Se há a chance de chamar este notável bloco de filmes e autores de “nova onda” para o slow cinema – termo sempre a questionar -, é possível também notar muitas semelhanças entre eles. Ainda que fortemente influenciados por nomes como Abbas Kiarostami, Béla Tarr e Chantal Akerman, este grupo se associa a estes artistas por outros vieses.
A maior força para eles está na internet. A Experimental Film Society e a Tao Films, produtoras e distribuidoras de filmes online reúnem uma gama expressiva de cineastas e filmes com o mesmo caráter: o não à descrição excessiva, a expansão do outro e a entrega dos limites do drama à câmera e não aos personagens – logo a concessão a quem vê. Filmes como Osmosis, do grego Nasos Karabelas, e Inside, de Vicky Langan, e Maximilian Le Cain, a exemplo, pouco dialogam na abordagem, porém arrematam qualquer possibilidade de realismo na maneira que a câmera está para os corpos a filmar. O tempo expandido, maior característica do slow cinema, está em novos códigos.
O diretor Mike Higgis em At One Fell Swoop faz um filme de horror no qual a câmera, objeto de observação e de louvor, é também o objeto de construção do suspense – é a partir dela, salientada por Higgis, que vemos uma amálgama de imagens que norteiam o diálogo com o gênero. O mesmo pode ser dito de Phantom Islands, de Rouzbeh Rashidi, um filme que entrega seu monólogo ao dispositivo – consequentemente ao espectador – e assim permanecerá livre para qualquer abordagem e associação.
At One Fell Swoop (Mike Higgins,2015)
É importante lembrar a noção de tempo em dias de internet e bombardeios de informações: a EFS e a Tao não se limitam a filmes curtos, mas muitos destes filmes são diretos, numa dicotomia curiosa. O tempo está mais em como se conta e não o que se conta. Alguns são diretos, sobre relações humanas e o mundo ao redor – a destacar o ótimo Centaur, de Aleksandra Niemczkyk. Outros são sobre a inexatidão e a partir dela que os filmes se tornam modelos de investigação: The Story of Drifting Cities, de Michael Higgins, e Du Côté de lá Réalité Immédiate, de Pierre Villemin, tiram o prazer do olhar e o instigam, cada um a sua maneira, e tiram da zona de conforto da contemplação. Esses filmes se deslocam de um rigor que se foca em fragmentos da vida para contar vidas inteiras no qual imagem e palavra se abraçam sem separação definitiva e oferecem um quadro fenomenológico para compreensão da sociedade e uso e apropriação de imagens e de dispositivos.
É um regime curioso, pois pouco vemos travellings ou movimentos despercebidos de câmera – a citar Béla Tarr. Estes filmes não são regidos pela lógica e pelo espaço e dão à câmera sua potência a fórceps, com paciência suficiente para que seus planos fixos tenham efeitos hipnóticos que contribuem para a noção da força do dispositivo. O caso mais explícito dessa noção é Distant, de Zhengfan Yang, filme gêmeo de Milky Way, de Benedek Fliegauf, que aborta qualquer possibilidade de encontro com a mise en scène clássica e aposta no espaço entre corpos e câmera como o diálogo ideal, como se o filme vivesse no fosso entre plateia e tela (ou palco). É a entrega completa da diegese ao seu aparato. Cabem as palavras de Roland Barthes, em De la Science à litterature:
Tecnicamente, segundo a definição de Roman Jakobson, a “poética” (quer dizer, o literário) designa aquele tipo de mensagem que toma sua própria forma como objeto e não seus conteúdos.
Distant (Zhengfan Yang, 2013)
Em comum, os filmes nos catálogos da Experimental Film Society e da Tao se mantém entre o encanto e o mistério. São filmes que residem na coreografia do fantástico e não da rotina, contrariando Akerman e Kiarostami. Este ensaio sobre o outro – resumindo grosseiramente estes blocos de filmes -, ressoa no tempo que nasceu: o fluxo de memória e esquecimento como cita Marc Augé, lembrado por Christine Mello em seu texto Imagem Digital Como Memória, que questiona: “Não seria este estado de suspensão, produzido no corpo, uma tradução imagética da chamada instantaneidade contínua?” A característica da oposição à urgência dos tempos de redes sociais, contrário à percepção geral de um novo tempo, cria fissuras nítidas e provavelmente justifique a tendência fantástica ao realismo; o simulacro narra, não exibe.
Temos, portanto, empenhos distintos com finalidades semelhantes e extremamente relevantes; a tentativa de manter intacta a inflexibilidade da linguagem ao mesmo tempo em que considera a mudança de percepção do público. A Tao e a EFS servirão como porta para muitos diretores hoje patronos do que chamamos de slow cinema, como um gradual crescendo sobre a dimensão de tempo e a linguagem cinematográfica.
O cume desta escalada está na ciência da internet não como alternativa e sim como a certeza do consumo destes filmes; ainda que feitos para a grande tela – como qualquer outro filme -, o video on demand é a via para o encontro direto com o público interessado neste nicho e a construção de uma filmografia rica já assumindo a firmeza do consumo a partir do imediatismo e de uma nova identidade para o tempo. O reflexo é nítido nos filmes e contrabalancear com nada mais que uma nova abordagem para este gênero é mais que uma saída possível. É uma forma de renovo.
Algo do passado sempre permanece, mesmo que seja como uma presença assombrosa ou um devaneio sintomático.
(LaCapra, 2001: 49)
Introdução
Começando com seu filme de cinco horas de duração Batang West Side (2001), que iniciou uma mudança de estúdio para uma forma mais independente de cinema de arte, e seguido por uma série de trabalhos longos que duram até dez horas – notavelmente Evolução de Uma Família Filipina, que se aproxima em quase 600 minutos – Lav Diaz tornou-se um dos mais prolíficos diretores do Slow Cinema nas últimas duas décadas. Embora seus filmes compartilhem várias características com os gostos de Béla Tarr (Hungria), Albert Serra (Espanha), ou mesmo Tsai Ming-liang (Taiwan), Diaz se estabeleceu como um nicho em uma forma de cinema que se tornou mais e mais mais visível desde os anos 2010. O diretor, que se referiu repetidamente a si mesmo como malaio em vez de filipino, volta repetidas vezes para a história traumática (e o presente traumatizante) de seu país, as Filipinas, e combina-o com uma abordagem muito particular à lentidão cinematográfica. Desse modo, Diaz criou uma forma de cinema pós-trauma, que difere amplamente do Cinema de Trauma padrão na medida em que olha para aspectos sub-representados da natureza do pós-trauma.
Em seu livro On Slowness (2014), Lutz Koepnick argumenta que a lentidão na arte visual pode funcionar como “um poderoso meio de lembrar e refazer resíduos traumáticos e reanimar histórias dolorosas aparentemente congeladas no passado” (46), e o trabalho de Diaz responde a isso. em seus filmes. Em contraste com o que hoje é conhecido como a forma padrão do Trauma Cinema, que considera e subsequentemente descreve o trauma como um evento espetacular, o trauma nos filmes de Diaz é representado como uma condição. O cinema pós-trauma do diretor é caracterizado por vários elementos, todos os quais dão uma olhada particular na natureza da memória em geral e do trauma em particular: primeiro, duração através do uso de long-takes; segundo, um tempo de execução prolongado; terceiro, o foco no rescaldo de eventos traumáticos sem criar um vínculo visual com esses eventos; quarto, a transmissão da violência através do diálogo e do som e, quinto, a ausência inerente de imagens violentas. Especialmente o uso da duração e da ausência exige uma investigação do que Roger Luckhurst chamou de “estética das consequências” e do retorno cíclico do diretor às histórias de pós-trauma e sofrimento, que se concentram nas narrativas psicológicas de personagens traumatizados. Como veremos, Diaz se concentra mais nos processos psicológicos de seus personagens do que em qualquer outro diretor de filmes lentos. Isso é apoiado pela própria estética que ele usa, em primeiro lugar, pelo tamanho particular de seus filmes. A descrição detalhada de medo, angústia e paranóia ao longo de, às vezes, nove horas ou mais é uma estética específica do que chamo de cinema pós-traumatológico de Diaz.
Textos da Memória e o País Colonizado
Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)
Ao dizer isso, Diaz aponta para a longa e traumática história da opressão ocidental, começando com a conquista espanhola em 1521. Quatrocentos anos de repetidas invasões se seguiram, com o país se tornando um hotspot onde as potências ocidentais lutavam suas guerras umas contra as outras. A população local havia sido privada de sua própria cultura, tendo que adotar a cultura – a língua, a religião, a comida e até mesmo os nomes – de seus respectivos colonizadores espanhóis, americanos ou japoneses. Em 1972, quase 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente Ferdinand Marcos declarou a Lei Marcial e impôs uma ditadura no país. Se os opositores políticos não fossem diretamente trancados ou mortos, eles seriam ameaçados pelo uso de táticas terroristas. Desaparecimentos e execuções extrajudiciais, proeminentes até hoje (Human Rights Watch, 2007, 2011), tornaram-se a norma na época. Morte na Terra de Encantos (2009) é um dos filmes de Diaz que trata do tema da oposição e do quanto o estado se esforça para silenciar, por exemplo, artistas que não se conformam com a percepção do país de que tipo de mensagens a arte deve entregar ao povo. Hamin, um escritor-artista e protagonista do filme, foi torturado e forçado a viajar para o exterior por vários anos, e agora é visto por aqueles homens que o torturaram no passado, levando-o mais perto da insanidade e de sua morte inexplicável. Encantos, assim como os outros filmes de Diaz, faz uma ponte cuidadosa entre os eventos passados e as condições presentes, mostrando assim que maus-tratos passados da população se infiltraram na sociedade contemporânea. Há um retorno repetido e cíclico aos eventos traumáticos aparentes nos filmes do diretor, o que torna o espectador consciente de que, de fato, o tempo parou e os mesmos eventos estão acontecendo repetidas vezes.
Hamin encontra seu torturador em um café – Morte na Terra de Encantos (Lav Diaz, 2009)
O (não) fluxo de tempo e o fator de concentração
Uma das principais características do cinema pós-trauma de Diaz é a rejeição do diretor de uma progressão narrativa linear na tela, a fim de se aproximar da natureza da memória. Melancolia (2008), seu filme de oito horas sobre desaparecimentos (forçados) e resistência, por exemplo, é composto de três partes, das quais a anterior antecede temporariamente as duas anteriores. Em Florentina Hubaldo, CTE, (2012), também, Diaz muda entre os eventos passados e presentes, nunca indicando claramente se o que vemos acontece agora ou então. Ao contrário de outros diretores, ele não usa indicadores típicos para um flashback, como dissolução ou mudança de cor para preto e branco. O resultado é desorientador, um forte marcador de pós-trauma, que aterroriza o sobrevivente através da imposição de medo, paranoia, exaustão, alucinações e outros fatores debilitantes. Vale a pena mencionar aqui o trabalho do sociólogo Wolfgang Sofsky, que argumenta que “o terror destrói o fluxo do tempo” (1997: 78). Sofsky fez um caso particular para o uso do terror e sua consequente interrupção de um fluxo de tempo linear nos campos de concentração nazistas, onde uma percepção temporal e espacial específica reinava entre os detentos.
Inseridas num universo de concentração, Melancolia (2008), Morte na Terra de Encantos, e Florentina Hubaldo, CTE, por exemplo, evocam uma experiência particular e uma percepção temporal que tem sido, e ainda é, uma característica dos ambientes prisionais, mas que atingiu o seu pico nos campos de concentração. O não fluxo de tempo dos filmes torna-se, assim, uma representação de um sistema de concentração que esmaga lentamente suas vítimas. Paul Neurath, sobrevivente dos campos de concentração de Buchenwald e Dauchau, explica esse sistema com palavras angustiantes: “O campo de concentração geralmente mata suas vítimas de maneiras menos espetaculares. É comparável não tanto a um assassino feroz que anda furioso, quanto a uma máquina terrível que, aos poucos, mas sem piedade, mói as vítimas em pedaços” (2005, 47-48). Matthew John, em sua análise de Muriel ou le Temps d’un retour, de Alain Resnais, escreve: “O horror do sistema de campo de concentração não reside no extermínio abrupto e imediato da vida humana, mas na lenta e agonizante decadência da vida humana. corpo e mente” (2014: 83). Essas características também são proeminentes na trilogia de Diaz de pós-trauma. Os protagonistas dos filmes lutam contra um colapso mental gradual, e a morte deles vem lentamente como resultado de repetidas infligências de ataques violentos e não violentos durante um longo período de tempo. Há uma tensão entre a pulsão de morte dos personagens, que, eles acreditam, acabaria com o sofrimento deles, e os perpetradores ‘segurando as cordas da vida e da morte de suas vítimas.
Terror, Medo e Tortura Psicológica
A morte está presente em todos os filmes de Diaz, mas, como mencionado acima, ela sempre vem devagar, o que agrava o sofrimento dos personagens a um nível quase insuportável. Há uma coexistência aparente da extremidade e do cotidiano, o que causa rupturas inesperadas e impulsiona o espectador a perceber os eventos traumáticos que acontecem aos personagens, que são ou foram alvo de forças governamentais opressivas, independentemente de ser o colonizador ou o ditador, e eles se transformam em cadáveres vivos como resultado disso. Em uma entrevista, Diaz sustentou que o conceito de “aplica-se tanto ao caráter da psique filipina. … É exatamente a palavra para esse tipo de sofrimento” (Diaz, 2014). O que é notável em filmes como Melancolia, Encantos e Florentina Hubaldo, CTE, é que os protagonistas dos filmes são capturados em uma teia apertada de medo e terror persistente. Essa atmosfera de medo e terror, que Diaz quer que o público sinta, é complementada, se não iniciada, através do uso de espaço fora da tela por Diaz, onde ele posiciona, entre outras chaves narrativas, os perseguidores dos personagens. A violência acontece fora da tela, onde é audível, mas não visível, colocando o espectador em uma posição aterrorizante (aterrorizada?). A ênfase é colocada não em mostrar, mas em uma presença ausente que cria uma atmosfera assombrosa em todos os filmes. Os personagens são confrontados com terror psicológico, guerra mental, bem como tortura mental, que os transforma em cadáveres vivos na tela. Nas palavras de Diaz: “Em algum momento a morte virá. É como uma coisa pré-mediada. … o inferno está chegando, e é sempre assim. É como um campo de concentração. Você é compartimentado; este é o novo grupo, precisamos orientá-loscomo trabalhar nessas coisas, então, no próximo compartimento, não os alimentaremos, e o próximo compartimento é a câmara de gás onde os matamos. Então é parte da compartimentação. Há morte lenta.” (Diaz, 2014)
Florentina fala sobre sua provação. – Florentina Hubaldo, CTE (Lav Díaz, 2012)
Ausência e duração
Como podemos deduzir de todos os itens acima, há duas características principais que se destacam nos filmes de Diaz, os quais ele usa para evocar, primeiro, uma sensação de um universo de concentração em que seus personagens estão aprisionados e, segundo, o pós-trauma do qual eles não podem escapar. Ausência – a ausência visual de violência ou de eventos traumáticos no total – e a duração em forma de longa duração e estagnação são uma marca registrada do cinema de Diaz. A interação entre os dois cria uma rede apertada de cenas experienciais que visam tornar o concentrador palpável para o espectador.Essa abordagem específica permite que o diretor traduza o pós-trauma de forma mais adequada na tela do que normalmente é o caso do Cinema de Trauma. Ao contrário dos filmes de trauma popular, Diaz se concentra na estagnação da narrativa de vida de um sobrevivente. Ele representa pós-trauma como uma lenta progressão do sofrimento (e possível cura). A duração muitas vezes esmagadora de seus filmes – em média entre seis e oito horas – enfatiza o aspecto da duração do trauma, em particular o tempo que leva para o trauma pós-greve, e para o sobrevivente chegar a um acordo e lidar com o novo desafio. Ele minimiza a instantaneidade e, assim, estabelece uma abordagem, que o diretor húngaro Béla Tarr também usou em seus filmes. Em sua análise do olhar no cinema de Tarr, escreve Bernhard Hetzenauer, “ao usar longos takes, a progressão narrativa está subordinada a uma descrição detalhada da atmosfera e ao significado dos gestos dos personagens. … É simplesmente sobre uma única ação de um personagem dentro das teias do tempo …” (2013: 86). Em outras palavras, em vez de desafiar um personagem do filme com várias ações diferentes, Tarr – assim como Diaz – enfatiza o impacto de um único evento no personagem, permitindo que o tempo (cinematográfico) revele o impacto psicológico e suas consequências. evento para o indivíduo.Melancolia, Paralisia e a Morte Dirigir Deixe-me ilustrar a abordagem de Diaz para uma representação de pós-trauma através da justaposição de ausência e duração, olhando para a terceira parte de seu filme de oito horas Melancholia, que se concentra nos desaparecidos das Filipinas, os desaparecidos . O filme segue inicialmente Alberta, Rina e Julian, que se envolvem em uma forma de terapia de imersão, a fim de combater sentimentos de dor, perda e tristeza. É uma tentativa de encontrar o fechamento à luz da incerteza arrogante do que aconteceu com seus entes queridos na ilha de Mindoro, na primavera de 1997. Os dois principais pilares do filme são guerra psicológica e paralisia, levando a uma lenta descida à loucura. e incutir uma forte pulsão de morte em um grupo de combatentes da resistência.
A terceira parte do filme, que é um flashback (embora não claramente indicado como tal pelo diretor), posiciona o espectador temporariamente nos anos 90. Está situado inteiramente na floresta, concentrando-se em três combatentes da resistência na ilha de Mindoro, que é cercada pelos militares. Diaz abstém-se de representar visualmente os militares e usa essa ausência visual dos autores para se concentrar na queda psicológica dos combatentes da resistência. Nesta mesma parte do filme, Diaz enfatiza o uso de guerra psicológica e tortura mental, aspectos que são características primordiais do sistema de concentração. Após a morte de sete membros de seu grupo rebelde, os três homens estão isolados no bosque da ilha de Mindoro, que é, segundo um espião local, cercado pelos militares: “Eles disseram que vão garantir que todos vocês morram. Em vez de retratar o impasse entre as duas facções diretamente, Diaz transmite a gravidade da situação através do silêncio opressivo dos personagens. Os homens têm pouco a dizer um ao outro. Exceto por breves instruções uns para os outros sobre onde se esconder ou se mudar, eles estão mentalmente em seu próprio mundo e tentam chegar a um acordo com sua situação desesperadora e a perspectiva de morte certa por conta própria. Há uma sensação de opressão, claustrofobia e incerteza palpável ao longo desta parte do filme.
É esse “luxo” que o lutador agora insano da Melancolia está exigindo, gritando e gritando para que os militares finalmente acabem com seu sofrimento. Isto é, no entanto, negado por um longo período de tempo, o que só aumenta a insanidade do homem e sua pulsão de morte. Quanto mais tempo ele passa neste período de incerteza e quanto mais ele sabe que a morte virá, mas não quando chegará, mais insano ele se torna. Além das breves explosões de frustração do lutador, os três personagens que Diaz segue são silenciosos, no entanto. Eles estão resignados com a situação deles. Eles são vistos andando de um esconderijo para outro. Em outras ocasiões, eles ficam imóveis e aguardam a “morte certa”, como um deles descreve em uma carta para sua esposa. Importante, Diaz posiciona o espectador semelhante aos dos personagens. Assim como os personagens, não vemos o inimigo. Diaz joga com o que Thomas Weber descreve no contexto de Caché de Michael Haneke como uma “estética da incerteza do público” (2014: 42), que confronta o espectador com “o incomensurável, algo fechado para a recepção do espectador” (Ibid., 45), e consequentemente coloca o espectador em uma situação similarmente estressante como os personagens.
Três combatentes da resistência chegam a um acordo com sua situação desesperadora. – Melancolia (Lav Diaz, 2008)
É o tema da incerteza, combinado com a estética da duração de Diaz, que visualiza o aspecto do mais claro e concentrador. Os combatentes da resistência estão cercados pelos militares sem poder escapar, prendendo-os em sua localização atual. Eles estão em uma prisão com fronteiras invisíveis, em que se tem certeza de que a morte vai atacar, mas sem saber quando ela vai atacar. Duração como opressão e tortura é fundamental na terceira parte da Melancolia. Tudo o que o espectador pode fazer é sentar e esperar com os resistentes e desesperados combatentes da resistência, uma situação que se torna pesada depois de uma hora para espectadores e personagens, um ‘jogo de poder’ aos olhos de Michel Foucault: “O tempo penetra no corpo e com todos os controles meticulosos do poder ” (1991: 152). Enquanto Foucault fala sobre o tempo em geral, no contexto da guerra psicológica, a longa duração é um exemplo particularmente forte do exercício do poder. O objetivo é criar uma atmosfera aterrorizante e travar o alvo em um estado de paralisia.
Textos da Memória e o País Colonizado
Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)Visualmente, a chuva implacável é uma companhia constante e serve para reforçar a situação traiçoeira dos homens. A vasta paisagem da lama acompanha o colapso dos combatentes da resistência e sua afundar em uma situação cada vez mais desesperadora. A floresta, ou a ilha de Mindoro em geral, tornou-se uma armadilha e exerce pressão sobre os combatentes da resistência até que eles quebrem. Eles são esmagados pelo tempo e pela ansiedade avassaladora da “iminência imprevisível da morte”, como Pollock e Silverman descrevem em seu estudo sobre o comportamento dos prisioneiros no campo (2014: 9). Em vez de perseguir um tiroteio rápido e letal com os homens armados, as forças militares geram um estado persistente e permanente de incerteza para eles, o que leva à paranoia, desesperança e hiper-vigilância. A incerteza sobre quando a morte vai atacar impede que os combatentes desenvolvam o desejo de continuar a vida. Sua pulsão de morte aumenta a cada momento gasto no estado paralítico de nãosabendo. Os próprios detalhes da estética de Diaz para uma representação desse estado podem ser considerados como o que chamei de “tempo da morte”.
Lav Diaz e o tempo da morte
Na verdade, o Slow Cinema tem sido frequentemente falado no contexto de temps mort ou dead time. Depois que uma ação chega ao fim, os quadros permanecem vazios por vários segundos, o que testa a paciência do espectador. Os filmes de Lav Diaz não são diferentes, mas seu uso de longa duração e tempo morto assume outra dimensão. Ele cria algo que eu chamo de tempo da morte. A morte sempre vem devagar em seus filmes. Leva tempo, e não é tanto sobre o tempo morto nos filmes de Diaz, mas sobre a lenta descida à loucura, com a morte sendo um refúgio para os perseguidos. O diretor destaca o uso e os efeitos do terror na sociedade, e seus personagens morrem lentamente, dolorosamente e gradualmente durante um longo período de tempo. Sua morte é geralmente antecipada e conhecida no início do filme, mas quando exatamente a morte ocorrerá nessas oito ou nove horas, o espectador e o personagem não poderão conhecer o personagem, o que coloca ambos em uma situação igualmente incerta, desconfortável e aterrorizante. posição. O tempo de morte de Diaz é uma parte essencial do universo de concentração que ele cria e, junto com suas consequências estéticas, que enfatizam ausência e duração, forma o núcleo de seus filmes experienciais que visam libertar tanto o diretor quanto a sociedade filipina de traumas passados e presentes.
1 Uma análise detalhada do cinema pós-trauma de Diaz pode ser encontrada em minha tese de doutorado intitulada “A estética do
ausência e duração no cinema pós-trauma de Lav Diaz ”, disponível via The British Library.
Referências:
Des Pres T. (1976) The survivor – An anatomy of life in the death camps. New York, Oxford: Oxford University Press.
Diaz, L. (2014) Interviewed by Nadin Mai, Locarno Film Festival, Locarno, 10 August.
Foucault M. (1991 [1977]) Discipline and punish – The birth of the prison. London, New York: Penguin Books.
Hetzenauer B. (2013) Das Innen im Aussen – Béla Tarr, Jacques Lacan und der Blick. Berlin, Köln: Alexander Verlag.
Human Rights Watch. (2007) Sacred silent – Impunity for extrajudicial killings in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2007/philippines0607/ (accessed 15 October 2013)
Human Rights Watch. (2011) “No justice adds to the pain” – Killings, disappearances, and impunity in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2011/07/18/no-justice-just-adds-pain-0 (accessed 15 October 2013)
John M. (2014) Running the film against the reel – Locating Jean Cayrol’s Lazarean figure in Alain Resnais’s Muriel ou le temps d’un retour. In: Pollock G and Silverman M (eds) Concentrationary memories – Totalitarian terror and cultural resistance. London, New York: I.B. Tauris, pp. 83-99.
Koepnick, L. (2014). On Slowness – Toward an Aesthetic of the Contemporary. New York, Columbia University Press.
LaCapra, D. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore, London, The John Hopkins University Press.
Luckhurst, R. (2008). The Trauma Question. London, New York, Routledge.
Neurath P. (2005) The society of terror – Inside the Dachau and Buchenwald concentration camps. London, Boulder: Paradigm Publishers.
Nadin Main é curadora da Tao Films, distribuidora de filmes online dedicada ao Slow Cinema.
A escuridão sempre foi um pré-requisito para realmente entrarmos no mundo na tela, e sua importância na concessão de ressonância experiencial não pode ser exagerada. No cinema, as luzes se apagam. Nós esperamos em uma sala escura por um mundo de luz se abrir para nós, e enquanto nosso corpo pode permanecer em nosso assento, a essência incorpórea em todos nós caminha em direção à luz exuberante, assombrando-a, como nos assombra. Nossas almas investem, buscam na curiosidade e fome nas imagens e sons. O cinema é uma simbiose de assombrações. Entramos quando nos entra. Entrar no mundo de um filme é algo muito espectral. Realmente se submeter à experiência do cinema é como deixar as ondas do oceano baterem em você e não ter medo de se afogar. Estar nessa escuridão e deixar o filme nos envolver e penetrar é a própria definição de rendição. Para se entregar, para o outro.
A força do cinema também pode ser sua fraqueza. Com tanto poder do cinema vindo de sua singular distinção nas artes como bastardização de duas artes – imagem e som – criando cenários audiovisuais vívidos, muitas vezes não há espaço suficiente para o espectador sonhar, imaginar, questionar. Escuridão, ofuscação – tanto visual quanto metafórica – podem ajudar a criar um ambiente em que a imaginação pode coexistir e se harmonizar com o corpo do filme e criar uma experiência polissêmica absolutamente única para cada indivíduo, cumprindo essa simbiose.
A escuridão é uma textura, um véu, místico, um interior imaterial. É o sertão de onde tudo entra e sai. Todos nós uma vez ou outra sentimos que pelo menos por um momento vemos algo passando além daquele véu, onde olhamos para a escuridão profunda – a verdadeira escuridão – e sentimos nosso nervo óptico levado ao limite, vendo luzes estranhas emanando , dançando, aparentemente sem nada, além do limite de nossa visão, nunca muito certo se é nosso olho ou algo mais que é parte de nós, dentro de nós, ainda desconhecido para nós, permitindo-nos uma testemunha disso. A escuridão permite que o olho da mente abra, para nossa imaginação vagar. Ela recalibra e alimenta nosso relacionamento com nosso corpo, nossos sentidos e a paisagem além de nós. Eu quero criar um mundo que faça o conhecido se sentir desconhecido de novo, permitindo que aquele pulso frágil e profundamente intenso de curiosidade infantil que bate dentro de nós volte a se firmar. A escuridão nos permite entregar-nos a esse mistério, a essa maravilha e a nadar nela, e reivindicar nosso relacionamento profundo e paroxístico conosco e com o que está além de nós mesmos; afogar-se destemidamente é um salto infinito.
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Como cineastas – cineastas genuínos – não devemos ter medo de nos aventurar em direção ao que é considerado o inexprimível, o que não pode ser dito em palavras, mas sim o que surge apenas nos sonhos, criar um cinema além da figuração, além do objeto e, em vez disso, torna a liminaridade entre a luz e a própria escuridão como seu próprio sujeito, movimento e quietude como seu próprio sujeito, paroxismos de experiência como seu próprio sujeito, para expressar e experimentar o peso do que é conhecido e do que é desconhecido para nós. O desconhecido deve ser nossa luz, nossa atração, nosso guia para buscar novas imagens, novos sons, novas idéias e temê-lo; mas devemos nos submeter a esse medo. Você não está fazendo nada que valha a pena se não sentir medo.
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Como aquelas aparições que espreitam, depois dançam conosco, que nos desarmam, nos seduzem até quando viramos nossos pescoços, e olhamos para o caminho que percorremos, e no escuro, além das árvores, eu também quero desarmar, e seduzir através da renderização do visível invisível. Eu quero seduzir através de ofuscação, verdadeira ofuscação, sugerir um além, uma liminaridade suspeitamente encoberta dentro do ‘fuscus’.
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Escuridão é onde todas as coisas estão funcionando. Onde todas as bocas e mãos estão dançando. A escuridão é sempre preponderante. E a escuridão está sempre com fome. Quer sua refeição. E às vezes, devora.
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A ciência provou que somos literalmente feitos de poeira estelar. Nós podemos olhar – em reverência – do céu noturno. Por causa de quão longe a luz tem que viajar, olhar para as estrelas é olhar para o próprio tempo. Essa infinita piscina negra é uma catedral cheia de fantasmas; os fantasmas de estrelas … estrelas que em alguns casos não existem mais – as mesmas estrelas das quais somos feitos agora. É como um fóssil – mas também é um reflexo. Talvez não tenhamos outro propósito senão um dia retornar, passar por aquele espelho e nos unirmos às estrelas que nos nasceram. Para se tornar o todo – novamente.
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Não tenha medo de imagens. Tenha medo das palavras: diálogo. Cinema não é literatura. Literatura é literatura. Cinema não é teatro. Teatro é teatro. Você é um cineasta e seu vocabulário é vasto, infinito – qualquer imagem, qualquer som e qualquer combinação. Palavras evocam imagens. Se a imagem já existe, não há nada a ser evocado. Isso existe. Deixe respirar. Pode respirar sozinho se for forte. Deixe sua força estar em sua vulnerabilidade. Deixe-o revelar sua vulnerabilidade. Se usamos muito as palavras no cinema, estamos apenas usando palavras para ajudar uma imagem fraca ou para conquistar a imagem. Como cineastas, somos conjuradores e não devemos ter interesse em conquistar nada.
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Cinema somos nós, olhando para um espelho trêmulo. É uma vida que dança escondida atrás das árvores, além do horizonte. O cinema não é nossa construção. Cinema somos nós – desconstruídos.
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Nós voamos sobre uma lágrima na imagem, um oceano. Nós ouvimos o vento cantando. Então um nada perene. Um cinema de prisioneiro. O filme nas nossas pálpebras. O projetor está piscando. Uma tela negra de nada sonoro. Nós somos um nada dentro de nada. Nosso escuro interior nada no escuro. Um anel silencioso. Nós flutuamos, contidos nele; a própria câmara de eco do corpo, gritando e ouvindo nada além de nossos próprios uivos silenciosos e devastadores. Cinema é vida, dentro, fora de nós.
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Como Emil Cioran disse: “Escreva livros apenas se você for dizer neles coisas que você jamais ousaria confiar a ninguém”. O mesmo se aplica ao cinema. E gostaria de acrescentar que você põe em seu trabalho aquilo que você jamais ousaria confiar a si mesmo, ou mesmo desejar entender. Não é uma revelação, ou um “derramamento” de lógica, não é senão um dilúvio de sentimento puro e não adulterado; sentindo-se sozinho. E o sentimento puro não pode e não deve ser traduzido em pensamento racional.
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Para mim, a verdadeira essência do cinema não é simplesmente animar. É desanimar. Eu sempre começo um filme quase como se fosse manter um diário. Eu não tenho ideia ou agenda para fazer um filme. Eu simplesmente documentei. Eu filmo o que me atrai, coisas aleatórias, animais, variações na luz, a água, as estrelas; simplesmente o que me atrai em dias diferentes, noites diferentes, em lugares diferentes. Depois de construir um corpo de imagens, começo a ver conexões. Essas imagens podem ser filmadas com meses ou até anos de diferença – e milhas também. Assim como em Hunter (2015), existem sequências em Sleep Has Her House, que são compostas de tomadas filmadas em dois países separados que são então costuradas de forma invisível. Mas essas conexões entre diferentes partes de filmagem acontecem organicamente. Eu nunca forço essas conexões. Eu nunca forço um filme quando ele não vem. Os filmes me encontram – não o contrário. Quando eles ganham vida e começam a se contorcer, eu simplesmente aguento. Todos os meus filmes foram feitos assim. Alguns acontecem mais rápido que outros. Uma vez estabelecidas essas conexões, uma narrativa – através de imagens – começa a germinar.
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Eu acho que a internet tem um papel fundamental a desempenhar para derrubar os muros do elitismo econômico e da censura sociopolítica que impedem que muitas pessoas acessem as artes, a informação e a verdade. Um artista precisa ser pago, mas também o trabalho de um artista precisa estar disponível para todos aqueles que desejam procurá-lo.
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A realidade da sensação vem em primeiro lugar. A lógica vem depois. Nestes momentos da câmera se tornando o corpo, nós, o espectador, assumimos o corpo do protagonista. Nós abrigamos a tela. Nós assombramos o próprio fantasma da imagem, nós gravamos o avatar impregnado na imagem. Continuamos fora de nós mesmos e, com isso, desatamos a imagem. Isso fratura. Nós nos tornamos a própria vibração da realidade da imagem; uma realidade espectral que está em fluxo aglutinado com o nosso.
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Ser real é forjar. Ser real é enganar. O cinema é real porque engana; é forjado. Para se tornar real, devemos nos enganar e, mais uma vez, nos tornar o animal. O animal é o que vemos na tela.
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O que é mais real do que o nosso ser não adulterado? Nossa inatitude? Ao longo da história do cinema, a definição de cinema realista tem sido sobrecarregada por um critério incrivelmente estreito. Os filmes que fizeram a nota são quase sempre sobre circunstância sociopolítica. Independentemente de quão importantes e bem feitos são esses filmes, essas explorações não se preocupam apenas com construções feitas pelo homem, com excessos feitos pelo homem; muitas vezes atormentado por um dilúvio de verossimilhança espúria? Se assim for, pode realmente ser considerada realidade autêntica? A tabulae rasae é incivilizada. Ela caça. Isso fode. Grita. Ele treme… O que é mais autêntico, mais real do que a nossa inatitude?
Viver no Rio de Janeiro traz sentimentos díspares como se espera de toda metrópole, com seus cartões postais, as belezas quase irreais, todo um imaginário artístico criado em volta, mas também o movimento frenético, olhares perdidos, rotinas desesperadas, as desigualdades socais. O contexto social está sempre em pauta diante da criação de memórias de uma cidade como o Rio porque os lugares guardam históricos, e alguns deles são carregados de opressão. O Desmonte do Monte, filme de Sinai Sganzerla, trabalha com essa presença fantasma de memórias opressoras, o horror da falta de registros, e os apagamentos urbanos que a causaram.
A estrutura abraça um didatismo nesse olhar procedural da historia que muito dialoga com Dawson City nesse sentido. Poucas vezes sai dessa escolha narrativa, mas nos momentos de retratar a queda iminente do monte Sganzerla assume uma dinâmica de filme de horror, no retrato de uma paisagem frágil e literalmente fadada ao desaparecimento. O som didático torna-se sugestivo, a trilha eclética larga a ironia e se concentra em momentos de suspensão cuja tensão emana especialmente da voz fantasmagórica de Helena Ignez.
O interesse historiográfico aliado a essa tentativa de articular o sentimento da perda sensorialmente carrega a montagem pelos 85 minutos sem que os dados cansem, ou que o tom solene enfraqueça a potência dos fatos. A recriação dos momentos históricos por relatos pessoais, seja de historias orais e fotografias amadoras a matérias de jornal e obras de arte, relembra que o curso narrativo discurso da Historia dos vencedores arranja esses documentos para gerar uma ideia, e o que Sganzerla faz aqui é esse esforço de organizar a Historia para privilegiar fatos que não tiveram acesso a ela – algo antropológico, por assim dizer.
As mazelas sociais do Brasil expostas em tela reforçam o discurso de minorias cuja Historia lhes foi negada, do apagamento indígena aos poderes que se renovam através de relações pessoais – o homem cordial, por assim dizer -, e a forma que por vezes o discurso fílmico fica redundante acaba devendo às repetições históricas que aqui sofremos. As limitações de O Desmonte do Monte acabam revelando sobre nossa própria historia corrupta como país, cujos instrumentos de opressão mantém-se dolorosamente similares. O impacto emocional das perdas de minoria soam menos desesperadores que em retratos com recorte mais específico – como a recente obra-prima Martírio, por exemplo – e algumas escolhas estéticas tratam de forma direta demais as associações do filme – como a escolha de For the Love of Money para tocar no momento em que a especulação imobiliária ali se revela – mas essas limitações originam dessa própria disposição de enxergar no monte um exemplo para nossa organização social enquanto país.
Falar sobre um panorama brasileiro tem dessas fragilidades, mas o recorte de Sganzerla é concentrado o suficiente para dar seu soco de revide com potência.
Uma das sessões especiais históricas do CineOP 2018 exibiu a obra máxima de Jean Vigo, O Atalante, numa cópia restaurada pela Cinemateca Francesa, para um cinema cheio como não fora o filme à época de seu lançamento. Por décadas as versões do filme eram variadas, cortadas contra a vontade de Vigo e remontadas após sua morte precoce. Em 1957, 23 anos após seu lançamento, o teórico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes propôs um revisão à obra junto a André Bazin após trabalhar anos na Cinemateca Francesa, e Vigo tinha sua obra à época adorada pela Nouvelle Vague. O esforço de Paulo Emílio culminou na escrita de dois livros, sobre Vigo e Miguel Almereyda, seu pai famoso pelo pensamento anarquista, e o resgate da obra do diretor.
É curioso que tenha sido um brasileiro a redescobrir o filme pois O Atalante esbarra das maneiras mais peculiares nas inquietações do nosso cinema, com suas utopias do mar e associações livres entre campo e cidade. A fuga da França do campo com a promessa farsesca de um ideal de família que Vigo observa com graça para então desvelar a cidade, descobrir seus prazeres e feiúras, no ato de amadurecer que nem sempre caminha junto com quem se ama. O navio atalante da mudança proposto como o dispositivo de transformação palpável da narrativa, fundamental para a demonstração dos prazeres da vida nessa estrutura de estrada aquática.
A disposição de Vigo especialmente para transmitir as formas abstratas entre os sentimentos do casal protagonista liberta a câmera para observação barroca do ambiente, do mar como sonho, do movimento dos barcos enquanto a noiva acompanha o ritmo, das edificações sempre à beira do rio mas raramente no quadro sob uma distância curta. Apenas ao adentrar nas expectativas de conhecer novas terras, desbravar novas historias, que os personagens entram em movimento e então aportam na cidade. A sequência do marinheiro contando das suas aventuras ao redor do mundo traz no seu quarto o retrato físico de uma vida perpassada pela tradição oral, pela confiança no outro, e é esse um dos singelos nortes de O Atalante.
Conforme a jornada de superação tanto do homem em perceber o egoísmo de seu olhar do relacionamento quanto da mulher em se permitir ter prazeres individuais diante da cidade, do conhecimento e curiosidade do que está por aí ao acaso, a câmera recontextualiza a abstração pontual e atenta-se aos retratos de pequenas angústias, do quarto sendo quebrado do marinheiro ao diálogo arrepiante de sombras entre esposa e marido sonhando distantes com o outro. A utopia do encontro se materializa no senso de humor e no olhar atento ao espaço ao redor – das coisas que mais ficaram comigo do filme -, e o rosto de Dita Parlo vira o foco absoluto dessa descoberta de mundo com a mesma empolgação e encantamento da câmera de Vigo, contendo todo o amadurecimento de encontrar em lugares e rostos uma casa.
Há em geral no cinema narrativo ficcional um jogo de crença e descrença entre o filme e o espectador. Uma relação que passa pela grande autonomia das obras ficcionais em criarem os seus universos e os seus elementos de entrada e saída da narrativa, mas também pela capacidade destas obras de sustentarem estes universos (ao menos em narrativas ficcionais tradicionais). A Feiticeira Viúva é um filme extremamente dependente do engajamento do espectador nesse jogo de crença e que tenta sustentar essa relação pela construção da sua protagonista.
No filme, a crença está no cerne da trama: Er Hao após perder o seu terceiro marido e sobreviver de forma inexplicável passa a ser tratada como uma feiticeira pelos habitantes de sua pequena aldeia. De início ela recusa o rótulo, mas vê-se levada após uma série de acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos a assumir o papel. A sua descrença aos poucos transforma-se em crença que dá vazão a uma autoconfiança que transforma a sua vida e a das pessoas ao seu redor. No entanto, novos acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos mudam novamente as relações de poder, condenando por fim o destino de Er Hao.
O filme no entanto é bastante questionável na forma em que se relaciona com a sua protagonista. Logo em seu início há uma cena de estupro de Er Hao filmada do seu ponto de vista. Simulando a visão da personagem no momento da concretização do ato, o filme nos mostra uma tela preta (como se ela estivesse de olhos fechados ou com vista obstruída). A cena é rápida e não mostra no quadro nenhum contato violento. Há ao longo de todo o filme a expectativa de que esse início resulte em algum pagamento, alguma resposta, alguma consequência na trama. No entanto, isso não acontecerá. A cena serve apenas para somar-se as desgraças que deveriam transportar o espectador para um estado de espírito abalado da personagem (efeito que também não se constrói dessa forma). Há um desencaixe enorme entre a violência psicológica e física que a cena sugere e o tom fabular despreocupado que a narrativa adota.
Um efeito semelhante acontece no final do filme, quando após uma série de desventuras Er Hao decide por se autoimolar – um desfecho recorrente para o destino de uma feiticeira. Para além do óbvio da escolha, é mais uma vez uma decisão pouco corajosa da forma de assumir a dor e o destino de sua protagonista: vemos uma cabine de madeira na qual Er Hao acabou de entrar queimar em chamas de forma lenta enquanto os créditos do filme começam, sem jamais vê-la novamente. Mais uma vez uma cena extremamente violenta é filmada de forma a não incorporar essa violência como imagem, mas apenas como efeito da trama. O filme segue limpo de qualquer sangue, mas requerendo uma cruel punição da sua protagonista como preço. Há em A Feiticeira Viúva uma descrença na sua própria narrativa, que se reflete nas imagens que o filme não tem força para sustentar ou assumir consequentemente.
Boa Sorte é composto por dois filmes formal e estruturalmente relacionados, mas muito distante entre si pelas imagens que os constituem. Em comum está a proposta de filmar os trabalhadores em minas em condições extremas e/ou adversas de trabalho. A primeira parte filma os homens que buscam cobre em uma mina estatal da Sérvia; a segunda filma mineiros piratas de ouro no Suriname.
Formalmente o documentário constrói um jogo de espelhos: começa com a apresentação musical na Sérvia e termina com outra no Suriname, entre os dois atos a maior parte do tempo é dedicada a um fazer documentário observativo das atividades de extração e do cotidiano dos trabalhadores. Uma observação paciente que busca a construção de registro do íntimo: nos dois trechos, o ápice sendo uma conversa coletiva entre os homens durante uma refeição que inclui o diretor e a câmera como participantes daquela intimidade.
Em cada um dos blocos essa observação é recortada por um dispositivo de encenação proposto pelo diretor: os trabalhadores entram em um ambiente isolado e devem encarar a câmera em silêncio por um determinado tempo. E nessa proposição o jogo de espelho entre os dois filmes começa a mostrar a sua fragilidade: o isolamento e o silêncio funcionam bem na primeira metade do filme (nada interfere na relação direta entre o espectador e aquele rosto em primeiro plano); na segunda parte porém, os sons ambientes invadem o dispositivo – saímos do confinamento isolado para um ambiente aberto, sem paredes, sem separação possível. Os mineiros do Suriname encaram a câmera, mas também reagem aos sons que atravessam a encenação – corrompendo a proposta do dispositivo.
Assim, ainda que o dispositivo seja o mesmo, são experiências distintas de relação com os trabalhadores e o seu ambiente. E, no geral, a sobreposição destas experiências não cria uma relação de contraposição que acrescenta novas camadas a recepção das imagens, que possibilite a criação de um terceiro filme que surja da relação direta dos dois existentes. Imageticamente a primeira parte é uma experiência de cinema bastante única com o jogo de escuridão e de luz da mina subterrânea e a sensação do confinamento incorporada de forma sensível a montagem do filme. Esta tradução fílmica da experiência dos trabalhadores na segunda parte é bem menos interessante. Se na primeira parte o documentário cria um repertório imagético belo e inventivo de imagens pouco ou jamais vistas, na segunda ele se depara com uma iconografia extensa e incontornável de imagens do século XX – a dos corpos de homens negros trabalhando na terra de forma precária. Diante desta iconografia, as imagens do filme se perdem de forma pouco propositiva diante de uma quase automática reprodução deste imaginário já desgastado.
Se a sobreposição dos dois filmes de Russel em si não se concretiza, A Floricultura de Rubem Desiere é um filme que se beneficia bastante de ser exibido na mesma mostra que Boa Sorte (os dois filmes fizeram parte da mostra competitiva de longa-metragem). Observando as obras em sequência há uma trajetória delineada das relações capitalistas de trabalho e das suas condições: em ordem observamos a transformação capitalista do trabalho insalubre (parte 1) em trabalho pirata (parte 2) e finalmente em trabalho ilegal organizado socialmente em uma rotina (A floricultura). O cobre e o ouro se desmaterializam e tornam-se bens simbólicos das notas de dinheiro e promissórias guardados em um banco europeu. E o trabalho bruto e físico da mineração torna-se um trabalho de espera, observação, frustração e estratégia de um roubo.
Assim o roubo a um banco belga executado por três jovens romenos é filmado como um ato trabalho, um processo – fora da tradição da contravenção como ato espetacular fílmico, ela torna-se ato do cotidiano, da repetição, da rotina. A observação documental de Russel dá lugar a uma encenação ficcional naturalista. E, embora grande parte do filme seja composta por diálogos entre os três personagens, não é uma dimensão da intimidade ou mesmo da subjetividade destes personagens que se instala. As conversas são mais um elemento sonoro, de assuntos triviais, que fazem o tempo passar, que marcam uma banalidade das relações.
Deliberadamente a subjetividade dos personagens ganha pouca dimensão no filme. Há dificuldade não de falar (as conversas são constantes), mas de comunicar pela fala. Há uma pista do não pertencimento romeno nômade na organização social europeia contemporânea – mais uma vez no rastro da desmaterialização capitalista em comparação ao Boa Sorte (onde ainda existem relações comunitárias sólidas tanto na Sérvia, quanto no Suriname). Desmaterialização que se reflete como um todo no fazer do filme, se em Boa Sorte estamos diante de imagens densas e formalmente hiper estruturadas, em seus melhores momentos A Floricultura consegue levar o espectador a uma experiência de rarefação e vazio da encenação e da narrativa refletindo o lugar no mundo incerto de seus trabalhadores ladrões.
No terceiro dia do CineOP uma sessão especial de curtas ocupou o Cine Vila Rica, cujo recorte fora focado nos processos artísticos ao longo das décadas no Brasil, especialmente no período do Tropicalismo e do Cinema Novo. O foco do festival majoritariamente na preservação de filmes encontrou um diálogo forte com as diferentes formas de resistência oferecida pelos artistas da época, cujo registro narrativo de performances guarda não apenas uma tradução audiovisual dos diálogos com outras artes como também são documentos de resistência em tempos de perseguição no país.
A sessão curada por Lila Foster e Francis Vogner começou com Brasil, filme de Rogério Sganzerla rodado em 1981 numa ressaca de exílio que tenta dar conta dos sentimentos contraditórios que os signos atribuídos ao nosso país carregam. A fascinação com Orson Welles em sua passagem no país para rodar seu filme inacabado parece surgir como um desafio, questionamento desse homem cujo delírio de grandeza era entender o Brasil, e que foi quebrado justamente nessa tentativa antropológica que muito carrega de sequestro cultural estrangeiro. As imagens cartão-postal do Brasil, especialmente do Rio, apresentando uma melancolia de quem procura – e encontra – verdades nessas imagens banalizadas no uso para exportação. É na segunda metade que Sganzerla encontra uma antítese ao geral, ao macro, com o foco na gravação musical com Caetano, Gil e João Gilberto. No particular, no passional, somos compositores pensando a historia e tentando reagir as dificuldades, e cuidando para representarmos politicamente com cuidado até mesmo as imagens que nos foram sequestradas através dos reducionismos de sentido.
O que ressoa é sentirmos Cristo chorar de saudade de sua casa, e um tributo aos artistas que tentam traduzir esse espírito de um país em suas expressões artísticas.
A Fila, curta de Kátia Maciel, sucedeu esse olhar de tempos de mudança mas sob o viés mais burocrático do cotidiano. O olhar ansioso da câmera de Maciel abre uma breve cápsula do tempo com a burocracia sofrida pelos artistas em tempos de retomada, buscando rostos amigos por ali, encarando com certa farsa os problemas de incentivo que o cinema sofre no país através de uma escala micro, dessa fila interminável no prédio do Ministério da Cultura, habitado por quem espera viabilizar seus olhares e deve enfrentar uma estagnação por isso.
A dimensão lúdica dos atos de exercer a criatividade permanece em Ver e Ouvir, de Antonio Carlos da Fonseca, cujo foco em três artistas sessentistas na concepção de suas artes no presente à época preserva a intuição e experimentação de mundo através desse contato artístico.
O lúdico da arte contemporânea abre o filme com um plano em um parque de diversões, para então estruturar-se a partir de intervenções audiovisuais nas obras, de fato traduzindo um confronto apenas por deslocar essas obras de seus contextos originais e abri-las à cidade, a verdadeira protagonista do filme. Abre assim para o diálogo com o Brasil em tempos de dúvida, e ocupar a cidade com as obras para conversar com os rostos do cotidiano que com a incerteza lidam diariamente surge como dever cívico.
Se Fonseca adere a uma postura política de manifestos, Arthur Omar abraça a ambiguidade. O Som (ou Tratado de Harmonia) surge dessas dúvidas para experimentar performances na tentativa de conciliação e confronto entre a revolução armada e a sexual. A câmera passeia por rostos atravessando obras plásticas cuja força se dá na representação psicológica dessa ansiedade, enquanto o texto relata dimensões mais palpáveis diante das inquietações sexuais daqueles corpos. Um confronto que encontra em velhas utopias alguns conforto, não por acaso recorrendo ao mar como certo mediador (ou elemento de arrefecimento) das pulsões revolucionárias.
Ruído e Existência, de Carlos Adriano, adere a um dispositivo de fusões e duplicidade para conceber essa cidade que tem pesadelos estruturalistas. Talvez apoiado demais em uma ideia de exposição através do texto aparentemente abstrato e de certa fórmula visual estabelecida e repetida com poucas variações acaba parecendo um filme mais despropositado dentro da sessão, dialogando fielmente com uma tradição de quebra da superfície da imagem do cinema experimental e se contentando com isso, diluindo assim a potência política do relato visual dessa cidade de mistérios – ainda que a montagem costure bem a atmosfera provocativa do filme.
O fim da sessão levou as provocações de Ruído e Existência a uma forma mais frontal, com À meia-noite com Glauber, filme de Ivan Cardoso, e sua estética de Glauber Rocha e Helio Oiticica sob o filtro dos quadrinhos pop de Ivan Cardoso, a profetização via os iconográficos de gênero tão caros a Cardoso, mas aqui estranhamente despolitizando volta e meia as imagens dos artistas documentados. É com celebração e confronto que o terrir de Cardoso se estabelece, mas as imagens fora de contexto de Rocha caem numa possível fetichização que não está diretamente no cinema do baiano. O poder da montagem sempre deixa o filme interessante, e pelas contradições exibe um tom de desafio político que o sensorial camufla. Fora um ótimo filme para fechar a sessão, tão focada nos artistas e no que eles fazem para combater o status quo, e para Cardoso talvez esse confronto esteja irônico e desapaixonado. É uma visão que representa seu tempo, mas não necessariamente traz algo além do diagnóstico.
Como traçar um passado através da referência, do gesto e do antropológico? O filme nasceu como explosivo, os mecanismos dele como indústria se confundem com a própria história americana, e em Dawson City – Tempo Congelado o efeito corrosivo do tempo é visível desde a arquitetura da cidade filmada e fotografada até as marcas de deterioração das películas ali encontradas.
O viés experimental da superfície da imagem no cinema de Bill Morrison ganha aqui uma dedicação historiográfica bem oportuna na exploração da investigação da origem dos mais de 500 rolos de filme encontrados enterrados num local onde era uma piscina. A partir disso a montagem de Morrison exibe essa paixão pela historia e informação, disposta a investigar o máximo de elementos possível nas fotos para representar visualmente historias esquecidas que foram tornadas mitos apenas nas artes, e cujas memórias são fósseis não desejados por revelar estruturas ambíguas na construção da cidade -e do país.
Nesse sentido é interessante o uso do didatismo como uma ferramenta de curiosidade historiográfica, como se a tradição oral do relato esquecido da Busca do Ouro fosse adaptado à apresentação focada em texto de Morrison – mesmo que a música constante e a ansiedade de traçar um panorama atrapalhem pontualmente. A concentração em observar a influência antropológica e as situações que se repetem nos filmes encontrados são as matrizes do manifesto da importância de salvar a memória e o potencial antropológico e emocional de influência do cinema, um diálogo de sombras palpável na película deteriorada que exibe o diálogo de um homem com uma figura irreconhecível pela corrosão completa de sua parte no quadro.
Perto do encerramento, o texto de Morrison faz questão de lembrar que as marcas de corrosão das películas encontradas na cidade são singulares, que guardam um aspecto especial pela exposição à água. É como se o tempo fosse contemplado pela forma que ele imprime sua influência, ode à mudança dos tempos em um filme tão focado justamente na preservação da memória – algo que poderia ser contraditório mas impede o filme de ser reacionário politicamente, para reforçar a fé na memória como motor de transformação. O filme nasceu como explosivo e permanece como tal, de fato.
Filme de encerramento do Olhar de Cinema de 2018, Meu nome é Daniel de Daniel Gonçalves coloca em evidência a auto-representação no processo de produção cinematográfica. O documentário em primeira pessoa parte da vivência do diretor como uma pessoa com deficiência física, propondo uma perspectiva subjetiva desta vivência não limitada à doença – mas a múltiplas camadas desta existência. E o dispositivo narrativo utilizado para isso é o do documentário de busca, a procura por um diagnóstico da origem da deficiência.
Há porém em torno dessa busca dois filmes diferentes: o das imagens do presente produzidas para o filme, mostrando o cotidiano do diretor e a sua tentativa de obter o diagnóstico com novos exames e consultas e o das imagens amadoras da infância e da família de Daniel. O contato com esse arquivo move o filme não para a sua missão de descoberta médica, mas para o passado do diretor. O interesse desse segundo filme que se constitui pela revisita e pela montagem das imagens de arquivo é o de repensar pelo cinema às relações familiares e as experiências formativas de Daniel. Os dois regimes de imagem possuem intensidades e forças narrativas variantes: de um lado a pulsão delicada da montagem do filme de arquivo, de outro o dispositivo fílmico da busca no presente.
Ao final do filme, o diretor inicia uma discussão sobre como os privilégios de raça e classe foram fundamentais em seu percurso formativo: no acesso aos tratamentos médicos, às escolas e auxílios educacionais diversos e toda uma base estrutural de suporte. Esse privilégio também se constitui justamente no ponto de força maior do filme: no excesso de imagens familiares produzidas de forma amadora ao longo de décadas – do super-8 ao VHS, passando pelos diversos suportes de captação de imagem e som dos últimos 30 anos. O processo de rememoração e exploração de vivências formativas não se dá apenas por uma memória imaterial de Daniel e da sua família, mas por um amplo acervo de imagens que conformam, confrontam, complementam a memória imaterial na feitura do filme.
E quando estas imagens não existem? Como se constituem processos de rememoração e auto-representação histórica familiar e/ou individual no cinema na ausência desta materialidade imagética? Neste aspecto Meu nome é Daniel compõe uma relação de campo/contracampo com o curta-metragem Travessia, de Safira Moreira (exibido na mostra Pequenos Olhares). Contraposição que só faz sentido se pensarmos os variados processos de construção de auto-representação fílmica a partir da ideia de interseccionalidade que atravessa as identidades múltiplas e sobrepostas em co-relações de poder também nas imagens (ou nas ausências destas).
No início do Travessia somos confrontados com a fotografia em preto e branco de uma mulher negra segurando uma criança branca e a sua legenda: “Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63”. A partir desta foto o filme nos questiona sobre a quase completa ausência de imagens das famílias negras em um passado próximo – e a presença negra dessubjetivada (a babá sem nome) em fotografias como a que abre o filme.
Na perspectiva negra apresentada por Travessia não há arquivo familiar afetivo material a ser revisitado. O questionamento coletivo e geracional começa por confrontar e decupar uma imagem que não basta. Diante da ausência desta materialidade histórica da imagem da família negra, o filme assume que é preciso encenar novos acervos de imagens, uma encenação propositadamente anti-naturalista. O tempo esticado da pose e o de encarar a câmera das famílias negras contrapõem o incomensurável tempo de ausências. Neste caso, não se trata de articular dois regimes de filmes: o arquivo e o filme de busca; mas de um único regime a partir do que é possível: o de invenção de um arquivo de futuras imagens.
Na sequência final de Homens que jogam o diretor/personagem contempla o horizonte e cantarola a música My pony, my rifle and me. A canção toma conta da cena e segue completa pelos créditos de encerramento do filme. Sua inserção nos remete a famosa interpretação de Dean Martin e Ricky Nelson, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959) e reforça o lugar do cinema e das imagens nos processos de construção da masculinidade que o filme investiga. Afinal, após a sua exploração, sua crise com e a sua desconstrução da masculinidade, Homens que jogam encerra o filme fazendo referência a um dos fundadores do cinema clássico dos EUA.
Através da imagem sonora citada o cinema de Howard Hawks entra no filme trazendo a sua construção de uma postura de masculinidade ideal. Em muitas das suas obras ecoa o questionamento sobre quais as condutas e escolhas difíceis fazem parte da constituição de um homem justo, honrado, de um herói. A criação dessas imagens e narrativas de masculinidade idealizadas atravessa toda a história do cinema narrativo. O maior ponto de inflexão de Homens que jogam neste longo debate é o de situar a constituição da experiência masculina ocidental não pela perspectiva do universal, mas pelo que essa experiência possui de singular e específico em sua constituição.
Em uma primeira camada a investigação sobre a performance da masculinidade é feita de forma direta por uma câmera documental que observa e/ou ouve as explicações de diversos homens no ato de jogar. Há uma evidente escolha pelo inusitado na seleção dos jogos: as lutas de azeite na Turquia, o rolamento de queijo pelas ladeiras da Itália, a Morra jogada com passionalidade hipnotizante na Croácia e na Eslovênia, entre tantos outros. O filme se entrega e nos guia a esses universos de convivência lúdica exclusivamente masculinos. Universos que são ao mesmo tempo de competitividade, de relações de poder e de domínio, mas também de prazer do contato e do encontro. A forma de filmar é a do encantamento, da vibração e do gozo conjunto dos espectadores com os homens filmados em seus múltiplos jogos.
Grande parte desta performance de construção da masculinidade é demonstrada pela disputa e contato dos corpos filmados nos jogos: quem tem mais força, quem lança melhor, quem permanece no círculo de dança por mais tempo, etc. Mas trata-se também como explicam os jogadores da Morra de “entrar na cabeça do outro”, da disputa por poder também por jogos mentais de quem emana com mais convencimento a projeção ideal de masculinidade. O lúdico e o violento tornam-se elementos inseparáveis nestes processos.
Então, valendo-se de todo artifício meta-narrativo do documentário performático contemporâneo, o filme propositadamente se quebra diante do espectador: mudando o dispositivo do seu funcionamento até aquele momento. Com um intencional e descarado cinismo o narrador anuncia ao público que o diretor está em crise e não sabe mais o que filmar. E, para que nenhum espectador tenha dúvidas, a crise é filmada da forma mais exemplar possível: o homem branco sozinho, prostrado e pensativo diante da sua cerveja. A partir dessa quebra o filme assume o cinema também como mais um jogo performativo entre os outros filmados anteriormente. O documentário vira a câmera para si, encenando a fragilidade destas construções de masculinidade impostas e as suas consequências sobre os homens. A primeira parte vibra com os jogos e embala o espectador na investigação. Começando pelo próprio filme, a segunda torna-se artifício de desconstrução do ato de jogar (e também do ato de interpretar e atuar, como sugere o sentido da palavra em inglês no título original do filme).
Assim o fazer cinema, o ato de construir ou montar imagens narrativas é pensado como parte desta performance de construção de masculinidade. A ideia de uma crise de criatividade ressitua o filme de forma crítica na discussão do imaginário de uma performance de artista homem também idealizada e limitadora: o imaginário do artista/diretor que deve ser genial, um grande homem (e não somente um realizador de imagens). O não saber como seguir o filme (que leva as não-imagens) torna-se uma tradução da impotência expressiva masculina.
E diante da impotência de performar o jogo, o filme passa a investigar o substituto possível: o prazer não de jogar, mas de assistir a outro homem jogando. Ou seja, o lugar da pulsão escópica como parte ativa na construção desse papel de masculinidade e do seu gozo. Esse assistir pode ser tanto individual: o relembrar de uma partida histórica de tênis; quanto coletivo: a recepção de uma multidão em transe (multidão majoritariamente masculina) do atleta vitorioso. Neste ponto, a primeira parte do filme é ressignificada dentro da narrativa. O espectador do documentário é implicado na observação sobre o prazer escópico que o filme de início proporcionou e agora esmiúça como parte constitutiva de uma forma de ver que corrobora na constituição de ideais de masculinidade insustentáveis.
E voltamos as sequências finais com esse diretor/personagem prostrado, impotente para seguir com o processo de investigação deste tornar-se homem coletivo e singular pelos jogos e pelas imagens dos jogos. A letra de My pony, my rifle and me fala justamente sobre um sonho de um vaqueiro solitário (acompanhado apenas por seu cavalo, seu rifle e por si) de chegar a um lugar idílico, um lugar inalcançável e imaginário sem as obrigações sociais e de trabalho. No filme, um lugar talvez em que não seja mais necessário aos homens fazerem papel de homem nos jogos pitorescos, nas relações da vida e, especificamente, no jogo cinema.
PEGGY E FRED NO INFERNO: DESENLANCE (Peggy and Fred in Hell: Folding) de Leslie Thornton
Ainda que este filme seja uma junção de filmes produzidos entre 1984 e 2015, assusta a potência como unidade. Este é o filme coming of age de Andy Warhol, a ficção científica possível de Vertov (para Warhol, a imagem, para Vertov, o som) e um encontro com a obra de Thornton, sempre interessada nas funções básicas do cinema – interpretativas, significativas e assertivas.
A NAÇÃO MORTA (Tara Moarta) de Radu Jude
Duas experiências: ver e ouvir. Ouve-se um diário de um médico, que nada mais é que a reverberação da situação de um país entre a 1ª e a 2ª guerra. A destruição da Romênia não está nas imagens, espécie de irregular mescla de fotos chocantes e tons acinzentados e sim na audição. Este é o caso de uma divisão tão nítida que é difícil encontrar equilíbrio. O que se vê é impactante, mesmo que pareça um slide, mas o que se ouve é um depoimento em monocórdio, desinteressado, em oposição às imagens.
DRVO – A ÁRVORE (Drvo) de André Gil Mata
Ainda que Tarkovski seja lembrado por todo filme, fica mais evidente que o filme de Gil Mata entoa prólogo e epílogo para O Cavalo de Turim de Béla Tarr. Um filme que parte das mesmas angústias e do invisível para uma dicotomia sobre o indizível – falar sobre o que não é possível fora contemplar e se entregar. Um belo filme.
SACO SEM FUNDO (Meshok Bez dna) de Rustan Khamdamov
Contar um conto. O tributo à fala pelas imagens cria um embate em crescendo muito curioso entre a palavra e a imagem e nem sempre esta batalha cria momentos relevantes. Fica o deleite visual, mas pouco sobra além disso.
MÃE PRETA (Black Mother) de Khalik Allah
Uma versão transcendental de Field Niggas. Allah é menos bruto, ainda que repita o mesmo modelo, e mais interessado em questões históricas e espirituais que chegam ao mesmo ponto de partida de seu filme anterior – força e intolerância – com extrema beleza.
UM ABRAÇO NA SORORIDADE (Yours in Sisterhood) de Irene Lustzig
Filme completo como uma parabólica sobre o feminismo e o tempo – e como infelizmente nada mudou a respeito disso. Por outro lado, é curioso como o filme de Lustzig fala mais quando as palavras silenciam. O momento mais forte aqui é quando há uma placa ao fundo, após um depoimento, que diz “Por Deus, pelo país” que justifica um bloco inteiro de depoimentos sobre uma nação doentia.
FABIANA (idem) de Brunna Laboissière
Curioso como o filme após alguns minutos vira um jogo sobre adivinhar as motivações reais de Fabiana. Em cada ato e palavra questiona-se intenções de Brunna Laboissière e como a saturação do método documental do chamado novíssimo cinema brasileiro derruba o filme. Pouco interessa ao filme o que há em Fabiana de verdade, suspostamente uma figura exótica em um mundo masculino e sim o que ela representa – outro grande pilar saturado do cinema brasileiro contemporâneo.
O CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA (idem) de Letícia Simões
Entre um filme de caráter observacional e um filme-carta, o que se extrai daqui é a coragem de Letícia Simões em expor as fragilidades desta congruência. Elas de certa forma potencializam a proposta de tributo a Dalcídio Jurandir, por onde os dois caminhos escoam e se justificam. Não é um filme de apenas momentos brilhantes numa simples matemática, mas os que possui são marcantes.
EULLER MILLER ENTRE DOIS MUNDOS (idem) de Fernando Severo
Como diz o título, Euller está em dois extremos e os dilemas são comuns. Eles se tornam mais ainda pela frontalidade que Fernando Severo trata do assunto. As questões tornam-se mais práticas que filosóficas e mais uma comprovação que uma motivação para o futuro – não há mais o que perguntar e sim fazer. Mais um necessário grito de urgência que um filme.
O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva parte da premissa de transformar o universo literário do escritor paraense Dalcídio Jurandir em uma experiência cinematográfica. Para isso o filme utiliza como elemento de construção os registros de uma viagem a trabalho que Dalcídio fez à ilha de Marajó inspecionando escolas (cartas enviadas aos familiares, relatórios de trabalho e anotações em seu diário pessoal, etc.). Não se trata de usar o material para se fazer um documentário biográfico, ou de recorrer aos livros ficcionais do escritor para adaptar diretamente as suas histórias. O que o filme ambiciona, com a sua premissa simples, é operar uma tradução intersemiótica do universo de percepção e criação do autor paraense – não apenas as suas obras, não apenas a sua vida, mas a imbricação obra e vida como elemento de expressão artística particular.
Os registros escritos deixados por Dalcídio tornam-se então ao mesmo tempo portas de entrada geográficas e subjetivas do filme ao arquipélago de Marajó e elemento de ficcionalização da diretora, e também escritora, Letícia Simões – criando de sua escrita real retrabalhada o Dalcídio personagem do filme. O Dalcídio do filme existe apenas na dimensão da narração pelas cartas lidas em voz over. Este Dalcídio também inspeciona escolas em Marajó e escreve incessantemente a sua esposa Guiomarina sobre o seu cotidiano solitário, os problemas no trabalho, os encontros felizes com desconhecidos, a sua solidão e cansaço e as saudades que sente dela, de casa e do filho, Alfredo. O campo sonoro do filme é composto pelo trabalho de som do coletivo O Grivo e, em grande parte, pela narração em off que mescla essas experiências reais ficcionalizadas, em um roteiro que organiza as impressões diversas da viagem até esta ser interrompida por uma tragédia familiar.
A dimensão imagética do filme é guiada também por essa fabulação dos registros escritos transformados em narração e opera um deslocamento temporal dos anos 1930 para o presente. Assim, a diretora percorre as ilhas de Marajó refazendo os percursos de barco e caminhada de Dalcídio, inspecionando escolas, hospedando-se em fazendas, percorrendo os caminhos descritos pelo autor. O filme deixa pistas nesse refazer de seu ato de criação narrativa livre: em algumas cenas é o texto que conforma as imagens; em outras, as imagens moldam o texto – em geral, não podemos saber e não importa.
Pelos registros de Dalcídio as imagens do filme começam a operar um percurso de fora para dentro, do distante para o próximo, do coletivo para o singular. Assim, aos poucos, a narrativa encontra e entrevista moradores de diversas ilhas, dando ao espectador um vislumbre cada vez mais concreto e demorado das subjetividades encontradas: os adolescentes que querem e/ou precisam ir estudar em Belém, dos professores e as suas pelejas para continuarem o trabalho, do pai que sonha com os filhos formados, etc. A vida é úmida e difícil, a vida de Dalcídio longe de casa também.
O tempo no filme apresenta uma duplicidade, ele é a marcação permanente do transcorrer cotidiano dos dias pela precisa datação das cartas e também a permanência do que pouco ou nada se altera dos anos 1930 até 2018. A sobreposição proposta pelo filme dos registros escritos de Dalcídio no passado e das gravações da diretora no presente é feita geranda muito mais sentidos de complementaridade do que de estranhamento por uma passagem temporal. A paisagem do rio tão presente marca esse lugar de uma permanência imponente, mas falsa: sem grandes agitações ou avisos o tempo transcorre sem cessar; sem avisos e na trivialidade da troca de cartas, as tragédias acontecem.
Seguindo o fluxo narrativo do filme de lenta mas constante aproximação ao universo literário de Dalcídio e as vidas em Marajó, quando essa tragédia é narrada já estamos dentro, próximos e na história singular. As palavras do escritor que nos guiaram e confortaram até o momento na vida árdua mas singela dão lugar a um necessário longo silêncio. Essa é uma bela demonstração do filme do seu entendimento da potência das palavras também quando ausentes, quando impossíveis de serem ditas. Enfim, uma demonstração da confiança na realização de sua premissa de que o espectador já está completamente dentro do universo expressivo de Dalcídio Jurandir proposto pela experiência fílmica, até quando faltam palavras.
A exibição de filmes clássicos em festivais e mostras de cinema cumpre diferentes propósitos: apresentar um filme na tela grande para um novo público, proporcionar a circulação de uma cópia rara ou restaurada, propor releituras para um filme já canônico. Revisitar A noite dos mortos-vivos em 2018 cumpre os três propósitos de forma excepcionalmente pertinente. Isso porque falar deste clássico fundante de Romero em muito aspectos significa falar de sua recepção (de público e de crítica): falar do pacto filme-espectador e da quebra deste pelo final desconcertante.
E pensar essa recepção é situá-la não em um espectador imaginário, universal e/ou neutro; mas com posicionalidade histórica, racial e social. Uma reflexão neste sentido foi feita recentemente pelo curta-metragem Pele de monstro (Barbara Maria, 2017). No filme, estudantes universitários negros a UFJF falam sobre as suas leituras do racismo em A noite dos mortos-vivos e Mortos que matam (The last man on Earth, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, 1964).
Ao falar sobre o filme George Romero afirmava que não pretendia fazer um filme sobre questões raciais e a escolha de Duane Jones para o protagonista da história não foi determinada por este ser negro, mas por sua adequação de atuação para o personagem. Mas com ou sem intencionalidade, o filme situa-se de forma emblemática nas discussões de representação racial no cinema por sua construção de um herói homem negro e pela aniquilação deste herói. Na construção de um terror físico (a ameaça de ataque dos mortos-vivos) e também psicológico (o herói negro preso dentro de uma casa com diversas pessoas brancas lutando para sobreviver) o filme é uma inspiração evidente de Corra! (Get out, Jordan Peele, 2017).
Pensar as possíveis e múltiplas reconfigurações das recepções do filme diz respeito a entender as transformações raciais políticas dos últimos 50 anos. Em um contexto do final dos anos 1960, o herói negro executado com um tiro na cabeça nos EUA nos remete aos diversos líderes dos movimentos dos direitos civis assassinados: Martin Luther King Jr (1968), Malcolm X (1965), Medgar Evers (1963). Em um contexto contemporâneo, ganha relevo o fato de ter sido uma execução coordenada pelas forças policiais, trazendo para dentro do debate o movimento Black Lives Matter e a sua luta contra a sistemática violência e assassinato policial de pessoas negras. Mas essa é também uma recepção que se altera não apenas pelas mutações dos contextos histórico-sociais das políticas raciais, mas também pela produção imagética-midiática que produziu e ressoou essas transformações contextuais nas últimas décadas.
Em uma primeira camada a trama do filme em sua centralidade se resume em sete pessoas que se refugiam durante uma noite em uma casa no interior da Pennsylvania tentando sobreviver a um ataque inesperado e violento de pessoas mortas-vivas canibais. A primeira dessas personagens a ser apresentada é Barbra, que após perder o irmão devorado por um morto-vivo logo no início do história permanece quase o tempo inteiro em um choque catatônico, incapaz de responder agilmente a urgência da situação. O segundo personagem a chegar à casa é Ben. Ele chega no exato momento em que Barbra, após encontrar um corpo morto, está deixando o local. Os segundos de hesitação em que Barbra desnorteada pelos acontecimentos e pelo farol do carro de Ben tenta decidir se esse homem negro é uma ameaça maior do que mortos-vivos comedores de gente compilam em poucos segundos séculos do medo paranóico branco sobre a ameaça do homem negro.
Dentro da casa com Barbra, Ben se mostra o personagem incrivelmente bem equipado para sobreviver ao apocalipse dos mortos-vivos: ele analisa o local e com habilidade (e pouca ajuda de Barbra) constrói um forte de sobrevivência com janelas e portas reforçadas, uma arma, comida separada, rádio ligado para informações e etc. Após todo o trabalho feito, os dois descobrem que existem mais pessoas refugiadas no porão da casa: o casal Harry e Hellen e a filha deles gravemente ferida Karen; e o jovem casal Tom e Judy. Todos reunidos, inicia-se uma disputa de poder entre Ben e Harry sobre quais seriam os melhores procedimentos do grupo para a sobrevivência: permanecer na casa, refugiar-se ainda mais no porão, usar a caminhonete para buscar ajuda… Entre Ben e Harry há uma desconfiança imediata e crescente. Se Ben era o herói bem preparado para sobreviver a ameaça externa dos mortos-vivos, a ameaça interna da convivência enclausurada e coletiva com um homem branco torna-se cada vez mais tensa e perigosa.
No desdobramento desta tensão, um a um os personagens morrem, e Ben permanece o único sobrevivente… até que o homem negro encontra a polícia. Aliás, mais do que forças policiais, trata-se de um agrupamento de diferentes forças da lei e voluntários (algo mais próximo de uma milícia). Anteriormente no filme, uma reportagem de televisão assistida pelos personagens mostra o funcionamento do grupo de homens brancos fortemente armado e decidido a matar todos os mortos-vivos. Há na entrevista do xerife que comanda a operação um gozo explícito na execução dos seres: as instruções saem de forma simples sobre atirar na cabeça ou colocar fogo nas criaturas. Em relação a um EUA pós-Trump, imageticamente a horda de homens brancos organizados e armados nos remetem às cenas dos protestos da extrema direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017.
As sequências finais de A noite dos mortos-vivos segue um ponto de reconfiguração do filme. Isso acontece menos pelo desenrolar narrativo: é de se esperar que o homem negro armado tenha mais chance de sobreviver ao apocalipse zumbi do que a uma batida policial; mas mais pela forma precisa e seca pela qual Romero executa a sequência. Enquanto cautelosamente Ben se aproxima da janela com a arma vigilante, do lado de fora a força tarefa policial varre a área de forma violenta e automatizada. Ao avistarem algo que se move dentro da casa (sendo Ben o “algo”), a ordem vem imediata, direta, sem hesitação: atire na cabeça. A montagem acompanha a velocidade da bala e já estamos dentro da casa com um tiro que acerta Ben em cheio e o derruba instantaneamente. Um susto. Na primeira sessão do filme durante o 7° Olhar de Cinema, esse susto veio do público como um grito coletivo de riso nervoso. No filme de Barbara Maria vemos a recepção dos estudantes negros ao momento: bocas que se abrem e continuam abertas incredulamente, braços que se cruzam em recusa/proteção.
Com a morte de Ben o filme também se paralisa, congela-se. A aproximação do cadáver do homem negro, o seu carregamento e o seu destino final empilhado com os mortos-vivos para a incineração são vistos por fotogramas congelados como fotografias. O movimento da câmera se aproxima e se afasta enquadrando e focando a ação e o seu desenrolar: o cadáver negro inerte e carregado, os homens brancos e suas garras e tochas. Reconstitui-se uma iconografia que remete aos primeiros registros imagéticos dos linchamentos de pessoas negras e atualiza-se permanentemente ao longo destes 50 anos a cada imagem midiática de um corpo negro assassinado e descartado na pilha não-humana dos mortos-vivos.