Arquivo

LARVA, PUPA, INSETO (E VICE-VERSA)

Por Felipe Leal

‘’Um grande sábio cria, imagina tanto ou mais do que um artista. O artista adivinha; fazer arte é prever. É por isso que Newton e Shakespeare, se não se excedem, se igualam. ‘’

 

Morreu o professor Antena. Morreu… assim mesmo: erguendo as mãos ao céu, em companhia de seu pupilo, prestes a levá-lo ao grande momento-êxtase da revelação pela qual tinha se isolado por semanas, cientista enlouquecido à beira do apocalipse mental, criando campainhas e técnicas de alcance. Morreu o sábio em meio ao rugido estridente de algo. Repentino como aqui está escrito, dir-se-ia mesmo que “sem motivo”. E pronto – estatelou-se no chão, as vísceras expostas, o último suspiro, o derradeiro lampejo das pupilas ao nosso alcance – e sobre este evento falaremos em breve. Antes, incitados nós pela intrigante Busca maiúscula, a que também se lançam seu ajudante e o amigo poeta, é preciso voltar ao estágio anterior ao primeiríssimo sim. E diz-se “sim” por falta de vocábulo mais apropriado: retrocedamos ao estágio pré-linguagem, pré-ordem Pteurosauria; ainda antes da primeira célula que se bipartiu e se quadripartiu e assim por diante. O momento anterior à primeira estrela, à possibilidade, à luz. Onde se iniciou, como se iniciou o… o quê? O que havia antes que as coisas existissem?, perguntou-se o professor. A questão está no presente, parte do corpo, elabora-se no intelecto, se assim supomos que as ideias surgem do cérebro, que, afinal, é uma imagem como qualquer outra do mundo. E se é uma imagem, assim como o são as estruturas lenhosas que chamamos de árvores e os minerais que chamamos de rochas, qual a imagem primeira?

2018-03-16 (3)

Morreu o professor Antena e a medicina questionou-se sobre a ferida triangular no ventre que expôs suas entranhas; a polícia solucionou o caso sob a marreta da inquietude: foi estranha, a passagem, e os jornais assim o grafaram em negrito. Caso encerrado, não há o que se fazer. A única testemunha tampouco saberia explicá-lo. E iniciou-se a película com a ontogênese psicanalítica, neste caso, do não-reconhecimento primordial, a extensão lacaniana subvertida com o passar dos anos: o pupilo recorda da infância perturbadora, quando via o próprio reflexo no espelho e estremecia, apavorado com o mistério que é ele mesmo. Mas é ou era? O verbo vem a colocar a questão primordial. E, retroativa, também se encabeça a narrativa, com o típico “vou contar-lhes o que aconteceu…”. Sabe-se, pela titulação e pelo início em cauda que promove a diegese, do acontecido, mas aqui não se põe em questão o suspense também típico que aguardaria até o final para acompanhar a solução, e que torna esse próprio andamento a expectativa de uma simples descoberta que estaria dissolvida numa cena – aqui está, pronto, já sei como morreu, posso desligar o filme e dobrar a tela –: o que Noémia Delgado instaura é uma espécie de peripatética transcendentalista do artista (poeta, não menos) e do tutelado, em que, adicionada à mescla aqui igualitária entre os dois grandes convocados ao ofício da imaginação, materializa-se, espectral, a “presença” do “morto”.

Morreu o professor Antena, decerto, e o que o Cinema tem a ver com isto? Por relação direta, acusamo-lo: ele, por gênio, tem culpa no Cinema – culpa em que ele exista. O que é, fundamentalmente, a arte de que falamos? Ora, é exatamente o mesmo que o homem: uma reminiscência. Explico-me, porque a culpa maior está, ainda, no Tempo: filmar é escorregar em delícias na armadilha da ilusão de que capturamos o movimento. Para além das histórias, do dito e do mostrado, bem acima das encenações e sensações, fugidio mesmo ao que é programado e ao que escapa à interpretação e à incidência em quatro arestas, está um aparelho que simula algo que nunca se pode alcançar. E porque nunca podemos apalpar o instante-já, acredita-se que é preciso acreditar na farsa. “Só podemos imaginar aquilo que vimos e de que nos lembramos; se vimos, a fantasia se chama memória”, cita o professor, e está presa numa rede, indefesa como uma borboleta, a Verdade monstruosa do mundo: porque parte das coisas é passado e a outra se dissolve no momento em que se é(-sendo), imaginamos, criamos como elã vital. Ou seja, se se diz que o homem inventou o avião para ser pássaro, para emular o voo que não lhe pertence, a câmera é a invenção suprema que solapa, ou mesmo finge solapar, uma deficiência ainda maior: porque não há lugar nenhum aonde a fantasia possa ir, enquadramo-la num sistema serial de mentiras, uma metralhadora do impossível, do já-visto mais. Mais o quê? O aditivo é não a cauda nem a cabeça da serpente mística, mas o círculo inteiro e movediço que ela cria: poética perpassada por tempos que não morrem.

2018-03-16 (1)

Morreu o professor Antena e seu legado é a transubstanciação erigida em imagem, sequencializada num plano de temporalidades inúmeras, cruzadas: há uma cena particular em que a dupla lança ao cosmos – e aos escritos do professor –, diante de um aquário, como poderia se dar, então, a passagem de uma vida à outra, porque há muito já se fixou que à natureza só cabe a transformação. O aparato desliza, pela primeira vez num movimento duplo de direcionamento consciente, até o hábitat aquático artificial, e interpela-os a voz de Antena – mas não só a voz, eis que ele mesmo, encostado ao vidro, perpetua a verborragia da teoria-práxis, em retorno, e agora o exibicionismo é completo: peixes, enguias, pólipos e rochas dançam a própria linguagem. Sabemos, ali, que a escala evolutiva está derrocada: se está diante – surpresa! – da metamorfose adaptativa ao ambiente aquático. Não mais peixes-porque-não-homens, mas peixes porque se diferenciaram assim. As coisas, então, se transformam. Não porque deixam de sê-lo como são: o mundo se eletriza enquanto grande ensaio místico de mudanças, adaptações, estranhamentos, reconhecimentos. A orquídea se abre numa vulva; o pássaro vem à luz com a sabedoria cálida da montagem do ninho; Antena retorna à imagem não por liberdade esotérico-poética da realizadora: o Tempo já havia pedido permissão para se estilhaçar ao infinito. Tudo retorna, se é que um dia já foi. As coisas estão onde estão, e por pura arbitrariedade.

2018-03-16 (2)

O cinema não é irreal nem real, encaixa-se, sorrateiro, na lacuna entre ambos: o imaginário. Mas a dobradura que o permite se alocar nesse meio não é da ordem do ser. É uma “outra coisa qualquer que só o indivíduo triunfante que passeou por todas as outras vidas sabe”. Está, pois, além daqueles que o compõem, da sua resultante sensível? Além mesmo daquele que o cria? Se este Indivíduo nos antecede, somos seu espelhamento, sua semelhança? É preciso perguntar mais do que responder. A pergunta abre, multiplica; a resposta encerra. Filmar é lançar questões, regurgitar o inquietante do homem que não se reconhece no reflexo de si, duvidar das palavras e das coisas como a ordem as impõe. Não há ciência onde caibam as hipóteses, não há arte onde sobrevivam os estados. Morreu o professor Antena?

FacebookTwitter

DUELLE, NORÔIT – O místico contra o convencional

Por Bernardo Moraes-Chacur

Característica principal_2018_04_08_15_51_10_577

Em março de 1950 Jacques Rivette redige um de seus primeiros artigos, ‘Nós não somos mais inocentes’. No parágrafo inicial, o futuro diretor já defendia como ideal uma “confusa evidência do signo, que transcende todas as interpretações e limitações”. A definição pode soar obscura, mas viria a ser bem demonstrada ao longo de sua filmografia, conforme atestam Duelo (Duelle, 76) e Noroeste (Norôit, 76), parte da série (incompleta) Cenas da Vida Paralela. Podemos pensar nesses filmes sob mais de um prisma – nenhum dos quais fornecerá explicações definitivas. Resultado adequado para um artista que tratou a indeterminação como uma virtude – e não um defeito – da ficção.

Prisma 1: Crítica, cinefilia

No artigo mencionado, Rivette lamenta a perda da “densidade, plenitude de significação”, articulada por diretores como Stiller, Murnau e Griffith. De acordo com o texto, a “desajeitada sistematização de uma linguagem, de uma sintaxe que Griffith precisou elaborar para se exprimir ” havia reduzido o cinema a uma retórica na qual “tudo se deve dobrar às fórmulas habituais e polivalentes, estereotipadas para todos os usos: o universo é capturado e destruído sob uma rede de convenções formais, que correspondem cinematograficamente às convenções da razão e, portanto, de ser”. Note-se que o que está em discussão não é apenas estética: para Rivette, o perigo do convencionalismo formal é sua equivalência a modos de pensar igualmente restritos.

Mas como conciliar essa aparente aversão por uma linguagem formulada em Hollywood e o apreço que, como crítico, Rivette demonstrou por Hawks, Preminger, Lang etc., inseridos nessa tradição?  Ou com o fato de que, quando concebeu Cenas da Vida Paralela, pretendia que cada filme se relacionasse a um gênero clássico (romance, policial, aventura de piratas, musical)? E, finalmente, que exaltasse o realismo e o exemplificasse a partir de um surrealista (Cocteau)?

Característica principal_2018_04_08_15_31_54_713 Característica principal_2018_04_08_15_35_37_914

Duelle narra o conflito entre dois entes sobrenaturais: as filhas da Lua e do Sol, manipulando um grupo de mortais para conquistar permanência no plano físico. Esse pano de fundo místico, no entanto, só se revela gradualmente. A história é contada a partir de clichês da ficção detetivesca: motivações ocultas, pessoas e objetos perdidos. O filme noir, gênero pretensamente realista, se torna sobrenatural a partir da simples exacerbação de seus elementos tradicionais. Se Rivette ainda perseguia como diretor o realismo que defendera como crítico, qual era o real que buscava capturar?

Primeiramente, a evidenciação do absurdo e do irreal inerentes a qualquer narrativa, escamoteados sob a ilusão da verossimilhança. Ainda mais, uma celebração do potencial significativo da realidade e do cinema. O que Rivette condenava na retórica era o empobrecimento do sentido, a limitação do mundo em preconcepções. Aquilo que celebrava nos melodramas de Griffith ou nos faroestes de Hawks era a sua capacidade de gerar novas camadas por meio da mise-en-scène. Duelle explora uma riqueza de sentido – na edição, nos cenários, na presença física dos atores, nos enquadramentos e nos movimentos de câmera – que não se esgota pela ausência de uma trama coerente e de resolução inequívoca.

A abordagem era estranha para os tradicionalistas da então – que desprezavam o nonsense – e talvez seja igualmente insólita para um público contemporâneo – que tende a enxergar a ficção como um quebra-cabeça à espera de solução.

Característica principal_2018_04_08_15_50_05_353

  1. Narrativa serial

Em tempos pós-internet, espera-se que as narrativas sejam completas (ou completáveis) e tracem um arco satisfatório. Cada origem deve ser contada (e periodicamente, recontada) e espera-se igualmente um fim, ou pelo menos clímax. Em décadas anteriores, entretanto, embarcar em uma história serializada implicava em aceitar que princípios e conclusões poderiam estar inacessíveis. Episódios de TV, filmes e gibis eram consumidos fora da ordem de lançamento ou da sequência diegética. Uma trama era tecida a partir da disponibilidade de seus fragmentos e as lacunas eram inevitáveis.  Em contraste, se há alguns anos soaria absurdo preocupar-se com a cronologia da série 007, em 2018 os estúdios Marvel gostariam de convencer o público da necessidade de ver ou rever cerca de vinte filmes de modo a garantir a inteligibilidade de Guerra Infinita.

Nos créditos iniciais, Duelle é apresentado como Cenas da Vida Paralela: 2. Já Norôit é anunciado como a terceira parte da tetralogia, sendo que o primeiro e o quarto episódios jamais veriam a luz do dia. Caso a série tivesse sido completada, seria possível divisar um painel mais amplo, uma conexão entre cada filme?

Característica principal_2018_04_08_16_11_22_385

Norôit é um conto de vingança entre facções de piratas, cujas líderes talvez tenham poderes mágicos e talvez se relacionem com o conflito sobrenatural aludido em Duelle. Indícios de uma mitologia comum? Ou pistas falsas, capazes de sugerir conexões? A própria separação entre pistas falsas e verdadeiras seria, por acaso, aplicável? Desde os seriais de Feuillade na década de 1910, até a alegada Era de Ouro da Televisão, um século mais tarde, há um forte elemento de improviso na concatenação da intriga, disfarçado sob a ilusão de um sentido maior, cuidadosamente premeditado. Rivette traz essa desordem para o primeiro plano, tornando-a objeto de reflexão e de exploração.

Em Duelle, em Norôit e nos noirs da Hollywood clássica há constantes menções a personagens e eventos anteriores à trama e que não serão necessariamente descritos ou esclarecidos. Em qualquer relato, algumas lacunas geram novas histórias enquanto outras persistem como mistérios. Elas não são um defeito a ser corrigido, pelo contrário, são parte inseparável do potencial narrativo.

3: Citações

Característica principal_2018_04_08_16_07_38_424

A identificação de fontes ainda é um método bem difundido de explicação, como se cada obra ficcional fosse definida por inspirações pré-existentes (mitos, arte, fatos históricos). É uma superstição semelhante à crença de que a etimologia esgota o significado das palavras em qualquer uso posterior. Nesse raciocínio, as citações são privadas de seletividade, inversões, mal-entendidos ou qualquer outro deslocamento semântico.

Norôit possui pontos de contato com O Tesouro do Barba Ruiva (Fritz Lang, 1955) e aproveita o mesmo castelo em que Vikings, os Conquistadores (Richard Fleischer, 1958) havia sido filmado. A série Cenas da Vida Paralela tinha como título original Les Filles du Feu, o mesmo de um livro de Gérard de Nerval. Durante a gravação de Duelle, William Lubtchansky, diretor de fotografia, pensava em Delvaux enquanto preparava um determinado enquadramento. Esse emaranhado não é uma Pedra de Roseta, mas ‘apenas’ a manifestação de um fenômeno presente em qualquer ato de comunicação – muito embora o colecionismo de referências possa ser tornar um fim em si, como em Stranger Things.

delvaux
Paul Delvaux, Trains du Soir, 1957

Característica principal_2018_04_08_15_43_21_064

Há também uma peça teatral em Norôit, cujo título não é mencionado no decorrer do filme, ainda que alguns elementos sugiram Hamlet: inglês elisabetano, certas situações, a caveira. Mas o circuito da citação não se fecha: uma leitura atenta dos créditos iniciais esclarece tratar-se de A Revenger’s Tragedy¸ texto de atribuição incerta do começo do século XVII. A escolha (sugerida pelo roteirista Eduardo de Gregorio) é bem representativa do método rivettiano: a ilusão de familiaridade, o familiar tornado estranho.

Característica principal_2018_04_08_16_17_19_827

  1. Filosofia, ética.

Característica principal_2018_04_08_15_56_57_060

Conforme já mencionado anteriormente, em Duelle as filhas da Lua e do Sol disputam entre si o direito de continuarem existindo no plano físico. As deusas são como duas proposições mutuamente excludentes: a realidade de uma necessariamente eliminará a da outra. Na obscura conclusão do filme, nenhuma das duas sai vencedora. É possível traçar um paralelo entre esse arco e discussões filosóficas cujas implicações ultrapassam o cinema. Deleuze, em Diferença e Repetição, comenta o conceito liebniziano de compossibilidade:  para que algo exista, não basta ser possível, mas é também necessário que sua existência seja compatível com as demais coisas existentes. De acordo com essa lógica, o mundo possível é uma soma de afirmações não contraditórias.

Ao longo do tempo, partes da ciência e da filosofia complicaram consideravelmente essa imagem, ao relativizar a percepção e a descrição da realidade. Diferentes premissas podem ser simultaneamente válidas e nenhuma delas, segundo essas teorias, deve estar acima de crítica e reflexão. Tal virada compromete as pretensões a uma verdade absoluta e imutável.

Havia, desde o final do século XIX, um certo otimismo entre as vanguardas quanto ao papel da arte em difundir uma visão menos estática do mundo. Para elas, as formas de representação tradicionais estariam impregnadas pelo pensamento hegemônico e não se prestariam a um questionamento efetivo da ordem das coisas. Em contrapartida, acreditava-se que as narrativas não-lineares e autorreflexivas contribuiriam para a contestação do discurso dominante e para novas concepções filosóficas, sociais e culturais.

Em Kill All Normies: Online Culture Wars from 4chan and Tumblr to Trump and the Alt-Right, Angela Nagle defende uma hipótese sombria: a utopia das vanguardas – a contestação da cultura oficial e a proposição de um pensamento alternativo – foi concretizada pela extrema-direita, a partir de métodos e objetivos bastante diferentes. Se o argumento soa controverso, um fato parece incontornável: a despeito das melhores intenções perspectivistas, o autoritarismo e a falta de empatia permanecem entrincheirados em nossa sociedade. Nesse contexto, a que fim se prestou todo o questionamento empreendido esteticamente por Rivette e outros artistas?

Ao longo deste ensaio, utilizamos o cinema rivettiano como contraponto a uma certa estreiteza no discurso cultural contemporâneo, com sua ênfase em respostas inequívocas, explicações fáceis e na erudição autocongratulatória. São alvos aparentemente inofensivos, mas indicativos de tendências altamente regressivas. Nesse contexto, a pertinência de Rivette é justamente a sua resistência à inércia, a indicação de que a imaginação pode ir mais longe. Em tempos atuais, como em qualquer outro período, trata-se de um exercício imprescindível.

Característica principal_2018_04_08_16_08_36_548

  • 1 Rivette chegou a rodar algumas cenas da primeira parte, mas só veio a retomar o projeto anos depois – e com outros atores – em A História de Marie e Julien (2003).
  • 2 Conforme reportado na Sight and Sound por Gilbert Adair em 1975.
  • 3 Publicado anonimamente em 1607, atribuído a Cyril Tourneur durante séculos (e assim creditada em Norôit), atualmente considera-se mais provável que tenha sido escrito por Thomas Middleton.
  • 4 Segue boa resenha do livro em questão: https://lareviewofbooks.org/article/dialectic-of-dark-enlightenments-the-alt-rights-place-in-the-culture-industry/#!

Agradecimentos especiais a Juliana Fausto e Marcus Martins pela imprescindível troca de ideias durante a elaboração do texto. A Victor Lopes e Eduardo Coutinho (que não é o finado cineasta) pelo interesse.

FacebookTwitter

TRANSCENDÊNCIA MARTIRIZADA – O místico no Cinema de Jean-Claude Brisseau

Por Diogo Serafim

 

Através desse princípio, o primeiro supra-sensível, o reino tranqüilo das leis, a cópia imediata do mundo percebido, transmuda-se em seu contrário. A lei era em geral o-que-permanece-igual consigo, assim como suas diferenças. Agora o que é posto, é que lei e diferenças são, ambas, o contrário delas mesmas: o igual a si, antes se repele de si; e o desigual a si, antes se põe como igual a si. De fato, só com essa determinação a diferença é interior, ou diferença em-si-mesma, enquanto o igual é desigual a si, e o desigual é igual a si.

A Fenomenologia do Espírito, de Georg Wilhelm Friederich Hegel

 

    Em dado momento do filme A Garota de Lugar Nenhum (2012), Michel, personagem vivido pelo próprio Brisseau, afirma que uma ponta de cigarro encontrada em sua varanda se moveu espontaneamente do local onde se encontrava. Argumenta que o vento não pode ter sido o culpado, afinal as nuvens se movimentavam para o lado contrário do trajeto percorrido pelo cigarro, além de que as pétalas de flor, que se encontravam ao lado da cuxia, permaneceram inertes, imperturbadas mesmo com o movimento do companheiro. Dora, graciosamente interpretada por Virginie Legeay, afirma que então deve ter sido obra do diabo. Mas em seguida indaga a pergunta essencial: por que o diabo se importaria em mexer uma cuxia de lugar?

Brisseau é um cineasta fundamentalmente materialista. Aborda a matéria através de uma tautologia investigativa que se estrutura em uma busca incessante pela graça, toda essa matéria sendo lapidada em uma reiteração progressiva de uma dureza naturalista, até chegar em um ponto de inflexão no qual conclui que tudo é Graça. Esse oximoro elementar é a força motriz processual de uma injunção que rege toda a sua obra: o paroxismo elucidando os predicamentos do transcendental. Como afirmado no seu filme À Aventura (2008), para o francês a matéria é composta majoritariamente de vazio. O que importa é o que se esconde entre a matéria visível, esse vazio apenas acessível quando atentamente observado: a proposta de Brisseau é tentar filmar exatamente essa lacuna.

O milagre é que tudo é lógico, menos o essencial. Alcançar o basilar, o invisível, esse ponto de quebra, no qual a transdução do material ao imaterial finalmente se fundamenta, é a grande questão. Transcender o espectro pelo tangível. Em Brisseau temos sempre o orgasmo como uma possibilidade rumo ao absoluto e um jogo de poder para orientar essa transcendência numa lógica mais próxima da fisicalidade. Brisseau é um materialista que, como Rossellini, retira da matéria a potência do místico. Há algo mais transcendental do que os procedimentos utilizados por Brisseau para filmar o corpo feminino? Pensemos em Mathilde em Boda Branca (1989), ou Élodie em Os Indigentes do Bom Deus (2000). São corpos de uma luminosidade e expressividade que vão além do simples apelo luxurioso, suplantam o desejo carnal pela realização espiritual, em um ideal próximo do perfeito. O feminino em Brisseau nunca é exatamente alcançável: talvez dentro da diegese, na narrativa, este se apresente como efetivamente tangível, mas ele sempre está como em um pedestal, imaculado, para além do visível.

noce_blanche_multiplot
Boda Branca – Jean-Claude Brisseau (1989)

Contudo, não se deve cometer o recorrente erro de que a teleologia absoluta dos filmes de Brisseau se encontra no papel feminino como uma musa, ou até mesmo que a nudez ou o orgasmo são o ponto final da sua investigação. O desejo é sempre um ponto intermediário que se dirige a um campo hermenêutico mais amplo, o feminino é uma ferramenta para atingir o absoluto. A teleologia do holismo: Brisseau busca a ideia de Deus, as estrelas, o vazio, a graça, a redenção.

Em Coisas Secretas (2002) temos um filme no qual uma dupla de jovens mulheres busca ascensão social usando como instrumentos seus corpos e suas capacidades de sedução, como uma espécie de Rastignac e Sorel erotizados. Acompanhamos as duas ingressando em um jogo sexual, político e social que desenvolve a narrativa do filme, que não se estrutura apenas nesse viés estruturalista, mas também em uma dimensão existencial e formal. Como o próprio Brisseau indica, o filme é algo como um Psicose (1960) erótico, um suspense sexual, no qual as duas moças podem a qualquer momento iniciar uma brincadeira erótica, o cotidiano é erotizado de forma que o sexo se torna algo não apenas banalizado, mas plenamente natural, que floresce espontaneamente na rotina, podendo surgir a qualquer instante.

Em breve a dimensão existencial vai se desdobrando também na figura de Christophe, herdeiro de uma empresa que busca incessantemente o gozo sem limites, personagem por qual uma das jovens se apaixona, mas é logo abandonada. Enquanto sua colega Sandrine se casa com o empresário e completa sua caminhada na ascensão social, Nathalie cai em desespero e toma decisões drásticas. No fim, quando as duas se encontram após o espetacular clímax do filme, resta apenas um vazio desolador frente a impossibilidade do prazer absoluto. Uma desilusão existencial pelos limites do sexo.

Coisas Secretas (2002) forma, juntamente com Os Anjos Exterminadores (2006) e À Aventura (2008), uma trilogia dessa busca pelo prazer como sublimação do físico. É daí que o papel do erótico se torna tão precioso para Brisseau: mais que buscar o seu valor perverso ou tentador, Brisseau examina seu papel social e existencial.

Compreender essa busca pelo absoluto, o papel do místico nos seus filmes, é essencial para se compreender Brisseau. Mesmo A Vida Como Ela É (1978), um filme que a priori não apresenta o flerte entre um naturalismo rigoroso e o místico como os futuros trabalhos do diretor, já se percebe um fluxo de eventos que beiram o onírico com todo o sensacionalismo exacerbado dos eventos e a pungência narrativa crua proposta. Pensemos também em François no fim de Boda Branca (1989), quando vai de encontro ao oceano e a presença de Mathilde se faz mais presente que nunca, cena que não necessita da fisicalidade desta para se concretizar – algo que boa parte dos materialistas buscam e raramente alcançam: o invisível como matéria.

Brisseau não é de forma alguma um cineasta sistemático, teórico, e sim um no qual seus ímpetos se desenvolvem sob um viés mais espontâneo: ele mostra aquilo que é capaz de mostrar, aquilo que conhece. Seu cinema parte da pedagogia do físico para chegar no conflito que o asceta enfrenta na matéria. Em uma abordagem essencialmente heraclitiana, deste conflito encontramos a harmonia plena, naturalmente não podendo ser descrita por discurso, afinal apresenta um paradoxo fundamental quando descrita por linguagem. Só pode ter seus predicados elucidados logicamente quando calcados no sensível.

la_fille_de_nulle_part_multiplot
A Garota de Lugar Nenhum – Jean-Claude Brisseau (2012)

O místico como fenomenologia, de competência empírica, como no filme Um Jogo Brutal (1983) quando a mãe de Christian percebe o quão belo é abrir os olhos no local onde se encontra. Se a vida e a morte são apenas situações particulares, o que desestabiliza essas situações é o potencial imaginativo que as permitem serem absorvidas ou transcendidas. Como o serviçal da casa que, quando inquirido por Isabelle o sentido de viver quando se é prisioneiro do próprio corpo, responde que todos têm o seu próprio destino, e se esse destino a fez nascer daquela forma, era para deixa-la mais próxima do que realmente importa. E se Isabelle vai constantemente sofrendo com subsequentes desilusões, essa dor vem sempre aliada a uma noção de educação sentimental, seu espírito sendo elevado com o martírio da experiência (exemplificado nas duas cenas geniais onde a jovem lê o poema de Prévert e o de Baudelaire).

Assim como Isabelle, Christian nasceu preso a uma condição inexorável a ele, mas distintamente da filha, sua prisão não era física, e sim psicológica: a recusa do Dasein pelo holismo do eu, uma empáfia proveniente da concepção da figura divina providenciando importância ao seu destino, aliado a uma espécie de ceticismo desromantizado, ao mesmo tempo que vê a mãe morta como uma pedra, desprovida de valor, também percebe na natureza um perfeito equilíbrio, crê no seu destino definido pela padronização arbitrária e no isolamento existencial. Enquanto ele se refugia no Eu, Isabelle se refugia na natureza – ambos possuindo como ontologia fundamental a dor, o sofrimento. Mais do que um díptico: a cena final na qual o espírito de Christian alça a mão para alcançá-la nos induz a crer que, na realidade, o absolutismo agressivo do pai e a transcendência pelo deslumbre da filha acabam se encontrando em um plano mais associativo que dissociativo. Para os filhos em que a violência floresce como um pretexto existencial, a solução é machucar o outro ou alienar-se na enganosa harmonia natural. Mas se no fim é Isabelle que é capaz, através de suas preces, de providenciar um lampejo de luz dura na narrativa, isso é devido à empatia nela induzida através da dor. Eu amo pois eu sofro, a dor me aproxima do Outro, uma concepção fundamentalmente cristã que alcança uma sofisticação singular na figura de Isabelle. Um filme absolutamente brutal, como o título indica.

Esse contato com a natureza, essa ambientação cósmica como panaceia para a redenção, essa reconciliação com o mundo, é muito presente na obra de Brisseau: além de Isabelle, temos também Nathalie na cena final de Sombras (1982) e principalmente Céline, em Céline (1992), um dos mais belos filmes da história do cinema, no qual essa reconciliação se dá por um viés litúrgico, panteísta de harmonia. Se a jovem Céline estava prestes a se suicidar após a tragédia com o pai e a perda do amante, é com a figura de Geneviève que reencontra seu lugar no mundo, a meditação sendo a chave para perceber que tudo é harmonia. Ao confrontar sua imagem com a de uma pessoa que passou por um trauma semelhante, Céline é capaz de começar seu processo de elevação espiritual.

Existe em Céline uma espécie de sublimação do corpo para o espírito através do yoga e da meditação, atividades que são essencialmente corporais, mas que apresentam uma sutil transdução estrutural para o campo do espírito, no sentido que ali temos o espírito curando o corpo para em seguida termos o visível como cura, com o espírito de Céline tornando-se aparência para Geneviève, salvando assim sua vida também. Como Camille Nevers indica, essa dialética, entre Geneviève e Céline, chega na conclusão de que além de uma vida após a morte também há uma morte após a morte. Como aponta Bazin, essa fixação do imaterial no visível, essa manutenção do espírito pelo tangível, é salvar o ser pela aparência. Céline é, acima de tudo, uma história de amor. Do meu encontro ao rosto dela para o infinito. É como encontrar o mundo dentro de si mesmo.

celine_multiplot
Céline – Jean-Claude Brisseau (1992)

Já no filme Os Indigentes do Bom Deus (2000), filme essencial na obra de Brisseau, temos uma recusa dessa busca pelo infinito, uma tentativa mais ingênua de seguir em frente apesar de toda a injustiça que nos circunda. A revolta de Fred com a perda de Élodie traz à luz uma revolta mais fundamental deste com a conjuntura em que se encontra, revolta que é bem exemplificada no roubo do banco e na subsequente redistribuição dos bens adquiridos aos transeuntes e vizinhos de Fred. Não é à toa também que Élodie é logo associada à ideia de riqueza com o seu novo namorado milionário.

Os jovens, chamados jocosamente de Indigentes do Bom Deus por Maguette (que também constantemente aponta o quão pouco estes compreendem da vida), são representados assim como são: inocentes, alienados. Eventualmente o filme aparenta chegar na conclusão de que essa alienação, quando aliada à generosidade, pode servir como uma estabilização para o jovem, sendo a aceitação do absoluto algo muito duro para o inocente. Fred encontra Sandrine e ela o faz reencontrar a beleza na vida, na natureza, no vento, na linguagem, sobretudo no sol. Mas basta um lapso da imagem de Élodie para tudo voltar ao que realmente é: o desvario, o desalento, uma perna quebrada. Se Fred consegue seguir em frente, é pela segurança material que lhe foi permitida e o alívio que Sandrine trouxe para a sua vida. A fugacidade do prazer, ater-se ao pragmático, simplificar o que vê. Até que a imagem de Élodie se confunda com a de Sandrine e a vida possa seguir.

A busca de Brisseau não deixa de ser uma busca pelo simples, simplificar o que vê para assim ser capaz de curar. Encontrar no rosto do Outro a imagem do infinito. Em O Som e a Fúria (1988), filme no qual a diegese sonora é trabalhada como ferramenta propriamente narrativa (não é à toa que no clímax do filme escutamos com tanta clareza os sons da fogueira, os tiros, os passos), quando Bruno se suicida com a vontade de reencontrar a avó e o pássaro Superman, isso indica a crença e a fé como escapismo de uma realidade, rumo às estrelas, com a esperança de um futuro melhor, o suicídio como gesto de redenção. Quando o avô de Jean-Roger morre e diz que vive no outro e o outro nele, que todos são irmãos, essa dimensão mística de fraternidade próxima do Dasein heideggeriano se consolida mais uma vez como discurso.

Se é pelo martírio que se chega ao infinito, se é da tormenta que se encontra o absoluto, do devir hegeliano que o paradoxo do ser e não ser se harmonizam, não havia como se alcançar uma conclusão diferente: só através do amor que se pode obter qualquer tipo de alívio. Este permitindo a perenidade da dor, não superando, e sim justificando toda a violência e toda a irracionalidade, a reparação da rasgadura pelo rompimento completo desta. É martirizando meu encontro com a face do Outro que posso me aniquilar integralmente e assim finalmente pertencer. O amor puro, absoluto, integral: quando o rosto dela me aproxima da ideia de morte, a única transcendência efetiva que essa existência permite.

les_savates_du_bon_dieu_multiplot
Os Indigentes do Bom Deus – Jean-Claude Brisseau (2000)

FacebookTwitter

DESESPERO LOLLIPOP: Desmistificando a imagem em Like Me

Por Pedro Tavares

Sonhei que estava assistindo a um filme e ele me envelhecia. O próprio filme me infectava, me adoecia, que era a essência desta velhice. Então a tela virava um espelho e eu me via envelhecer. Eu acordei aterrorizado. É disso que eu falo, é mais forte que qualquer vírus. – David Cronenberg em “Cronenberg on Cronenberg”, 1992.

Um filme sobre efeitos. Essa é a essência de Like Me, debut diretorial de Robert Mockler e projeto de longos anos até o mesmo sair do papel. Usar os dispositivos modernos como chancela do horror é uma saída que poucos filmes usam, como Unfriended de Levan Gabriadze, horror todo passado no Skype, e o thriller Proxy Reverso de Roberto Wrinter, que se passa todo no desktop de um técnico de informática. O que difere Like Me de filmes como esses citados é a ruptura entre o meio e a imagem. Há a nítida preocupação de manter-se como narrativa e inflá-la com aspectos visuais que hoje fazem parte da rotina de quem está preso a celulares, tablets e afins. São proto-interlúdios dentro de uma violenta saga através de egos inflamados à procura de aprovação na internet. Glitches, vídeo-arte, efeitos de VHS e tutoriais do YouTube: um mundo sobre o valor da imagem ironicamente feito com deleite visual. O contraponto necessário para este mundo puído das redes sociais.

ovJUv

O mundo colorido mezzo-infantil e mezzo-aterrorizante mantém a fé na corrida das barras de rolagem e cliques. Os vídeos de Kiya, que sempre está atrás da câmera de seu celular, fazem da escória as grandes estrelas. Nesse processo, a violência é o que permeia essa suposta grandiosidade e generosidade da protagonista. Uma bastarda ainda maior que as vítimas que encontra pelo caminho, pronta para confeccionar suas arenas de luta com cores, luzes e adereços. O mundo colorido de Kiya é pura alienação – o espelho citado por Cronenberg na abertura desse texto cabe aqui.

Like Me é, substancialmente, um filme sobre como as imagens distorcem nossas personalidades. Como a ilusão de curtidas e compartilhamentos eleva, aliena e adormece a alma de YouTubers, Instagrammers e afins. Um Videodrome dos tempos atuais. É preciso dizer que Mockler não está interessado em pistas, tampouco num discurso sobre como a internet é nociva ao homem ou algo do tipo. Este discurso está moldado e impregnado em qualquer lugar que se olhe neste filme, ainda que nunca esteja em primeiro plano. Uma farsa bem funcional e interessante sobre como a imagem exige concessões ante a palavra.

likemerr

À priori, Like Me é um slasher de aura lisérgica, uma brincadeira sobre a infantilidade nas atitudes de sua protagonista, mas toma perspectivas diversas conforme esses “assassinatos” acontecem. Esse diálogo entre cores e trama remete ao fetichismo de momentos da carreira de Dario Argento (Suspiria a destacar) e David Cronenberg. Ainda que tudo em Like Me esteja em função da modernidade, Mockler usa a mesma frontalidade visual que diretores da década de 70 e 80 fizeram e distante de retrocessos; é a forma mais pungente de usar referências como síntese de todo filme. Fora o que o próprio Cronenberg chama de “critério da realidade”, referindo-se ao corpo humano, sua efemeridade e caminho de compreensão do real (e assim criando elos entre Naked Lunch, Videodrome e Gêmeos: Mórbida Semelhança), que Mockler deposita em Kiya como reação aos mesmos estímulos.

O que Jean Epstein chamava de “estética de sucessão”, como um atropelo de detalhes em um filme, Like Me arrisca como atualização da fusão imagem-palavra, onde existe a necessidade da imagem se sobrepor à narrativa. Na confiança de que ela será suficiente para que o filme tenha suas justificativas suficientes. E tem. É, mesmo, um filme de sucessões imediatas. Que corre contra o tempo, tão urgente quanto seus personagens que não querem perder uma informação vinda de seus aparelhos; que elimina maiores detalhes para se aproximar de um choque estritamente estético (vide still acima) e que extrai um bom resultado nesta sugestão.

A possibilidade de a câmera descortinar a perspectiva dos sonhos fantásticos citado por Hugo Münsterberg não afeta somente a Cronenberg; ao filme de Mockler, ele é puro elemento. Um bloco racional sobre quão onírico Like Me é. Ou melhor, um pesadelo vestido de sonho, mais um exemplar de fluxo de consciência amplificado por cortes, fusões e glitches; como se a tal world wide web fosse um trem desgovernado e que a melhor forma de conversar com os passageiros é pela mistificação, ou seja, pela imagem.

featured_like_me_4Like-Me-01-1170x705

Se Like Me também é um filme sobre maneiras de expressão, vide o uso de câmeras VHS, o próprio dispositivo a filmar (uma câmera HD) e o celular – a câmera da protagonista – o lado inverossímil ganha forças. É o encontro de épocas a favor do gênero, não só pelas referências a Argento, Cronenberg, Terry Gilliam, etc. Nossos superegos possuem censuras e elas tomam forma de vilania, como se até em tempos de desmoralização houvesse a pausa do niilismo para saber onde se pisa. Portanto, é um filme que te leva ao extremo e te joga para que sinta a pausa depois de tanta velocidade como um recuo necessário. Talvez seja esse o único senão do filme de Mockler. Como Mark Neveldine e Brian Taylor, Robert Mockler usou do artifício e da possibilidade de compreensão pelo caos, porém escolhe o respiro como momento de recognição entre personagens e público.

Deixa de ser um filme cronometrado para fazer algumas considerações que a essa altura já não importam mais. Se confundir com o cinema e a modernidade é o bastante para Like Me e nisso é um filme muito forte; recorrer a respiros e ao drama, superficialmente, é colocar em cheque todo o resto.

img

Como êxito, logo Like Me desemboca num desfecho cínico e violento; de perturbação bem próxima a de Funny Games de Michael Haneke. Encaixa-se então o hiper-realismo de um mundo cruel com todo artifício do filme que invariavelmente questiona a suspensão da vida regida por aparatos tecnológicos. Mockler dirige à função representacional a cada instante e o embalando a diversos motivos, destacando a pura e simples necessidade de ilusão. E se hoje vivemos entre o delírio e a utopia, eis um filme necessário, incluindo sua transparência para quem e sobre quem é o filme, com proporções que resvalam em toda sociedade, que passa por mutação silenciosa, enquanto nos condicionamos a ter extensões artificiais, apêndices com funções que oscilam, sendo evolucionistas e apocalípticas. Basta sabermos para qual lado seguir.

Leia mais: entrevista com Robert Mockler, diretor de Like Me

FacebookTwitter

A INQUIETAÇÃO DO OLHAR PELO MISTÉRIO DAS PORTAS

Por Camila Vieira

Dentro do cinema, a porta pode ser pensada como ferramenta de mise-en-scène que permite o recorte do olhar e o enquadramento do campo de visão. No entanto, ela é capaz de reconfigurar uma espécie de entre-lugar que torna possível o acesso a mundos imprevisíveis e desconhecidos. Em dois longas-metragens brasileiros, A Misteriosa Morte de Pérola (2014), de Guto Parente, e O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a porta é o elemento visual que perturba o olhar, ao mesmo tempo, em que se arquiteta como limiar para mergulhar em uma dimensão misteriosa e fantasmagórica.

Após se mudar para um casarão antigo e sombrio, uma mulher é tomada pelo medo e pela solidão, em A Misteriosa Morte de Pérola. Na primeira sequência, o olho fechado de Pérola é filmado com o zoom de uma câmera de vídeo. Suas pálpebras estão cerradas (Fig. 1) e ela está adormecida e deitada na cama. Quase ao final do filme, o rosto de Pérola é novamente filmado por uma câmera de vídeo. Mas o zoom agora produz um plano fechado do olho aberto de Pérola (Fig. 2). Ela encontra-se morta com o corpo estirado no piso de madeira de seu casarão fúnebre. Entre um olho adormecido e um olho morto, o filme lança ao espectador uma experiência cambiante, nebulosa, difusa, entre o onírico e a morte.

Fig. 1
Figura 1

Fig. 2
Figura 2

O trânsito entre o sonho e a morte faz proliferar imagens espectrais, que procuram romper a temporalidade linear por meio de repetições. O close no olho de Pérola é repetido, mas cada plano é produzido em tempos diferentes que produzem inversões: o olhar instável entre o sonho e a vigília e o olhar petrificado da morte. Pérola transita pelas dependências do casarão, guiada pelos movimentos de abrir e fechar seus olhos, instigada pelo que deseja e consegue ver e pelo que não é capaz de ver ou não quer ver, proporcionando diferentes qualidades afetivas do olhar. O cenário noturno na maior parte das sequências abre o olhar para a perda, porque nos coloca diante de uma experiência de privação do visível. A experiência da noite desencadeia uma dialética entre o que ainda é possível ver e o que já se tornou invisível.

O gesto de abrir e fechar os olhos – tornar visível ou invisível ao olhar – é também pensado como dispositivo de composição espacial do filme, que já é apresentado no prólogo com uma sequência de vários planos em que Pérola entra no casarão e percorre todo o espaço doméstico com sucessivos atos de abrir e fechar portas e janelas. Boa parte dos enquadramentos do filme apresenta outros enquadramentos internos: frestas de cortinas (Fig. 3), algumas aberturas em mise en abyme, como janelas vistas dentro de janelas, portas a dar acesso a outras portas ou janela no fundo da sala com uma porta aberta (Fig. 4). Pelo abrir e fechar de uma porta ou de uma janela, A Misteriosa Morte de Pérola potencializa a relação necessária entre luz e sombra no cinema.

Fig. 3
Figura 3

Fig. 4
Figura 4

Portas e janelas são também entradas e saídas que desorientam a experiência de um espaço. Por onde se entra? Por onde se sai? Há uma sequência em que Pérola acaba de fechar a janela de uma sala, dá alguns passos para trás e o plano seguinte mostra a personagem saindo do interior do armário de seu quarto, na continuidade do movimento, por entre portas abertas. O percurso que o filme deseja provocar é o da vertigem labiríntica, de perturbar a noção entre dentro e fora, de trabalhar uma ambivalência entre o passar e o não passar, o aparecer e o desaparecer.

A porta como abertura para o mistério ou algo ameaçador é explorada talvez de forma mais evidente na sequência em que Pérola tranca as portas do casarão e se esconde no próprio quarto, após uma longa sequência de pesadelo. Ela se senta na cama com respiração ofegante, olha para a porta fechada do armário. A porta é aberta e o plano é invadido pela escuridão total do interior do armário, durante cinco segundos de silêncio que são interrompidos por um efeito sonoro, construído por diversas notas de cordas orquestrais, que acompanham a aparição repentina de uma figura masculina mascarada, em penumbra que envolve seu volume. Há um corte brusco para Pérola acordando subitamente, como se estivesse em um pesadelo. Ao longo do filme, os sucessivos despertares de Pérola evocam uma narrativa arquitetada como um mise en abyme, em que sonhos estão dentro de outros sonhos.

Abrir e fechar portas e janelas também modulam a dinâmica entre luz e sombra em A Misteriosa Morte de Pérola. Diferentes formas de jogo entre claro e escuro, entre branco e negro, buscam a ampliação do desaparecimento da figura humana, apenas pelo modo como a luz entra no espaço e incide sobre os corpos. Na cena em que Pérola abre pela primeira vez a janela de uma das salas do casarão (Fig. 5), o plano frontal é invadido por uma luz forte esbranquiçada que faz desaparecer os contornos da figura de Pérola, que se encontra ao centro da imagem. O uso da luz aqui neste plano proporciona o desaparecimento momentâneo e pontual do volume, da solidez, a favor do embranquecimento do quadro dentro da imagem por onde a personagem parece mergulhar. Em outra cena, Pérola entra pela primeira vez no casarão com o interior da sala imerso na escuridão (Fig. 6). A composição da sombra com a luz enfatiza a volumetria do corpo de Pérola, no entanto o contraluz não torna possível uma repartição das partes escuras e das partes claras de seu corpo que poderiam tornar visíveis seus contornos, a roupa, a cor e a textura da pele.

Fig. 5
Figura 5

Fig. 6
Figura 6

O contraluz apenas modela e esculpe o volume de Pérola, mas faz desaparecer sua fisionomia pela sobrevalorização da figura apenas como sombra. Ao colocar o espectador dentro da experiência de adentrar um casarão envolto na escuridão, A Misteriosa Morte de Pérola trata a sombra como uma qualidade própria do espaço de encenação. As internas noturnas na casa provocam a sensação de habitar a sombra, que é em si o próprio meio em que os acontecimentos se dão. O espaço do casarão é explorado com alternância entre a quase ausência de luz – a criar planos com densos tons negros e iluminação indireta – e paredes em penumbras ou sombras – com diferentes escalas e zonas entre a opacidade e a transparência. O filme é seduzido pelo movimento das imagens, por aquilo que é da natureza do próprio cinema. A própria ambientação escura do casarão produz uma ressonância com a noção de uma sala escura do cinema, onde se projetam imagens em movimento. Mundo de sombras, volumes que aparecem e desaparecem, figuras que surgem e se escondem, o ver transfigurado no perder.

Em O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a morte da mulher é tanto a questão central da narrativa, quanto o ponto de partida para a possibilidade de se conectar a outros lugares, tempos e modos de vida, por meio da travessia e do encontro. A dramaturgia alinha-se ao gênero road movie, mas há diferenças notórias no modo como articula o desejo de seguir a estrada. Por mais que a jornada do protagonista abarque diferentes cidades onde ele passa, não existe qualquer tentativa de fuga das normas sociais opressoras. A cartela inicial do filme traz a frase: “coração põe na mala. coração põe na mala. põe na mala”. Ao colocar o corpo da mulher morta na mala e seguir viagem junto com ela, o protagonista encontra uma possibilidade de despedida de quem ele amava, sem cair na imobilidade do luto e propondo uma abertura à leveza da travessia por outros territórios.

O filme começa com o plano de uma cozinha, por onde entra um homem, carregando compras. A este homem que adentra a cena, jamais será dado um nome, ao longo de todo o filme. Ele olha para fora de campo e chama por Cris. Não há resposta. Ele caminha até sair de quadro. O plano seguinte (Fig. 7) coloca em evidência a sombra do homem em contraluz, diante da porta aberta de um quarto. O homem permanece ali parado por um tempo até começar lentamente a adentrar no quarto, deixando aparecer uma mulher deitada no chão (Fig. 8). Flores vermelhas estão espalhadas ali perto. O homem permanece imóvel olhando para baixo onde jaz o corpo da mulher.

Fig. 7
Figura 7

Fig. 8
Figura 8

Se a porta aparece em A Misteriosa Morte de Pérola como limiar difícil de atravessar por sua inquietante estranheza, a porta ainda é o elemento que instaura uma abertura, uma cisão, plena de mistério, em O Sol nos Meus Olhos. Do lado de cá, a penumbra. Do lado de lá, a luz. Diante de uma porta aberta, há a relutância em atravessá-la. O homem olha para o corpo da mulher e uma ferida se abre em seu coração. A porta aberta e o encontro com o corpo da mulher morta fazem parte de uma encenação do desaparecimento: a imagem do protagonista é desde já uma silhueta em contraluz; a luz branca do sol invade a janela do quarto; não é possível ver o rosto da mulher. A sequência é envolta pelo silêncio: o homem está sozinho e o que se escuta é o som ambiente da casa. É um silêncio que não encontra equivalência na palavra, porque o acontecimento da perda é inominável.

O discurso prova-se incapaz diante do imprevisível dos acontecimentos. A relação com o mundo é o enigma em atravessar um umbral, em que se duvida se é possível continuar ou não. O corpo do homem se encurva ao ver o corpo da mulher amada no chão e declina o olhar diante de uma porta aberta. O protagonista é engolido pelo vazio, devassado pela morte da mulher. Será preciso a coragem para prosseguir sozinho e o tempo de percorrer a estrada para se recompor. Sem cair aos prantos ou gritar em desespero, o homem coloca o corpo da mulher dentro de uma mala grande, arrasta o objeto pela cozinha até fora de casa e coloca a bagagem na poltrona traseira do carro.

O gesto é brusco, violento, súbito, repentino. É uma ação que envolve um esforço corporal, com o peso de carregar uma mala e, aliado ao silêncio, parece configurar paradoxalmente a impotência do protagonista em apreender a mulher amada, mais ainda em compreender racionalmente sua morte. Colocar o corpo da mulher na mala pode apontar a princípio para uma vontade violenta de posse. No entanto, a mulher já está morta e existe aí na própria ação uma diluição concreta da posse. O que resta ao protagonista é elaborar a perda. Esconder o corpo da mulher na mala é enterrar sua imagem, mas ao mesmo tempo tal ação produz uma imagem: procura-se dar forma ao que resta, trabalhar o desaparecimento.

A mala permanece dentro do carro, por dias e noites. Mas a passagem do tempo não conduz à certeza de que ali, no interior da bagagem, há um cadáver em processo de decomposição ou putrefação. Esta dedução por uma interpretação realista dos acontecimentos não é colocada como um problema ao longo da narrativa do filme. A mala não é o corpo da mulher. Ela é o túmulo. Ela é volume e vazio. É imagem da perda. Como túmulo, a imagem da mala é pontuada no filme, seja em um plano de detalhe (Fig. 9), seja em meio a outros objetos de uma cena (Fig. 10).

Fig. 9
Figura 9

Fig. 10
Figura 10

A presença pontual da mala em O Sol nos Meus Olhos forja sempre um prenúncio das sequências em que o espectro de Cris emerge. A figura fantasmática é a aparição de uma mulher bela, de tez saudável, com olhar sereno e voz mansa. Não é uma espectralidade evanescente, esmaecida ou borrada; pouco corresponde ao imaginário tradicional dos fantasmas construídos pelo cinema. A manifestação idealizada do espectro da mulher morta aponta algo da subjetividade do protagonista, a partir de uma imagem de fascínio, de preservação da beleza, de bálsamo para a angústia, de fuga em relação ao olhar cotidiano.

Na primeira cena em que o fantasma de Cris aparece, já é de noite. No quarto do hotel, o protagonista se senta no chão, de frente para a cama vazia. A mala está logo ali, no outro canto. A porta fechada ocupa o espaço da parede entre o homem e a mala. A porta novamente aparece aqui como limiar de inquietante estranheza; ela é o entre, quando ver é perder. Quando o homem já está em sono profundo, o fantasma da mulher se manifesta, posiciona-se nas costas dele e o abraça (Fig. 11). Não é possível ver a face dela, que fica encoberta pelo rosto dele. Os dois repousam juntos. Eles coabitam o mesmo plano.

Fig. 11
Figura 11

Na sequência seguinte, o silêncio da noite cede lugar ao rumor da manhã. Rastros de paisagem unem-se a uma mistura de sons, entre cantos de pássaros, gritos de criança e ruídos de carros passando. Um pássaro repousa no galho de uma árvore. Parece ser o plano ponto de vista de Cris, que olha para fora de campo no plano seguinte (Fig. 12). É a segunda vez que o fantasma de Cris aparece no filme. Ela está sentada no centro do quadro, em curioso estado de imobilidade, como se fosse aquele pássaro, ou tão estática quanto as duas árvores que a cercam. Ela olha para o canto abaixo. No contracampo (Fig. 13), o protagonista está dormindo, deitado no tronco de outra árvore. Ele abre os olhos lentamente, levanta-se e sai do parque.

Fig. 12
Figura 12

Fig. 13
Figura 13

Nas duas sequências, o personagem está dormindo quando o fantasma de Cris aparece. Ao fechar os olhos, é possível ver novamente a mulher amada. O entorpecimento do corpo pelo adormecer leva à aparição fantasmática de Cris. Quanto tempo o protagonista dormiu? O espectro de Cris invade os sonhos dele? Por que ela desaparece quando ele acorda? Não existe despertar sem sonho. Estar de olhos abertos não é suficiente para convocar a imagem da perda, mas é no despertar que o sonho é retrabalhado sobre os vestígios, os rastros no visível, sob o risco deles desaparecerem. O fantasma de Cris terá sua última aparição em um momento de vigília do protagonista. O homem acende uma fogueira no meio da escuridão. Seu corpo é iluminado pelas chamas do fogo, que ele observa com olhos sonolentos. Um barulho faz com que ele vire o rosto para ver. O fantasma de Cris se aproxima com passos lentos, até se ajoelhar diante dele (Fig. 14). Os dois passam alguns segundos se observando, em silêncio.

Fig. 14
Figura 14

Nos planos mais fechados nos rostos dele e de Cris, as chamas da fogueira permanecem em evidência, como se os corpos estivessem envoltos pelo fogo. As chamas estão desfocadas, mas parecem emoldurar o enquadramento. O fantasma de Cris é potencializado pela verticalidade das chamas, que despertam imagens a burlar a percepção do olhar. É a imagem da mulher amada que fala: “Você sabe que, quando a gente se desloca e deixa as coisas pra trás, as coisas vêm atrás da gente. E aí esse lugar tá sempre onde a gente nunca sabe”. De qual deslocamento, ela está falando? Da passagem da vida para a morte? Da jornada do companheiro ao pôr o corpo em trânsito? Colocar-se em travessia mediante a viagem por territórios desconhecidos não desfaz a imagem da mulher amada, quando o visível é tocado pela perda. O que se tenta é suturar os rasgos, amenizar a angústia, preencher o vazio. Ao mesmo tempo em que se busca a proximidade com as coisas visíveis, os desaparecimentos e ausências produzem as distâncias que perturbam o olhar e o envolvem no mistério.

FacebookTwitter

A FEMINILIDADE NO CINEMA JAPONÊS – Do místico ao político

Por Julia Masan

Por razões variadas, muitas delas associadas ao pensamento condescendente e misógino que imputa um certo mistério em relação a mulher e aos elementos biológicos ditos femininos, a feminilidade vem sendo relacionada em muitas obras cinematográficas como algo místico, através dos mais diversos elementos linguísticos, bem como na construção comportamental das personagens desde o roteiro, passando pela linguagem visual e técnica cinematográfica para estruturar esses tipos de narrativas. Em um sentido saussuriano e lacaniano, seria a linguagem uma estrutura de signos e significantes que através de práticas associativas produzem sentidos no sujeito, ou seja, toda a estrutura da linguagem, incluindo no cinema, passa por sistema inerentemente produtor de significados que marcam sujeitos (personagens) através de metáforas e figuras de linguagem visuais, sonoras textuais¹. Dessa forma, através da linguagem, são formados arquétipos de uma feminilidade marcada por estereótipos morais e religiosos que aplicam um sentido de compaixão, sabedoria e canonização nas mulheres². A mulher quando mantida pura, isto é, com a sua sexualidade devidamente controlada patriarcalmente, é uma mulher que detém esses atributos criados religiosamente. No budismo, religião oficial do Japão, existe também o arquétipo do feminino como algo tentador. Há um paradoxo presente entre o sagrado contido na virgindade da mulher preservada e uma vontade em potencial de ter contato com o proibido, irrompendo a virgindade e esse sagrado contido nas mulheres. Essa é uma das marcas misóginas mais fortes do budismo que reflete em toda a estrutura social japonesa.

O cinema japonês abriga muitas dessas misticidades tipicamente femininas ao longo de sua história, mas isso nada mais é do que um reflexo cultural nipônico que hospeda em sua cultura popular muitos mitos sobrenaturais. As obras de Masahiro Shinoda, Kaneto Shindô e Yoshishige Yoshida apresentam características interessantes sobre essa história da feminilidade mística no Japão. Os traços mais primitivos do místico atribuído à feminilidade são passíveis de serem observados no cinema de Masahiro Shinoda, mais precisamente em sua obra com maior teor místico explícito: o subversivo Himiko, de 1974.

IMAGEM1

Himiko apresenta o mito da Deusa do Sol, fundadora do Japão, que leva o mesmo nome da obra. Himiko é uma xamã poderosa que guia alguns povoados japoneses. Quando ela se apaixona por seu meio-irmão cultuador do Deus da Terra, Takehiko, sua sexualidade se torna motivo de preocupação para os homens do povoado que julgam de forma moralista o sexo como um fator que atrapalha Himiko a exercer sua conexão com o místico.

Shinoda utiliza uma misticidade puramente sexual e um forte aparato estético, dado pelo diretor de arte Kiyoshi Awazu, em parceria com Tatsuo Suzukiara, para contar a história da fundação do Japão. O matriarcado aparente na liderança de Himiko, na verdade é desmascarado como fantoche das intenções e olhares masculinos. A representação da criação do Japão através de um dos primeiros planos em que Himiko é estuprada por vários homens, demonstra uma preocupação de Shinoda em denunciar como a sociedade japonesa tem se estruturado até então. Ao mesmo tempo em que o místico feminino é colocado em lugar sagrado, esse sagrado é objeto de posse de um patriarcado, que a princípio, não se mostra muito aparente no contexto do filme.

Quando Takehiko se apaixona pelo xamã da Deusa da Terra, Himiko se vinga de Takehiko, arrancando os olhos dele e o banindo do vilarejo. As ações são supostamente justificadas pela própria Deusa do Sol, sob a alegação de que era inaceitável a existência de um herege adorador da Deusa da Terra. Por consequência de suas decisões, Himiko se torna alvo dos homens guardiões da religião local, que percebem que sua sexualidade não pode mais ser controlada, então só lhe resta a morte. Aqui, Masahiro Shinoda, representa outra extensão do moralismo na sexualidade feminina. Quando se desconfigura a sexualidade feminina sagrada, intocável e imaculada perde-se seu poder sacro e místico que possuía originalmente. O místico feminino é criado e passa pela manutenção do próprio patriarcado que pode deliberadamente renega-lo e realoca-lo conforme as mulheres e mantém submissas a essa moral.

O místico feminino vingando a si mesmo

Em Sob as Cerejeiras em Flor (1975), Shinoda dessa vez apresenta a sexualidade mística feminina como força maligna de vingança e sangue. A história de um ladrão que encontra a mulher mais linda que já viu na vida, durante um de seus roubos, e decide matar o marido para levar a esposa como prêmio, à primeira vista coloca a feminilidade mais uma vez em um lugar abaixo na hierarquia. Mas a esposa usa deliberadamente do poder que seu sexo exerce sobre os homens para subverter a hierarquia, manipulando constantemente seu novo marido, até um ponto em que a face do místico em sua sexualidade aparece sob a forma de um mal tão intenso e sanguinário que não pode ser controlado. Antes fatalmente castrado em Himiko, o místico feminino da sexualidade em Sob as Cerejeiras em Flor toma uma dimensão de subversão da castração feminina para então castrar o poder da masculinidade.

O caráter vingativo como extensão da misticidade feminina é explorado até as últimas consequências em Kuroneko (1968) de Kaneto Shindô. O diretor se propõe a inserir outro elemento místico da cultura japonesa para evidenciar as práticas castradoras do patriarcado sobre as mulheres. Quando mãe e filha são estupradas e mortas por samurais em uma floresta, o local se torna palco de diversos assassinatos de vários samurais que passam por lá posteriormente. É interessante como Shindô incorpora elementos culturais tão fortes do Japão, como os samurais, que são exemplos de masculinidade, nobreza e força, para aniquilar sistematicamente essa masculinidade castradora que ronda como uma sombra sobre a feminilidade. Há uma lógica muito bem estruturada em mostrar o místico retratado por fantasmas assassinos e gatos que tomam forma feminina. Essa forma se mostra como a mais compreensível e palpável de destruir a masculinidade.

IMAGEM2

Em um momento durante o filme, um dos samurais se pergunta: “que tipo de fantasma ousaria nos odiar?” O questionamento demonstra a prepotência do patriarcado que se recusa a enxergar sua leviandade e tem a concepção de ser algo extremamente necessário e bom. A vingança da violência do sexo através do próprio sexo desmantela as amarras hierárquicas que o estruturam e evidencia como é possível reverter os efeitos do moralismo que coloca a feminilidade mística em uma posição de passividade. Citando Tsuno Kaitaro, no artigo The Tradition of Modern Theathre in Japan, é possível ter ideia da dimensão do que significa a subversão da cultura japonesa através da arte: “Nossa esperança é que através do aproveitamento da energia da imaginação popular japonesa, nós possamos transcender de uma vez os clichês enervantes do drama moderno e revolucionar o que significa ser japonês”.

A potencialidade de castração

A castração moral da sexualidade feminina através do místico e do mito é tema central do terror clássico de Kaneto Shindô, Onibaba (1964). Assim como Kwaidan (1964), de Masaki Kobayashi, Onibaba é originário do próprio folclore japonês. Há um interesse cultural da Nuberu Bagu em se apropriar da cultura pré-moderna e das formas tradicionais de fazer cinema para desconstruir a própria cultura e os moldes clássicos cinematográficos, ressignificando e dando novo caráter ao mito e ao místico. É o que o pesquisador David Desser chama de “um regresso dialético a um passado pré-moderno”, em Eros plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema (1988)³. Essa subversão cultural é característica central de Onibaba, que mostra a obsessão pela castração através de uma mulher que repudia os atos sexuais de sua nora, em extremismo tão forte que a torna um verdadeiro monstro.

IMAGEM3

O filme se passa em uma época em que o Japão sofria com os efeitos devastadores de guerras civis. Duas mulheres, uma nora que perdeu o marido na guerra e sua sogra, lutam para sobreviver matando samurais para vender seus pertences. Quando um samurai chega a aldeia onde elas vivem, a nora desenvolve forte interesse sexual por ele. Em um ato de repúdio às atitudes da nora, a sogra decide assombrar os amantes com uma máscara para impedir seus encontros amorosos. Inspirado no conto budista yome-odoshi-no men4, a máscara diabólica que a sogra coloca não sai mais de seu rosto, tendo então que arrancá-la junto com a pele.

Esse conto moral de Shindô mostra que os efeitos da guerra e as relações de interesse para sobrevivência podem trazer um caráter castrador sexualmente vindo da própria misticidade feminina. A moralidade que a cria é a mesma que a limita em um nível de auto-vigilância compulsória. Não há espaço para humanização e respeito durante a guerra, e em nenhum outro tempo durante a história japonesa, houve espaço para humanizar mulheres e suas sexualidades.

A decadência do místico feminino

   Quando a Nuberu Bagu surgiu no final dos anos 50, os cineastas que faziam parte do movimento tinham como objetivo questionar os efeitos da guerra, a chegada violenta do american way of life, a cultura japonesa e a sexualidade de modo geral. O fato é que a sexualidade feminina retratada na Nuberu Bagu nem sempre a colocou no mesmo patamar de subversão das outras questões abordadas pelo movimento. Muitas das vezes, a sexualidade feminina era vista sob um escopo meramente estético, repleta de clichês eróticos e de uma misoginia poética.

   Na última cena de Himiko, um ancião desolado vagando pela floresta se assusta ao olhar para cima e ver um helicóptero sobrevoando sua cabeça. A cena apesar de similar à obra prima onírica A Montanha Sagrada (1973), possui finalidade bastante diferente do clássico de Alejandro Jodorowsky. Em um ato puramente nuberu baguniano, Masahiro Shinoda introduz violentamente o choque da modernidade com a pré-modernidade, do cinema clássico com o cinema moderno. Efeitos muito importantes surgem desse encontro e impactam diretamente na decadência do místico feminino dentro do cinema.

Yoshishige Yoshida, além de precursor da Nuberu Bagu, também é o diretor que melhor consegue elucidar a questão do místico feminino, ao o colocar em uma materialidade dada através do corpo. O corpo em Yoshida é elemento de transgressão em que percorrem todas as principais questões da modernidade: a liberdade sexual e política. Não há ação que não aconteça nos limites do corpo e não há qualquer tipo de redenção envolvendo isso.

A feminilidade no cinema de Yoshida vai abandonando o lugar condescendente de elemento místico e sacro, ao longo da sua evolução cinematográfica. Em As Termas de Akitsu (1962), o diretor mostra pela última vez a feminilidade retratada dessa forma, para então transformá-la nos filmes seguinte. A modernidade não encontra espaço para lugares sagrados diante da ideologia, da política e do corpo. Em História Escrita com Água (1965), começam a aparecer os primeiros traços da decadência do místico feminino e das formas técnicas clássicas de fazer cinema, como o enquadramento totalmente descentralizado dos elementos de ação das cenas.

IMAGEM4

Na trilogia de amor e anarquismo constituída por Eros + Massacre (1969), Purgatório Heróica (1970) e Golpe de Estado (1973), Yoshida começa então um processo definitivo de mostrar o místico feminino como algo ultrapassado. Agora o místico não mais existe e a feminilidade reside em um corpo político de ação subversiva. As relações amorosas monogâmicas cedem lugar para a não-monogamia, e consequentemente, a instituição do amor como um todo é questionada. A temporalidade é desconstruída, o passado encontra o presente sem medo de se conflitarem. Com a aplicação de uma dialética desconstrutivista de extrema desconfiança moral e ideológica, a misticidade feminina é aniquilada, mostrando a urgência em continuar um processo incansável de obliteração.

A história do místico feminino no cinema japonês passou por um longo processo de representação linguística, até se tornar um conceito obsoleto a ser destruído pela própria linguagem que a significou. Pode-se dizer que a misticidade é destruída pelas próprias necessidades políticas e ideológicas de aniquilação, mostrando que esse é o único elemento a ser tolerado no cinema nipônico moderno.

Notas:

[1] Ver LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 380 p. e SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 1996. 279 p.

[2] PAUL, Diana Y. Women in Buddhism: Images of the Feminine in the Mahayana Tradition, Asian Humanities Press, Berkeley, California, 1979

[3] DESSER, David. Eros plus Massacre: An Introduction to The Japanese New Wave Cinema. Bloomington: Indiana University Press. 1988.

[4] O mito conta a história de uma mãe que assustava a filha com uma máscara demoníaca para impedi-la de ir ao templo budista. Até que a máscara não sai mais de seu rosto e ela tem que arrancar máscara junto com a sua própria pele para se livrar da maldição.

FacebookTwitter

HOMEM-ARANHA 2: Sobrenatural como manifestação do caráter humano

Por William Andrades

O Homem-Aranha 2 (2004), de Sam Raimi, evidencia um caráter super-heróico que potencializa o sobrenatural enquanto fantasia de cunho heróico ao mesmo tempo que define um contexto dramaturgo tanto de mito quanto de humanidade. É um filme que foca na identificação e admiração do mito, ao mesmo tempo que disseca a questão de como o sobrenatural age no mundo real. Talvez seja o filme de super-herói que mais abraça a ideia de discutir os temas que o subgênero traz consigo. A ideia da figura mítica que tem uma vida dupla; o dever moral do altruísmo; o sobrenatural como manifestação do caráter humano… Afinal, o que Peter Parker (Tobey Maguire) faz que o torna um super-herói?

Sam Raimi é uma escolha certeira para os filmes do Homem-Aranha. Vindo do cinema de horror, o diretor entende do universo da fantasia, de potencializar o ridículo como sério, de manter um certo humor ao mesmo tempo que abraça todas as possibilidades dramaturgas ali. Ele tem sua própria linguagem, usa muito da câmera subjetiva, muitas cores saturadas. Mas aqui o cineasta talvez tenha feito seu filme mais sóbrio. Mesmo assim, ele se dá ao luxo de brincar um pouco. A cena do hospital tanto brinca com seus filmes anteriores (a motosserra, referência direta a Evil Dead, de 1981) quanto com o gênero de horror em si. Após seu fracassado experimento, Otto Octavius (Alfred Molina) está em uma cama de hospital sedado, com os médicos se preparando para remover seus braços metálicos, que despertam e começam a matá-los sem consciência de Otto. Quando Otto desperta, ele vê o monstro que se tornou. A cena usa de todos os gags que o cineasta criou e aprimorou na sua trilogia Evil Dead. Esse cinema muito objetivo que se diverte ao mesmo tempo que cumpre com precisão o horror. Se decuparmos, pode parecer um momento muito deslocado em termos de tom, mas funciona porque o filme tem uma inocência na maneira como retrata a fantasia, e apesar da chacina, ele estiliza o suficiente para dramatizar o momento sem torná-lo ofensivo.

Captura de Tela (14)
Captura de Tela (15)

Desde o início o diretor quer deixar claro o quanto ele acredita naqueles personagens como figuras humanas e com potencial tanto fantasioso quanto dramático, e mescla as duas coisas de uma maneira muito interessante. Toda essa ideia de discutir num nível quase teatral (o filme tem muito mais diálogos do que momentos de ação ou imediatismo) o tema heroísmo não é por acaso, Raimi evidentemente queria tornar as coisas mais clássicas. Existe toda uma encenação, na maneira como ele coloca os personagens na cena de forma organizada para o diálogo, na Nova York vintage começo dos anos 2000, que torna as coisas teatrais. Nos diálogos ele usa os planos/contra planos mais simplistas possíveis, mas que acabam criando algo mais definidor. É formalismo pela técnica e classicismo pelos temas abordados. Ele não esconde nada, filma tudo de uma maneira muito direta e sem chamar a atenção para si. É uma criação de mitologia e de sentimentos feito com muito pouco e de maneira minimalista. Na cena em que Peter confessa para a Tia May (Rosemary Harris) sobre sua culpa na morte de seu tio (Cliff Robertson), apenas o olhar dela pra ele já possui mais sentimento que qualquer filme da Marvel dos últimos 10 anos.

Captura de Tela (16)
Captura de Tela (17)

Captura de Tela (18)

Existe toda uma questão, bem clichê até, de relações humanas que tem tanto um potencial para o ridículo quanto para o mítico. O segredo que o herói guarda da sua tia, o romance não consumado, o amigo buscando vingança. Ainda que seja um filme bem sóbrio, Raimi já dá indícios da cafonice que ia abraçar no terceiro filme. Aqui, por enquanto, todos os dramas têm uma carga muito pesada, ainda que tenham um humor muito particular. Lembra um pouco o cinema do Shyamalan, cineasta que também se aventurou pelo gênero por acreditar no potencial dramaturgo da fantasia do super-herói e trabalhar bem o humor ali. Existe uma fé naqueles enquadramentos, naqueles sentimentos. O contato humano, a troca de olhares… É enriquecedor.

Raimi trabalha o personagem de Peter de um jeito muito particular. Ele desenvolve o personagem num tom cômico e levemente melancólico. Acompanhamos o seu cotidiano com todos os empecilhos que isso traz. Ele é humanizado através das dificuldades e prazeres mundanos, seja chegar no horário na faculdade ou receber uma festa surpresa de sua tia. Todos os conflitos do personagem são estruturados nessas dinâmicas muito comicamente realistas, como por exemplo a cena da festa no planetário. Peter não apenas briga com seu melhor amigo e vê a mulher que ama sendo pedida em casamento por outro, mas ele se frustra nos intervalos desses momentos. São pequenas gags do protagonista tentando pegar algo que uma garçonete está servindo e alguém pegando primeiro, ou ele pegando um copo que estava vazio.

Captura de Tela (19)Captura de Tela (20)Captura de Tela (21)

Isso que torna mais na frente uma cena tão importante, onde ele questionando se deve sacrificar seus sonhos para ser o Homem-Aranha, recebe uma visita de sua vizinha, uma pessoa desimportante em sua vida, lhe oferecendo um pedaço de bolo. Raimi dedica mais ou menos um minuto de filme a essa cena supostamente desinteressante. Acontece que, esse breve respiro, esse momento de aconchego e intimidade do personagem, dá a sutileza humana que ele precisa. Ele não é apenas uma peça nessas dramatizações todas, o fator identificação é mais importante que a ambição pelo épico que o arquétipo traz. Peter recebe, em resumo, uma boa e simples ação. Esse momento o revitaliza com os quadros mais simples que um diretor poderia elaborar. Mostra um certo contraste, “quebra” a construção do personagem que vinha seguindo um certo padrão de ridicularizá-lo/ocupá-lo.

Captura de Tela (22)Captura de Tela (23)
Em seguida, Peter vai visitar sua tia, que não via desde que a contou que era o culpado pela morte de seu tio. Ela está de mudança (os afazeres mundanos como escopo dessas discussões é algo que se mantém por todo o filme), sendo ajudada por uma criança que admira o Homem-Aranha e questiona Peter sobre onde ele está. Peter diz não saber, diz que o Homem-Aranha precisou de um tempo, que queria fazer outras coisas. Sua Tia diz que o menino quando crescer quer ser o Homem-Aranha, e Peter pergunta o porque. Então ela começa o que pode ser o discurso mais definitivo sobre super-heróis, daqueles momentos enriquecedores que o cinema de herói não via desde que Richard Donner e Christopher Reeve mostraram ao mundo que o homem podia voar, em 1978. Ao mesmo tempo em que temos certas pistas de que ela pode saber sobre o alter-ego do sobrinho, o diretor não se importa com isso (algo que seria pensado primeiro em um filme da Marvel ou DC atual). Ela fala (ou seria o próprio Raimi?) sobre o poder do super-herói em uma criança, da sua figura de coragem e sacrifício, sobre como as pessoas reagem a essa figura mítica, como o admiram, querem ter apenas um deslumbre seu pelos céus que lhes dá esperança para continuar mais um dia.  Peter percebe não apenas que o Homem-Aranha é muito maior do que ele, mas que de uma certa forma o ajudava a continuar no dia a dia. É um discurso tanto definidor para o gênero quanto para o filme em si. E ao final da cena, ela pede para que ele a ajude na mudança.

Captura de Tela (24)Captura de Tela (25)
A ideia do sobrenatural no filme, do lado místico das coisas, é apenas um mote para potencializar discussões muito humanas e diretas sobre heroísmo e sacrifício. Os dons são retirados de Peter no momento em que ele passa a perder sua vontade. Não pode haver heroísmo sem sacrifício, sem altruísmo. É esperto do Raimi simplesmente não se preocupar em como os poderes dele vão e voltam. Não existe uma explicação científica como nos filmes da Marvel ou um realismo limitador como nos da DC. Aqui existe um universo particular onde antes é pensado os fatores humanos e depois os fantásticos. O mito é feito por seres fantásticos que representam condições humanas, e o Raimi disseca isso.

Existe outra cena muito emblemática. Peter, sem poderes, se depara com um incêndio no bairro. Ele decide se afastar como um civil comum, mas ao saber que tem uma garotinha ainda presa no prédio, ele decide entrar e salvá-la. Essa cena, por si só, já é poderosa. Até aí você tem todas as questões definidas numa cena de ação. O herói enquanto indivíduo, o perigo como potencializador do altruísmo. Mas, enquanto se recupera, Peter descobre que havia mais alguém no prédio que morreu. Ele percebe que precisa se mistificar para ser um super-herói. Peter enquanto pessoa, não é o suficiente. Apenas o mito pode transcender. E isso se torna uma questão catártica mais adiante no filme.

A cena do trem é o momento chave da trilogia. Primeiro, temos todas as questões morais postas à prova. Peter, mesmo se morrer, irá parar aquele trem e salvar aquelas pessoas. Segundo, temos os conflitos que antes eram implícitos agora realmente encarados pelo protagonista. É o momento em que o personagem percebe que não precisa deixar de ser Peter para ser o Homem-Aranha. Mas para ser um super-herói, ele precisa ser o Homem-Aranha. O indivíduo por si só não basta, ele precisa do sobrenatural para se mitificar. As pessoas no trem o reconhecem como um sujeito comum, mas também o engrandecem enquanto mito.

Captura de Tela (26)Captura de Tela (27)Captura de Tela (28)Captura de Tela (29)
O sobrenatural se encaixa como um reflexo do estado humano do protagonista. Os poderes que dependem da força de vontade, os braços mecânicos que se alimentam do desespero de seu hospedeiro. A questão de Raimi não é subverter (o que poderia se esperar em um plot de herói sem poder) o sobrenatural mítico, mas evidenciar o que faz de Peter Parker um super-herói. Ele destrincha todo o mote do gênero em prol de um estudo muito humano das questões que transformam a fantasia. Existe um tom muito cômico nessa ideia, quase que como um “Peter Parker vai a terapia”. Essa ridicularização e mitificação é essencial. Peter só consegue se enxergar como humano quando não tem os poderes. “Agora eu sangro se bater em mim”, diz ele a Mary Jane (Kirsten Dunst). Nesse tempo sem poderes ele precisa se provar sem a máscara, e isso envolve os fatores mais humanos (confessar a sua tia que a morte de seu tio é sua culpa) e até coisas mais heróicas, como salvar uma garotinha de um incêndio. O sobrenatural age como potencializador incontrolável do caráter. Testar o sujeito, dizer que ele pode ou não ser um super-herói. Uma discussão de dentro para fora. O filme de super-herói que mais desconstrói e engrandece o gênero.

FacebookTwitter

GREEN SNAKE: Fé e demolição

Por João Pedro Faro

eeee

Das poucas definições possíveis para Green Snake (1993), a que João Bénard da Costa escreve para Narciso Negro (1947) parece a mais coerente: “Para amar Black Narcissus é preciso uma boa dose de infantilismo (…) É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura (…) Digamos simplesmente que Black Narcissus é um filme fantástico e erótico.” Da perversão religiosa às limitações da castidade, tudo caminha para desfechos brutais em Green Snake. Nessa progressão encontra-se não só todo esse “cinema do excessivo” (em tudo que está enraizado de horror, mistério e ação em qualquer imagem que Tsui Hark cria) mas, principalmente, no que lhe é mais custoso: os limites e as interseções entre o etéreo e o explosivo. Hark emerge no Wuxia as recorrências temáticas do gênero (a magia, as feiticeiras, os templos, as vinganças divinas) para tornar tudo que é místico, invisível e infilmável em uma experiência terrena consequentemente destrutível.

O fantástico e o erótico

A narrativa lendária, sobre duas irmãs feiticeiras cobras disfarçadas de humanas e suas complicações com um monge guerreiro, flutua sobre interesses cinematográficos muito mais sensoriais. Hark lembra que a maior qualidade de uma obra fantástica é deixar fantasiar-se, fazer com que a riqueza de seu cinema se dê unicamente pelo misterioso. Partir do princípio da fé, de uma compreensão incompleta, mas de um encantamento perfeito. O misticismo fílmico de Green Snake instaura-se como uma verdadeira reza, desde a canção de abertura até a iluminação fabulosa. Assim, esses fatores podem ser devidamente subvertidos e transformados em uma presença hostil. Aos poucos, tudo no filme se mostra potencialmente catastrófico, não apenas em sua narrativa mas essencialmente em sua forma.

A montagem de Green Snake sempre parece tender à uma progressão conflituosa, que prioriza uma movimentação ágil engrandecedora tanto de uma sensibilidade quanto de uma hostilidade. Como se todo raccord fosse parte de uma conjuração mística, de um golpe mortal ou dos dois ao mesmo tempo. Se o cinema sensorial é sempre atribuído à uma espécie de meditação, Green Snake transforma essa ideia mostrando que as sensações mais violentas e intensas também fazem parte desse estado de espírito. A harmonia encontra a batalha, pois nesse universo elas não só coexistem como são essenciais para a existência uma da outra. É da concentração, da paz interior, que o monge busca reconhecer o maligno e invocar a força para derrotá-lo.

Justamente no personagem do monge (Vincent Zhao) que se configura muito da essência de Green Snake, o que torna muito de sua visão de mundo definidora na narrativa. Nele, quebra-se a ideia de que a fé é um fator unicamente benevolente. Pelo contrário, pode ser o fator de perseguições obcecadas, do clamor agressivo por uma justiça absolutamente torta. É primordial para o filme que uma figura definida por sua áurea religiosa e estritamente conservadora se torne moralmente ambígua, na maioria das vezes questionável. Para Hark e as raízes libertárias que moldam todo seu cinema, de Dangerous Encounters of the First Kind (1980) à Alvo Duplo 3 (1989), a autoridade é sempre um instrumento de opressão dotada de um maniqueísmo simplório. Os religiosos que perseguem as irmãs feiticeiras, acusando-as de serem demônios, são sempre os agentes do ridículo. Como a irmã Green (Maggie Cheung) aponta em um dos confrontos: “Taoístas idiotas, mal sabem a diferença entre o bem e o mal”. No cerne da obra, a inconstância dos espaços e dos personagens também se aplica aos aspectos mais básicos de vilania e heroísmo. Como a tendência é a de que tudo seja pervertido, essa diferenciação entre o bem e o mal se prova cada vez mais equivocada.

GREEN SNAKE

Além da religiosidade, de aspectos sensoriais que evocam a violência, tudo que entende-se por sexual ou apaixonado também faz parte dessa transição para o destrutível: A irmã White (Joey Wong) que se apaixona pelo humano comum (Husi Xien), quebrando toda a lógica de espaço e iluminação de seu entorno quando está junto com ele. Green, que após uma crescente inveja de sua irmã, seduz o monge, testando os limites de seu voto de castidade e gerando toda uma libertação brutal que o monge precisa conter (basicamente todo o conflito do ato final é gerado porque o monge se excita quando se relaciona com Green, criando nele uma ira que precisa expurgar da terra esse elemento desestabilizador). O toque, o ato de sentir o outro e a delicadeza de suas intenções confundindo-se com o que é pecaminoso e condenável. Uma relação constante que o monge faz entre tudo que é “do homem” ser destrutivo, por mais que todo seu divino destrua muito mais do que o humano. E a ingenuidade em tentar decifrar tudo que seria parte desse “humano” em Green (um dos grandes momentos do filme, quando pede ao amante de sua irmã para ensiná-la “o que é desejo”). E ainda no próprio relacionamento entre o casal de irmãs, a relação entre elas é constantemente abalada por necessidades mundanas que encontram em sua nova vida. Como se relacionam os seres sobrenaturais? Como isso pode ser quebrado e deturpado pelo convívio com os homens? O espaço que habitam com seus novos corpos ajuda a deixar ainda mais tênue o limite entre o humano e o não-humano, ocorrendo uma quebra do comum em ambas as partes.

A noção de que qualquer gesto pode ir contra o sagrado ajuda a integrar a fantasia de Green Snake em um exercício de limitações mesmo dentro de uma obra tão formalmente livre. As cenas de sexo onde a câmera voa e transita entre as locações, como se num estado de elevação, ainda vão gerar consequências demolidoras, onde essas mesmas locações serão colocadas abaixo e esses personagens passarão do erotismo para guerra. As mais serenas sensações carregam o peso consequente das mais intensas tragédias.

visjjjjj

jwfnwjfn

Dom divino e maldição

Green Snake é de uma potência tão única que consegue trazer para si em toda sua conjuntura uma das questões mais primordiais que existem: como separar a sensibilidade com o sobrenatural entre maldição e dom divino? Esse fantástico que se espalha em todos os enquadramentos, que está em qualquer imposição formal e narrativa, traz aos seus personagens a sofisticação espiritual ou a danação pelos pecados? Hark se interessa, a todo momento, por essas perguntas (como trazido anteriormente, as perguntas são sempre mais importantes para a fantasia do que as respostas). O questionamento conflitante entre os protagonistas envolvidos numa grande corrupção de seus arquétipos é centrado nessa separação entre o místico “puro” e o que de alguma forma está envolto pelo mal (“Você diz que há amor nos humanos. Não poderia haver amor no mal também? Estamos juntas há 500 anos, deve haver amor entre nós também”, aponta uma irmã feiticeira para a outra). E na complexidade de tantas abstrações, Hark oferece aos seus personagens apenas o que está concretizado desses questionamentos (“Vamos ascender aos céus, para que os Deuses sejam nossos juízes”). No plano terreno, a presença fantástica jamais poderá ser julgada.

fwhfwuihfw

lllllllllllll

No confronto final, a fé já se tornou integralmente um caminho para a batalha. Dentre sacrifícios, Green e o monge são os únicos sobreviventes dentre os quatro personagens centrais. Nesse momento, retoma-se aos poucos o ideal de harmonia: os dois inimigos se reconhecem um no outro, pela tragédia e pelo pecado em comum. Mais uma vez, a ideia religiosa maniqueísta dá lugar à ambiguidade das sensações, das motivações e do espírito. A fé agora passa a guiar Green e o monge para os questionamentos. Sobre as ruínas de um templo budista absolutamente destruído (existe concretização imagética mais poderosa?), ambos percebem a grandiosidade do irresoluto e do fantástico. Na despedida entre os personagens, permanece uma efemeridade que Hark evoca nos conjuntos mais primorosos desde o princípio da obra. Para um filme que abre com uma marreta esculpindo uma pedra e se encerra com uma gota de água caindo, é seguro dizer que em seu desenvolvimento o bruto e o sensível encontraram um plano relacionável.

fewefw

FacebookTwitter

CAMOCIM (2017) – Quentin Delaroche

Por Pedro Tavares

1_MAYARA-E-HEGON-1024x575

Como uma grande jornada de coadjuvantes, oposto a boa parte dos filmes da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Camocim tem como objetivo investigar os novos protocolos e cartilhas de campanhas políticas. Longe de Entreatos (João Moreira Salles, 2004) e mais próximo de Aprendi a Jogar com Você (Murilo Salles, 2015), o filme de Quentin Delaroche se debruça nos meandros que mantém a cabo eleitoral Mayara longe de escândalos e o entrelaçamento que micro e macro oferecem na briga entre “azul” e “vermelho”, como uma grande gincana política.

Mesmo com o objetivo de Mayara em levar o amigo César Lucena à vitória na campanha para vereador, há a grande questão da idoneidade, ainda que toda ação esteja ligada mais ao circo que ao pão e água: são micaretas, festas e o famoso jogo de corpo a corpo. Mayara está longe de uma personificação nestes casos; seu objetivo é a vitória, mas a inevitabilidade de estratégias mais festivas coloca sua postura em cheque. Esta duplicidade entre a ordem e o sucesso é muito funcional no filme de Quentin Delaroche. Ela leva à afirmação da importância de toda conversa política entre os moradores de Camocim de São Félix, independente de seus fins. É o pensamento sobre a dimensão de cada palavra e gesto numa briga folclórica.

Portanto, quem se adequa é o olhar; Camocim é um filme que aceita seus entornos e regras no princípio e escolhe a observação como melhor caminho de testemunhar este espelho do macro que é esta campanha/gincana, colocando, finalmente, a política como status de jogo de interesses maiores e Mayara é conscientemente uma peça deste jogo com a noção de que suas ações tem um limite moral e de tempo. Caso vença, César seguirá sozinho, caso perca, a consciência de Mayara estará limpa. E à câmera de Delaroche interessa somente esta encruzilhada moral e existencial de Mayara, ainda que o passado da cidade esteja permeado nos eventos com certo negativismo.

Tanto Quentin quanto Mayara lutam, em diferentes formas, para não se adequar à arbitrariedade que este ritual impõe. Não se trata de sobrevivência e de iconoclastia, mas de significados imensos – exibidos em retalhos como um grande retrato do Brasil. Camocim, portanto, concretiza o momento sem restaurar o passado do país. O interesse geral está nos gestos que compõem significados sobre o estado crítico que o país se encontra; ainda que Delaroche não procure ostensivamente a saída, ele entrega aos jovens este caminho quando Camocim deixa de ser um fluxo de imagens políticas para ser enfim, um filme sobre pessoas.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

PLATAMAMA (2018) – Alice Riff

por Gabriel Papaléo

c444436715900d6250c0031e0c0e5886_15093738061144_300574975


É curioso ver em Tiradentes um filme de 2018 cuja estética se aproxima do cinema observacional, depois de toda a renovação formal que filmes como A Vizinhança do Tigre e Branco Sai, Preto Fica propuseram há alguns anos, porque agora essa ideia de cinema tornou-se uma grife, uma ideia de pertencimento diante dos festivais. Parece que o formato é uma ferramenta para estruturar uma obra visando acomodá-la numa plataforma de exibição, quase como um gênero – e diante de Platamama essas intenções entram em conflito com os próprios personagens.

O retrato atento de Choco e sua família, bolivianos que vieram para trabalhar no Brasil, permanece expondo tanto o cotidiano dos retratados quanto a densidade política desse contexto; o olhar politizado de Alice Riff busca trazer as fraturas da rotina daquelas pessoas ao contextualizar desde o letreiro inicial as dissonâncias sociais presentes na vivência daquela família, teoricamente acossada no território brasileiro, mas a potência do panorama reside no processo das questões do dia-a-dia que todos ali passam por – especialmente Choco e sua mãe. Enquanto o garoto busca na música e no afeto dos amigos produtores uma expressividade em contraponto ao trabalho quem tem com a mãe, a mãe encara no trabalho apenas o meio de conseguir a sobrevivência e conforto nesse ambiente estrangeiro, e o que de fato persiste no filme é a vontade de construir um conforto de lar representativo desses personagens diante das adversidades.

É a partir da ideia de pertencimento cultural que Riff desenvolve melhor o olhar observacional, e a espontaneidade dos personagens, o que é a melhor coisa do filme. A família procura no Youtube as novelas locais e músicas em espanhol que tocam durante a narrativa, seja como foco da cena seja como pano de fundo, e falam sobre essa cultura através do microcosmo doméstico como uma forma de contato com essa casa distante. O retrato se complexifica, ainda, na figura de Choco, um jovem cujo sonho de ser rapper o aproxima de um imaginário trap gangsta oriundo dos Estados Unidos que o coloca tanto em contraste como complemento seja identificação com um ambiente que nunca está presente em corpo, mas em atmosfera e memória.

A mão do observacional de tese pesa por vezes, trazendo um clima de medo que se revela pouco eficaz em planos como os das chegadas do ônibus, em uma narrativa que sabe privilegiar pequenos momentos, mas sabe concentrar a maior parte da projeção em cenas como a no aniversário, que preocupam-se mais com uma atenção a seus personagens e a expressão deles diante do mundo, e as formas de resistência ali praticadas para existir e se sentir pertencente ao país que residem. Às vezes essa atitude é mais política que qualquer dado econômico.

FacebookTwitter

O NÓ DO DIABO (2017) – Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abe, Jhesus Tribuzi

por Gabriel Papaléo

da57dd5d963275ac40979ba722e27f1b_15076074178505_1850787437


As maldições historicas das terras brasileiras vem acertar as contas fisicamente com os opressores. Toda essa herança que o solo do país carrega pela violência na qual foi fundado e mantido vem através de uma interessante ressignificação mitológica sobre as lendas que são tradicionalmente orais e literárias no país, uma ideia de apropriação de gênero para comentar uma resistência cultural através da fantasia.

A forma que o segundo curta, dirigido por Gabriel Martins, se destaca vem muito pela disposição de marcar os rituais e a estrutura do terror e inseri-lo num contexto de pavor emocional, de lastro na personagem vivida pela sempre ótima Clebia Sousa, e cuja disposição para o gênero em linguagem não se contém apenas em emular zooms e utilizar o gore pontualmente. É um exemplo das possibilidades que o filme abre mas não concretiza, um ideal de antologia curiosa por ter uma unidade muito clara, e que busca uma atualização do gênero no Brasil como resistência do oprimido de forma similar ao recente As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra.

O flerte com diversos subgêneros do suspense e horror (o filme de cerco, o filme de possessão, o horror de corpo, o medo e delírio no deserto) demarca essa disposição de combate através do retrato de uma realista aumentada fantasiosa justamente para tentar denunciar a violência contra oprimidos ou devolver justiça às tensões raciais.

Essa intenção se perde muito por conta da direção dos outros quatro curtas, focados em estruturas consagradas e se bastando nisso. Por mais que a unidade da antologia chame a atenção, mostrando um trabalho de contextualização historica e espacial em um formato que tradicionalmente não se preocupa demais com isso, existe em O Nó do Diabo um visível interesse maior nas consequências e representações da narrativa que na estrutura e processo dos gêneros nos quais opera. O quarto curta é o que melhor exemplifica essa tendência: o sequestro do acid western para criar um conto de loucura no deserto aliando a uma consciência de classe para expor o abismo de tratamento étnico no Brasil é uma iniciativa com potencial, mas se sabota no momento que o filme exige atmosfera e um visual que dê conta dessa jornada psicológica sem apelar para o mito das palavras. O sertão nunca é ameaçador porque a câmera não o trata como tal, por mais que o texto diga que é. Sobram apenas os simbolismos imagéticos, esses aos montes, com o círculo do flare comentando o eterno retorno das ações, a caveira da morte, a água 

A solução novamente se apresenta no curta de Martins: o cuidado no qual os instrumentos de tortura são filmados dá uma dimensão palpável para toda aquela ameaça, mas são apenas nesses momentos que o filme torna-se um interessante ensaio sobre a mitologia vingando o racismo do Brasil, e não o exercício de gênero burocrático que está em tela.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

LEMBRO MAIS DOS CORVOS (2017) – Gustavo Vinagre

Por Pedro Tavares

c305db777e7cd2ba29523c57654fecd4_15139046921939_1613108729


O espaço da sala de Júlia, a personagem
de Lembro Mais dos Corvos, denota todo sentido do filme: Júlia está sempre pressionada em algum canto do cômodo. Uma forma de defesa que é logo interrompida por Gustavo Vinagre, pois sua câmera lutará por toda duração para coloca-la como centro, como protagonista, sempre em close. Há mais um sentido nesta batalha imagética: a grande brincadeira de questionar a veracidade de tudo que é visto.

Nesta duplicidade, é Júlia quem se destaca como grande personagem. O pilar necessário para que este exercício se sustente. A sala, uma zona mística para que Júlia exponha sua vida – um grande mosaico sobre intolerância e amor – na gangorra entre distopia e um controle de alegorias como o escape necessário para que o filme não seja um grande panfleto, remete à sala de aulas que Eduardo Coutinho investigou a vida de alunos de escolas púbicas do Rio de Janeiro em Últimas Conversas. Mas se no filme de Coutinho a insegurança e questionamentos sobre o que o público quer ou não ver e ouvir estava na direção, em Lembro Mais dos Corvos este peso está em Júlia.

Ainda que tudo cerque a função de humanizar sua personagem, isso não significa que o filme esteja engessado ao processo.  Júlia, uma grande atriz, com palavras, modifica o ecossistema do plano, como se sua sala fosse um grande chroma key e existisse a possibilidade de levar, pelas mãos, o público a lugares distantes. Novamente Coutinho vem à mente, pois em seu último filme, desejava entrevistar crianças em busca da pureza e da completa verdade e em Lembro Mais dos Corvos parece que este desejo poderia se realizar com um adulto – ainda que no cinema tudo esteja em cheque: o próprio dispositivo, o corte, a claquete, as roupas, bebidas e claro, as palavras.

Centralizar Júlia vai além da demanda dramática e de toda mensagem embutida em seus depoimentos. A insônia da personagem, tal qual o filme, é mais um obstáculo a se passar. Em extremos como estes citados, o espectro de uma parabólica sobre o macro, àquele que Júlia observa de longe, com uma câmera, com binóculos ou através de suas reconstituições em filmes, é o que interessa a Vinagre. Colocar Júlia da mesma grandeza que o mundo.


Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

BAIXO CENTRO (2018) – Ewerton Belico, Samuel Marotta

Por Pedro Tavares

635c8acf9145218ab19067f824824266_15093040982347_1334025808


Como forma de registro da aura do centro de Belo Horizonte, Ewerton Belico e Samuel Marotta fizeram de
Baixo Centro dois filmes distintos; há uma capa de ficção científica – na forma de registro de ruas, vielas, passarelas, passagens e na atmosfera que a cidade é composta. Há também um filme slacker que se aproxima muito do cinema de Pedro Costa, em principal aos filmes do início de carreira do diretor português.

Esse slacker é, de longe, mais interessante que a sugestão de uma ficção científica, de um mundo apocalíptico e abandonado. Quando Belico e Marotta investigam seus personagens através de citações e articulações verbais – ou encontros para se recitar um estado de espírito, Baixo Centro é um filme gigante. Em contraponto a dupla sente a necessidade de um registro soturno, algo próximo à sensação de ter a câmera-fantasma numa cidade fantasma. Entre altos e baixos dessas apostas, Baixo Centro é um filme de estruturas sólidas e pouco sofre narrativamente com estas mudanças.

São transições radicais, mas que entre si traçam certa identificação com o desejo de declarar diversos sentimentos em relação a Belo Horizonte. O teatro formal que produz as vidas sem rumo e de poucos desejos de ação reforçam a densidade de um ensejo político e como ele está numa bifurcação muito interessante, mais interessado em seguir o caminho do filme e não de seguir uma necessidade maior que muitos filmes contemporâneos têm feito.

De certa maneira, Belico e Marotta colocam em prática a máxima de Farocki, transformando velhas imagens com um novo sentido. O filme das vielas é um teatro, o urbano, a ficção científica, e, entre eles, uma grande concepção de discurso político e como isso guia as ruas de Belo Horizonte diariamente como palco da sobrevivência e de manifestações: Belo Horizonte que é destinatária de uma grande carta de amor.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

DIAS VAZIOS (2018) – Robney Bruno Almeida

por Pedro Tavares

670375c093f6eeb8bcfe4bba701e69c7_15093850564128_1588321893

 

Dias Vazios, à priori, é um filme de referências. À medida que o filme se desenvolve, surpreende como Robney Bruno de Almeida suspende o arco dramático para que essas referências estejam sempre inerentes ao que se vê e, a partir disso, construir o conceito básico do filme: a tragédia adolescente dos anos 90 e 00.

Como pilares narrativos, embaraçados em cada quadro estão a morte de Kurt Cobain, a chacina de Columbine e a HQ A Morte de Super-Homem, lançada nos idos dos anos 90.  No campo, o encontro que fundamenta o conto comum da juventude entediada em ambiente inóspito, reféns do tempo e da religião refletem desejos altamente arriscados. Dividido em três atos, o filme usa com clareza cada um desses pilares como uma espécie de confronto à possibilidade de construir uma vida neste ambiente. Ora de caráter ilustrativo, ora transformado em verbo e também como ação concreta, Kurt, Columbine e o Super-Homem aqui vão além de suas representações na cultura pop, respectivamente.

Nesta engenharia de encadeamentos, Dias Vazios em muitos momentos deixa de ser intuitivo, uma obra que sugere os espaços para os gritos de socorro, mas tende a ser burocrático como uma cinebiografia, pelo desejo da materialidade em uma história sobrenatural. De tentar eliminar toda força iconoclasta construída para se tornar um filme de desejos frontais, diretos à imagem como instrumento básico – a arma que é apontada, a página virada, os discos e cruzes. É um filme que não sugere a extensão desse círculo, da inospitalidade e da autodestruição como meio de fuga – para Robney interessa o uso do tempo e da angústia como suporte, apenas.

Os entornos de Dias Vazios não seguem o conceito de imortalidade. A ideia de eternidade deste sentimento é abortada. O ciclo acabará, pois a cidade também chegará ao fim, por mais que se reze. Portanto, ressiginificar os gestos também não é uma opção para o olhar como uma contradição à proposta principal. Os códigos do filme são moderados tal como sua mise en scène, para, nos minutos finais, novamente, encontrar um caminho estreito e a declaração de um fracasso iminente para seus personagens, mas não para o filme.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

ARA PYAU – A PRIMAVERA GUARANI (2018) – Carlos Eduardo Magalhães

Por Pedro Tavares

1e44e66aa18898a50eb40e103652fdfd_15089762609432_343667818


Nos primeiros minutos de
Ara Pyau – Primavera Guarani logo é confirmada a tendência de distanciamento à possível comparação aos seus filmes-irmãos, ao menos de tema. O recente Martírio (Vincent Carelli, 2016), a dobradinha de Andrea Tonacci Conversas no Maranhão (1977) e Serras da Desordem (2006) e Taego Awã (Marcela e Henrique Borela, 2016). Surpreende que a estrutura seja o principal elo com a mensagem de resistência do filme. As primeiras imagens, enganosamente de um cotidiano feliz, formam uma mera apresentação.

Invocar um épico, um clima de batalha é o que Ara Pyau – Primavera Guarani faz. O filme apresenta seus personagens, motivações, preparação e enfim, a tão aguardada batalha contra o sistema. Manter o território e consequentemente suas tradições e a dignidade estão na segunda camada que o diretor Carlos Eduardo Magalhães constrói. Portanto, o objetivo, está em outro plano; interessa mais ao diretor o processo. Captar o que está entre atos ou sugerir a importância delas para passos maiores. Um espectro é construído a partir disto, longe de talking heads, estatísticas e imagens de arquivo – quando usa é em forma avançada, como o áudio de um jornal da Rede Globo para explicar, já próximo ao final do filme, sobre contra o que se protesta.

Essa tendência fica mais em evidencia quando o grande confronto está por vir: a trilha, os planos, os cortes; Ara Pyau – Primavera Guarani não é mais um documento sobre a opressão do governo paulistano e sim sobre soldados em prol de um objetivo. A guerra é verbal e veloz, uma espécie de contraponto a tudo que o filme se propõe. Quando existem ações, elas estão em função da estética e não do peso que elas trazem num contexto histórico. É o anticlímax que não esmaece o filme, mas que de certa forma diminui toda grandiosidade que Carlos Eduardo Magalhães procura. Ainda que existam outras ideias acerca desta aposta – a principal delas de colocar este problema como uma situação corriqueira para os índios -, fica uma lacuna enquanto a câmera se distância dos índios e das autoridades.

Vale o sentido antropológico que Ara Pyau – Primavera Guarani prega mais nas pequenas ações que nas palavras. E o filme constrói essas gangorras de opções diversas vezes, como se fosse obrigatoriedade cimentar as imagens pelo verbo – exibe um ritual e pouco tempo depois sacramenta a fé dos índios pelas profecias de um futuro melhor, por exemplo. Junto ao falso sentido épico, o filme se faz pendular. Que nas sugestões funciona melhor que nas afirmações.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter