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Festival de Brasília: Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018)

inferninho

Brasil em plano fixo

Por Pedro Tavares

Em A 15a Pedra, conversa entre Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa filmada por Rita Azevedo Gomes, o diretor de Aniki Bóbó fala a respeito do plano estático como a objetividade do cinema. Para não filmar de todos os ângulos possíveis, a câmera fixa sempre será a melhor opção para amalgamar um sentido concreto à sequência. Esta é uma escolha prevalecente no cinema de Guto Parente após a trinca de longas-metragens em parceria com os irmãos Pretti. Em parceria com Pedro Diógenes, com quem dirigiu o essencial Doce Amianto, Guto Parente reconfigura os signos de Amianto para um desenho mais melancólico do microcosmo explorado em Inferninho.

A ideia do inferninho como um cabaré de quinta categoria espelha nos costumes e trejeitos brasileiros do dia-a-dia e resume a noção de uma sitcom – uma família desjeitosa, uma locação chave, mudanças de rumo a partir da chegada de personagens estrangeiros, etc. Guto e Pedro transfiguram este suporte para um drama de sutilezas que remete a Fassbinder em diversos momentos. Entre o escracho e o arthouse, Inferninho é um compendio para a empatia; através de situações que emulam signos comuns aos brasileiros – a expatriação, extorsão, dívidas, etc. – Guto e Pedro jogam seu filme na bifurcação da comédia ou do drama sempre em ampliação. Há a básica incumbência de contar um conto, mas o exercício se resume à árdua tarefa de trazer o filme para si; em momentos em que o chroma key é a chave para a comunicação (como Brisseau, já lembrado por Guto em A Misteriosa Morte de Pérola) percebe-se as reais intenções de Guto e Pedro. O rir para não chorar, a compreensão de uma melancolia entranhada na novela do dia-a-dia.

Este raciocínio se recebe em pés de antagonismo: Inferninho para e vê um monólogo (é monólogo imposto pela câmera, pois se trata realmente de uma conversa entre dois personagens). Um expurgo carregado de emoção que transparece de vez as contradições do macro e não do micro que está na tela. A tristeza em quem esbanja alegria, a ostentação de quem não tem como pagar as contas e, de forma mais direta, o filme de arte que ninguém entende. Eis o Brasil no plano fixo. O objetivo, como diz Manoel de Oliveira, é amalgamar; se muito exploraram a cultura popular como artificio narrativo, este filme é um contrapeso necessário ao narrar o país.

Nesta sutileza que Fassbinder é invocado, o de Fox and His Friends, no lamento e na declaração de amor concomitantes que Guto e Pedro rebatem na tecla de Doce Amianto, filme muito mais direto sobre sua tristeza. Em Inferninho há na empatia uma porção de esperança e no clamor pela segunda vida, o luto. Da certeza que não haverá outra chance, o escárnio sempre será uma saída viável.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Bixa Travesty (Claudia Priscilla e Kiko Goifman, 2018)

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Entre quatro paredes

Por Pedro Tavares

Linn da Quebrada é uma grande personagem. Sempre disposta à performance para o interno e ao confronto para o externo. Bixa Travesty está sempre na dualidade do espaço que Linn preenche, sempre em microcosmos, com a impressão que Claudia Priscilla e Kiko Goifman se interessam mais pelo mito do que pela sua diluição na rotina. Portanto, o que será visto neste processo é Linn entre quatro paredes, protegida, para erguer esta persona. Nestes pequenos espaços, seja em casa, na casa de shows, no salão de beleza, Linn destila sua frustração com o que há no externo, mas nunca o veremos. Talvez por uma questão didática, pois é sabido o que está fora destas paredes, ou por opção de fundamentar o discurso.

Pela renúncia do encontro entre Linn e o mundo, o filme controla seu norte como uma espécie de registro confessional em diversas formalidades. Há uma brincadeira explícita com essas possibilidades, com Linn sendo apresentadora de um programa de rádio imaginário. Da troca com a mãe e amigos, a protagonista se posta sempre no limite da confissão, com o orgulho devido de quem foi e quem é. Existem motivos para Linn estar rodeada e Claudia e Kiko tem a sensibilidade para chegar até eles. A resposta, como era de se esperar, chega com mais afirmações de quem está além das demarcações impostas pela sociedade.

A paz, contudo, está em pequenos gestos e objetos – que para Linn, a exemplo da luva de Ney Matogrosso dos tempos de Secos & Molhados, tem valor inestimável. São pequenas oferendas que Linn oferece ao filme como um proto-conflito unicamente sobre si, justamente quando a protagonista, segundo a própria, perde os poderes de consolidação. Pois a suposição de um filme que inclina-se sobre o externo pela sugestão intrínseca é falha. Ele é tão incorporado em Linn que ela se torna um monumento que tampa a vista para o que é extrínseco.

Medir seu impacto através do que está lá fora, portanto, é uma tarefa custosa já que há apenas uma via: de afirmação e superação. Notar a relevância de Linn como faísca para uma possível – e necessária – revolução, como catapulta para uma postura geral, é significativo; Bixa Travesty, logo, serviria como prólogo de algo maior, de Linn tomando o mundo para si e o enfrentando com a mesma prática vista no palco. Por enquanto, é um exercício de imaginação.

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Festival de Brasília: Os Sonâmbulos (Tiago Mata Machado, 2018)

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Todos estão dormindo

Por Pedro Tavares

O cinema é um fenômeno idealista. A ideia que os homens fizeram dele já estava armada em seu cérebro, como no céu platônico, e o que impressiona, acima de tudo, é a resistência tenaz à matéria da ideia, mais do que as sugestões da técnica à imaginação do pesquisador.

(André Bazin em O Mito do Cinema Total, 1946)

Algumas informações são importantes para a compreensão mais categórica de Os Sonâmbulos, e a principal dela é que é um filme interpelado pelas mudanças no cenário político brasileiro principalmente entre os anos de 2013 e 2016. Portanto é um filme despudorado quanto às mudanças de abordagem, ainda que nunca se perca o senso de unidade, justamente por ser um filme de impavidez.

É curioso que sua pauta seja exatamente o risco quando ele é verbalizado. Das ações às reações, das analogias visuais e de um mundo performático que reverbera Serge Bard e, claro, Godard. Notória é a capacidade de síntese do filme quando justamente ele se debruça sobre retóricas que necessitam de prolongação para apuração de seus signos. Conforme os conjuntos de códigos são cada vez mais claros na superfície da imagem, o que resta desse governo arriscado? Tiago Mata Machado não responde e tampouco desce a guarda, da síntese ao simples desempenho, Os Sonâmbulos é imutável.

Se há o que podemos chamar de “desvio”, é quando o filme coloca seus andarilhos-militantes em cheque – o rendimento, em duplo sentido, a favor de interesses próprios. É o mais próximo que podemos de chamar de palpável no filme que sempre está em estado de suspensão, como uma espécie de catarse transcendente sobre o mais pragmático dos assuntos. É política o que está nas ruas e dentro dos apartamentos. A chama que queima lá fora pode queimar dentro do quarto. Se o alcance dos efeitos é incalculável, Os Sonâmbulos se apodera da aparência, do ilusionismo que leva à consciência de uma mobilização, mesmo que esta seja parcial. É o caso da inversão dos fins a favor de um discurso, mesmo que seu maior suporte, a realidade, não esteja em congruência e que a reconciliação é dispensável.

Ao abortar a consciência realista como forma avessa de chegar ao humanismo, o que Tiago Mata Machado procura, ao menos nessa primeira visão do filme, é o ajuste intelectual. Antes de ações profundas, é o momento de alinhar juízos e traçar acordos – mais um espaço para a dicotomia do pensamento político – e a reconciliação geral com o senso político, como o motor necessário para passos maiores e atrair para o real toda utopia vista em tela.

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Festival de Brasília: Ilha (Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2018)

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Parabólica

Por Pedro Tavares

O primeiro encontro com Ilha é assustador. Trata-se de uma cena dada ao dispositivo, com metalinguagem arriscada e mise-en-scène frouxa. Quando há o corte para a segunda sequência, já com a câmera fixa e uma distância considerável de seus protagonistas e com sarro da linguagem, é compreensível o risco que o filme tomou para si. E assim será até o seu fim. Ilha é uma parabólica muita arrojada sobre o cinema. E mais especificamente sobre o cinema baiano.

Se Café com Canela (2017), filme anterior de Glenda Nicácio e Ary Rosa partia do controle formal como comentário social, Ilha vai a outro extremo; vai de Glauber Rocha a Roberto Pires, de Edgard Navarro a Sergio Machado e Gardenberg, nomes do cinema baiano que em suas proporções se importaram com o social, a linguagem, mercado e o alcance dos filmes ao público. Como um falso thriller que também pode ser um uma falsa história de amor ou um exercício de como a superfície pode emular ideais tão profundos quando o risco é evidente, é uma operação louvável. Nada de novo se pensarmos nos movimentos que estiveram à margem no cinema brasileiro, em especial nos anos 60 e 70, porém, ainda uma dinâmica de empatia muito acertada.

E se Ilha é essencialmente um filme de riscos, entrega as perspectivas básicas ao espectador. Manipula até mesmo a opinião de quem o vê e como reagirá – estranheza ou completo gosto. Como reflexo geral, pensamentos acerca do mercado cinematográfico, da crítica à distribuição, dos festivais à produção de filmes. Como condensamento de tantas referências e caminhos, Ilha faz do acumulo o seu método de remoção de sensações muito maiores que questões sobre sua arte; Glenda Nicácio e Ary Rosa estão muito conscientes do que podem extrair e sabem até onde podem ir com essas sensações.

Partindo do pressuposto que há o diálogo direto com o cinema dos anos 60 e 70, o cunho social de Ilha é fortíssimo seguindo o preceito básico de reflexo da sociedade; de quem é o favorecido no mercado, sem nunca dar os nomes, mas é pelo contraste que os cita – pela cor, pela postura. Está entre o deboche e um sério discurso social na mesma medida que está entre a afirmação de um filme narrativo ou um pertinente manifesto. É o caso de se rever assim que chegar em cartaz pois é possível que camadas do filme tenham passado em branco com tantas informações e tópicos pertinentes a discutir em pouco mais de 90 minutos.

Ilha é uma experiência revigorante pelo discernimento que tem de seus riscos tão agudos, sem forjar discursos sob a cortina da acessibilidade e que na medida que soma informações (sequências) declara seu amor pelo princípio, que é o de fazer e assistir filmes.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Bloqueio (Victória Álvares e Quentin Delaroche, 2018)

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Por Pedro Tavares

O plano que abre Bloqueio, com a câmera na posição do carona de um carro chegando ao posto que hospeda parte de caminhoneiros em greve instiga a ideia de um documento observacional. Acompanhar uma fração da jornada de trabalhadores em ação extrema e extraordinária já seria o bastante pela urgência do ato e por ser um assunto ainda quente. A relevância do filme aumenta quando Victória Álvares e Quentin Delaroche encontram dicotomias entre filosofia e conduta neste nicho.

Nota-se que a postura dos diretores, refletida na câmera, é mudada radicalmente: ainda que as necessidades básicas para bom funcionamento da profissão sejam pautadas por eles, o que ganha destaque é como a falta de esperança leva muitos desses homens a soluções curiosas. A faixa que pede intervenção militar no meio de duas rodovias é o símbolo máximo – entre dois caminhos, um pedido. Muitos desses profissionais param seus discursos para adorar a Deus com cânticos e orações. Também não escondem o desejo de uma solução oriunda de um regime militar, mesmo com um tratamento frio e protocolar do exército quando os aborda. A filosofia rivaliza com a prática da greve e este é o norte de Bloqueio.

É importante lembrar do contexto histórico que embala o filme: se um caminhoneiro afirma que não há suporte de partidos ou sindicatos, busca a genuinidade do ato. É uma dinâmica anti-capital que coloca suas esperanças em instituições que em geral apoiam aqueles que boicotam as necessidades básicas destes trabalhadores. A incoerência leva a cenas muito curiosas como o debate entre uma professora mais interessada em postar suas razões no Facebook e um caminhoneiro que defende a ditadura. Ambos se interessam em apenas concordar ou discordar e pouco argumentam. A presença de tanques de guerra para selfies também é um momento ímpar do filme entre pedidos de melhorias de condições de trabalho para a classe.

Concomitantes, a luta pela concentração no que realmente importa – a greve – e a irresistível opção de levar costumes à ação mais básica mostram um perfil interessante do brasileiro de maneira geral; independente de onde esteja, a presença do pão e do circo é necessária. Reverbera aqui a história recente do Brasil como uma sombra. Concentrar-se em um só ato é inviável e remete a exemplos esdrúxulos como a dança de um grupo de manifestantes que pedia o impeachment de Dilma Rousseff ou a intrusão político-religiosa nas manifestações de 2013. A entronização de Lula e Bolsonaro (muito claras no filme) como supostas soluções também estão neste cardápio curioso de saídas.

Bloqueio é um invariável panorama social e comportamental iniciado em 2013 e que entre altos e baixos constrói uma consciência política mais aguda nos brasileiros. Segundo os caminhoneiros, é uma ação a parte e que em nada dialoga com qualquer outra manifestação, mas é evidente que suas fissuras exibem intenções que possibilitam a noção de um país dividido e de interesses distintos.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Excelentíssimos (Douglas Duarte, 2018)

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O Lamento

Por Pedro Tavares

Em abril de 2001, durante a 1ª Conferencial Internacional do Documentário, em conversa com alunos e professores sobre produção de documentários, o diretor, editor e autor Michael Rabiger disse: “(…) Vocês percebem que continuo a usar a palavra ‘dramático’? É por que acredito que todas as histórias – ficcionais ou documentais – envolvem um drama”. A afirmação de Rabiger cabe muito bem como cisão entre Excelentíssimos e seu filme-irmão, O Processo, de Maria Augusta Ramos. O filme de Maria é focado no transcurso enquanto registra um lado da história, aquele que invariavelmente responderá e se defenderá de acusações e que desemboca no impeachment de Dilma Rousseff. Já Excelentíssimos, dirigido por Douglas Duarte, é a construção dramática do mesmo lado observado por Maria Augusta Ramos enquanto constata o teatro da banda oposta.

Como a polarização é inevitável, Excelentíssimos não se priva de ir de uma banda a outra, ainda que seu foco seja na causa e efeito – ou ação e reação. Douglas usa de diversos artifícios formais e é bem sucedido em todos, e seu grande impacto está, como em seu filme-irmão, no caráter observacional. O picadeiro está pronto e os artistas em ação. O registro do que parece inconcebível – de cultos no senado às ameaças de morte e propaganda pessoal com auxílio de selfies são armas de operação política e também atuação do que se julga correto. Estas ações que fogem ao bom gosto reafirmam o que já é sabido: a alteração generalizada de interesses e como a corruptela está estabelecida no planalto e factoides serão eixos importantíssimos para cada jogada política.

Excelentíssimos obedece à cartilha do drama, com a construção da vilania, mesmo que espaçada. A julgar que a figura de Jair Bolsonaro se apresenta pela metade do filme e Aécio Neves é mais um fantasma que sócio daqueles que, segundo o filme, tramaram para a queda de Dilma Rousseff. Na medida em que o encadeamento de fatos é mostrado, o filme se encoraja em ser folclórico, afinal, as ações são mais agudas e os interesses mais explícitos, a exemplo da sessão de votação que sacramentou o afastamento da presidenta, no qual a montagem do filme é muito eficiente em exibir a “festa” da democracia. Com aspas, pois os interesses são políticos e não de justiça conforme afirmações vistas no filme.

A somar com O Processo, temos recortes da mesma cerimonia por vieses distintos e formalismos que se assemelham por boa parte do tempo. São recortes longos e árduos, porém muito necessários para a compreensão do estado em que vivemos. Logicamente ambos passarão por questões de ética a pensar que são filmes que podem, com a presença da câmera, modificar a noção do real até mesmo para aqueles que são filmados – a mudança de comportamento, palavras, etc. No caso de Excelentíssimos, Douglas Duarte tem o respaldo das imagens de arquivo na construção deste mosaico pessimista do Brasil. Sua câmera invade e justifica o porquê. E quando o faz, raramente tira alguma palavra de seus personagens; ela é mais uma ferramenta na divisão filmagem-montagem, no qual Douglas dá funções distintas a elas. Observação e investigação justificam o filme, mas chegam a uma única e aguda conclusão sobre o nosso futuro de trevas.

Visto no 51º Festival de Brasília

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Festival de Brasília: Elegia de Um Crime (Cristiano Burlan, 2018)

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Dê à câmera um filme

Por Pedro Tavares

Em certo momento de Elegia de Um Crime, Cristiano Burlan, diretor e protagonista na posição de investigador e emulador da câmera, diz que só consegue realizar filmes como forma de vingança. Aí está o ponto principal da trilogia do luto: como a realidade o serve melhor, portanto. Elegia de Um Crime encerra uma trinca que investiga as mortes de pai, irmão e mãe do diretor, respectivamente. É notável que a partir deste raciocínio o filme só tenha a ganhar na medida em que Burlan só tem a perder.

Elegia de Um Crime, portanto, é um thriller investigativo antes mesmo de um documentário sobre sua família. Apresenta seus personagens, rumina o crime e seus desdobramentos e vai atrás do desfecho. Nos primeiros planos de filme Burlan exibe a noção do macro: tenta, via telefone, iniciar a busca pelo assassino e é embarreirado pela burocracia. Quebra, portanto, o fluxo de uma narrativa de escusas a favor do ritmo e a conduz com a realidade. Involuntariamente, o diretor é incorporado a um enredo tipicamente brasileiro – a cultura da tragédia, nossa destreza para resolver interesses pessoais e principalmente como todos estamos entregues à insegurança. É uma forma expositiva de deslegitimar a ideia de filmes como vingança e se aproximar do ideal realista que o documentário propõe.

O compromisso de Burlan é com sua família e é dela que tira os momentos mais expressivos do filme, porém é inevitável que se construa um contraponto na análise do todo: para toda ternura e lamento que  Burlan registra com sua família, há um mundo nada receptivo além das grades. A invasão deste mundo para dentro do cômodo familiar se dá numa espécie de reconstituição que a câmera e seu emulador se recusam a completar. É o inevitável envolvimento do protagonista com sua história. Curiosamente, há um momento no qual é nítido o desconforto de Burlan para “atuar”, atestando a duplicidade que o filme carrega.

Elegia de Um Crime por mais que se recuse, faz da morte entre suas articulações o mote para um panorama da iniquidade que rege o país; Burlan é o iconoclasta de gêneros e o híbrido o símbolo de um antagonismo referente ao assunto. Quanto mais se busca em Elegia de Um Crime, menos se acha, pois sua mensagem está estipulada já nos primeiros quadros. Tampouco um thriller ou um documentário. O filme começa na utopia e se prolongará nela. Não se trata de um maneirismo, tampouco desobediência à procura de justificativa – é um reflexo comum a todos na busca pelo inalcançável, ou seja, pela justiça.

Visto no 51º Festival de Brasília

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Festival de Brasília: Los Silencios (Beatriz Seigner, 2018)

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Interpelar o presente

Por Pedro Tavares

Um filme quimérico para promessas dolosas. Los Silencios é despudorado sobre suas intenções diretas. Apropria-se do real como suporte principal de seu comentário, um lamento sobre a ausência em múltiplos pontos, especialmente o político. Não se trata da facilidade de falar sobre escassez pela sensação, mas inclinar a câmera sobre ela.

Curiosamente corre o sério risco de associação ou mimetismo aos filmes recentes de Apichatpong Weerasethakul ou Carlos Reygadas por sua abordagem onírica, porém Los Silencios aborta a poesia concreta como forma de anotação social ou circuito da memória latina – ainda que aqui caiba a ressonância de um século de crises e exílio; os silêncios são presenças-chave, físicas, que ganham diferentes significados em suas aparições. Com esta lógica alegórica, o que o filme faz é interpelar o presente a partir do inconformismo. Um tipo não agudo, mais próximo da lamúria que da ação propriamente dita.

Portanto, partir desta dicotomia guarda a moral ao espectador: estar de costas para sua matéria-prima pode ser um ato político, ainda que a comunhão seja exterminada, a relação se dá no espaço entre eles. A superfície que permite abordagens múltiplas, ir de um polo a outro e não cumprir o que está configurado para filmes essencialmente políticos. Na mesma medida em que se está na utopia, também estaremos na mais desgarrada realidade. É um filme ciente de sua pré-existência em outras mãos. O reorganizar por Beatriz Seigner é pela fábula, mesmo que seja o conto que explicará o pesar para todo um povo – aqui representado por uma criança.

Ainda que os problemas de articulação sejam evidentes neste espaço provocativo e que por vezes esteja interessado mais na ambiguidade nítida deste mundo recriado – quando as interferências dão muito mais resultados -, Los Silencios reforça a ideia de mundo em decadência. Feito para seguirmos obedientemente suas associações e correlações como forma de recapitulação geral: a fábula da agonia e a visualização de desejos que invariavelmente serão frustrados, afinal, se cabe o século passado neste filme, logo estaremos diante de mais um desencanto.

Visto no 51º Festival de Brasília

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51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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Textos por Pedro Tavares

BIXA TRAVESTY (Claudia Priscilla e Kiko Goifman)

TEMPORADA (André Novais Oliveira)

INFERNINHO (Guto Parente e Pedro Diógenes)

OS SONÂMBULOS (Tiago Mata Machado)

ILHA (Glenda Nicácio e Ary Rosa)

OS JOVENS BAUMANN (Bruna Carvalho Almeida)

BLOQUEIO (Victória Alves e Quentin Delaroche)

CALYPSO (Rodrigo Lima e Lucas Parente)

O PEQUENO MAL (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune)

EXCELENTÍSSIMOS (Douglas Duarte)

LOS SILENCIOS (Beatriz Seigner)

ELEGIA DE UM CRIME (Cristiano Burlan)

DIAS VAZIOS (Robney Bruno Almeida)

LEMBRO MAIS DOS CORVOS (Gustavo Vinagre)

SOL ALEGRIA (Tavinho Teixeira) por Felipe Leal

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Festival de Brasília: Os Jovens Baumann (Bruna Carvalho Almeida, 2018)

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Exumação

Por Pedro Tavares

Os Jovens Baumann abre com uma sequência de momentos que o coloca entre os filmes-diário de viagem de João Pedro Rodrigues e a cartografia nostálgica de Andrea Tonacci em Já Visto, Jamais Visto. Este conjunto de cenas de jovens numa fazenda é interrompido por uma entidade maior que a câmera. A voz, a direção. É dela, a investigadora literal das imagens que afirma a condição real desses jovens.

Parte-se deste ideal a outro: se estes jovens foram anunciados como mortos já no início do filme, o outro ideal é a fantasmagoria do dispositivo no qual são filmados. A câmera VHS, referência máxima das décadas de 80/90 aqui sinaliza a aura que se registra. O horror é sugestivo. O cotidiano de jovens ricos na fazenda da família a aproveitar as férias nada mais é que a exumação de seus corpos – fantasmas no registro do tempo. É o diálogo direto do dispositivo ao espectador, portanto.

A Bruna Carvalho Almeida cabe montar estas imagens supostamente aleatórias, como se retiradas de um saco de fitas embolorados, e montar a lápide de cada um desses jovens. Não há tempo para qualquer identificação maior com esses personagens – o que interessa mesmo ao filme é o seu tempo: a simulação do intocável, ou seja, do passado. A nostalgia, no caso, é um sentimento e também uma manifestação. São corpos a vagar em uma dimensão enquanto a câmera registra outra: a vida. Movimentos, vozes, gargalhadas. Tudo aqui está empilhado em forma de imagem, pronta para enterrá-los novamente.

Exumar esses corpos em forma que os aproxime da realidade – ou da existência – coloca Os Jovens Baumann antes de tudo como um filme sobre o lugar que se filma: a ampla fazenda é um local que é fértil não só para o plantio de café. São pistas muito singelas, boa parte delas em forma de diálogo, que Bruna Carvalho Almeida aponta para onde o filme vai. E se a voz sempre foi o suporte principal, é ela que desvenda quando o epílogo se aproxima. Mais uma forma de transformar epitáfio em espectros de um dispositivo que delimita tão bem linguagem e tempo – novamente estamos diante dela, a nostalgia.

Visto no 51º Festival de Cinema de Brasília

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CineBH: Cocote (Nelson Carlo de Los Santos Arias, 2017)

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Que seja visto

 Por Felipe Leal

“El nombre poderoso de Jesús”

 

Em Cocote (2017), plano após plano, a acumulação de algo que pode vir a ser decisivo em demasia, só podendo a paixão explicá-lo: filmes podem ser revoluções, e se está diante de uma. Não chaves, ideias experimentadas, maquinários ou estampas de um processo revolucionário que seja, mas estruturas sintáticas e fechadas, concentradas e transbordando de um estilo (um modo de ser, raison d’être) cuja existência mesma, sua exibição, seu contato com os olhos, é capaz de fazer rachar o presente do que se sabia, do como havia sido feito previamente, das possibilidades de arriscar que ainda podemos estipular, empurrando mais as bordas… do real? Estamos diante da prova de que não foi suficiente nosso faro investigativo, endiabrado, para atravessar espaços com microscopias, como relances. É um choque. Pode-se sair da sala escura com um gosto inversamente proporcional ao fim do palato, daqueles tão minúsculos e fugidios que a fome para replicá-lo e estar à espreita por novos é quase uma possessão, uma necessidade. Aqueles cento e seis minutos podiam ser uma vida, na verdade contém algumas num estado limítrofe de selvageria: há um mundo, um em que o governo dos sujeitos é lançado às feras e os homens se veem atravessados por rasteiros poderes; diante deste mundo, simples, é preciso reagir.

Essa é talvez a história de Alberto, um homem enlaçado aos quatro membros por cavalos de desespero, vingança, passagem e poder. Seu pai morre pelas mãos de um homem influente e seus familiares – irmãs – causam-lhe problemas de incongruência religiosa, crença e querela pessoal. Estar no mundo sendo homem, melhor dizendo. Porque uma coisa é o seu luto, o de um homem convertido ao evangelismo, uma outra são os urros de libertação espiritual e os rituais afro-antilhanos que as irmãs e locais promovem em nome do morto. Mas este deve ser vingado para seguir em paz – ou eles, também, não terão paz. Não falta muito para que os cavalos se enfureçam e galopem. Ele será reduzido a nada? Alberto precisa reagir. Então o leitor deve saber duas coisas de antemão, a) que este texto é um bastante passional em relação a Cocote, ou ainda uma defesa, caso assim se prefira, e b) que por assim sê-lo, tomará algumas licenças formais para ser justo a tal sentimento, sendo a explicitação deste diálogo uma delas.

Uma teoria: o olho humano segue em cansaço de espírito (de humor?, de inspiração?) o número de imagens cumulativas com que entra em contato na trajetória de sua duração? Adultos são menos impressionáveis, menos inclinados à surpresa e ao desejo iconoclasta por conta da repetência das ações, do trabalho, dos anos? Porque, num gozo absoluto de coerência e articulação, todas as imagens de Cocote, dizemos todos os seus quadros, alguns inclusive em graus impossível e inconcebivelmente sublimes, só podem ser aproximadas não de planos, mas de proposições visuais com magnitudes de revirar um campo em 360º. Do primeiro serpentear, num preto e branco atemporal, de uma cobra de fumaça em 16mm, uma colisão fértil e quase ao rosto de uma palpabilidade neorrealista e boca de lixo, até suas últimas imagens, que são um retorno ao império de palmeiras, ladrilhos e sol à beira da apolínea piscina, um tableau de profundidade de campo tamanha que só pode remeter aos primeiros cinemas – juntas, em todas as linhas e corpos que relançam numa chicotada incendiária de mise-en-scène, estas imagens só podem ser comparadas, em recepção, em proposta de uma luz que vai incidir para logo depois nos devolver ao escuro, comparadas somente à intensificação dos nervos receptivos de um recém-nascido para quem tudo é a primeira vez. É assim que se o sente.

Mas este é definitivamente um mundo de adultos. Adultos são aqueles a quem é necessário comportar, carregar e lidar com significados estabelecidos; fazer. Sua idade anterior os cria, mais ou menos livre. Às crianças é reservado peculiar espaço em tela. Uma única cena pode resumi-lo bem e já ofertar a visão de algumas linhas da rachadura: Alberto parece cochilar em sua cama. A superfície da parede simples é de um azul simulado, quase claro. Uma conversa infiltra a janela e parece convergir no centro de suas sobrancelhas; talvez ele não durma. Palavras da morte do patriarca que correm para Cesarín, sobrinho, e se transformam em gritos e passos estridentes, e o garoto entra como um zumbido escuro ao quarto. A câmera, que do corpo de Alberto promovia um giro completo pelo recinto, pacienta em mostrar, des-cre-ver as imagens de santas, velas, contornar os tons de azul que se misturam à luz, e logo quando a porta é captada, entram em sincronia som de uma realidade externa e “realidade”, a do visível-filmado, o movimento do fora converge e à sombra veloz do garoto se segue Karina, irmã, armada de gritos e um chinelo. A criança é impossível. Mas, esperem, antes ainda que o círculo se feche, saem Alberto e Cesarín. Não somos permitidos a ver o último. O giro foi uma armadilha. É menos uma fobia que um jogo de encenação simultâneo a seu desdobrar narrativo. Numa outra cena com a outra irmã, à beira de um riacho, os infantes ressurgem, felizes, mas nunca devem perturbar aquilo que já está perturbado. Esta irmã também grita, ela contesta e gesticula, assim como a outra, a realidade, aquela em que o Deus dele não serve para nada, mas menos que isso: “seu Deus é o Diabo”. E(maiúscula divina)le não está no meu coração, eu que também sinto dor e não sou hipócrita como são seus servos, como o é você? Então Alberto reza, mas não sente, e ainda não fez nada.

Dizer que também é próprio das tomadas dessa cena a formação de um dispositivo interno que amplie, desafie ou suplemente a interação pressurizada do contado, é talvez assumir que todas as outras não encabeçam uma retomada de fôlego nesse vigor impetuoso de fazer ver sempre diferente. E aquele que vê elenca e se deixa atravessar por suas “favoritas” – não esqueçamos, filmes são sobretudo e ainda um quesito de gosto. Mas há duas coisas, dois eventos de ecceidade, que seu diretor filma de modo a tornar hiper-presentes, mais que próximos, um sendo uma entidade natural, o outro as manifestações físicas do espiritual na matéria. São: o mar e a dualidade do sincretismo religioso latino-americano. Para os teoristas do vermelho como sendo o pigmento que mais causa linhas de força e desejo com o olho, Nelson Carlo de Los Santos Arias faz do azul caribenho uma mémoire involontaire extensa: é ora imprensado por blocos de sombra e parece a própria água de um paraíso ainda não visto, ora traz consigo a fragilidade de um postal perdido, de um documento de outrora cujo reencontro anos depois aciona mais do que o corpo pode sustentar. É quase um documentário momentâneo sobre o azul: nós o queremos, queremos dele tudo saber, viver com algo que possa dele sobrar.

Atenção: um nome completo foi mencionado. Nelson Carlo de Los Santos Arias. Ele não pode ser esquecido, tampouco sua completude, a maneira que vem, sua apresentação. Dos fatos, é o menos perceptível (porque um dos menos controlados?, ele simplesmente é?) e o mais “atestável”. O leitor, se de olhos e ouvidos cicatrizados pela américa-latinidade de sua América Latina, conhece seus Silvas e Santos – metonimicamente falando, talvez tão bem quanto conhece o populismo e o sofrimento. Eles cruzam os territórios quase inteiros e levantam sua poeira de invisibilidade maculada. Sofrimento: é isto que o nome próprio comporta? Porque sabemos que alguns não chegam mesmo às equações e dados que nos dão rosto e pertença dissimulada. Não se está sendo político, político é o ato de cobrir a política dos vivos com uma história única, a sobre a qual estamos falando o tempo inteiro, de uma família destroçada pela miséria que é o desgoverno cataclísmico. E, no entanto, não há nada de “pobre” ali; no entanto, não é tão-somente a história de Alberto. Um nome como esse lançaria perspectivas, e um filme é para todos sem jamais, palavrão horrendo, “cosmetizar”. Esta câmera não o faria: o sofrimento não está adormecido nem implícito, está ali como a mãe está para Norman em Psicose: abertamente lá, o tempo inteiro lá, ainda que assuma outro corpo.

Um outro corpo e estamos de volta ao quadro, à célula que, de tanto se ler como parte de um todo, esquece-se que é também Citologia. A despeito do que é da ordem do dito em cada um deles – como se fosse possível separar verbo de imagem, mas faremos este esforço –, o que se faz com essas quatro arestas ainda não foi antevisto. Como inserir arestas num texto sem de seus interiores nada dizer, mesmo porque seria impossível fazê-lo sem beirar a convulsão literária? Alguns dirão que é tarefa de Sísifo, mas também greco-trágica, do crítico (ainda falamos do filme, porque aquele que filma é também aquele que arranja, um crítico). E a tarefa inicial do cineasta é transpor de sua tela “mental” uma ordem outra, a partir de uma primeira. Obras são transposições. Dizer “realidade” seria tolo, e não por todos os motivos teóricos possíveis: diz-se “ordem” porque são as ordens do corpo a que ele escolhe obedecer, e justo quando evitávamos os vocábulos da teoria eles ressurgem. Lateja algo de Titicut Follies (Wiseman, em 67), de um tronco observacional e resguardado do braço documental, naquele fluxo cênico que inevitavelmente saberemos ser de atores. É decerto passível de interminável discussão o recorte e a organicidade do mundo físico no documentário, mas, interceptado pela objetiva, há um novo e inumano elemento ao qual reagir, e o corpo muda, adapta, transforma. Chegamos a uma suposição mais rochosa: àquelas figuras que berram, xingam e entram em transes de expurgo, houve algo de pedido e algo de regência. Algo se afeta de certo modo e (coisas separadas, separáveis) convergiu para o quadro de ainda um outro.

Falávamos de algo que é “mais que próximo”, quando do mar e dos rituais. O que é isto que representa uma sobrecarga espacial? Só agora podemos elaborá-lo: poderá pagar pela boca aquele que considerar Cocote obra de ficção, porque ela não é nem isto nem de seu outro gênero, talvez no máximo um travestimento, e dos dois lados. Algo que, de tão familiar, não pode ser interpretado, que de tão episódico, da ordem dos feitos, não pode se servir assim de documentos compilados. Um embuste, uma farsa, uma atrocidade divina fazer com que uma das irmãs, “somente” para expressar que também sofre, e muito, numa das nove rezas, como um sol, magnetize para em torno de si alguém que lhe esfregue o peito violento, que lhe segure a mão, outras várias num coletivo ressoante, místico, entoando as palavras de dor e cura, que seu próprio corpo se levante, trema, delire, recue e recaia com brusquidão, quase um veículo, um intervalo de entrega em que ele lhe seja destacável. E como sabemos, como chegamos a afirmar isso? Ora, alguém que estava o tempo inteiro olhando por nós. Um aparato, quando bem manuseado, torna-se prótese, estiramento o órgão. O que o órgão vê? Vê diferente, numa logística do chão e do movimento para a qual se sujeita ao evento, o protagonismo peculiarmente se transfere para a ação, sendo que esta já é aquela que foi iniciada: o filho pródigo a casa torna. Machete em mãos, ele vai fazer algo. Sob o efeito do poderoso nome de Jesus ou não, porque a insistência maníaca do culto evangélico praticamente nos convenceu, queremos acreditar para que a força sintática daquela pastora também nos atravesse e converta, um só nome capaz de libertar e extrair desse mundo toda a imundície – Machete firme num plano que é puro tronco decidido e sanguinolência aos dedos, como se ele fosse o produto da alternância louca dos dois cultos que lhe atravessam o espírito (paz) com um demônio desconhecido, ele vai…

Seria possível que também insistamos nas obras enquanto majoritárias questões de linguagem porque algumas delas deixam-nos exatamente numa vacuidade dos sentidos, numa impossibilidade de sobre aquilo (que aconteceu) algo dizer? Daí que os métodos, passagens, operações tenham de ser traduzíveis, codificáveis, que, por exemplo, isso que chamamos de exercícios devam ser gramaticalmente quase causas e consequências, o olhar sobre as histórias meros aproveitamentos, reduções ou aditivos pautados em origens? De todo modo, tudo o que foi dito até agora pode, recomenda-se, ser “jogado fora”. Cocote, ao menos tentamos defender, é precisamente a experiência cálida e revolucionária de dispensar palavras. E este texto devia ter sido uma carta. Ainda assim, se um pouco crítico também puder ser: pode-se dizer sem exagero que muitas coisas não existiam antes de Cocote.

Alguns filmes surgem prontos e seu decurso só os prontifica mais; outros vêm a ser, sendo. Pintura se desenrolando como um pergaminho de uma sociedade com que nossa ciência ainda não tinha estabelecido contato. Cada ligamento, cada cisão alimenta um mistério e estala mesmo depois do primeiro segundo do novo. Ela não cria sem germinar. É uma droga, ansiar pelo diferente, pelo intenso, e simultaneamente se saber cego ao que virá, querendo que venha e rompa a cegueira – esta a das coisas que não tinham sido vistas, pensadas daquela forma. Poucos se moveram durante a projeção, a não ser para rir da irmã que “viraria homem, se fosse necessário”, porque Alberto, até então, não fez nada. Ninguém saiu. Se, aparentemente, foi necessário dizê-lo, a você que lê, das estatísticas de movimento dentro da sala, é porque, semelhante ao que aconteceu dentro dela, dentro daquele mundo, o corpo é o único lugar possível ao sentimento. Portanto, de volta à carta: querido leitor, se o diálogo das sombras vizinhas interessou, foi apenas para confirmar que, exatamente como quem escreve ou como a criança que cora à descoberta íntima e por outros imediatamente compartilhada e violada, também os outros estavam excitados e imóveis, e assim permaneceram até que os olhares se entrecruzassem. Mas uma luz já estava acesa.

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Festival de Brasília: Calypso (Rodrigo Lima, Lucas Parente, 2018)

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Deterioração

Por Pedro Tavares

No campo de análise de uma situação política (não em total pureza), é necessária alguma distância. Em Calypso, filme de Rodrigo Lima e Lucas Parente, essa distancia é física. O Rio de Janeiro, à distância, em decomposição, é campo para diversas reflexões sobre a história recente do estado e a perda de identidade. Nos limites justos do filme – não só por seus 60 minutos, mas no espaço que filma e nas poucas evidencias de abordagem, há um campo vasto de alusões políticas e existenciais.

Curiosamente, há diálogo indireto com filmes recentes de dois integrantes da equipe do filme: A Origem do Mundo de Moa Batsow e Garoto de Júlio Bressane. Os três filmes unem performances e matéria como campo ideal para discorrer sobre um mundo em crise, cada um a seu modo, evidentemente. No caso de Calypso, a língua que não é mais a nossa, os elementos como terra, fogo e ar, as idas e vindas dos aviões que se aproximam da Baía de Guanabara e principalmente as imagens de arquivo cimentam um estado de perplexidade, sobre não mais reconhecer o lugar em que se vive.

Em primeira visita, Calypso parece uma amplificação do sentido de O Espelho, primeiro longa de Rodrigo Lima: um lugar, diversos sentidos. Aqui o caos não é crescente e já instaurado no lugar filmado. Seu tratamento literário dá mais espaço à vitalidade misteriosa freudiana da imagem viva através da montagem e da manifestação. São traços alusivos aos fantasmas que nunca seguirão raciocínios lineares como um reflexo direto ao caos da metrópole do outro lado da baía. Um raciocínio que distribui força às alegorias de modo justo – dos corpos à natureza, todos terão o mesmo valor e impacto.

De aura urgente, Calypso pode ter a estirpe de um filme instigante, mas seus métodos são naturais ao gênero vigente. Cabe mais o diálogo de uma realidade sufocante que uma provocação estética, já que nunca será possível questionar o que as imagens realmente querem, pois a imagem seguinte dará as respostas de maneira palatável. É uma forma de articulação considerável, consciente, que dispensa o fetichismo da beleza da imagem – o último plano do filme deixa claro como a contemplação nesse sentido estará em segundo lugar – para entronizar a mensagem e não o meio.

A possibilidade de reverberação do momento em que vivemos no filme serve como um legado tão pertinente quanto qualquer aventura estritamente narrativa e/ou estética. Juntá-las em sua não integralidade e coloca-las em equilíbrio – mesmo que seja como via de acesso para um raciocínio simples: o exílio é a solução. Ache o seu exílio.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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CineBH: Mata Negra (Rodrigo Aragão, 2018)

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Mad Max: “Black” Forest?

Por Felipe Leal

Nota: o texto pode conter spoilers sobre a trama.

Muito se fala de uma safra do horror em nosso cinema, um temporal de um dos gêneros dos mais codificados e de cujos códigos nos apropriamos com particularidades ainda não mensuráveis. Há estudos de caso em restaurantes microcósmicos e com uma heterogeneidade de variáveis que fariam Buñuel estranhar, lobisomens sob luas pálidas e fabulares na metrópole e que cintilam debaixo daquele perolado gigantesco. Beleza e breguice dançam em trocas expressivas. E os espécimes vêm, eles continuam mascando a goma de nossa espiritualidade extensa; nessa historiografia ainda verdejante, nem mesmo o Diabo, literalmente o demo, o capiroto, ficaria ausente. Ele tem chifres e ruge, nasce de um caderno rabiscado de esferográfica. Para nossa surpresa, é claro, como todo texto puxa seu alvo até as bordas, e todo alvo de um texto deve conter algum (sub)texto-limite, um algo para tornar problema, o problema foi longe demais, mas tão demais que os advérbios de nossa língua não podem contê-lo. Dos males, o tinhoso só atinge o malefício de um cacarejo: Mata Negra (2018) é o conto assustador da prolífica impossibilidade de impor limites ao místico. É mais do que qualquer um possa encontrar em seções bibliotecárias. É tão meticuloso em sua carnificina que só precisa apelar ao susto uma única vez, e portanto um susto ele mesmo: qual a espinha de seu horror?, melhor perguntado, porque ele não para de ser horroroso, no sentido mais atuante do termo.

Há uma garota, um amor, por mais relampejante que seja, e uma série mortífera, e poderíamos pular suas pontuações inicias, se essa vila d’um lugar qualquer (os arredores de um horror sempre lhe são mais que preciosos) não fosse um laboratório apressado em que todo gotejar em solução tem o efeito desejado. Nada respira. Tudo morre, e deve fazê-lo logo, em nome da intensificação e andamento do desfecho. Suas criaturas são aparições, mas, diferente da maioria destas, ao menos das sobreviventes, em que o relato das visões, sedimentado e recontado, garante a pujança de sua imagem/imaginário, os zumbis, amaldiçoados e paladinos do Bem são, aqui, meros momentos, protocolos, protelações. Eles não são “parte de”, mas peões, explícitos utensílios que valem pela historiografia pobre que os dota de superfícies e resoluções à tensão mesma que os faz brotar. Os nomes de sua própria sacralidade, que nunca deixa de ser solo, pronunciados como uma criança que lembrará, do arcabouço mágico, o abracadabra e o coelho da cartola. Envolvida com magia negra por inocência e por desespero circunstanciais, a garota lê o livro de feitiços como se em suas páginas estivesse escrito com sangue um power point de palavras-chave da teosofia e mitologia universais: Cipriano!, Hécate!, Amon! (Chriss Angel chega a fazer falta), e os mortos viverão e os vivos estarão marcados daquelas palavras em diante.

Não é inteiramente um problema de mítica. É comum ao cinema genérico, a grande parte de todo ele, na verdade, que obstáculos atravessem jornadas. Não porque o herói precisa superar a si mesmo – é uma outra questão. Ao horror, este fato do heterológico que replica as situações em fantasmas de sua raiz será precioso. Talvez por inevitável interposição daquilo que é estranho, talvez por naturalidade adversativa do mundo, o bom narrador saberá o fazer. Quiçá até jogue junto, embora a este gênero seja quase certeiro que grande parte da turbulência se dê de maneira a surpreender seu herói. E de surpresas a garota tem mãos cheias, sua face é um quadro de bocas e sobrancelhas – isso quando o rosto não está insuportável de tanto sangue, o que acontece com, digamos, frequência excessiva. Devemos, enfim, ultrapassar os códigos, e bem o discutiríamos, mas Aragão é um gênio do fôlego. “Esfrega” o livro e repentinamente lhe saem mais três percalços. Será trabalho voluntarioso e hercúleo do espectador procurar e se acalentar com uma cena que não seja imediatamente seguida ou borrada, ainda nesta interioridade nuclear, por uma desgraça recaída. Literalmente, não há paz. O que devia ser uma significação pluralizada do plano inicial se ramifica tanto que não é preciso chegar à metade do filme para se encontrar perdido. Qual era o impulso primordial? O desatar de que sortilégio traria redenção àquela errância juvenil? “A terra castiga quem tem sentimentos”, diz o amado, sem saber que a tradução de seu ditado seria um desvario camaleônico.

Podemos perdoar a solenidade daquele que, por aparência inicial de um desenrolar mágico das costuras dos eventos, desejava ser fiel ao ar longinquamente familiar dos contos de fada – “Ah, minha fia…”, “Ah, painho…” multiplicados por mil: o mundo nasceu emperrado? –, podemos saltar a percepção estagnante de que a garota oscila entre tão corajosa bruxa e tão indefesa virgem. Podemos, até, vendar os olhos diante das caricaturas ressecadas do bom moço, do bandido, do evangélico, do casal infeliz de roça. Mas, “de repente”, um nervo subcutâneo escapa ao previsto, ao natural do corpo (fílmico). A pele inteira treme, a superfície mais palpável, a do decurso, do cena-após-cena, é estuprada por reviravoltas dignas de um único apelido: mágicas. De repente, aquele livro, dos fundos de uma mata sub-explorada, é o antiquíssimo grimório buscado por gerações de sedentos e gananciosos; aquele ovo, que serviu de jura amarrada numa cena de épicas proporções de inutilidade do obstacular, é tanto uma licença para lançar um galo ao ar e fazê-lo simplesmente interromper, gratuitamente, e jorrar mais sangue, sangue, sangue, quanto é o desenlace futuro de um monstro cuja única função é, também, produzir o cômico e sujar. Afiada direção de arte, esta que fez do filme cinquenta-variações-para-ensanguentar-corpos.

É comum aos filmes de horror que acabem por ser hilários pelo verniz esfregado de sua feitura? É uma liberdade ou um acontecimento “involuntário” e peculiar, quando tal acontece?  Um momento previsto e mais ou menos ensaiado ou um derrape? A questão, que parece irrelevante e propícia à cada qual que dela participa, ou seja, assiste, se torna uma de todos, ou seja, novamente de código, e geral porque à medida que cada intensificação desse feitiço inicial vem tanto afastar o desfecho quanto propor-lhe uma vereda infernal, também o espectador tem de lidar com o cesto quente lançado ao colo. Ele – o “assistinte” – é, particularmente no terror, misturado ao jogo de saberes e surpresas que a trama cospe.

E o que temos é (reitera-se o caráter “repentino” com que tudo irrompe), tão logo: um amante a ser ressuscitado, dois bandidos, um dos quais precisa de um certo despacho, um fazendeiro em encruzilhada biológico-matrimonial, uma cabeça (para quê, não se sabe mais, e não somos culpados), um saco de ouro, uma manada icônica e paupérrima de religiosos de alcance vocal adequado a uma centena de aleluias e obediência canil, zumbis, aliás vários deles, como árvores ilustrativas numa peça campestre, a própria morte, travada como um boneco, o Diabo ele mesmo, invocado num passe de palavras de automatismo característico de quem lê uma bula em meio a um acesso de raiva. E uma garota. No meio de tudo, a garota contra as forças do mal, que não são nada menos que cada passo dado. Não há instante de tranquilidade, pulmões, felicidade que não sirva de catapulta ao trágico – não que precisem existir, mas porque a ideia de Aragão de horror deve ser uma de distopia descendendo ininterruptamente.

E ela entra numa espiral tão possessa que o futuro inteiro a solapa. Era uma missão subterrânea da história falar de um encaminhamento distópico e selvagem do mundo, daquele mundo erigido de tantos, para não dizer exclusivamente, perigos e tormentas de quem brincou com fogo? Tornar uma protagonista um redutível ao zero e subserviente ao ideal de viagem. E nós reconhecemos aqueles personagens, eles são os rostos familiares dos sortudos sobreviventes (será?), e algo a mais, um bônus referencial inesperado. Este aditivo é o nome de um outro filme, título de duas palavras, e está incrustado naquela fenda desértica que um plano se distanciando vem revelar ser um castelo em meio ao fogo em meio ao fim do mundo em meio à desesperança. Rostos pintados, lanças antiquadas, vestimentas de pano e um linguajar típico do caçador cada-um-por-si. É Mad Max! E com licença para franquia renovada e breve. Não por muito tempo, claro, porque a virgem deve continuar escrava da trama, a trama que só faz ampliar seus círculos até que o futuro pareça, dos impossíveis, o menos preocupante.

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CineBH: Abaixo a Gravidade (Edgard Navarro, 2017)

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Dos autores e dos casos clínicos

Por Felipe Leal

Alguns filmes fedem a seus autores. Não se confunde um Haneke, uma Chytilová, um Linklater ou um Naruse, sejamos francos. É mais que uma marca; talvez uma questão persistente ou quem sabe um conjunto de signos totalizantes fora de nosso alcance, mas que invariavelmente se imprimem. Outros filmes, ainda, são quase que produtos de uma cissiparidade das moléculas do próprio autor: pode-se dizer que são quase ele, não fossem as diferenças de meio. Apesar da linguagem um tanto figurada, isto não é um exagero, e pelos mais variados motivos, que costumam variar da defesa ideológica ferrenha ao ensaio performativo de si, alguns indivíduos fazem da subjetividade que lhes é singular e de um fora que é a técnica mais propícia de si um poderoso dispositivo de descobertas vibráteis. Tampouco essa parcela de linguajar deve parecer abstrata: o que quer que exista na arte e que ainda não a fez se tornar toda um círculo cancerígeno de esferas ego-cêntricas separadas é o seu poder de ecoar num corpo (vibrar, desvelar), sendo a alquimia dos que “melhor” a “fazem” um enigmático estudo do si diante/para/a despeito/impreterivelmente do/o/ao outro.

Nosso caso, se mostrará, é infinitamente mais mesquinho. Um desses motivos para elencar o objeto em questão como essa colisão entre autor e seus espelhos-crias rugiu sem timidez à introdução de Abaixo a Gravidade (2018), a ocasião sendo a pré-estreia nacional do filme num pequeno palco de Belo Horizonte, ironicamente no interior do Cine Humberto Mauro, que se um dia já foi acusado de regurgitar preceitos morais sobre suas histórias, ao menos narrou diante dos deuses. Mas sobre essa anedota vivaz falaremos em breve.

Em princípio, nada surpreende ou se encrespa num relevo que agite o típico plano misto entre a dormência da câmara escura e a excitação iniciais. Já o vimos dezenas e dezenas de vezes, uma câmera rodopiar, sobreposições vistas de baixo se misturarem, vozes aludindo a um excesso prévio àquele devaneio, o personagem revira os olhos (deve olhar sempre para cima, segundo a tábula básica do transe) e, ao menos narrativamente, porque em estilística de tela nossa submotricidade responde bem, algo foi feito: se alguém aqui surta, isto que vemos deve ser um porvir. Há, então, uma queda, e é ela que acompanharemos. Curioso que exista uma outra anedota advinda do continente americano e que diz Pulp Fiction (1994) ter inaugurado o bloco inicial de uma obra como prelúdio-ruptura temporal entre futuro-presente. Mas se o assalto “any of you fucking pricks move, and I’ll execute every mother fucking last one of you”, seguido de Dick Dale and His Del-Tones, enquanto anedota, faz rir aqueles que assistem à crítica buscar origens e partidas aos eventos cinematográficos, comparado à engenhoca temporal de Edgard Navarro, segundo a qual apenas extraímos que o porvir é tosco e faz seguir um presente ainda mais incompreensível, é como colocar Federico Fellini e Miguel Falabella numa balança. Ninguém nunca ousaria supô-lo.

Everaldo Pontes, que nos seus mais de vinte e cinco títulos, não importando o grau de acompanhamento de todo o resto da obra, sempre foi uma força da natureza, torna-se aqui uma presença pura. Maravilhosamente xamânico, mas como que reduzido a um eco; uma carga reprodutora de iconicidade particular pela tensão de seu físico, mas que não deixa de produzir por outrem, em nome dele. As pistas já foram entregues, a anedota, ainda tolhida. Então, uma confusão se segue e permanece. Dividido num aparente binômio miserabilidade-epifania-sofrimento/abundância-egocentrismo-boa vida, e só “aparente” porque tudo de fato insiste em se embaralhar, Bené (Everaldo) é o asceta perfeito. É digno de destaque: ele mal precisaria abrir a boca para chafurdar num enunciado mais comercial que a bandeira de seu autor pode suportar, não fosse seu filme um certo atestado de um delírio preocupante. Em suas estantes, Osho, em sua mesa, cestos, paladar, ações, relações, tudo é melancias, leguminosas orgânicas, yoga, caridade. Mas eis que não, não basta que tudo já esteja explícito. Cai-se na própria armadilha, e com a boca arreganhada: os diálogos parecem impressos de uma pós-sessão de Reiki ou culto espírita ou evangélico – nunca se sabe bem, a suspeita é que ele de fato seja um comercial da Benetton –, ou melhor, um cartão-postal vivo de qualquer dessas manifestações espirituais. E por que não, se também a trilha sonora, uma vez compilada, bem seria o melhor tracklist da heterogeneidade brasileira para se importar ao exterior?

Quase a absoluta (do filme inteiro) plenitude de quase todas as cenas – veja bem, agora não do efeito de todo das cenas do filme, mas do interior completo, minutagem cronometrada, de cada uma destas cenas – é infestada de um arranjo musical desfilando como perfeito acompanhante do espírito da vez. Há uma embalagem clara e vital, e nos dois primeiros sentidos que a palavra pode suscitar. Se ele (sempre Bené, sempre Navarro, sempre Deus) faz um despacho, irrompem as vozes de mães-de-santo e a batucada (?) em volumes lancinantes e mixagens respiratórias, porque o falatório sagrado decorado também precisa de espaço sonoro; quando pratica técnicas asiáticas, os címbalos e cítaras tremulam até os interiores de igrejas (?). A qualquer momento um axé poderia ter rasgado o ar nas ladeiras de Salvador, e não teríamos nos surpreendido. Só que o mundo de Navarro é perfeito além disso, ele se lhe espelha numa precisão assombrosa, tanto em montagem quanto em cálculo teórico. Cortinas de um apartamento luxuoso ascendem e revelam uma imensa favela de camadas e contornos. É o apartamento de MYSELF, apelido de seu psicanalista, que por sinal fala conosco diversas vezes, “de saco cheio” e berrando improprérios (palavrões!!!) à câmera, um genioso ato de quarta parede e de irritação.. cênica? com o analisado.

MYSELF surge quase literalmente do nada, complemento desse mundo cristalino de todos os ricos que são necessariamente ególatras e dos pobres que são precisamente miseráveis, artistas inevitáveis e, claro, alvos do coração caridoso de Bené e da câmera “antropológica” de seu autor. O que une os polos desse mundo problematizado é, pasmem, o dinheiro, esse demônio que uma vez extraído do mundo nos pulverizaria de todas as moléstias (suma, McDonald’s!), mas também, pasmem, as calças e fraldas com um filete de excreção. Sim, por um fino subtexto de próstata e doença, a epifania encontra seu signo em derrières: os vovôs se sujaram. A este ponto de, digamos, projeção – perigoso não cair em duplos, logo quando eles seguem agora -, de uma narrativa que, a bem da verdade, espelha sua tese e personas de maneira simetricamente estruturada, e por isto inocente, a este ponto, se o espectador não engoliu uma porção estranha de incongruências e misturas e não introjetou para si que tudo que é dito precisa ser urgentemente mostrado, e vice-versa, ele certamente já supôs, e o fará ainda melhor diante da anedota um tanto dúplice que agora deve ser reproduzida do modo mais fiel, mesmo porque curto, ele já supôs, enfim, que Bené e todo o seu horizonte/eixo possível de ações e representações é um manifesto límpido e afetado do próprio Navarro. Não perdamos tempo, então, com o penoso maquinário chacoalhante que vem trazer qualquer manifestação dessas mesmas diversas religiões – são dignos de cosplayers de primeira exibição. Direto às provas.

Pedido a introduzir Abaixo a Gravidade defronte ao palco supracitado, ao qual compareceu expansivo e alegre juntamente com produtora executiva e montadora, o microfone em mãos mal consegue conter um peculiar êxtase aparentemente vindo dos fundos de seu ser. Só que estamos enganados, ele se diz artista, e também diz dos artistas (dele), que “captam a energia das estrelas”. Mais que isso, ele afirma, agora a si e de si mesmo: “(sou) cavalo dos Deuses, de Exu, de Oxóssi (aponta e ergue pano da camisa, ilustrativa do último)”. Descobrimos que o artista pode (decidir) ser muitas coisas. Os turbulentos ideários de artistas concebidos por Woody Allen ficariam escandalizados com tamanha expressão e expressividade. Não se surpreendam, ainda estamos falando estritamente do filme, só que o de fora. O microfone é passado à última mulher da equipe, tão responsável e autora quanto ele, mas o artista interrompe sua fala uma, duas, três vezes, em beijos, declarações. Há de ser um caso clínico, porque ele vem de assalto para dizer que vai chorar, não consegue não o dizer, “gentileza gera gentileza” estampados na camiseta de sua persona ego-trip, todos os slogans da obra, vociferados na calmaria de um “gratidão”, se entrechocam num feixe de verdadeira iluminação, aquela dos que assistem boquiabertos. Eureka! Deve ser de fato um mistério, o lugar de onde descende o emissário para nos irradiar. Deve ser assim tão típico do artista… Mas chorar por quem? Já não é mais complexo ter certezas. É, afinal, um espetáculo que se consiga incendiar tamanhos entusiasmos nessa usina de produção autorreflexa. Sintomas conjunturais?

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A Mulher dos Cachorros (Laura Citarella e Verónica Llinás, 2015)

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A vida do intervalo

Por Felipe Leal

Aviso: os dois últimos parágrafos do texto podem conter spoilers sobre a trama.

Breves palavras antes que se chegue à obra, que é A Mulher dos Cachorros (La mujer de los perros, 2015): “depois que uma história é contada”, comenta Anne Carson, poetisa/ensaísta canadense, “há alguns momentos de silêncio”. É uma reflexão, dizemos sem medo, sobre términos. O mesmo serve para o cinema: o que acontece quando um filme é contado? Ele termina. Seu prolongamento, talvez, não. A vida continua, decerto, e se o faz já manchada pelo suplementar, esse misto de reconhecimentos, despertares e desapontamentos, o cordão permitiu que algo fosse transmitido. Há, então, uma diferença só superficialmente simples entre antes e depois. Quão conscientes estamos nós e os fabricantes desse espaço chamado “durante”? Um mínimo!, se prontificariam em alertar muitos, como se o efeito de uma obra pudesse ser medido em quantidades. Teorias de espectatorialidade, especulação de malabares translúcidos que não param de se multiplicar nas mãos de quem deseja perguntar e se depara com intermináveis variáveis, as veredas de apreensão se bifurcam e bifurcam – e não chegamos a respostas. Afinal, não temos que. Carson, no entanto, propõe uma: [o que acontece quando uma história termina é que] “meus olhos estão às suas costas”.

O método é puro, simples em sua abertura ao complexo. Como a produtora, como suas ações, estamos diante “de uma maneira de tomar decisões e de viver”, palavras de Citarella. Três anos dispersos em finais de semana de filmagens. Os fabricantes: cinco mulheres, doze cachorros, um lema-protocolo lançado com doçura por uma das realizadoras, filha aos braços em comentário pré-sessão (ela não havia começado?!), posto que são duas no ferro da direção, também só superficialmente, e uma delas tomará a tela como a Mulher (aquela dos cães). Detenhamo-nos, então, sobre o título, ele já lança pares de olhos. A Mulher dos Cachorros. Ela pertence a eles? É uma identificação, um atrelamento, e, se sim, feito por quem? Eles lhe servem como complemento ou reflexo simbólico? Jamais. Ela está no meio deles ao ponto de devir-cadela? Nosso tatear aterrissa em preciosa mina. Porque o que temos com certeza é a passagem das estações para aquela que vive da terra, do “lixo” e contra a chuva; variações cromáticas de tamanha iridescência que o céu se destaca e parece composto em degraus de verdade; o decurso dos dias, que também podemos chamar de tempo, a foice e o cultivo que assolam a pele e o vivido, da cadela ao industrial… esse cotidiano é, enfim, um que se faz. Nada está dado, ainda que alguns se adiantem com impressionantes ferramentas.

Engana-se quem pensa estar diante de uma estilística puramente temporal, sendo tão subsequente quanto notória a apelidação “cinema de fluxo”. O arrastar é apenas um desdobramento, há dezenas de outros implodindo na tela, e o cansaço de alguns é mais ato-reflexo de um fora sistêmico do que de uma lógica interna. O cinema tem e não tem tudo a ver com a impaciência. Mas o tempo, se maior letra da equação, densifica-se em todos os corpos, precisa descer em respostas – tudo o que fazemos, ainda que engolindo certa futilidade feita transparente e pouco incômoda, não é contra ele? E em face da necessidade de respostas, que só a ponta da matéria vem confirmar serem mais ou menos automáticas, a Mulher é indubitavelmente um quase ininterrupto ponto de contato com os cães, sem no entanto deixar de ser humana, “bruta”. A perspectiva inicial, entre os cipós, troncos e galhos e a Mulher que caça, é a dos cachorros, e repentinamente, como se se entrelaçassem, também a do espírito. “Ele” assiste às suas costas de tempo sedimentado, “eles” farejam, a física motora ameaça ir à todas as direções ao mesmo tempo, há dezenas de possíveis fazeres face o objetivo, o desejo. Há uma verdade sobre estar á espreita: tudo pode acontecer, acontecendo.

Não comandamos cães. A domesticidade é, deles, apenas um aspecto. A selvageria, romantizada, não contempla um viver em eterno alerta. Por isso Citarella e Llinás não tratam de duplos. Nas zonas de contato, é o quesito das ações que batalha com o tempo. E como se encadeiam, há também um devir-cão se impregnando na montagem: em momento algum se sabe onde as ações iniciadas neste quadro vão culminar, nem muito menos o que se faz, porque o que se faz é composto. Não há respostas simples, mas, pior, porque essa incompletude desmontada e refeita cintila bem nas armadilhas, gambiarras e coletas, mas explode quanto aliada aos bichos: entre a morte enquanto acontecimento (morrendo, não “morrer”) e o lidar dos vivos, nesse intervalo astuciosamente trabalhado pela atriz e nos cachorros, não há jogo mais intricado que as fabricantes possam simular que não aquele das decisões quaisquer e aparências.

O cachorro abandonado morre, e nem Ela nem nós o sabemos ainda. Se suspeitamos, o deslize da lente ao lendário rosto da Mulher afasta tal acontecimento do centro. No último plano, o indiscernível volta a se instalar, só para que se possa rir de todo o desejo de ordem que é nossa civilização e que a Mulher escolhe estar à margem. Ela entende os médicos, divide da companhia de uma amiga(s), reconhece que rouba objetos, mas o mundo da mulher não é, não tem de ser, porque o cinema trata de possíveis, o das gorduras e ingestão de líquidos, o dos impostos, tampouco o do matrimônio. É algo muito além de uma questão moral. O último plano é um de infinito. Aquilo que pensávamos morto escolheu repousar. Talvez os cachorros o soubessem – nós não, não somos os “espectadores dos cachorros”. Uma possível tristeza, quer compartilhada com o vizinho ou não, se torna outra coisa. As mulheres criam uma situação-limite, o espectador se vê com uma resposta-assalto.

Mas ainda é preciso falar do rosto da Mulher (Verónica Llnás). Diversas vezes ele carrega uma interrogação cálida tão difícil de comportar quanto extasiada de partilhar. Queremos que dure. Em que ela pensa?, é também se perguntar por que os rostos de quase todos os homens pouco interessam, e por que se fez, se produziu, que o de quase todas as mulheres contivessem mistérios. Porque, de fato, contém? Já falamos de olhos antes. Mas estes guardam uma diferença, ela, também, montada, desfeita como os fios de um novelo cuja última repuxada revela o rosto não de uma ovelhinha, mas de um cão, e ele estira a língua. O par esverdeado da Mulher é todas as coisas que não compreendemos, mas que têm seu lugar. Ela não precisaria esboçar um semi-sorriso para criar tais linhas. Os olhos são anteriores à boca, e talvez aqueles signifiquem a placidez momentânea da não-ação. É nisso que ela difere dos cachorros. É também aí que, aos nossos [olhos], é a mais fiel e verdadeira das cadelas. Fiel ao mundo se fazendo, à redução do epitélio e da energia cinética ao gerúndio. Que este mesmo mundo possa tratá-la como aquém ou em paralelo com os cães é uma, aliás duas tristes  outras histórias.

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