilidade, à leveza.

Dentro da existência de uma desigualdade que já está colocada como base da constituição dos dois protagonistas, há um espaço que necessita ser ocupado: o galpão abandonado de uma estamparia. Para estar junto e conseguir trabalhar, o casal necessita estabelecer regras de ocupação a partir da delimitação do território por uma faixa laranja que divide o espaço. É a partir daí que a narrativa de Pendular irá se desenvolver em quatro partes, que estruturam o roteiro (escrito em parceria com Matias Mariani, marido de Murat): A Chegada de Alice, O Ímpeto, A Ação e A Contra-Ação.

Na primeira parte, a relação entre os dois parece ser iluminada e solar. Esta sensação se materializa formalmente nas cenas iniciais pela incidência de luz branca nos rostos dos dois, enquanto estão juntos na cama. Cada um é instigado pela curiosidade de observar o trabalho criativo do outro: ela o vê suspender um objeto pesado de madeira e segue a linha de aço que sai do galpão até o poste de luz. Ele diz para os amigos que não colocou uma lona para dividir o espaço, porque “a graça é poder ver ela”. A cumplicidade faz parte do jogo de olhar e ser olhado.

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O segundo momento já inicia com a redistribuição do espaço: ela precisa ceder uma parte para que ele possa ampliar seu trabalho, com o argumento de que aquele pequeno território negociado “não vai fazer falta” para ela. Enquanto fica evidente em Pendular que a estratégia de etiquetação é “passível de renovação segundo o bom comportamento”, a invasão do espaço aponta não só para quem tem o poder de ocupar em prol da sobrevalorização do próprio trabalho – o homem deseja renovar suas bases criativas, ainda que não saiba direito o que está fazendo –, mas também incide sobre quem pode dominar o corpo do outro – ele quer ter filhos e ela não quer.

Julia Murat preenche seu filme de momentos intensos da relação do corpo com o espaço (as coreografias das danças performadas por Raquel Karro), do corpo com os objetos (as vibrações sonoras no contato com objetos metálicos, o barulho de máquinas de ar e ventiladores) e dos corpos com outros corpos (as cenas de sexo). É na ênfase do próprio corpo que se coloca a questão do que fazer diante do desequilíbrio de poder e da dominação na relação a dois. A terceira parte do filme já começa com as inseguranças de cada um ao ouvir as críticas negativas de seus trabalhos artísticos. A crise criativa se mistura à ocultação de segredos, em que ele parece querer desvelar a todo custo e ela esconde para tomar decisão por conta própria. O embate irá se prolongar na última parte de Pendular e, mesmo com a tentativa de querer compreender a subjetividade do outro, há algo que se transformou pela intensidade do que foi vivido. A ruptura da estabilidade entre os dois acena para um enigma do que poderá acontecer.

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Festival de Brasília: Música Para Quando as Luzes se Apagam / Vazante

De sensorialidades e narrativas

Por Camila Vieira

Não deixa de ser curioso o longa-metragem gaúcho Música Para Quando as Luzes se Apagam (2017) estar classificado como documentário em sua ficha técnica. Se é possível absorver uma vontade evidente de aproximação com o real pela materialidade indicial dos vestígios cotidianos nas tomadas caseiras de câmeras portáteis, a composição das personagens e a relação entre elas parecem apontar para gestos ficcionais, criados pelo olhar de Ismael Caneppele, que estreia na direção de longas. Trata-se do encontro da mulher vivida por Julia Lemmertz – cuja presença jamais é identificada no filme – com a jovem Emelyn, em um jogo de incorporação da persona de Bernardo.

O interesse mútuo das duas personagens pela transmutação performativa não só reside no modo como se forja outra aparência – para uma, o ato de colocar lentes de contato, mudar a cor do cabelo; para outra, vestir-se com roupas largas e masculinas –, mas na vivência de uma experiência no mundo que é atravessada pelo borramento das fronteiras da identidade de gênero. Como o filme se liberta da rigidez identitária que poderia aprisionar as personagens, a própria estrutura narrativa não pretende deixar nada conclusivo sobre as diferentes subjetividades que se colocam em cena, constantemente reposicionadas em zonas de indeterminação. No lugar de abrir chaves encerradas de interpretação, o filme prioriza modos de estar no mundo pelo transbordamento sensorial.

O espaço em que este fiapo de narrativa se desdobra é uma pequena vila no sul do Brasil, que é dotada de uma atmosfera de melancolia e isolamento, bem próxima de Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) – cujo roteiro é do próprio Caneppele. A emblemática frase “estar perto não é fisíco” está inclusive inscrita na parede do quarto de Emelyn, como se fosse o traço de um desdobramento daquela disposição sensorial explorada dramaturgicamente no filme de Esmir Filho. Em Música Para Quando as Luzes se Apagam, há ênfase no contato com a natureza: é nítida a amplificação de sons de grilos, sapos e cigarras nas derivas feitas à margem de pântanos. Dentro da imersão na paisagem, o filme abarca uma amplificação do potencial onírico dos encontros com outros corpos, como a longa sequência noturna com um bambolê de luzes neon.

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O longa-metragem Vazante (2017), de Daniela Thomas, comunga também do interesse pela sensorialidade das imagens, mas procura se ancorar na rigidez subjetiva de seus personagens, marcados por papéis sociais bem definidos, dentro do contexto histórico de um Brasil escravocrata no século XIX. Com imagens em preto e branco, a fruição sensorial de uma atmosfera carregada e caudalosa – os inúmeros planos com chuva – aliada à paisagem imponente do interior de Minas Gerais é a porta de entrada para o mergulho em uma história trágica que procura explicitar as relações de poder e de exploração econômica e racial que demarcaram a formação do povo brasileiro.

Antônio é o tropeiro de origem portuguesa que desbrava territórios em busca do lucro, carregando escravos negros. Ao voltar de uma de suas longas expedições, encontra a mulher morta após o parto. A casa grande é ocupada por Zizinha, a matriarca que, depois da morte da filha, fica em estado de letargia e recebe cuidados constantes da escrava Joana. Filho de Zizinha e irmão da falecida, Bartholomeu retorna ao casarão com a esposa e as filhas para acertar as dívidas com Antônio, que detém a pose da fazenda e precisa lidar com a crise da extração do garimpo e a possibilidade de investimento em plantações e criação de gado em sua propriedade. Bartholomeu cede a filha mais nova, Beatriz, para casamento com Antônio.

Ao alinhavar uma narrativa com poucos diálogos e construída com blocos de sequência que se sucedem pontuados por cartelas negras, Vazante prioriza elipses e silêncios, que valorizam o gestual dos corpos e os olhares dos personagens em suas disputas e tensionamentos que se avolumam ao longo da trama. No entanto, a partir do momento em que se coloca ao lado do ponto de vista da jovem Beatriz – sobretudo durante o desfecho de maior carga emocional –, o filme enlaça um nó de implicação política: o trágico da questão racial no Brasil colônia é mediado pelo olhar de uma menina branca, como se apenas por meio dela fosse possível o espectador perceber o horror do massacre dos negros.

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