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INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA

Em seu percurso histórico, a crítica de cinema constantemente se depara com filmes realizados em períodos próximos com proposições estéticas semelhantes ou convergentes, apesar das singularidades de cada realização. Como estratégia de mapeamento de certas configurações do cinema, novos termos são criados por críticos e/ou pesquisadores, sem a intenção de fundar algo programático – como apontar movimentos cinematográficos estabelecidos – e com o esforço de estabelecer conceitos ainda que à revelia dos cineastas.

Nos anos 2000, o termo “slow cinema” desponta como conceito recorrente em textos de críticos que se dedicaram a pensar determinado conjunto de filmes realizados na contemporaneidade. A nova edição da Multiplot! propõe uma reflexão sobre o “slow cinema”, desde apresentar como o termo se desenvolveu em um debate complexo entre críticos e pesquisadores até indicar de que modo o cinema contemporâneo reverbera tal designação.

Primeiras aproximações

Dentro da crítica de cinema, o conceito de “slow cinema” começa a ser configurado a partir do uso da noção de “slowness” (“lentidão”). Em 2003, o crítico francês Michel Ciment usa a expressão “cinema of slowness” (“cinema da lentidão”) para pensar filmes que se posicionam como contraponto ao modelo de curta duração dos planos do cinema recente hollywoodiano e da televisão. Em texto escrito para o 46º Festival Internacional de Cinema de São Francisco, Ciment argumenta: “Ao se tornarem impacientes com o bombardeamento de som e imagem em que eram submetidos como espectadores de TV e de cinema, alguns diretores reagiram com um cinema da lentidão, da contemplação, como se quisessem viver novamente a experiência sensorial de um momento revelado em sua autenticidade”*. Béla Tarr, Tsai Ming-liang, Abbas Kiarostami, Theo Angelopoulos, Nuri Bilge Ceylan e Sharunas Barthas são alguns dos cineastas citados por Ciment dentro desta designação do “cinema da lentidão”.

Em 2008, o pesquisador Matthew Flanagan se apropria da expressão de Ciment e desenvolve o uso teórico do termo no artigo “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. Ele aponta como características formais compartilhadas por alguns cineastas: “o emprego (muitas vezes, em extremo) de longos planos, modos descentrados e discretos de narrar e uma ênfase acentuada na quietude e no cotidiano”**. Flanagan considera que já não seria suficiente empregar a noção abstrata de “lentidão” para compreender o cinema feito por tais realizadores, mas reposicioná-los em um projeto formal que ele nomeia de “estética do slow”.

O conceito de “slow cinema” só irá ganhar popularidade entre críticos e cinéfilos anglo-saxões, a partir de 2010 com uma série de textos da revista britânica Sight & Sound, em especial o editorial escrito por Nick James que questionou o efeito político dos “slow films”. A partir daí, o debate se polariza entre críticos e pesquisadores de cinema: alguns celebram o “slow cinema”, enquanto outros rechaçam. Nos Estados Unidos, Steven Shaviro (2010) considerou o “slow cinema” como esteticamente retrógrado, enquanto Manohla Dargis e A. O. Scott (2011) se posicionaram em defesa do conceito em artigo no jornal New York Times.

Possíveis origens

Alguns pesquisadores (como o próprio Matthew Flanagan) situam a origem do slow cinema no cinema moderno do pós-guerra, procurando traçar uma genealogia que inclui filmografias tão distintas quanto as de Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson. Outros preferem restringir o slow cinema como fenômeno específico do cinema contemporâneo, em um contexto global e intercultural que busca resgatar por meio da estética fílmica uma temporalidade mais dilatada em contraposição ao tempo acelerado do capitalismo tardio.

Apesar do debate bastante controverso em torno do “slow cinema”, o conceito não se diluiu ou perdeu força. Ele passou a ser o foco de pesquisas acadêmicas, como as teses de doutorado de Matthew Flanagan (2012) e Nadin Mai (2015). A partir do estudo da obra de Lav Diaz, Nadin Mai criou o blog The Art of Slow Cinema e uma distribuidora de filmes com o perfil, a tao films. Em 2014, três livros importantes foram lançados como referências para o estudo do “slow cinema”: Tsai Ming-liang and a Cinema of Slowness, de Song Hwee Lim; Slow Movies: Countering the Cinema of Action, de Ira Jaffe, e On Slowness: Toward an Aesthetic of the Contemporary, de Lutz Koepnick. Há dois anos, Tiago de Luca e Nuno Barradas Jorge organizaram o livro Slow Cinema, que reúne um conjunto de artigos escritos por diferentes autores que pensam o conceito.

De modo geral, críticos e pesquisadores caracterizam o slow cinema como filmes que investem no prolongamento da duração, na experiência da contemplação, na manutenção da espera, na permanência do olhar. Seria menos a exploração do longo take, mas sobretudo uma reelaboração da mise-en-scène a favor dos pequenos acontecimentos. Song Hwee Lim (2014) acrescenta outros parâmetros do slow cinema, como a ênfase nos silêncios, na quietude, na contenção do plano. Lucia Nagib (2016) explica que a defesa do slow cinema pressupõe “a existência de um cinema rápido, contra o qual ele se posiciona como alternativa vantajosa. Em uma época em que a mercantilização da velocidade está obliterando impiedosamente a fruição dos nossos prazeres mais básicos, de comer a desfrutar de uma bela paisagem, parece realmente prudente defender a lentidão como antídoto contra o consumismo insensato”*** .

Apesar das características gerais acima mencionadas, é arriscado enquadrar o slow cinema em padrões completamente definidos ou fórmulas rigidamente pré-estabelecidas. As estratégias fílmicas mudam de acordo com a proposta de cada realizador. No lugar de responder o que seria o slow cinema por um pressuposto unívoco e essencialista, a atual edição da Multiplot! é um convite para pensar como o conceito se desdobra em filmes particulares ou como se materializa na filmografia de determinados cineastas contemporâneos.

  • CIMENT, Michel. “The State of Cinema”. Unspoken Cinema, 2003. Disponível em: <http://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/state-of-cinema-m-ciment.html>.
  • FLANAGAN, Matthew. “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. 16:9, nov. 2008. Disponível em: <http://www.16-9.dk/2008-11/side11_inenglish.htm>.
  • NAGIB, Lucia. “The Politics of Slowness and the Traps of Modernity”. In.: LUCA, Tiago de; JORGE, Nuno Barradas (orgs). Slow Cinema. Edingburgh: Edingburgh University Press, 2016. . 26
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DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA

Por Bruna Dantas

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O cinema contemplativo em máxima. Extremismo estético, filosófico e existencial. Béla Tarr bebe da tradição tarkovskiana, uma das grandes precursoras do slow cinema, mas seu trabalho aprofunda essa tradição ao bifurcar novos caminhos para lançar e discutir questionamentos sobre a condição humana e, aproveita esse momento, para polir sua estética cinematográfica. Mais tarde, impulsionou outros cineastas a utilizar várias facetas do cinema enquanto estética da contemplação, a exemplo do cinema de Gus Van Sant e Jim Jarmusch.

O diretor teve uma carreira curta e concisa. Sua obra pode ser “dividida” (entre aspas, porque não se trata de uma cisão profunda) em dois momentos: o começo de sua filmografia (onde há uma preocupação maior com o realismo e a análise sobre as condições sociais e políticas da Hungria, com filmes que se assemelham à proposta da new wave húngara) e, mais tarde, quando seus filmes se entregam completamente ao slow cinema: takes longos, minimalistas, mais alertas em relação ao niilismo e às questões existenciais, individuais. Tarr alcança o ápice de sua carreira. Danação (ou também Condenação, no Brasil) é o filme que desponta essa segunda fase e, por ser o primeiro de um novo momento para o diretor, vem muito potencializado de pessimismo e de uma estética dramaticamente carregada, quase em uma forma mais crua.

Danação não é um filme onde o plot é fundamental. No geral, a narrativa em si dos filmes de Tarr está muitas vezes pautada no cotidiano mais banal. A grandiosidade mora exatamente na poesia visual que o filme pode alcançar. Ele se pauta na construção de imagens, sons e curtos diálogos que buscam remontar e trazer à tona emoções e sentimentos, que parecem residir na camada mais profunda do subterrâneo humano, do desespero em suspensão. O plot está ali apenas como chave inicial para levar o espectador a uma experiência niilista, sensorial, do cinema que potencializa a observação e usa o silêncio como elemento narrativo. Os poucos momentos de diálogo são sempre muito reveladores, no sentido de serem os únicos momentos onde há uma verbalização de tudo aquilo que se acompanha pelo silêncio insistente.

O primeiro plano já mostra suas intenções – cinco minutos a observar um teleférico que diminui a um zoom out e vemos o personagem principal, Karrer, contemplando uma paisagem húngara sórdida, fria e desoladora. Na espera de algo acontecer (estamos sempre à espera de algo acontecer), há a possibilidade do sentir seguido de reflexão.

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A ausência de diálogo engendra-se em cada frame e a música tradicional está quase sempre presente, embalando uma nação de iludidos. No Titanik Bar, reduto de concentração da trama, canta a amante: “Acabou. Está tudo acabado. É o fim e não há mais volta. Não ficará bem. Não mais. Nunca mais. Talvez nunca mais. Tudo tornou-se um pesadelo. Tudo. Talvez, quem ainda virá? De onde virá? Se é que vem. Ou não virá. Ninguém mais? Talvez nunca mais. É pegar ou largar, só com isso se pode contar. O que fazer? Não há mais palavras. Já não se pode mais partir. Já acabou há muito tempo. Seria bom se todos esperassem. Bom saber que logo partirei[…]”

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Os planos são longos, interminavelmente lentos. Essa estagnação, a chuva perene, o vagar sem rumo do personagem entre a “natureza-morta”, são elementos que estão ali para contestar o próprio tempo. Eles evidenciam que nos planos de Tarr não existe a possibilidade do novo e muito menos do progresso individual. A condenação da espécie humana está dada como algo impalpável, mas presente, irreversível e intrínseca.

A câmera na mão é sorrateira, segue os personagens em seu íntimo, aproximando-se do estilo documental. Há um formalismo no uso do preto e branco contrastado, fotografia esta que é recorrente em seus filmes, deixando clara a proposta de uma dureza mórbida do transcorrer da vida.

O movimento dos personagens é fundamental nos filmes de Béla Tarr – a constante perambulação e o ir e vir incessante. Contudo, esses elementos não representam mobilidade. O ato de andar está sujeito ao imóvel, é como andar em círculos num quarto fechado. Esse deslocar não leva a um objetivo, muito menos a algum lugar.

Ainda assim é visível a pretensão dos personagens em avançar, buscar uma realidade material diferente daquela. A migração ou o sonho de uma carreira artística são desejos rapidamente embotados pela forma trágica como Béla Tarr molda esse universo. Há um pessimismo que praticamente beira o apocalíptico e se realiza na forma como ele trata da condição humana e sua progressiva danação, passando assim, para uma análise mais frontal de possível identificação universal.

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A tônica que Tarr demonstra em tela nada mais é que a vontade de desvelar o que está debaixo da ponta do iceberg. É tentar tornar visível, através do slow cinema, o que parece ser invisível e de impossível representação, pois tange uma camada humana muito íntima. Ele faz do espectador um canalizador do sensível, acompanhando por muito tempo, em suspenso, o desdobramento das relações humanas. Porém, nada há em oferecer ou concluir senão o vazio e o irremediável.

É o esforço patético da vida. No ato final, Karrer fica de quatro e late contra um cão, revelando todo o lado primitivo que carrega os homens. Como um covarde, está cercado pela desesperança. Movimento desesperado para tentar se diferenciar da ambiência das pessoas daquele lugar, retomando ao homem anômalo nesse possível escape do poder, da imaginação coletiva, do entendimento social.

Danação é o primeiro passo revelador de como se moldou o slow cinema nos subsequentes trabalhos do diretor, características que se firmam ainda mais em trabalhos posteriores como Sátántangó, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim, entre outros.

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A MORTE DA LÍDER DE TORCIDA

Por João Pedro Faro

“Gosto de voltar aos locais para verificar as suas mudanças, mas também as modificações produzidas em mim mesmo por relação àquele espaço. Tento criar um sentido a partir do encontro das duas variáveis da mudança, a minha e a do espaço.”

James Benning em entrevista ao À Pala de Walsh

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Ao final do primeiro segmento de Landscape Suicide (1987), uma voz anônima narra sua primeira noite na cidade onde ocorreu o crime que acabamos de acompanhar: “Quando comecei a história me senti tão mal por Bernadette que negligenciei sua vítima. Na noite que fui para Orinda, tudo ficou mais real. Alucinei com uma figura escura em meu quarto de hotel”. Como mais um dos segmentos fragmentados que formam Landscape Suicide, essa narração dura pouco mais de 15 segundos e acontece enquanto James Benning fixa a imagem em um mapa da cidade. O trecho é seguido por diversos enquadramentos da paisagem suburbana de Orinda, que concluem a breve narrativa do assassinato de uma jovem cometido por sua colega em um momento de fúria. Nesses momentos finais da primeira parte do filme, impulsionam-se as perguntas essenciais de Benning que estruturam todo o filme: Quais acontecimentos permitem com que determinado som, espaço e tempo transformem-se em uma memória fílmica? Quais são esses sons, quais são esses espaços e, o mais essencial, qual a duração desse tempo?

Em primeiro lugar, o crime de tabloide: a menina sem graça da escola que esfaqueia até a morte sua colega popular. O ponto de partida é o terreno mais frágil possível para uma análise sociológica das mais típicas relações do norte-americano comum e que parecem importar tanto ao cinema, ainda mais ao cinema oitentista. No caso de Benning, as intenções são bem mais cinematográficas. Ao diretor, não interessa a análise do que não conseguimos ver, mas sim de tudo que já vemos. Interessa o que existe imageticamente para qualquer cidadão médio, mas que parece nunca se relacionar com um evento tão extraordinário quanto um assassinato. Porém, a partir desse evento, tudo que é visualmente banal irá inevitavelmente integrar o macabro. A rua em que Bernadette morava será a partir de agora registrada como o espaço em que morava uma assassina. Uma cidadezinha tão remota quanto Orinda agora é palco de um crime que ocupa matérias em revistas de grande circulação. A manhã em que se descobre um cadáver parece ter uma paisagem diferente de qualquer outra manhã, mesmo que nada tenha realmente mudado. Esse local tão comum estará registrado em todas as testemunhas como parte de um total maior que é a memória, onde ele será um local mórbido. Consequentemente, os sons (um rádio tocando Pretty Young Thing, as bolas de tênis batendo em uma quadra, a passagem movimentada de carros em uma rodovia) e as imagens (um estacionamento, uma colina, um outdoor) assimilam o ideal cinematográfico que o autor procura ao registrar o que fica marcado com cada espectador desse crime. Benning comprova as transformações semânticas de um lugar através dos planos e da precisão com o que enquadra, como se fossem definitivamente flashes de alguma (ou algumas) memórias.

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O que permite potencializar o que poderia ser descrito como documental, como busca de um cinema que se aproxima da realidade, é justamente a encenação. No segmento de mais de 20 minutos, em que a atriz Rhonda Bell reencena o diálogo de Bernadette com a polícia, Benning cria um senso hipnótico perturbador (parecido com o que o diretor faz em seus filmes constituídos apenas por paisagens). Primeiro, há uma sutil e curiosa decisão em buscar uma atriz muito mais parecida com a vítima de Bernadette do que com a própria. Segundo, a performance de Rhonda carrega um peso quase dreyeriano em que o close da condenada possibilita tudo em quadro. O olhar impassível de Bernadette ao relatar seu crime e a voz mecânica de seu interlocutor, nunca mostrado, centralizam o poder de Benning em experimentar a paisagem de um rosto em estado pós-traumático. Aqui retornamos ao que temos como essência: ao deixar com que o plano se estenda, ao dilatar o tempo daquele determinado espaço, Benning consegue enquadrar todos os elementos que lhe interessam da personagem em um único plano que se mantém entre breves cortes para o preto, que funcionam quase como sinapses nervosas transmitidas pela montagem. Não faz parte de Landscape Suicide estudar o que motiva ou o que constrói um assassino, mas sim como as ações destes afetam toda a constituição de uma cena.

Bernadette encara seu interlocutor enquanto diz “Tenho muitos sentimentos de inferioridade. Penso muitas coisas ruins sobre mim mesma”, tentando explicar como chegou ao ponto de matar sua amiga. Mas ao invés de centrar-se nessa frase para tentar compreender melhor o acontecimento, ela apenas existe para dar mais força ao que é mais custoso nesse momento para o filme: os olhos de Rhonda Dall enquanto repete as frases de Bernadette. É o contexto que justifica a potência de suas imagens.

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Após estabelecer sua estrutura na primeira metade, Benning reverte a cronologia de suas cenas para seguir os impactos fílmicos do serial killer Ed Gein. A segunda metade começa com as paisagens da cidade de Winsconsin que cercam o julgamento do assassino, três décadas antes do crime de Bernadette. O choque entre os registros da primeira para a segunda parte pode ser resumido em dois fatores principais. Benning abandona o colorido brega suburbano para estabelecer uma frieza impiedosa de uma ruralidade em nevasca, absolutamente abandona por qualquer vida (mesmo o veado que vemos correndo pelo bosque só é apresentado para que suas tripas sejam abertas no extenso plano final do filme). O diretor também está lidando com um crime histórico, portanto as implicações dos assassinatos de Gein traduzem-se cinematograficamente em uma brutalidade mais expansiva do que anteriormente (os animais presos, o cemitério, a caça, o som dos tratores). As constituições são mais rígidas, tendem ao horror de um isolamento total, como se as únicas imagens que poderíamos assimilar já fossem de uma natureza tenebrosa por si só. A barbaridade de Ed Gein em seu crime viria como consequência dessas imagens e desses sons naturalmente tenebrosos do ambiente em que vive, e agora, através de suas vítimas, estaria apenas retribuindo a esse espaço o terror que lhe foi herdado.

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Elion Sucher interpreta Ed Gein na cena de seu julgamento, com o único plano de duração próxima ao de Bernadette. Existe algo de clássico no personagem de Gein comparado ao da jovem estudante, é de uma ambiguidade emocional muito mais perversa. Não há mais fragilidade no assassino, a ambientação cinquentista cria caminho para um referencial verdadeiramente monstruoso. Afinal, como uma figura marcada na história norte-americana, sua presença constitui um imaginário bem claro de vilão, a memória criada a partir desse personagem tende aos cenários e as paisagens do que já é casualmente amedrontador. Os próprios documentos resgatados que Benning filma seguem essa linha. Enquanto no primeiro caso, o que foi deixado pela assassina foi uma carta ao seus pais, narrada com intimidade por Rhonda, o caso de Gein recebe anotações de como cortar carne humana. As imagens parecem menos banais, a encenação ganha uma força mais totalizadora justamente por representar uma narrativa mais fundamentada na popularidade e na clareza de suas consequências fatais.

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Não havendo nada mais importante para o cinema experimental do que o processo, Benning se torna o grande autor que é dentro desse nicho com a forma em que expõe seu próprio processo como parte integral da obra. Em Landscape Suicide, seu método enquanto realizador se encontra diretamente com a totalização do que quer tratar. Lidando tanto com a tragédia de página dupla da Rolling Stones quanto a tragédia de capa da revista Times, Benning reforça com seu filme o processo de revisitação do cinema que nós mesmos criamos com nossos traumas. Por meio deles, surgem imagens eternas, consequência de um processo muito pontual de registro dentro de um processo mais constante e banal de observação. Seja o que for que estejamos observando, ouvindo, presenciando.

No fim, os rostos só existem para que as paisagens existam, os rostos são as próprias paisagens e as paisagens também são rostos. Por mais que a estruturação de Benning seja precisa, quase matemática, o produto de Landscape Suicide tende a somar essas constituições em presenças similares. Tudo é igualmente contaminado por angústias, medos e traumas relacionáveis. É talvez um dos mais bem-sucedidos em compreender o que há de mais abstrato entre nossas relações psíquicas e geográficas, justamente pelo seu controle de ritmo tão bem estruturado. Se uma paisagem é o que os nossos sentidos depreendem da parte de um espaço e as sensações a ele depreendidas são tomadas pelo fúnebre, todo registro dessa paisagem será como retornar às piores frações de alguma memória. Paisagem/suicídio.

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SLOW CINEMA

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INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA
Camila Vieira

ESTÉTICA DAS CONSEQUÊNCIAS E O UNIVERSO DA CONCENTRAÇÃO NOS FILMES DE LAV DIAZ
Nadin Mai

NÃO À CASUALIDADE: EXPERIMENTAL FILM SOCIETY E TAO FILMS EM TEMPOS DE INTERNET
Pedro Tavares

KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO
Gabriel Papaléo

IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA
Alan Campos

ALBERT SERRA E A MORTE REAL
Carla Oliveira


O SILÊNCIO DE A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN
Zoë Masan

A MORTE DA LÍDER DE TORCIDA
João Pedro Faro

LIÇÕES DE HISTÓRIA
Felipe Leal


A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO
Diogo Serafim

DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA
Bruna Dantas

VÍDEO: O QUE É SLOW CINEMA?
Arthur Tuoto

NOTAS SOBRE O CINEMA
Scott Barley

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LIÇÕES DE HISTÓRIA

Por Felipe Leal

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    É possível arriscar que para Hou Hsiao-Hsien –, que aqui logo chamaremos de ‘HHH’, e não mais por razões de abreviação e sinalização textuais do que pelo que será suscitado enquanto marca indelével e incandescente de autoria, a pequena memória enquanto produtora de história(s) – a luz está para seu cinema assim como a madeleine molhada de chá está para Proust: basta um encontro para que as funções vitais se espraiem em uma multiplicidade de estilhaços, para que o músculo palpite diferente, em busca não de um elo temporal perdido, mas de uma incidência em gradiente luminoso que possa salvaguardar a liberdade como um dia se olhou para fotografias para além da descartabilidade incessante do presente; cristalizar os sucessivos roubos da possibilidade de erigir ou semear futuros diante do país que não pôde respirar livre após a ocupação japonesa, logo recaiu num subsequente governo opressor sob a bandeira continental sangrenta da China. E se o toque do elemento-função, aqui, não fará reverberar as camadas involuntárias daquilo que já foi, ao menos não pelos mesmos princípios, o motivo se esconde neste início de filme que é um duplo nascimento: da luz, que retorna à casa depois de um apagão (e dá nome ao filho) e que não é para Hou senão a matéria bruta, inicial, do mundo.

Pelos mesmos princípios, não, mas decerto pela mesma “aquosidade” dos meios, das técnicas: do epicentro-objeto, Proust extrai as ondas do rememorar infectado, embriagado do exercício imaginativo de uma prosa que serpenteia pelo irresgatável, tornando-o o tempo vivo do amor, o fruto do imaginável; em A Cidade das Tristezas (1989), para a memória daqueles quatro irmãos e agregados destroçados pela guerra, HHH, se já não havia afirmado por obra (testemunho) e palavra a imperiosidade de seu fluxo observatório, distanciado, um laissez-être peculiarmente interativo, vem aqui densificar os gestos, dotá-los com a propriedade de capturar o movimento histórico para fazer o social pesar sobre o particular, e deste, somente deste, mostrar os frágeis fios do tempo que, à conjunção e entrelaçar dos milhões, compõem a verdade da memória, quase literalmente incrustando a equação física em tela: massa sobre um volume: à exceção da imagem violentamente frontal de Hinome, escancarada referência a Ozu, num instante precioso em que só a “rostidade” do cinema pode imaginar a tristeza de todos os mortos, desaparecidos e loucos, todos os planos são a equalização, a trazida a um mesmo grau de todos os ocupantes de um espaço e da extensividade do mesmo.

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O som irrompe de quíntuplas direções e imanta os microacontecimentos – é simultaneamente que os colegas discutirão desemprego, mentalidades escravocratas e intelectualidade e que o par fará confissões um ao outro sobre a surdez dele e sereias de vozes encantatórias, mas também que a melodia doce emanando do toca-discos e que perturba o ar e as folhas esvoaçando através da janela possa não tanto produzir quanto tornar momentaneamente uma dádiva a percepção do enamoramento, quando num corte da montagem um giro de perspectiva fará da luz um novo padrão sobre o rosto e a camisa simples abotoada, uma dobradiça de claros e escuros que culminam no corpo alegre ao fazer mímicas para se expressar. Sabemos que ela se apaixonou, ali, não pelo olhar de Wen-ching, pelas idiossincrasias de seu movimento ou pelo que ele havia escrito no bloco de notas, mas, antes, pelo todo, o momento que é-sendo pela mobilização de todas as suas partes. Não é por acaso, muito menos por autoria tornada palatável pela firmeza e abismo da proposição, que HHH dirá do seu interesse no cinema que este não é o de relatar histórias, mas fabricar ambientes, ou antes ambiências: é no espaço e no que fazemos dele/com ele que os fantasmas se amontoam, que as memórias se dispersam e onde povoam. Que a literatura tenha não só popularizado, como também facultado que lançássemos olhares sobre objetos antes talvez “quaisquer” – os espelhos, as baratas, os subsolos e os duplos, as neblinas e as mansões –, parece curioso que a escolha cênica (moral!) de Hou não consiga não retirar do mundo, também, certos véus, descobrir a tessitura transparente da História.

Ora, há aí quase uma teoria da espacialidade posta em prática, mas cujo requerimento único é o de deter-se, ficar à espreita, pacientar, deslizar o globo ocular, apalpar, com ele, a descamação do fluxo mnemônico já há muito desimpedido das tolices lineares. James Benning já o disse muito bem e sua carga expoente de dedicação, em matéria fílmica e visão-do-mundo, desdobra e reflete o léxico que vem a inseri-lo na santidade disto que veio a se chamar de slow cinema: não interessa de quê, nem para quê: o aprendizado é uma função do tempo. É preciso, em outras palavras, dar, ao tempo, tempo – para que algo advenha em forma de uma apreensão sobre o que se vê, se ouve, se cheira, se sente no epitélio. Mas, se as perguntas refutadas sinalizam à situação espectatorial esse momento indivisível e de certo modo obsceno de co-criação, “co-dotação” do sentido (é angustiante, terrível, sentir-se observado observando algo), aquela que pode interessar é sobre o porquê: por que se aprende no tempo?, e sua resposta não poderia ter se aferroado sobre uma superfície mais triste na filmografia de Hou do que a de A Cidade das Tristezas. Ainda que Flores de Xangai (1998) ou A Assassina (2015) re-explodam as potências sensitivas e pictóricas em estilísticas tão assombrosas quanto, é somente aqui que ainda um outro elemento basilar – a narrativa – se afeiçoa dos movimentos fugidios e sinuosos da memória.

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Nos flashbacks, há uma redução dupla, pois que eles são menos que explicativos ou próximos de qualquer apregoação causal-justificativa: o retorno ao passado de Hou é antipedagógico e também, fator curioso, a princípio só parece reiterar aquilo que as cartas, anotações e palavras fazem emergir. Mas, vê-se logo, o princípio e a resultante mais uma vez se igualam: é só por poder ser livre por natureza, na circunscrição daquela obra, que a memória flutua livremente nesse desbotado melancólico pelos espaços e gestos mortos. E quem assim o promulgou, que a memória não servisse que a si mesma? Aqueles que esculpem ou os que se enamoram do tempo, tornam-se ondulantemente passivos em relação a ele, sua passagem se estirando em interconectividades indispensáveis? Quem, não tivesse partido das orelhas atentas ao acariciar do vento e dos olhos deslumbrados e cerrados a contemplar, chegaria a transmitir a história do mundo que está nas coisas, não mais tão-somente nas fortificações ou nos milhões em campo, mas também nas lâmpadas e fotografias, bonecas e cartas?

Porque é isto: é por isto mesmo que Hou insiste no rádio, aquele ambiente de uma coletividade imóvel a auscultar a macroestrutura que a atinge, nos planos que multiplicam as bordas e instauram subnúcleos, inserem passantes, participantes, o mundo em energia cinética e em sotaques até então imperceptíveis pelas suas nuances; a bem da verdade, Hou é Wen-ching enquanto pensamento cristalizado, nem que por um breve momento, e ching é toda a epítome do cinema do primeiro, por reverso: ao preparar-se para tirar a fotografia que veio talvez a imortalizar a cena mais impiedosa e memorável da obra, aquela que inegavelmente canaliza toda a tristeza cabível aos massacrados num instantâneo posado de casal e filho, ching detém-se diante do contracampo antes de ir sentar-se com a família, mãos à câmera, olhos “na cena”, como se ao mesmo tempo lançasse um último olhar à felicidade e antevisse que aquela captura os salvaria da morte, aliás: do esquecimento.  A dedicatória é a tarefa básica do cineasta e que vem ali a ser transmutada num momento eminentemente heroico, a junção de todas as figuras ao mesmo tempo, num só lugar, sentimento fechado temporariamente – mas só àqueles que param para contemplar e lembrar, imaginar e antever.

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O SILÊNCIO E A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN

Por Zoë Masan

 

“Que importa pois que o desespero ignore seu estado, se nem por isso deixa de se desesperar? Se o desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro: Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia do espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos desde que a existência vacila, o desespero que espiava, surge.” — Søren Kierkegaard

Planos estáticos, ações lentas que priorizam um minimalismo narrativo, o silêncio e a hipervalorização da subjetividade são algumas das caraterísticas que mais se mostram presentes ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Esses elementos são instrumentalizados para fazer uma constante denúncia de uma degradação mental. As personagens de Akerman se destroem e voltam à vida para se destruírem novamente, em um exercício sádico pela busca da libertação mental.

Em suas produções, Chantal Akerman fazia uso de planos fixos que valorizavam o minimalismo das ações dentro do enquadramento. É também aplicada uma subjetividade latente muito peculiar, evidenciando os ideais mecanicistas e repetitivos do neoliberalismo, expondo os efeitos do patriarcado inerente a esse neoliberalismo e deixando evidente alguns efeitos mais subjetivos desse mecanismo: os transtornos mentais.

Na obra mais aclamada de Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles (1975), é narrada a rotina de Jeanne Dielman, uma mulher invisível e invisibilizada por sua própria rotina, configuração familiar e profissão. Jeanne realiza diariamente as mesmas ações e sua solidão também fica explícita em toda narrativa, no nível da estrutura e do sentido por meio de um elemento em especial: o silêncio. A relação de Jeanne com o filho, os cômodos de sua casa, e até mesmo a profissão sexual que ela exerce são envoltas pelo silêncio. Esse elemento é amplamente trabalhado ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Através do silêncio é possível amplificar subjetividades que talvez ficariam deturpadas pelo diálogo. Além disso, o silêncio é elemento que delineia tensões, que associadas à rotina quase mecânica da personagem potencializa a angústia para quem assiste. David Bordwell define esse modo estilístico dizendo que “o cinema de arte é menos preocupado com a ação do que com a reação; é um cinema de efeitos psicológicos em busca de suas causas” (Bordwell, 1979, p. 58).

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É interessante como Akerman brinca com a temporalidade por meio de planos longamente hiperrealísticos, fazendo com que a deterioração mental — que reflete na deterioração da rotina — fique cada vez mais aparente. A ruptura mental de Jeanne não é algo que acontece repentinamente, é apenas um efeito de uma série de violências silenciosas as quais a personagem é submetida ao longo do filme. Akerman trabalha detalhadamente todos os movimentos da personagem e a rotina de Jeanne passa a se deteriorar diante dos nossos olhos.

Um ponto interessante é que dentro de um cinema do tédio, até mesmo o ato de fúria se torna previsível. Akerman não pretende surpreender com o plot, mas observar reações e causar uma tensão claustrofóbica no espectador. Talvez Jeanne Dielman seja o filme de Akerman que mais evidência e instrumentaliza os maneirismos do slow cinema para criar uma narrativa disfuncional propositalmente sistemática.

Em L’homme a là Valise (1983), Chantal Akerman também faz um estudo da rotina, dessa vez, alterada por um elemento estranho, um visitante. A construção narrativa trabalha com um subjetivismo tão intenso que é possível serem feitas diversas interpretações acerca do que realmente significa a figura masculina que persegue Akerman em seu próprio apartamento.

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    É possível observar em L’homme a là Valise alguns fatos que acontecem em cena: um visitante chega com uma mala no apartamento da personagem interpretada por Akerman, e rapidamente passa a se tornar um elemento indesejado, ceifando a privacidade com sua capacidade de invasão dos espaços privados da personagem. A partir disso, é possível trabalhar com diferentes perspectivas quando se analisa o filme, uma delas é a do bloqueio criativo representado pelo elemento do visitante que se instaura e age como um bloqueador de rotina, impedindo que a personagem possa realizar suas tarefas do dia-a-dia, como por exemplo, escrever. Também é possível interpretar esse visitante como um elemento patriarcal que persegue e sufoca a personagem onde quer que ela vá. No entanto, será analisado aqui uma perspectiva ainda mais subjetiva, que une um pouco das interpretações anteriores. O visitante com a mala pode ser visto como uma alusão clara à depressão e demais transtornos psicológicos. Primeiramente, a personagem está em um estado de isolamento extremo, visto que todo o filme se passa dentro desse apartamento onde não há visitas e quase nenhum contato com o mundo externo, com exceção de uma TV velha e um telefone. Em todas as cena, o visitante quebra esse isolamento, mas não completamente. Esse visitante age como um elemento de supressão dos sentidos mais básicos e fundamentais do ser humano. A presença dele torna a personagem de Akerman incapaz de comer, tomar banho, cozinhar, trabalhar, se comunicar, e posteriormente, sair do quarto sem precisar traçar planos para não o encontrar em algum cômodo. Esse elemento se instaura como parasita psíquico que aleija e deixa a personagem gradativamente vulnerável.

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No terceiro ato, é possível perceber que a incapacidade da personagem resulta em um quarto bagunçado, com todas as roupas no chão, uma tv velha em cima da cama e um estado de inércia espiritual muito profundo. O cinema de Akerman é um cinema de gradação de efeitos e de um estudo de subjetividades quase que autobiográfico. Chantal Akerman cruza muitas vezes a linha do existencialismo e culmina em um niilismo psíquico, como efeito natural da deterioração mental na vida de seus personagens, e porque não, em sua própria vida.

    A angústia existencial é um denominador comum nas principais obras de Akerman. Há um apreço pela utilização do silêncio e de planos estáticos para emergir uma não-dramaticidade que só leva ao expurgo psicológico. A diretora trabalha com “a estaticidade do olhar estendido da câmera configura um espaço e tempo em que a tensão lentamente, inevitavelmente, se constrói, chegando a um ponto de crise psicológica” (FLANAGAN, 2012, p. 82).

    Akerman se utiliza dos maneirismos do slow cinema para exercer uma fenomenologia existencial sob as estéticas do gênero. O elemento de angústia no cinema de Akerman pode ser entendido como ponto de desenvolvimento da própria mise-en-scène, onde são compostos, em sua maioria, cenários de dramatização sóbrios, com elementos de cena que sinalizam uma falsa organização que precede o caos. Essa angústia se dá a partir de pontos aparentemente distintos, mas que fazem uma interseção em comum: a angústia sexual, a angústia da morte e a angústia existencial. Falando primeiramente da angústia existencial, é possível observar como essa se dá frente ao sentimento de completo vazio e esse sentimento aflora frente a divagações e conflitos que os próprios personagens sofrem diante da tela. Desilusões amorosas, incomunicabilidade, depressão, ódio e exaustão mental. Nesses personagens, é possível ver a evolução desse sentimento de nada, Heidegger classifica isso como “a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada como aspecto naturalmente humano percorre em toda a estrutura fílmica como algo praticamente determinista, um sentimento inevitável diante desses conflitos e da própria existência.

Akerman consegue conciliar elementos como angústia e vazio no drama Je, Tu, Il, Elle (1979), onde diante de um rompimento com sua namorada, uma mulher entra em uma espiral depressiva. A angústia sexual presente se manifesta a partir da repetição compulsiva da personagem que come açúcar de um saco de papel, sua tentativa de escape através da escrita e eventualmente através de outras relações sexuais. Parece que, em todo o momento, há uma preocupação muito grande em esconder a dor real da personagem e todas suas potencialidades, pois a angústia que acontece internamente é muito mais devastadora do que se mostra aparentemente.

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A angústia leva a personagem a encontrar um caminhoneiro, e com ele, ela tem uma relação sexual. Nas cenas com o caminhoneiro, há um empenho aparente da personagem em tentar estabelecer um contato mais profundo com o caminhoneiro, demonstrando que, diante do rompimento, existe a necessidade urgente de continuar o contato sentimental e sexual com alguém. As cenas são escuras, com enquadramentos que quase tiram a personagem de Akerman do plano. É como se fosse um momento vergonhoso de busca por uma válvula de escape. Isso fica claro quando o reencontro com a namorada acontece e, novamente, o elemento da expurgação aparece em uma das mais belas cenas de sexo do cinema. É um alívio em meio à angústia latente que existe na maior parte do filme. E da mesma forma que o reencontro é purificador, o abandono toma a mesma proporção de devastação total e isolamento.

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O curta Saute Ma Ville (1968) sintetiza muito bem como a decomposição da mente se dá no cinema de Akerman. Em seus pouco mais de 12 minutos, o curta mostra uma rotina à beira do caos através de uma observação intensa da personagem que, ao voltar para casa, arquiteta o próprio suicídio. A observação intensa da personagem para si mesma, seja através do espelho ou sentada no chão da cozinha, engraxando os sapatos, mostra um misto de auto crueldade e piedade muito grandes. De forma implícita, ela se questiona se deve mesmo levar seu plano adiante, ao mesmo tempo em que percebe que continuar com a própria vida não vale a pena. Akerman nos mostra uma mulher-bomba, dentro de tantas outras mulheres-bombas presentes em seus filmes. Quando a mente falha, todo o sistema falha e a libertação desse sistema deve acontecer da forma mais efetiva e definitiva possível.

O cinema de Chantal Akerman é marcado por uma repetição dos padrões que denunciam o fim da mente. A psique tem sede de obliteração e esta se dá através da morte e do sexo. A morte de si mesmo ou do elemento que a aprisiona. O silêncio é o som mais poderoso de fúria.

NOTAS:

  1. BORDWELL, David. To the Distant Observer. Berkeley; Los Angeles: California UP, 1979. Print.
  2. FLANAGAN, Matthew Slow Cinema: Temporality and Style in Contemporary Art and Experimental Film. 2012
  3. HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996

 

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NÃO À CASUALIDADE: Experimental Film Society, Tao Films e Slow Cinema em tempos de Internet.

Por Pedro Tavares

Phantom Islands (Rouzbeh Rashidi)
Phantom Islands (Rouzbeh Rashidi, 2018)

Se há a chance de chamar este notável bloco de filmes e autores de “nova onda” para o slow cinema – termo sempre a questionar -, é possível também notar muitas semelhanças entre eles. Ainda que fortemente influenciados por nomes como Abbas Kiarostami, Béla Tarr e Chantal Akerman, este grupo se associa a estes artistas por outros vieses.

A maior força para eles está na internet. A Experimental Film Society e a Tao Films, produtoras e distribuidoras de filmes online reúnem uma gama expressiva de cineastas e filmes com o mesmo caráter: o não à descrição excessiva, a expansão do outro e a entrega dos limites do drama à câmera e não aos personagens – logo a concessão a quem vê. Filmes como Osmosis, do grego Nasos Karabelas, e Inside, de Vicky Langan, e Maximilian Le Cain, a exemplo, pouco dialogam na abordagem, porém arrematam qualquer possibilidade de realismo na maneira que a câmera está para os corpos a filmar. O tempo expandido, maior característica do slow cinema, está em novos códigos.

O diretor Mike Higgis em At One Fell Swoop faz um filme de horror no qual a câmera, objeto de observação e de louvor, é também o objeto de construção do suspense – é a partir dela, salientada por Higgis, que vemos uma amálgama de imagens que norteiam o diálogo com o gênero. O mesmo pode ser dito de Phantom Islands, de Rouzbeh Rashidi, um filme que entrega seu monólogo ao dispositivo – consequentemente ao espectador – e assim permanecerá livre para qualquer abordagem e associação.

 

At One Fell Swoop (Mike Higgins,2015)
At One Fell Swoop (Mike Higgins,2015)

É importante lembrar a noção de tempo em dias de internet e bombardeios de informações: a EFS e a Tao não se limitam a filmes curtos, mas muitos destes filmes são diretos, numa dicotomia curiosa. O tempo está mais em como se conta e não o que se conta. Alguns são diretos, sobre relações humanas e o mundo ao redor – a destacar o ótimo Centaur, de Aleksandra Niemczkyk. Outros são sobre a inexatidão e a partir dela que os filmes se tornam modelos de investigação: The Story of Drifting Cities, de Michael Higgins, e Du Côté de lá Réalité Immédiate, de Pierre Villemin, tiram o prazer do olhar e o instigam, cada um a sua maneira, e tiram da zona de conforto da contemplação. Esses filmes se deslocam de um rigor que se foca em fragmentos da vida para contar vidas inteiras no qual imagem e palavra se abraçam sem separação definitiva e oferecem um quadro fenomenológico para compreensão da sociedade e uso e apropriação de imagens e de dispositivos.

É um regime curioso, pois pouco vemos travellings ou movimentos despercebidos de câmera – a citar Béla Tarr. Estes filmes não são regidos pela lógica e pelo espaço e dão à câmera sua potência a fórceps, com paciência suficiente para que seus planos fixos tenham efeitos hipnóticos que contribuem para a noção da força do dispositivo. O caso mais explícito dessa noção é Distant, de Zhengfan Yang, filme gêmeo de Milky Way, de Benedek Fliegauf, que aborta qualquer possibilidade de encontro com a mise en scène clássica e aposta no espaço entre corpos e câmera como o diálogo ideal, como se o filme vivesse no fosso entre plateia e tela (ou palco). É a entrega completa da diegese ao seu aparato. Cabem as palavras de Roland Barthes, em De la Science à litterature:

  • Tecnicamente, segundo a definição de Roman Jakobson, a “poética” (quer dizer, o literário) designa aquele tipo de mensagem que toma sua própria forma como objeto e não seus conteúdos.

distant
Distant (Zhengfan Yang, 2013)

Em comum, os filmes nos catálogos da Experimental Film Society e da Tao se mantém entre o encanto e o mistério. São filmes que residem na coreografia do fantástico e não da rotina, contrariando Akerman e Kiarostami. Este ensaio sobre o outro – resumindo grosseiramente estes blocos de filmes -, ressoa no tempo que nasceu: o fluxo de memória e esquecimento como cita Marc Augé, lembrado por Christine Mello em seu texto Imagem Digital Como Memória, que questiona: “Não seria este estado de suspensão, produzido no corpo, uma tradução imagética da chamada instantaneidade contínua?” A característica da oposição à urgência dos tempos de redes sociais, contrário à percepção geral de um novo tempo, cria fissuras nítidas e provavelmente justifique a tendência fantástica ao realismo; o simulacro narra, não exibe.

Temos, portanto, empenhos distintos com finalidades semelhantes e extremamente relevantes; a tentativa de manter intacta a inflexibilidade da linguagem ao mesmo tempo em que considera a mudança de percepção do público. A Tao e a EFS servirão como porta para muitos diretores hoje patronos do que chamamos de slow cinema, como um gradual crescendo sobre a dimensão de tempo e a linguagem cinematográfica.

O cume desta escalada está na ciência da internet não como alternativa e sim como a certeza do consumo destes filmes; ainda que feitos para a grande tela – como qualquer outro filme -, o video on demand é a via para o encontro direto com o público interessado neste nicho e a construção de uma filmografia rica já assumindo a firmeza do consumo a partir do imediatismo e de uma nova identidade para o tempo. O reflexo é nítido nos filmes e contrabalancear com nada mais que uma nova abordagem para este gênero é mais que uma saída possível. É uma forma de renovo.

Links externos:

TAO FILMS

EXPERIMENTAL FILM SOCIETY

 

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ESTÉTICA DAS CONSEQUÊNCIAS E O UNIVERSO DA CONCENTRAÇÃO NOS FILMES DE LAV DIAZ

Por Nadin Mai
Traduzido por Pedro Tavares

Algo do passado sempre permanece, mesmo que seja como uma presença assombrosa ou um devaneio sintomático.

(LaCapra, 2001: 49)

Introdução

Começando com seu filme de cinco horas de duração Batang West Side (2001), que iniciou uma mudança de estúdio para uma forma mais independente de cinema de arte, e seguido por uma série de trabalhos longos que duram até dez horas – notavelmente Evolução de Uma Família Filipina, que se aproxima em quase 600 minutos – Lav Diaz tornou-se um dos mais prolíficos diretores do Slow Cinema nas últimas duas décadas. Embora seus filmes compartilhem várias características com os gostos de Béla Tarr (Hungria), Albert Serra (Espanha), ou mesmo Tsai Ming-liang (Taiwan), Diaz se estabeleceu como um nicho em uma forma de cinema que se tornou mais e mais mais visível desde os anos 2010. O diretor, que se referiu repetidamente a si mesmo como malaio em vez de filipino, volta repetidas vezes para a história traumática (e o presente traumatizante) de seu país, as Filipinas, e combina-o com uma abordagem muito particular à lentidão cinematográfica. Desse modo, Diaz criou uma forma de cinema pós-trauma, que difere amplamente do Cinema de Trauma padrão na medida em que olha para aspectos sub-representados da natureza do pós-trauma.

Em seu livro On Slowness (2014), Lutz Koepnick argumenta que a lentidão na arte visual pode funcionar como “um poderoso meio de lembrar e refazer resíduos traumáticos e reanimar histórias dolorosas aparentemente congeladas no passado” (46), e o trabalho de Diaz responde a isso. em seus filmes. Em contraste com o que hoje é conhecido como a forma padrão do Trauma Cinema, que considera e subsequentemente descreve o trauma como um evento espetacular, o trauma nos filmes de Diaz é representado como uma condição. O cinema pós-trauma do diretor é caracterizado por vários elementos, todos os quais dão uma olhada particular na natureza da memória em geral e do trauma em particular: primeiro, duração através do uso de long-takes; segundo, um tempo de execução prolongado; terceiro, o foco no rescaldo de eventos traumáticos sem criar um vínculo visual com esses eventos; quarto, a transmissão da violência através do diálogo e do som e, quinto, a ausência inerente de imagens violentas. Especialmente o uso da duração e da ausência exige uma investigação do que Roger Luckhurst chamou de “estética das consequências” e do retorno cíclico do diretor às histórias de pós-trauma e sofrimento, que se concentram nas narrativas psicológicas de personagens traumatizados. Como veremos, Diaz se concentra mais nos processos psicológicos de seus personagens do que em qualquer outro diretor de filmes lentos. Isso é apoiado pela própria estética que ele usa, em primeiro lugar, pelo tamanho particular de seus filmes. A descrição detalhada de medo, angústia e paranóia ao longo de, às vezes, nove horas ou mais é uma estética específica do que chamo de cinema pós-traumatológico de Diaz.

Textos da Memória e o País Colonizado

Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)

Ao dizer isso, Diaz aponta para a longa e traumática história da opressão ocidental, começando com a conquista espanhola em 1521. Quatrocentos anos de repetidas invasões se seguiram, com o país se tornando um hotspot onde as potências ocidentais lutavam suas guerras umas contra as outras. A população local havia sido privada de sua própria cultura, tendo que adotar a cultura – a língua, a religião, a comida e até mesmo os nomes – de seus respectivos colonizadores espanhóis, americanos ou japoneses. Em 1972, quase 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente Ferdinand Marcos declarou a Lei Marcial e impôs uma ditadura no país. Se os opositores políticos não fossem diretamente trancados ou mortos, eles seriam ameaçados pelo uso de táticas terroristas. Desaparecimentos e execuções extrajudiciais, proeminentes até hoje (Human Rights Watch, 2007, 2011), tornaram-se a norma na época. Morte na Terra de Encantos (2009) é um dos filmes de Diaz que trata do tema da oposição e do quanto o estado se esforça para silenciar, por exemplo, artistas que não se conformam com a percepção do país de que tipo de mensagens a arte deve entregar ao povo. Hamin, um escritor-artista e protagonista do filme, foi torturado e forçado a viajar para o exterior por vários anos, e agora é visto por aqueles homens que o torturaram no passado, levando-o mais perto da insanidade e de sua morte inexplicável. Encantos, assim como os outros filmes de Diaz, faz uma ponte cuidadosa entre os eventos passados e as condições presentes, mostrando assim que maus-tratos passados da população se infiltraram na sociedade contemporânea. Há um retorno repetido e cíclico aos eventos traumáticos aparentes nos filmes do diretor, o que torna o espectador consciente de que, de fato, o tempo parou e os mesmos eventos estão acontecendo repetidas vezes.

Hamin encontra seu torturador em um café - Morte na Terra de Encantos (Lav Diaz, 2009)
Hamin encontra seu torturador em um café – Morte na Terra de Encantos (Lav Diaz, 2009)

O (não) fluxo de tempo e o fator de concentração

Uma das principais características do cinema pós-trauma de Diaz é a rejeição do diretor de uma progressão narrativa linear na tela, a fim de se aproximar da natureza da memória. Melancolia (2008), seu filme de oito horas sobre desaparecimentos (forçados) e resistência, por exemplo, é composto de três partes, das quais a anterior antecede temporariamente as duas anteriores. Em Florentina Hubaldo, CTE, (2012), também, Diaz muda entre os eventos passados e presentes, nunca indicando claramente se o que vemos acontece agora ou então. Ao contrário de outros diretores, ele não usa indicadores típicos para um flashback, como dissolução ou mudança de cor para preto e branco. O resultado é desorientador, um forte marcador de pós-trauma, que aterroriza o sobrevivente através da imposição de medo, paranoia, exaustão, alucinações e outros fatores debilitantes. Vale a pena mencionar aqui o trabalho do sociólogo Wolfgang Sofsky, que argumenta que “o terror destrói o fluxo do tempo” (1997: 78). Sofsky fez um caso particular para o uso do terror e sua consequente interrupção de um fluxo de tempo linear nos campos de concentração nazistas, onde uma percepção temporal e espacial específica reinava entre os detentos.

Inseridas num universo de concentração, Melancolia (2008), Morte na Terra de Encantos, e Florentina Hubaldo, CTE, por exemplo, evocam uma experiência particular e uma percepção temporal que tem sido, e ainda é, uma característica dos ambientes prisionais, mas que atingiu o seu pico nos campos de concentração. O não fluxo de tempo dos filmes torna-se, assim, uma representação de um sistema de concentração que esmaga lentamente suas vítimas. Paul Neurath, sobrevivente dos campos de concentração de Buchenwald e Dauchau, explica esse sistema com palavras angustiantes: “O campo de concentração geralmente mata suas vítimas de maneiras menos espetaculares. É comparável não tanto a um assassino feroz que anda furioso, quanto a uma máquina terrível que, aos poucos, mas sem piedade, mói as vítimas em pedaços” (2005, 47-48). Matthew John, em sua análise de Muriel ou le Temps d’un retour, de Alain Resnais, escreve: “O horror do sistema de campo de concentração não reside no extermínio abrupto e imediato da vida humana, mas na lenta e agonizante decadência da vida humana. corpo e mente” (2014: 83). Essas características também são proeminentes na trilogia de Diaz de pós-trauma. Os protagonistas dos filmes lutam contra um colapso mental gradual, e a morte deles vem lentamente como resultado de repetidas infligências de ataques violentos e não violentos durante um longo período de tempo. Há uma tensão entre a pulsão de morte dos personagens, que, eles acreditam, acabaria com o sofrimento deles, e os perpetradores ‘segurando as cordas da vida e da morte de suas vítimas.

Terror, Medo e Tortura Psicológica

A morte está presente em todos os filmes de Diaz, mas, como mencionado acima, ela sempre vem devagar, o que agrava o sofrimento dos personagens a um nível quase insuportável. Há uma coexistência aparente da extremidade e do cotidiano, o que causa rupturas inesperadas e impulsiona o espectador a perceber os eventos traumáticos que acontecem aos personagens, que são ou foram alvo de forças governamentais opressivas, independentemente de ser o colonizador ou o ditador, e eles se transformam em cadáveres vivos como resultado disso. Em uma entrevista, Diaz sustentou que o conceito de “aplica-se tanto ao caráter da psique filipina. … É exatamente a palavra para esse tipo de sofrimento” (Diaz, 2014). O que é notável em filmes como Melancolia, Encantos e Florentina Hubaldo, CTE, é que os protagonistas dos filmes são capturados em uma teia apertada de medo e terror persistente. Essa atmosfera de medo e terror, que Diaz quer que o público sinta, é complementada, se não iniciada, através do uso de espaço fora da tela por Diaz, onde ele posiciona, entre outras chaves narrativas, os perseguidores dos personagens. A violência acontece fora da tela, onde é audível, mas não visível, colocando o espectador em uma posição aterrorizante (aterrorizada?). A ênfase é colocada não em mostrar, mas em uma presença ausente que cria uma atmosfera assombrosa em todos os filmes. Os personagens são confrontados com terror psicológico, guerra mental, bem como tortura mental, que os transforma em cadáveres vivos na tela. Nas palavras de Diaz: “Em algum momento a morte virá. É como uma coisa pré-mediada. … o inferno está chegando, e é sempre assim. É como um campo de concentração. Você é compartimentado; este é o novo grupo, precisamos orientá-loscomo trabalhar nessas coisas, então, no próximo compartimento, não os alimentaremos, e o próximo compartimento é a câmara de gás onde os matamos. Então é parte da compartimentação. Há morte lenta.” (Diaz, 2014)

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Florentina fala sobre sua provação. – Florentina Hubaldo, CTE (Lav Díaz, 2012)

Ausência e duração

Como podemos deduzir de todos os itens acima, há duas características principais que se destacam nos filmes de Diaz, os quais ele usa para evocar, primeiro, uma sensação de um universo de concentração em que seus personagens estão aprisionados e, segundo, o pós-trauma do qual eles não podem escapar. Ausência – a ausência visual de violência ou de eventos traumáticos no total – e a duração em forma de longa duração e estagnação são uma marca registrada do cinema de Diaz. A interação entre os dois cria uma rede apertada de cenas experienciais que visam tornar o concentrador palpável para o espectador.Essa abordagem específica permite que o diretor traduza o pós-trauma de forma mais adequada na tela do que normalmente é o caso do Cinema de Trauma. Ao contrário dos filmes de trauma popular, Diaz se concentra na estagnação da narrativa de vida de um sobrevivente. Ele representa pós-trauma como uma lenta progressão do sofrimento (e possível cura). A duração muitas vezes esmagadora de seus filmes – em média entre seis e oito horas – enfatiza o aspecto da duração do trauma, em particular o tempo que leva para o trauma pós-greve, e para o sobrevivente chegar a um acordo e lidar com o novo desafio. Ele minimiza a instantaneidade e, assim, estabelece uma abordagem, que o diretor húngaro Béla Tarr também usou em seus filmes. Em sua análise do olhar no cinema de Tarr, escreve Bernhard Hetzenauer, “ao usar longos takes, a progressão narrativa está subordinada a uma descrição detalhada da atmosfera e ao significado dos gestos dos personagens. … É simplesmente sobre uma única ação de um personagem dentro das teias do tempo …” (2013: 86). Em outras palavras, em vez de desafiar um personagem do filme com várias ações diferentes, Tarr – assim como Diaz – enfatiza o impacto de um único evento no personagem, permitindo que o tempo (cinematográfico) revele o impacto psicológico e suas consequências. evento para o indivíduo.Melancolia, Paralisia e a Morte Dirigir Deixe-me ilustrar a abordagem de Diaz para uma representação de pós-trauma através da justaposição de ausência e duração, olhando para a terceira parte de seu filme de oito horas Melancholia, que se concentra nos desaparecidos das Filipinas, os desaparecidos . O filme segue inicialmente Alberta, Rina e Julian, que se envolvem em uma forma de terapia de imersão, a fim de combater sentimentos de dor, perda e tristeza. É uma tentativa de encontrar o fechamento à luz da incerteza arrogante do que aconteceu com seus entes queridos na ilha de Mindoro, na primavera de 1997. Os dois principais pilares do filme são guerra psicológica e paralisia, levando a uma lenta descida à loucura. e incutir uma forte pulsão de morte em um grupo de combatentes da resistência.

A terceira parte do filme, que é um flashback (embora não claramente indicado como tal pelo diretor), posiciona o espectador temporariamente nos anos 90. Está situado inteiramente na floresta, concentrando-se em três combatentes da resistência na ilha de Mindoro, que é cercada pelos militares. Diaz abstém-se de representar visualmente os militares e usa essa ausência visual dos autores para se concentrar na queda psicológica dos combatentes da resistência. Nesta mesma parte do filme, Diaz enfatiza o uso de guerra psicológica e tortura mental, aspectos que são características primordiais do sistema de concentração. Após a morte de sete membros de seu grupo rebelde, os três homens estão isolados no bosque da ilha de Mindoro, que é, segundo um espião local, cercado pelos militares: “Eles disseram que vão garantir que todos vocês morram. Em vez de retratar o impasse entre as duas facções diretamente, Diaz transmite a gravidade da situação através do silêncio opressivo dos personagens. Os homens têm pouco a dizer um ao outro. Exceto por breves instruções uns para os outros sobre onde se esconder ou se mudar, eles estão mentalmente em seu próprio mundo e tentam chegar a um acordo com sua situação desesperadora e a perspectiva de morte certa por conta própria. Há uma sensação de opressão, claustrofobia e incerteza palpável ao longo desta parte do filme.

É esse “luxo” que o lutador agora insano da Melancolia está exigindo, gritando e gritando para que os militares finalmente acabem com seu sofrimento. Isto é, no entanto, negado por um longo período de tempo, o que só aumenta a insanidade do homem e sua pulsão de morte. Quanto mais tempo ele passa neste período de incerteza e quanto mais ele sabe que a morte virá, mas não quando chegará, mais insano ele se torna. Além das breves explosões de frustração do lutador, os três personagens que Diaz segue são silenciosos, no entanto. Eles estão resignados com a situação deles. Eles são vistos andando de um esconderijo para outro. Em outras ocasiões, eles ficam imóveis e aguardam a “morte certa”, como um deles descreve em uma carta para sua esposa. Importante, Diaz posiciona o espectador semelhante aos dos personagens. Assim como os personagens, não vemos o inimigo. Diaz joga com o que Thomas Weber descreve no contexto de Caché de Michael Haneke como uma “estética da incerteza do público” (2014: 42), que confronta o espectador com “o incomensurável, algo fechado para a recepção do espectador” (Ibid., 45), e consequentemente coloca o espectador em uma situação similarmente estressante como os personagens.

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Três combatentes da resistência chegam a um acordo com sua situação desesperadora. – Melancolia (Lav Diaz, 2008)

É o tema da incerteza, combinado com a estética da duração de Diaz, que visualiza o aspecto do mais claro e concentrador. Os combatentes da resistência estão cercados pelos militares sem poder escapar, prendendo-os em sua localização atual. Eles estão em uma prisão com fronteiras invisíveis, em que se tem certeza de que a morte vai atacar, mas sem saber quando ela vai atacar. Duração como opressão e tortura é fundamental na terceira parte da Melancolia. Tudo o que o espectador pode fazer é sentar e esperar com os resistentes e desesperados combatentes da resistência, uma situação que se torna pesada depois de uma hora para espectadores e personagens, um ‘jogo de poder’ aos olhos de Michel Foucault: “O tempo penetra no corpo e com todos os controles meticulosos do poder ” (1991: 152). Enquanto Foucault fala sobre o tempo em geral, no contexto da guerra psicológica, a longa duração é um exemplo particularmente forte do exercício do poder. O objetivo é criar uma atmosfera aterrorizante e travar o alvo em um estado de paralisia.

Textos da Memória e o País Colonizado

Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)Visualmente, a chuva implacável é uma companhia constante e serve para reforçar a situação traiçoeira dos homens. A vasta paisagem da lama acompanha o colapso dos combatentes da resistência e sua afundar em uma situação cada vez mais desesperadora. A floresta, ou a ilha de Mindoro em geral, tornou-se uma armadilha e exerce pressão sobre os combatentes da resistência até que eles quebrem. Eles são esmagados pelo tempo e pela ansiedade avassaladora da “iminência imprevisível da morte”, como Pollock e Silverman descrevem em seu estudo sobre o comportamento dos prisioneiros no campo (2014: 9). Em vez de perseguir um tiroteio rápido e letal com os homens armados, as forças militares geram um estado persistente e permanente de incerteza para eles, o que leva à paranoia, desesperança e hiper-vigilância. A incerteza sobre quando a morte vai atacar impede que os combatentes desenvolvam o desejo de continuar a vida. Sua pulsão de morte aumenta a cada momento gasto no estado paralítico de nãosabendo. Os próprios detalhes da estética de Diaz para uma representação desse estado podem ser considerados como o que chamei de “tempo da morte”.

Lav Diaz e o tempo da morte

Na verdade, o Slow Cinema tem sido frequentemente falado no contexto de temps mort ou dead time. Depois que uma ação chega ao fim, os quadros permanecem vazios por vários segundos, o que testa a paciência do espectador. Os filmes de Lav Diaz não são diferentes, mas seu uso de longa duração e tempo morto assume outra dimensão. Ele cria algo que eu chamo de tempo da morte. A morte sempre vem devagar em seus filmes. Leva tempo, e não é tanto sobre o tempo morto nos filmes de Diaz, mas sobre a lenta descida à loucura, com a morte sendo um refúgio para os perseguidos. O diretor destaca o uso e os efeitos do terror na sociedade, e seus personagens morrem lentamente, dolorosamente e gradualmente durante um longo período de tempo. Sua morte é geralmente antecipada e conhecida no início do filme, mas quando exatamente a morte ocorrerá nessas oito ou nove horas, o espectador e o personagem não poderão conhecer o personagem, o que coloca ambos em uma situação igualmente incerta, desconfortável e aterrorizante. posição. O tempo de morte de Diaz é uma parte essencial do universo de concentração que ele cria e, junto com suas consequências estéticas, que enfatizam ausência e duração, forma o núcleo de seus filmes experienciais que visam libertar tanto o diretor quanto a sociedade filipina de traumas passados e presentes.

1 Uma análise detalhada do cinema pós-trauma de Diaz pode ser encontrada em minha tese de doutorado intitulada “A estética do
ausência e duração no cinema pós-trauma de Lav Diaz ”, disponível via The British Library.

 

Referências:

Des Pres T. (1976) The survivor – An anatomy of life in the death camps. New York, Oxford: Oxford University Press.
Diaz, L. (2014) Interviewed by Nadin Mai, Locarno Film Festival, Locarno, 10 August.
Foucault M. (1991 [1977]) Discipline and punish – The birth of the prison. London, New York: Penguin Books.
Hetzenauer B. (2013) Das Innen im Aussen – Béla Tarr, Jacques Lacan und der Blick. Berlin, Köln: Alexander Verlag.
Human Rights Watch. (2007) Sacred silent – Impunity for extrajudicial killings in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2007/philippines0607/ (accessed 15 October 2013)
Human Rights Watch. (2011) “No justice adds to the pain” – Killings, disappearances, and impunity in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2011/07/18/no-justice-just-adds-pain-0 (accessed 15 October 2013)
John M. (2014) Running the film against the reel – Locating Jean Cayrol’s Lazarean figure in Alain Resnais’s Muriel ou le temps d’un retour. In: Pollock G and Silverman M (eds) Concentrationary memories – Totalitarian terror and cultural resistance. London, New York: I.B. Tauris, pp. 83-99.
Koepnick, L. (2014). On Slowness – Toward an Aesthetic of the Contemporary. New York, Columbia University Press.
LaCapra, D. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore, London, The John Hopkins University Press.
Luckhurst, R. (2008). The Trauma Question. London, New York, Routledge.
Neurath P. (2005) The society of terror – Inside the Dachau and Buchenwald concentration camps. London, Boulder: Paradigm Publishers.

Nadin Main é curadora da Tao Films, distribuidora de filmes online dedicada ao Slow Cinema.

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NOTAS SOBRE O CINEMA

SLEEP HAS HER HOUSE

Por Scott Barley
Traduzido por Pedro Tavares

A escuridão sempre foi um pré-requisito para realmente entrarmos no mundo na tela, e sua importância na concessão de ressonância experiencial não pode ser exagerada. No cinema, as luzes se apagam. Nós esperamos em uma sala escura por um mundo de luz se abrir para nós, e enquanto nosso corpo pode permanecer em nosso assento, a essência incorpórea em todos nós caminha em direção à luz exuberante, assombrando-a, como nos assombra. Nossas almas investem, buscam na curiosidade e fome nas imagens e sons. O cinema é uma simbiose de assombrações. Entramos quando nos entra. Entrar no mundo de um filme é algo muito espectral. Realmente se submeter à experiência do cinema é como deixar as ondas do oceano baterem em você e não ter medo de se afogar. Estar nessa escuridão e deixar o filme nos envolver e penetrar é a própria definição de rendição. Para se entregar, para o outro.

A força do cinema também pode ser sua fraqueza. Com tanto poder do cinema vindo de sua singular distinção nas artes como bastardização de duas artes – imagem e som – criando cenários audiovisuais vívidos, muitas vezes não há espaço suficiente para o espectador sonhar, imaginar, questionar. Escuridão, ofuscação – tanto visual quanto metafórica – podem ajudar a criar um ambiente em que a imaginação pode coexistir e se harmonizar com o corpo do filme e criar uma experiência polissêmica absolutamente única para cada indivíduo, cumprindo essa simbiose.

A escuridão é uma textura, um véu, místico, um interior imaterial. É o sertão de onde tudo entra e sai. Todos nós uma vez ou outra sentimos que pelo menos por um momento vemos algo passando além daquele véu, onde olhamos para a escuridão profunda – a verdadeira escuridão – e sentimos nosso nervo óptico levado ao limite, vendo luzes estranhas emanando , dançando, aparentemente sem nada, além do limite de nossa visão, nunca muito certo se é nosso olho ou algo mais que é parte de nós, dentro de nós, ainda desconhecido para nós, permitindo-nos uma testemunha disso. A escuridão permite que o olho da mente abra, para nossa imaginação vagar. Ela recalibra e alimenta nosso relacionamento com nosso corpo, nossos sentidos e a paisagem além de nós. Eu quero criar um mundo que faça o conhecido se sentir desconhecido de novo, permitindo que aquele pulso frágil e profundamente intenso de curiosidade infantil que bate dentro de nós volte a se firmar. A escuridão nos permite entregar-nos a esse mistério, a essa maravilha e a nadar nela, e reivindicar nosso relacionamento profundo e paroxístico conosco e com o que está além de nós mesmos; afogar-se destemidamente é um salto infinito.

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Como cineastas – cineastas genuínos – não devemos ter medo de nos aventurar em direção ao que é considerado o inexprimível, o que não pode ser dito em palavras, mas sim o que surge apenas nos sonhos, criar um cinema além da figuração, além do objeto e, em vez disso, torna a liminaridade entre a luz e a própria escuridão como seu próprio sujeito, movimento e quietude como seu próprio sujeito, paroxismos de experiência como seu próprio sujeito, para expressar e experimentar o peso do que é conhecido e do que é desconhecido para nós. O desconhecido deve ser nossa luz, nossa atração, nosso guia para buscar novas imagens, novos sons, novas idéias e temê-lo; mas devemos nos submeter a esse medo. Você não está fazendo nada que valha a pena se não sentir medo.

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Como aquelas aparições que espreitam, depois dançam conosco, que nos desarmam, nos seduzem até quando viramos nossos pescoços, e olhamos para o caminho que percorremos, e no escuro, além das árvores, eu também quero desarmar, e seduzir através da renderização do visível invisível. Eu quero seduzir através de ofuscação, verdadeira ofuscação, sugerir um além, uma liminaridade suspeitamente encoberta dentro do ‘fuscus’.

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Escuridão é onde todas as coisas estão funcionando. Onde todas as bocas e mãos estão dançando. A escuridão é sempre preponderante. E a escuridão está sempre com fome. Quer sua refeição. E às vezes, devora.

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A ciência provou que somos literalmente feitos de poeira estelar. Nós podemos olhar – em reverência – do céu noturno. Por causa de quão longe a luz tem que viajar, olhar para as estrelas é olhar para o próprio tempo. Essa infinita piscina negra é uma catedral cheia de fantasmas; os fantasmas de estrelas … estrelas que em alguns casos não existem mais – as mesmas estrelas das quais somos feitos agora. É como um fóssil – mas também é um reflexo. Talvez não tenhamos outro propósito senão um dia retornar, passar por aquele espelho e nos unirmos às estrelas que nos nasceram. Para se tornar o todo – novamente.

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Não tenha medo de imagens. Tenha medo das palavras: diálogo. Cinema não é literatura. Literatura é literatura. Cinema não é teatro. Teatro é teatro. Você é um cineasta e seu vocabulário é vasto, infinito – qualquer imagem, qualquer som e qualquer combinação. Palavras evocam imagens. Se a imagem já existe, não há nada a ser evocado. Isso existe. Deixe respirar. Pode respirar sozinho se for forte. Deixe sua força estar em sua vulnerabilidade. Deixe-o revelar sua vulnerabilidade. Se usamos muito as palavras no cinema, estamos apenas usando palavras para ajudar uma imagem fraca ou para conquistar a imagem. Como cineastas, somos conjuradores e não devemos ter interesse em conquistar nada.

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Cinema somos nós, olhando para um espelho trêmulo. É uma vida que dança escondida atrás das árvores, além do horizonte. O cinema não é nossa construção. Cinema somos nós – desconstruídos.

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Nós voamos sobre uma lágrima na imagem, um oceano. Nós ouvimos o vento cantando. Então um nada perene. Um cinema de prisioneiro. O filme nas nossas pálpebras. O projetor está piscando. Uma tela negra de nada sonoro. Nós somos um nada dentro de nada. Nosso escuro interior nada no escuro. Um anel silencioso. Nós flutuamos, contidos nele; a própria câmara de eco do corpo, gritando e ouvindo nada além de nossos próprios uivos silenciosos e devastadores. Cinema é vida, dentro, fora de nós.

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Como Emil Cioran disse: “Escreva livros apenas se você for dizer neles coisas que você jamais ousaria confiar a ninguém”. O mesmo se aplica ao cinema. E gostaria de acrescentar que você põe em seu trabalho aquilo que você jamais ousaria confiar a si mesmo, ou mesmo desejar entender. Não é uma revelação, ou um “derramamento” de lógica, não é senão um dilúvio de sentimento puro e não adulterado; sentindo-se sozinho. E o sentimento puro não pode e não deve ser traduzido em pensamento racional.

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Para mim, a verdadeira essência do cinema não é simplesmente animar. É desanimar. Eu sempre começo um filme quase como se fosse manter um diário. Eu não tenho ideia ou agenda para fazer um filme. Eu simplesmente documentei. Eu filmo o que me atrai, coisas aleatórias, animais, variações na luz, a água, as estrelas; simplesmente o que me atrai em dias diferentes, noites diferentes, em lugares diferentes. Depois de construir um corpo de imagens, começo a ver conexões. Essas imagens podem ser filmadas com meses ou até anos de diferença – e milhas também. Assim como em Hunter (2015), existem sequências em Sleep Has Her House, que são compostas de tomadas filmadas em dois países separados que são então costuradas de forma invisível. Mas essas conexões entre diferentes partes de filmagem acontecem organicamente. Eu nunca forço essas conexões. Eu nunca forço um filme quando ele não vem. Os filmes me encontram – não o contrário. Quando eles ganham vida e começam a se contorcer, eu simplesmente aguento. Todos os meus filmes foram feitos assim. Alguns acontecem mais rápido que outros. Uma vez estabelecidas essas conexões, uma narrativa – através de imagens – começa a germinar.

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Eu acho que a internet tem um papel fundamental a desempenhar para derrubar os muros do elitismo econômico e da censura sociopolítica que impedem que muitas pessoas acessem as artes, a informação e a verdade. Um artista precisa ser pago, mas também o trabalho de um artista precisa estar disponível para todos aqueles que desejam procurá-lo.

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A realidade da sensação vem em primeiro lugar. A lógica vem depois. Nestes momentos da câmera se tornando o corpo, nós, o espectador, assumimos o corpo do protagonista. Nós abrigamos a tela. Nós assombramos o próprio fantasma da imagem, nós gravamos o avatar impregnado na imagem. Continuamos fora de nós mesmos e, com isso, desatamos a imagem. Isso fratura. Nós nos tornamos a própria vibração da realidade da imagem; uma realidade espectral que está em fluxo aglutinado com o nosso.

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Ser real é forjar. Ser real é enganar. O cinema é real porque engana; é forjado. Para se tornar real, devemos nos enganar e, mais uma vez, nos tornar o animal. O animal é o que vemos na tela.

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O que é mais real do que o nosso ser não adulterado? Nossa inatitude? Ao longo da história do cinema, a definição de cinema realista tem sido sobrecarregada por um critério incrivelmente estreito. Os filmes que fizeram a nota são quase sempre sobre circunstância sociopolítica. Independentemente de quão importantes e bem feitos são esses filmes, essas explorações não se preocupam apenas com construções feitas pelo homem, com excessos feitos pelo homem; muitas vezes atormentado por um dilúvio de verossimilhança espúria? Se assim for, pode realmente ser considerada realidade autêntica? A tabulae rasae é incivilizada. Ela caça. Isso fode. Grita. Ele treme… O que é mais autêntico, mais real do que a nossa inatitude?

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CINEOP: O DESMONTE DO MONTE (Sinai Sganzerla, 2018)

o desmonte do monte

Por Gabriel Papaléo

Viver no Rio de Janeiro traz sentimentos díspares como se espera de toda metrópole, com seus cartões postais, as belezas quase irreais, todo um imaginário artístico criado em volta, mas também o movimento frenético, olhares perdidos, rotinas desesperadas, as desigualdades socais. O contexto social está sempre em pauta diante da criação de memórias de uma cidade como o Rio porque os lugares guardam históricos, e alguns deles são carregados de opressão. O Desmonte do Monte, filme de Sinai Sganzerla, trabalha com essa presença fantasma de memórias opressoras, o horror da falta de registros, e os apagamentos urbanos que a causaram.

A estrutura abraça um didatismo nesse olhar procedural da historia que muito dialoga com Dawson City nesse sentido. Poucas vezes sai dessa escolha narrativa, mas nos momentos de retratar a queda iminente do monte Sganzerla assume uma dinâmica de filme de horror, no retrato de uma paisagem frágil e literalmente fadada ao desaparecimento. O som didático torna-se sugestivo, a trilha eclética larga a ironia e se concentra em momentos de suspensão cuja tensão emana especialmente da voz fantasmagórica de Helena Ignez.

O interesse historiográfico aliado a essa tentativa de articular o sentimento da perda sensorialmente carrega a montagem pelos 85 minutos sem que os dados cansem, ou que o tom solene enfraqueça a potência dos fatos. A recriação dos momentos históricos por relatos pessoais, seja de historias orais e fotografias amadoras a matérias de jornal e obras de arte, relembra que o curso narrativo discurso da Historia dos vencedores arranja esses documentos para gerar uma ideia, e o que Sganzerla faz aqui é esse esforço de organizar a Historia para privilegiar fatos que não tiveram acesso a ela – algo antropológico, por assim dizer.

As mazelas sociais do Brasil expostas em tela reforçam o discurso de minorias cuja Historia lhes foi negada, do apagamento indígena aos poderes que se renovam através de relações pessoais – o homem cordial, por assim dizer -, e a forma que por vezes o discurso fílmico fica redundante acaba devendo às repetições históricas que aqui sofremos. As limitações de O Desmonte do Monte acabam revelando sobre nossa própria historia corrupta como país, cujos instrumentos de opressão mantém-se dolorosamente similares. O impacto emocional das perdas de minoria soam menos desesperadores que em retratos com recorte mais específico – como a recente obra-prima Martírio, por exemplo – e algumas escolhas estéticas tratam de forma direta demais as associações do filme – como a escolha de For the Love of Money para tocar no momento em que a especulação imobiliária ali se revela – mas essas limitações originam dessa própria disposição de enxergar no monte um exemplo para nossa organização social enquanto país.

Falar sobre um panorama brasileiro tem dessas fragilidades, mas o recorte de Sganzerla é concentrado o suficiente para dar seu soco de revide com potência.

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O Atalante (Jean Vigo, 1934)

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Por Gabriel Papaléo

Uma das sessões especiais históricas do CineOP 2018 exibiu a obra máxima de Jean Vigo, O Atalante, numa cópia restaurada pela Cinemateca Francesa, para um cinema cheio como não fora o filme à época de seu lançamento. Por décadas as versões do filme eram variadas, cortadas contra a vontade de Vigo e remontadas após sua morte precoce. Em 1957, 23 anos após seu lançamento, o teórico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes propôs um revisão à obra junto a André Bazin após trabalhar anos na Cinemateca Francesa, e Vigo tinha sua obra à época adorada pela Nouvelle Vague. O esforço de Paulo Emílio culminou na escrita de dois livros, sobre Vigo e Miguel Almereyda, seu pai famoso pelo pensamento anarquista, e o resgate da obra do diretor.

É curioso que tenha sido um brasileiro a redescobrir o filme pois O Atalante esbarra das maneiras mais peculiares nas inquietações do nosso cinema, com suas utopias do mar e associações livres entre campo e cidade. A fuga da França do campo com a promessa farsesca de um ideal de família que Vigo observa com graça para então desvelar a cidade, descobrir seus prazeres e feiúras, no ato de amadurecer que nem sempre caminha junto com quem se ama. O navio atalante da mudança proposto como o dispositivo de transformação palpável da narrativa, fundamental para a demonstração dos prazeres da vida nessa estrutura de estrada aquática.

A disposição de Vigo especialmente para transmitir as formas abstratas entre os sentimentos do casal protagonista liberta a câmera para observação barroca do ambiente, do mar como sonho, do movimento dos barcos enquanto a noiva acompanha o ritmo, das edificações sempre à beira do rio mas raramente no quadro sob uma distância curta. Apenas ao adentrar nas expectativas de conhecer novas terras, desbravar novas historias, que os personagens entram em movimento e então aportam na cidade. A sequência do marinheiro contando das suas aventuras ao redor do mundo traz no seu quarto o retrato físico de uma vida perpassada pela tradição oral, pela confiança no outro, e é esse um dos singelos nortes de O Atalante.

Conforme a jornada de superação tanto do homem em perceber o egoísmo de seu olhar do relacionamento quanto da mulher em se permitir ter prazeres individuais diante da cidade, do conhecimento e curiosidade do que está por aí ao acaso, a câmera recontextualiza a abstração pontual e atenta-se aos retratos de pequenas angústias, do quarto sendo quebrado do marinheiro ao diálogo arrepiante de sombras entre esposa e marido sonhando distantes com o outro. A utopia do encontro se materializa no senso de humor e no olhar atento ao espaço ao redor – das coisas que mais ficaram comigo do filme -, e o rosto de Dita Parlo vira o foco absoluto dessa descoberta de mundo com a mesma empolgação e encantamento da câmera de Vigo, contendo todo o amadurecimento de encontrar em lugares e rostos uma casa.

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A Feiticeira Viúva (Xiao Gua Fu Cheng Xian Ji, Cai Chengjie, 2018)

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Por Kênia Freitas

Há em geral no cinema narrativo ficcional um jogo de crença e descrença entre o filme e o espectador. Uma relação que passa pela grande autonomia das obras ficcionais em criarem os seus universos e os seus elementos de entrada e saída da narrativa, mas também pela capacidade destas obras de sustentarem estes universos (ao menos em narrativas ficcionais tradicionais). A Feiticeira Viúva é um filme extremamente dependente do engajamento do espectador nesse jogo de crença e que tenta sustentar essa relação pela construção da sua protagonista.

No filme, a crença está no cerne da trama: Er Hao após perder o seu terceiro marido e sobreviver de forma inexplicável passa a ser tratada como uma feiticeira pelos habitantes de sua pequena aldeia. De início ela recusa o rótulo, mas vê-se levada após uma série de acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos a assumir o papel. A sua descrença aos poucos transforma-se em crença que dá vazão a uma autoconfiança que transforma a sua vida e a das pessoas ao seu redor. No entanto, novos acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos mudam novamente as relações de poder, condenando por fim o destino de Er Hao.

O filme no entanto é bastante questionável na forma em que se relaciona com a sua protagonista. Logo em seu início há uma cena de estupro de Er Hao filmada do seu ponto de vista. Simulando a visão da personagem no momento da concretização do ato, o filme nos mostra uma tela preta (como se ela estivesse de olhos fechados ou com vista obstruída). A cena é rápida e não mostra no quadro nenhum contato violento. Há ao longo de todo o filme a expectativa de que esse início resulte em algum pagamento, alguma resposta, alguma consequência na trama. No entanto, isso não acontecerá. A cena serve apenas para somar-se as desgraças que deveriam transportar o espectador para um estado de espírito abalado da personagem (efeito que também não se constrói dessa forma). Há um desencaixe enorme entre a violência psicológica e física que a cena sugere e o tom fabular despreocupado que a narrativa adota.

Um efeito semelhante acontece no final do filme, quando após uma série de desventuras Er Hao decide por se autoimolar – um desfecho recorrente para o destino de uma feiticeira. Para além do óbvio da escolha, é mais uma vez uma decisão pouco corajosa da forma de assumir a dor e o destino de sua protagonista: vemos uma cabine de madeira na qual Er Hao acabou de entrar queimar em chamas de forma lenta enquanto os créditos do filme começam, sem jamais vê-la novamente. Mais uma vez uma cena extremamente violenta é filmada de forma a não incorporar essa violência como imagem, mas apenas como efeito da trama. O filme segue limpo de qualquer sangue, mas requerendo uma cruel punição da sua protagonista como preço. Há em A Feiticeira Viúva uma descrença na sua própria narrativa, que se reflete nas imagens que o filme não tem força para sustentar ou assumir consequentemente.

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Boa Sorte (Good Luck, Ben Russel, 2017) e A Floricultura (La Fleurière, Rubem Desiere, 2017)

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Por Kênia Freitas

Boa Sorte é composto por dois filmes formal e estruturalmente relacionados, mas muito distante entre si pelas imagens que os constituem. Em comum está a proposta de filmar os trabalhadores em minas em condições extremas e/ou adversas de trabalho. A primeira parte filma os homens que buscam cobre em  uma mina estatal da Sérvia; a segunda filma mineiros piratas de ouro no Suriname.

Formalmente o documentário constrói um jogo de espelhos: começa com a apresentação musical na Sérvia e termina com outra no Suriname, entre os dois atos a maior parte do tempo é dedicada a um fazer documentário observativo das atividades de extração e do cotidiano dos trabalhadores. Uma observação paciente que busca a construção de registro do íntimo: nos dois trechos, o ápice sendo uma conversa coletiva entre os homens durante uma refeição que inclui o diretor e a câmera como participantes daquela intimidade.

Em cada um dos blocos essa observação é recortada por um dispositivo de encenação proposto pelo diretor: os trabalhadores entram em um ambiente isolado e devem encarar a câmera em silêncio por um determinado tempo. E nessa proposição o jogo de espelho entre os dois filmes começa a mostrar a sua fragilidade: o isolamento e o silêncio funcionam bem na primeira metade do filme (nada interfere na relação direta entre o espectador e aquele rosto em primeiro plano); na segunda parte porém, os sons ambientes invadem o dispositivo – saímos do confinamento isolado para um ambiente aberto, sem paredes, sem separação possível. Os mineiros do Suriname encaram a câmera, mas também reagem aos sons que atravessam a encenação – corrompendo a proposta do dispositivo.

Assim, ainda que o dispositivo seja o mesmo, são experiências distintas de relação com os trabalhadores e o seu ambiente. E, no geral, a sobreposição destas experiências não cria uma relação de contraposição que acrescenta novas camadas a recepção das imagens, que possibilite a criação de um terceiro filme que surja da relação direta dos dois existentes. Imageticamente a primeira parte é uma experiência de cinema bastante única com o jogo de escuridão e de luz da mina subterrânea e a sensação do confinamento incorporada de forma sensível a montagem do filme. Esta tradução fílmica da experiência dos trabalhadores na segunda parte é bem menos interessante. Se na primeira parte o documentário cria um repertório imagético belo e inventivo de imagens pouco ou jamais vistas, na segunda ele se depara com uma iconografia extensa e incontornável de imagens do século XX – a dos corpos de homens negros trabalhando na terra de forma precária. Diante desta iconografia, as imagens do filme se perdem de forma pouco propositiva diante de uma quase automática reprodução deste imaginário já desgastado.

Se a sobreposição dos dois filmes de Russel em si não se concretiza,  A Floricultura de Rubem Desiere é um filme que se beneficia bastante de ser exibido na mesma mostra que Boa Sorte (os dois filmes fizeram parte da mostra competitiva de longa-metragem). Observando as obras em sequência há uma trajetória delineada das relações capitalistas de trabalho e das suas condições: em ordem observamos a transformação capitalista do trabalho insalubre (parte 1) em trabalho pirata (parte 2) e finalmente em trabalho ilegal organizado socialmente em uma rotina (A floricultura). O cobre e o ouro se desmaterializam e tornam-se bens simbólicos das notas de dinheiro e promissórias guardados em um banco europeu. E o trabalho bruto e físico da mineração torna-se um trabalho de espera, observação, frustração e estratégia de um roubo.

            Assim o roubo a um banco belga executado por três jovens romenos é filmado como um ato trabalho, um processo – fora da tradição da contravenção como ato espetacular fílmico, ela torna-se ato do cotidiano, da repetição, da rotina. A observação documental de Russel dá lugar a uma encenação ficcional naturalista. E, embora grande parte do filme seja composta por diálogos entre os três personagens, não é uma dimensão da intimidade ou mesmo da subjetividade destes personagens que se instala. As conversas são mais um elemento sonoro, de assuntos triviais, que fazem o tempo passar, que marcam uma banalidade das relações.

Deliberadamente a subjetividade dos personagens ganha pouca dimensão no filme. Há dificuldade não de falar (as conversas são constantes), mas de comunicar pela fala. Há uma pista do não pertencimento romeno nômade na organização social europeia contemporânea – mais uma vez no rastro da desmaterialização capitalista em comparação ao Boa Sorte (onde ainda existem relações comunitárias sólidas tanto na Sérvia, quanto no Suriname). Desmaterialização que se reflete como um todo no fazer do filme, se em Boa Sorte estamos diante de imagens densas e formalmente hiper estruturadas, em seus melhores momentos A Floricultura consegue levar o espectador a uma experiência de rarefação e vazio da encenação e da narrativa refletindo o lugar no mundo incerto de seus trabalhadores ladrões.

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Cine OP: Mostra de Curtas

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Por Gabriel Papaléo

No terceiro dia do CineOP uma sessão especial de curtas ocupou o Cine Vila Rica, cujo recorte fora focado nos processos artísticos ao longo das décadas no Brasil, especialmente no período do Tropicalismo e do Cinema Novo. O foco do festival majoritariamente na preservação de filmes encontrou um diálogo forte com as diferentes formas de resistência oferecida pelos artistas da época, cujo registro narrativo de performances guarda não apenas uma tradução audiovisual dos diálogos com outras artes como também são documentos de resistência em tempos de perseguição no país.

A sessão curada por Lila Foster e Francis Vogner começou com Brasil, filme de Rogério Sganzerla rodado em 1981 numa ressaca de exílio que tenta dar conta dos sentimentos contraditórios que os signos atribuídos ao nosso país carregam. A fascinação com Orson Welles em sua passagem no país para rodar seu filme inacabado parece surgir como um desafio, questionamento desse homem cujo delírio de grandeza era entender o Brasil, e que foi quebrado justamente nessa tentativa antropológica que muito carrega de sequestro cultural estrangeiro. As imagens cartão-postal do Brasil, especialmente do Rio, apresentando uma melancolia de quem procura – e encontra – verdades nessas imagens banalizadas no uso para exportação. É na segunda metade que Sganzerla encontra uma antítese ao geral, ao macro, com o foco na gravação musical com Caetano, Gil e João Gilberto. No particular, no passional, somos compositores pensando a historia e tentando reagir as dificuldades, e cuidando para representarmos politicamente com cuidado até mesmo as imagens que nos foram sequestradas através dos reducionismos de sentido.

O que ressoa é sentirmos Cristo chorar de saudade de sua casa, e um tributo aos artistas que tentam traduzir esse espírito de um país em suas expressões artísticas.

A Fila, curta de Kátia Maciel, sucedeu esse olhar de tempos de mudança mas sob o viés mais burocrático do cotidiano. O olhar ansioso da câmera de Maciel abre uma breve cápsula do tempo com a burocracia sofrida pelos artistas em tempos de retomada, buscando rostos amigos por ali, encarando com certa farsa os problemas de incentivo que o cinema sofre no país através de uma escala micro, dessa fila interminável no prédio do Ministério da Cultura, habitado por quem espera viabilizar seus olhares e deve enfrentar uma estagnação por isso.

A dimensão lúdica dos atos de exercer a criatividade permanece em Ver e Ouvir, de Antonio Carlos da Fonseca, cujo foco em três artistas sessentistas na concepção de suas artes no presente à época preserva a intuição e experimentação de mundo através desse contato artístico.

O lúdico da arte contemporânea abre o filme com um plano em um parque de diversões, para então estruturar-se a partir de intervenções audiovisuais nas obras, de fato traduzindo um confronto apenas por deslocar essas obras de seus contextos originais e abri-las à cidade, a verdadeira protagonista do filme. Abre assim para o diálogo com o Brasil em tempos de dúvida, e ocupar a cidade com as obras para conversar com os rostos do cotidiano que com a incerteza lidam diariamente surge como dever cívico.

Se Fonseca adere a uma postura política de manifestos, Arthur Omar abraça a ambiguidade. O Som (ou Tratado de Harmonia) surge dessas dúvidas para experimentar performances na tentativa de conciliação e confronto entre a revolução armada e a sexual. A câmera passeia por rostos atravessando obras plásticas cuja força se dá na representação psicológica dessa ansiedade, enquanto o texto relata dimensões mais palpáveis diante das inquietações sexuais daqueles corpos. Um confronto que encontra em velhas utopias alguns conforto, não por acaso recorrendo ao mar como certo mediador (ou elemento de arrefecimento) das pulsões revolucionárias.

Ruído e Existência, de Carlos Adriano, adere a um dispositivo de fusões e duplicidade para conceber essa cidade que tem pesadelos estruturalistas. Talvez apoiado demais em uma ideia de exposição através do texto aparentemente abstrato e de certa fórmula visual estabelecida e repetida com poucas variações acaba parecendo um filme mais despropositado dentro da sessão, dialogando fielmente com uma tradição de quebra da superfície da imagem do cinema experimental e se contentando com isso, diluindo assim a potência política do relato visual dessa cidade de mistérios – ainda que a montagem costure bem a atmosfera provocativa do filme.

O fim da sessão levou as provocações de Ruído e Existência a uma forma mais frontal, com À meia-noite com Glauber, filme de Ivan Cardoso, e sua estética de Glauber Rocha e Helio Oiticica sob o filtro dos quadrinhos pop de Ivan Cardoso, a profetização via os iconográficos de gênero tão caros a Cardoso, mas aqui estranhamente despolitizando volta e meia as imagens dos artistas documentados. É com celebração e confronto que o terrir de Cardoso se estabelece, mas as imagens fora de contexto de Rocha caem numa possível fetichização que não está diretamente no cinema do baiano. O poder da montagem sempre deixa o filme interessante, e pelas contradições exibe um tom de desafio político que o sensorial camufla. Fora um ótimo filme para fechar a sessão, tão focada nos artistas e no que eles fazem para combater o status quo, e para Cardoso talvez esse confronto esteja irônico e desapaixonado. É uma visão que representa seu tempo, mas não necessariamente traz algo além do diagnóstico.

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