Textos por Chico Torres
MÁQUINA DO DESEJO – OS ANOS 60 NO TEATRO OFICINA
PAULO CÉSAR PINHEIRO – LETRA E ALMA
A PÓS-VERDADE NO É TUDO VERDADE
Por Felipe Leal
O terreno em que as possibilidades de encaixe de certos fatores também são capazes de criar existências em brecha, e aquele outro espaço, mais virtual, em que um número indefinido de atores entrará em consenso para definir a pertinência de nomenclaturas como existências exclusivistas, territoriais, se distinguem de maneiras inimagináveis à conversa comum, ainda que as questões de gosto estejam diretamente ligadas a questões de linguagem, de vocabulário. Mas poderíamos reescrever tal enunciado ainda de outra forma, exemplificada: quem diz o que deverá ser qualificado como música (com irrefutáveis poderes e diante de um espaço onde é necessário que um juízo se emita, como excludência e por parâmetros que importam a alguns), e quem, dentro de experiências musicadas, consegue interferir com adições ou flexões de elementos outrora “não musicais”, constituem e nos devolvem lugares de crítica e de experiência distintos, mas seguramente mesclados, numa história que é sempre contemporânea às suas possibilidades, entre as artes de fazer e aquelas de sentir/julgar.
Quando nas últimas décadas do século XX, do Reino Unido ao Japão e mundo afora, ruídos, chiados, distensões de sonoridades corriqueiras, silêncios, urros e intrusões do mundo dito natural, interferências e várias outras camadas inusitada de sons que nunca haviam participado da qualificação “música” (uma exclusão, inclusive, imprescindível para definir o conceito de gosto como assepsia), adentraram, por choques, nas camadas de produção e de crítica, não é como se repentina e ineditamente, na história e na história musical, chiados de televisões disfuncionais tivessem assumido um estatuto próprio nos lugares onde legislar o musical interessa, nem tampouco como se, para as camadas tidas como populares, independentes e menos criteriosas, a apreensão e distinta divulgação de certo gosto fosse, por sua vez, suficiente para legitimá-lo, sobretudo quando todo o universo musical (e não somente suas antípodas “participantes”) treme e se reformula em pontos de alargamento que somos todos mais ou menos capazes de reconhecer. Nem todo rewind constitui música. Não há música tão original e progressista que prescinda de certo efeito de retorno.
É dentro da sua polissemia, portanto, que a palavra ‘música’ e suas variações mais interessam, especialmente ali “quando” o campo semântico musical, por desaparição, vem se materializar num outro meio, à moda das virtualidades das vozes fantasmáticas que só nos chegam através de gravações antigas, cômodos e lares carregados dos assuntos não resolvidos neste plano, ou quem sabe dos ouvidos dos indivíduos a quem o corpo se entregou a certa fragilidade veicular, afetada. Mas, mais especificamente, um fantasma é capaz de canções?, uma vez que sua presença não se faz completa aqui, e considerando-se que seu canto não seria nada além de balbucio das coisas terrenas àqueles que não o ouvem de fato nem de direito?
O que leva, portanto, um cineasta alemão radicado nos Estados Unidos a tematizar, destes, através da moralizante e genérica distância entre campo e cidade, a redenção de um marido cristão perante uma esposa que tentara matar?, fazendo-o não somente ao não sub-entitular o filme como uma história, uma tragédia, uma pintura ou uma cena (trata-se de Aurora – Uma CANÇÃO de Dois Humanos, 1927), como, paradoxalmente, ao prezar de toda sua tipologia de cinema mudo aquele lugar em que mais pode haver a inóspita nascença de uma canção.
Na aurora do rosto redimido, no instante em que somente algo que precisa nos (ir)romper como um som é capaz de quase antecipar à vida vivida o vislumbre, o fantasma daquilo que ela poderá ser – ou do que poderia ter vindo a ser, nunca tendo sido –, é que seu diretor tinge este filme de fantasmas e formas do som, num estado de suspense em que aquilo que já foi visto em demasia é feito UMA imagem da qual é impossível se desgarrar. Cantar, atingir um estatuto de canção através de um instante e sem precisar responder à Música, cantar, para Friedrich Wilhelm Murnau, é deixar-se assombrar, sendo todo ouvido, pelo fantasma do desejo da outra vida. A canção é o índice desta imagem que não ultrapassou um regime nem permaneceu no seu de pertença. Pois a tristeza da esposa interpretada pela lendária Janet Gaynor é por ainda ver seu marido ali, mesmo quando sumido, seja à mesa de jantar, no choro do filho, ou, com expressiva amargura, na mesma cara com quem tem de conviver todos os dias e com a qual, alhures, disse “sim” (não esqueçamos: o cinema já dependeu com triunfo de seus rostos). E de onde viria, então, “a outra volta do parafuso” dele, a serpente apta a lhe fazer de fugitivo? De duas imagens, cujo privilégio de espectadores contemporâneos – a tantas revoluções do som e do corpo “percebente” – deve inclusive nos servir como munição.
Quando lhe seduz à lua da lua numa espécie de canavial de espelhos melífluos, a “mulher da cidade” consegue produzir à mente daquele sujeito uma inebriação tamanha, que os recursos de edição de imagem, precisamente no atraso datado em que os engavetamos e inscrevemos gramaticalmente, ganham uma superfície de proposições para a qual a passagem do tempo não poderia ter um valor de arguição mais desprezível: como se estivessem assistindo a um quadro de cinema, a sequência musicada de uma banda de trombones, tubas e trompas, ao mesmo tempo extra e intra-diegeticamente, consegue assombrá-lo com a perspectiva de liberdade corpórea na grande cidade. Ele é seduzido por algo que não ouve propriamente, mas que, como imagem também inexistente, não deixa de formar um tempo excepcional nem de chegar-lhe às sensações “verídicas” por ouvidos que não aqueles dois.
Em Aurora, essa febre de e por imagens, às maneiras da tortura que enaltecem aquilo que é da ordem do desejo inatingido, e que só nos será eliminada com a eliminação visível de algum dos componentes do jogo, consegue e conseguiu atingir, nos níveis de cognoscibilidade do cotidiano e de projeções sobre o tempo da expectativa futura, o estatuto particular de pertencer à vários campos. Em 27, já cabia às ordens de tratamento psíquico a libertação dos efeitos nocivos da vida de choques mal elaborados; cabia ao governo de infraestruturas os meios e possibilidades de ascensão social e econômica, e, portanto, os meios de garantia de trabalho (algo, sabemos, atado ao quesito do tempo); e cabia ao próprio povo a investigação e correção de tais ou quais valores cuja sedimentação e vigia ainda supõe outras camadas de re-aplicabilidade dos interesses.
Ora, é nesse nó de complexidades inevitavelmente físicas que a redenção daquele marido, ainda que impulsionada por uma época em que a moral deveria incrustar cada segmento, interior, exterior, prévio ou corrente, do monumento denominado ‘filme’, passará, também ela, por uma torção das principais experiências que o citadino almeja modelar. Empreitada subversiva e que, sem dúvidas, só poderia advir da interpretação de Gaynor de uma esposa incapaz de aceitar que interpretem, em nome dela, qualquer signo da felicidade, ou da felicidade marital. Muito do que surte efeito nele nos é repassado, uma vez que aquilo que é imutável, ordinário e até mesmo “pouco refinado” sobre aquela mulher passa a integrar todo tipo de florescimento cuja potência dramática jaz em neutralizar a moralidade até o ponto em que o mais geral é o mais fortuitamente indivisível, singular, no meio do caminho entre apenas um e todos os ninguéns.
A emoção batida, ao que parece, “anonimiza”. O que todos, repetidamente, sentem, convencionamos não ter o rosto de ninguém em particular; e o destacamento da unicidade isola esse esvaziamento de localização precisa, só parecendo elevá-lo a um Único, quando em verdade mais acaba por fazer do “apenas um” um “só mais um”, munindo essa canção de dois humanos de um anonimato como que inédito. “Um” sozinho para sentir se torna esse “qualquer” capacitado de sentir por todos. Mas o que assim o capacita?, só uma pergunta mais longínqua poderia perguntar de novo: estaríamos, afinal, longe da semelhança com a qual aquele sinal recebido por Moisés o obriga a sacrificar seu próprio fruto na terra – em nome Dele? Afinal de contas, a recusa desse dado do anonimato que se contenta com o esquecimento é uma das tópicas do fervor da lógica cristã: uma vez dado o sinal da Significação, a vida devém o cumprimento irrestrito das Leis que agora lhe guiam. Se, como o intertítulo coloca, aquela é uma historieta de lugar nenhum (não precisa ter acontecido, já tendo acontecido milhares de vezes) e de todo lugar (a vida implica repetir), somos reinstalados naquela máxima de Tolstói que inicia Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. É a qualidade, portanto, da sua miséria, que colocará sua vida ao ponto supremo de distinção – aquele mais terrível, da ordem da distância até meu limite, e pelo qual venho a desconhecer que me desconhecia –, o que é seria o mesmo que dizer: é o reconhecimento do quão longe pôde ir, ainda que sob o custo da miséria, que o coloca aos pés da redenção.
Quando está prestes a enforcar a esposa num passeio de barco dissimulado (a cena foi replicada dezenas de vezes, mas talvez nunca tão assustadoramente como quando atuada por uma diabólica Gene Tierney em Amar Foi Minha Ruína (Leave Her to Heaven, 1945), Murnau parece assumir essa inteligência que consiste em estar corrente à sua época, e que geralmente atribuiríamos aos maiores e menores graus de consciência e coincidência, como se o cinema fosse arte das intenções. Ele esconde “o motivo” da impossibilidade do crime (notemo-lo bem: a psicologia, o traço, aquilo que grafa de alhures), e faz do “retorno” à uma “supraconsciência” culpada, reparadora e autoreparadora, na verdade, um exercício da contra-profundidade novamente marcado pela metáfora de uma música – a dos sinos, neste caso – potente o suficiente para que o ouvido seja o canal de um redespertar, de uma redescoberta a algo a que já se estava entregue. Anjos, afinal, e seus instrumentos de sopro das boas-vindas à Redenção.
Ele redescobre, “sendo infeliz à sua maneira”, uma teia de aproveitamentos, truques, trapalhadas e gozos ao atravessar a cidade com a esposa, e fá-lo ao, através dela, “ouvir de novo” todos os sons e signos de uma fruição infiltrada. Num parque de atrações em que o salvamento de um porquinho fugitivo e embriagado rende silvos, operetas e números de festejo, a banda lhes ofertará, por indicação do maestro, uma “canção de verão camponesa” – mas não subsiste, ali, qualquer espetacularização que os rebaixe; eles são, ao contrário, aqueles a quem é repassada a regência da felicidade. Num outro momento, sabendo que seu exagero o levaria a pedir uma garrafa de espumante mais cara que as economias em seu bolso reidimido, ela o permite se extasiar com a liberdade imaginária do pedido, para, como uma assistente de palco após sucessões de baquetas, revelar as moedas “perdidas” que pagariam a conta.
Para aquele casal como que recém-casado, esse tempo de exposição de uns pelos outros, como forma de captar um instante de surpresa, articula também a repetição de números, esquetes, verdadeiras tramas circundando um objetivo ainda mais superficial do que a manutenção sincopada da felicidade regrada, moralizada. Trata-se de desejar ver o tipo de amor que brota quando o rosto é levado a um exagero, à produção de excedentes, à surpresa contaminada de uma originalidade repentinamente vidente – como só a criança exposta ao tempo da repetição de sua exaltação pode sentir. O fator de guia da legislação
cristã é seguramente óbvio, mas que o marido tenha uma segunda e ainda mais incorporada onda de arrependimento ao visualizar, com a esposa, outra performance de casamento, agora testemunhada de fora, significa, para aquele momento que é pura reverberação adiante, que só a reiteração da Palavra do contrato simbólico poderia o arrancar da percepção cristã em direção à ação cristã. O momento, a unidade de tempo compartilhada, vem a ser a força superior à qual ambos estão endividados, felizmente endividados. Também Deus trama pactos em vida.
Mas o esforço sobre-humano da esposa em elevar as confirmações de seu amor à uma exterioridade semi-anímica, isto não deve ser esquecido, atinge as proporções simbólicas e sobrenaturais que invariavelmente melhor encontramos nos gregos. Não deve nos espantar, ainda mais uma vez, que somente cinco anos antes de Aurora, em 1922, com Nosferatu (Nosferatu – Eine Symphonie des Grauens), Murnau tenha não só se abstido de esconder, como realçado, na forma de dispositivo de edição (de cesura), aquela falha hologramática de imagem cujo efeito é “perfurar” a reprodução de um outro rolo de imagens.
Em cena antológica, veremos Janet Gaynor e George O’Brien atravessar uma avenida sobrelotada como se pisassem em direção à uma cena de ação magicamente sonhada na câmara de um estúdio fotográfico, tão inquestionavelmente “real” que a pose diante do mundo será esquecida em favor da paixão da qual resulta o melhor instante. Metafórica, técnica e fisicamente, eles são embalados pelo próprio jardim de visões autogestadas. Uma licença do acontecimento mais-que-comum para ser duvidoso, mas impresso de forma que uma realidade física se insira numa realidade materialmente “pelicular”. Com um truque semelhante ao das fotografias chamadas “espíritas”, que jogavam com o tempo de exposição para simular amalgamações desmaterializadas à superfície química, maquina-se a suposição de um tempo suspenso em que estaríamos aptos a atender, isoladamente, a uma chamada de semi-presença, sem que os choques do real nos atinjam. É a título de fantasmas crentes, então, que flutuam temporariamente por uma minhoca inacreditável de trânsito-jardim.
O efeito de Eros é o dessa “febre de imagem” que distorce o cônjuge e coloca-o sob um denominador particular: sendo também alguém, ele não pode ser, com efeito, meu ideal; mas posso com ele, pelo menos, viver algo como um espaço ideal. Só com ele posso viver essa sublevação do mundano ao simbólico e, quase literalmente, recortar a cidade, obliterá-la, viver dentro dela sem que me ultrapasse(m) ou que minha imagem me seja desapropriada. Feito dos deuses, decerto. E, portanto, uma redenção especular. Mas também por isso passível da ira divina a que apelidamos tragédia. O atiçar desses literais protagonistas em direção a um tempo dedicado a essa forma crescente e “cega” de júbilo, cujo envolvimento com a naturalização do aspecto artificioso da mecânica moral citadina entende o circundante como um estímulo ao acúmulo de forças também “cegas”, parece fazer com que eles paguem o preço pela travessia, como nos episódios de tragédia mitológicos, ali quando mais esse jardim lhes parecer tranquilo e perene.
Podemos louvar Hitchcock pela estilização mais inimitável, “psicológica”, “dramática” – o superlativo pouco interessa – das relações da trama com a antecipação das chaves de suspense partilhadas com o espectador, que sempre toma conhecimento perverso dos detalhes antes que seus protagonistas e é duplamente solicitado ao pavor, mas é também ardilosa nas mãos de Murnau a apropriação desses signos dúplices, marcadores, como no caso do cãozinho que tenta impedir a esposa de compactuar com aquele passeio de parco, de um perigo que é grafado também com maiúsculas. Pois assim que aquele cachorro começar a se esgoelar em latidos obviamente abafados, a extração do audível daquele acontecimento que não deixa de ser sonoro faz dos pequenos gestos a transfiguração de algo mais ou menos legível em uma confirmação premonitória insólita – ainda que somente o espectador possa ver o trágico se inscrever ali. Quanto menos ela ouvir, CONOSCO, o verdadeiro improvável sentido do cão, mais continuará sendo traída pelos olhos. Mas como este espectador o vê, o signo da tragédia, então? El o vê mudo. Os sentidos divergem quatro vezes – estamos no domínio das paixões.
Na réplica de sua lua-de-mel, replicando também o passeio de barco de horas atrás, e quem sabe até mesmo o lago das promessas e futuros uma vez mais límpido (em outras palavras: em plena ingenuidade sobre o flerte com o perigo das probabilidades), eles são tentados pelo destino pelo que certamente não será a última vez, ainda que isto não deixe de marcá-los, como será testemunhado, com a circunvolução de ondas cuja efetivação os tolheria “para sempre” de um investimento amoroso e moral sentido como o Último; aquele, enfim, do qual eles não se recuperariam. E é também com um golpe sonoro, uma chamada mais entranhada e inédita do que aquela da morte, a de um nome tão anônimo quanto inexistente e vivo, que o rosto de um anjo retorna para, “muito além da moral”, nos justificar, fora de nossos poderes senão aquele de amar, e a partir de seus próprios meios de duração, por que as paixões e o cinema precisam, de fato, de rosto: em nenhum outro lugar a natureza fugidia do mistério se recolhe e se exibe tanto.
EDITORIAL: O SER COMO PAIXÃO
Diogo Serafim
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ATLANTIQUE (MATI DIOP, 2019): PAIXÕES (DES)POSSUÍDAS
Kênia Freitas
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CONSTELAÇÕES O CINEMA DE HELGA FANDERL
Por Gabriel Linhares Falcão
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NO CAMPO DAS PAIXÕES
Pedro Tavares
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ENCLAUSURAMENTOS SENTIMENTAIS, FÍSICOS E FÍLMICOS E A PAIXÃO FANTASMA EM “MANJI” (1964)
Anita Gonçalves
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A PAIXÃO PELO PODER DE ALGUNS ENCONTROS RESPLANDECEREM FRENTE AO CAOS
Lucas Saturnino
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A DOUTRINA DOS AFETOS
Chico Torres
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DOIS FILMES NECRÓFILOS
João Pedro Faro
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“A ATRIZ FOI CRIADA ENFIM”: ESTHER KAHN (2000) DE ARNAUD DESPLECHIN
Natália Reis
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NAS ANTÍPODAS DA PAIXÃO: O SER COMO INSTÂNCIA DE MODULAÇÃO
Luís Flores
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KARIOKA – TAKUMÃ KUIKURO (2014)
Geo Abreu
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A PAIXÃO SEGUNDO A MORTE
João Lucas Pedrosa
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NOMAD À DERIVA E O CORPO COMO UTOPIA
Beatriz Pôssa
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DE ONDE VEM ESTA MÚSICA?
Felipe Leal
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Por Pedro Tavares
O futebol exerce sobre o povo um poder que só se compara ao poder das guerras. Leva um país inteiro da maior tristeza à maior alegria. Para explicar esse fenômeno, há duas teorias: uma diz que a bola de futebol é um símbolo do seio do ventre materno, de modo que se compreende o ardor que os jogadores disputam um jogo e a preocupação dos torcedores com o destino da bola. A outra teoria, mais sensata, diz que o povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um processo de frustração na vida cotidiana. O universo lúdico do estádio é um campo mais cômodo para o exercício das emoções humanas.
(Garrincha, Alegria do Povo, Joaquim Pedro de Andrade)
Onze jogadores em campo em Garrincha, Alegria do Povo:
1.
No espaço não-linear utilizado por Joaquim Pedro de Andrade para empregar Garrincha como um fenômeno inerente aos valores do povo, indo das vitórias da seleção em 1962 e 1958 à derrota de 1950, no Maracanã, o que está em jogo a cada plano é a paixão que existe nessa interpenetração de mundo que rege emoções: Nele está o estudo dos corpos em ação nas mais diversas vertentes: do aquecimento no vestiário ao desespero emocional nas arquibancadas. É um filme que não se contenta com os relatos, mas sim com a ideia de recomposição e de novos significados através das posições das imagens, o que parece sintomático para um filme que envolve corpos e o social.
2.
Assimila-se, no quadro, a distância e Garrincha como seu centro. Joaquim Pedro de Andrade chega a filmá-lo em sua cidade natal, Pau Grande, mas concretiza um tipo de respeito que induz a noção de realeza ao seu protagonista. Garrincha não é um personagem expressivo, porém está sempre em atividade. Sereno com a formulação e execução de seus deveres, seja no campo de General Severiano, casa do Botafogo de Futebol e Regatas, seja na final da Copa do Mundo de 1962, jogando com febre e sentindo a ausência de Pelé em campo. A emoção, neste sentido, é contida até mesmo pelo realizador, como um movimento de respeito máximo a quem se filma.
3.
A lembrar que cinema é linguagem, a citar André Bazin em O que é o cinema? (1958), a maior delas aqui é a fixação ao ritual. É no processo de deslocamento ao estádio, na compra de ingressos, na espera pelos times em campo, pelo jogo em si e pela volta para casa acompanhada de uma alegria extasiante ou de uma ressaca indescritível. É um tipo de emoção que pode ser podada por qualquer acontecimento ordinário da “vida real”, mas a paixão por esta posição que é oferecida no dia domingo é perdurada e leva até o próximo apito do juiz, sete dias depois.
4.
Abro um parêntese para destacar que este tipo de paixão incontrolável aumenta conforme o time passa por uma montanha russa de emoções. Sabe-se que o Botafogo é um time com esta forte característica até os dias de hoje e a última colocação no Campeonato Brasileiro da temporada 2020/2021 não me deixa mentir. Apesar de seu apogeu estar na época de Garrincha, Manga, Jairzinho e outros, a câmera de Joaquim Pedro capta o time acuando os adversários como Flamengo, Vasco e Fluminense, mas nos olhos dos torcedores é possível notar a angústia e dificuldade que o esquadrão alvinegro passava no gramado do Maracanã.
5.
Garrincha: Alegria do Povo está longe de ser um filme límpido. O protagonista tem direito a uma só fala no filme. Suas palavras estão contidas nos gestos que transparecem sua personalidade: a brincadeira nos treinos, a tranquilidade dos dribles e o prazer em estar com os amigos em uma mesa de bar. Narrações em off pontuais. Os arquivos, como citado anteriormente, não são lineares. A derrota na final de 1950 vai para o fim do filme, depois de uma análise sobre os jogos de 58 e 62. Fotos. Muitas fotos. E são elas que captam melhor o espírito de um exercício apaixonado de 90 minutos. Com elas assimilamos uma descentralização em relação ao tempo e foco em um estímulo que independe de sua posição cronológica.
6.
Um filme que cria um conflito curioso entre os imprevistos de uma história com seu formalismo. A exemplo do momento que Garrincha assume ter dado um pontapé em um jogador e toma uma pedrada da torcida, o filme toma por iniciativa um momento de total sobriedade: a voz off narra o que de fato aconteceu. As informações são cedidas de modo que a construção lógica elimine a necessidade da existência deste fato em tela. E é isso que acontece. O filme se faz nos dribles da montagem, na visão torta do tempo e longe de uma dinâmica já estabelecida em documentários biográficos.
7.
Aproveito o número sete, místico para qualquer botafoguense, para dizer que a “máquina do cinema”, a citar um termo adotado por Ismail Xavier em A Experiência do cinema (1983), exige a crença no olho (p. 280), e que nesses “golpes de vista” o Botafogo vive suas duas vidas, não à toa como se divide uma partida de futebol. Um molde para que a câmera crie, em imagens descontínuas – ora o Botafogo joga contra o Flamengo, ora com o Vasco –, e essas transformações montam um clube que passa por seus altos e baixos em blocos.
8.
Nesse sentido, a vida de Garrincha fora de campo tem o mesmo peso que sua vida dentro das quatro linhas. E isso se dá pelo formalismo: nas imagens, os transeuntes no centro da cidade, os amigos em Pau Grande ou os companheiros de time e seleção circulam e circundam a alegria. E é para ela que a câmera aponta. O que interessa ao filme é, de certa maneira, como a engrenagem desta alegria funciona em todos os dias da semana como uma visão mítica da subsistência do proletariado.
9.
Um retrato desse jogador ainda no auge não é inerente à suposta emergência consumista. Um filme efetivo sobre Garrincha em ação é um registro histórico de um sentimento alastrado pelo Brasil, transformando em imagens o que o exercício lúdico do rádio criara.
10.
Enquanto constrói um mundo palpável através das imagens, Joaquim Pedro parte da ideia das arquibancadas de concreto, dos trens lotados, do centro da cidade repleto de trabalhadores na hora do almoço. Garrincha é atração em pessoa no domingo, mas suas ações refletem na segunda-feira. É um alicerce para um filme que recusa todo tipo de acordo com o olhar burguês; e é justamente nas imagens de formalidades que o filme é interrompido por um óvni capaz de jogar toda solenidade no chão: “Vasco!”.
11.
De certo que o filme não antecipa qualquer caminho trágico que a carreira de Garrincha tenha tomado e se concentra no sublime momento de manutenção semanal de uma paixão avassaladora. O sistema utilizado é sim dos onze homens com a camisa alvinegra ou da seleção, porém, o coração que bate é daqueles que roem as unhas, seguram os seus rádios colados à orelha, gastam toda sua voz conforme os passes e cruzamentos param em pés errados. Garrincha: Alegria do Povo, antes de qualquer contorno social, é um filme sobre a desnecessidade de explicação de como esta paixão alegra e derruba mais de 120 mil pessoas ao mesmo tempo e em um mesmo lugar.
Por Diogo Serafim
Onde nasce o impulso de filmar? Por que se dedicar ao registro de tempos já mortos? Da onde vem o gosto pela cristalização do passado?
Se o ato de filmar é, acima de tudo, modelar a matéria do mundo de acordo com um estado de espírito específico, o cinema é, por sua vez, a articulação do invisível através desse artesanato. A arte pressupõe um padecer do espírito por uma condição ontológica superior, isto é, um ímpeto vital que exige a entrega total de um sujeito frente uma representação das suas obsessões, memórias e paixões.
De qual forma esse circuito de afetos, interesses, sentimentos – esse circuito de paixões – afeta o indivíduo, seu entorno e, principalmente, como o ato de filmar esses desdobramentos eleva e intensifica ou empobrece e manipula uma realidade na qual o amor e o desejo para além da razão guiam e regem a existência humana?
Cézanne certa vez disse que gostaria de morrer enquanto pintava. Uma paixão que, no seu paroxismo, aproxima o indivíduo da morte. O próprio Bazin definiu a arte da imagem como a arte do embalsamento: se a morte é a vitória do tempo sobre a vida, por sua vez congelar a vida em uma película – isto é, na matéria do mundo – é uma maneira de resistir a morte.
Embalsamar o passado para embalsamar uma paixão, para que nesse exercício de conservar a estética do instante, seja como registro ou como representação, o sentimento possa ser eternizado de maneira adjacente. Para que um dia outras pessoas possam amar o que você já amou. Nós somos a história dos desejos desejados.
Mas um instante não é a descrição do mesmo. Confrontar uma imagem é confrontar a existência dela na sua memória, no seu espírito. Aí é que está o truque: essa abertura para o imaginário só pode existir enquanto abstração. O instante já ficou pra trás.
Existe algum estado de espírito que permita a vivência de algo para além da memória? Seria possível, com a força da representação, encontrar em um fluxo de imagens um resquício das coisas que você amou? Vivê-las para além da sua descrição. O problema da representação é esse: é difícil imaginar as coisas que não estão mais lá, mesmo quando elas se apresentam na sua frente. O cinema é uma busca, tentar encontrar alguma singularidade na qual o tempo e o espaço possam colapsar, mesmo que por um instante, onde a subordinação do espírito para a memória possa dar lugar a um absoluto fora de si mesmo.
Feche os olhos e veja. Boa leitura.
Por João Pedro Faro
Como olhar para os nossos mortos? Não parece existir possibilidade de registro do cadáver que não perpasse por uma profunda relação entre o objeto morto e o objeto vivo que o registra. A integridade existencial de ambos está em xeque, em estados opostos do espectro consciente. Na ambiguidade dessa relação intrínseca a esse registro é costume que predomine uma certa fixação do olho vivo pelo corpo morto, e há de se perceber que essa fixação corresponde a uma percepção do tempo, uma forma de se relacionar com a presente inevitabilidade da putrefação futura. Os limites dessa incisão visual se tornam questões de caráter transcendental e, não raramente, parafílico.
Ao astronauta apaixonado de Força Sinistra (1985), nada lhe soa mais perfeito que o corpo humanoide preso à cripta de cristal que ele e os tripulantes de sua nave resgataram no espaço. A alienígena assume formas femininas moldadas diretamente de seu subconsciente, vinda de uma espécie vampírica capaz de transmutar seu corpo monstruoso em qualquer que seja o desejo de sua presa. Mesmo morbidamente petrificado, seu corpo perfeito emana energias vívidas. O cadáver é capaz de deixar o astronauta em uma magnética hipnose, assumindo totalmente seus pensamentos, fazendo-o acreditar que o deseja da mesma forma. Tobe Hooper enquadra os momentos iniciais entre os dois como um amor absolutamente etéreo, como se o olhar do astronauta que repousa sobre a morta fosse uma espécie de convite à eternidade. O encontro definitivo dos dois, onde o astronauta finalmente se entrega à sua insuportável obsessão pelo ato necrófilo, desencadeará no embate entre os mortos-vivos cósmicos e toda a humanidade, que não será nada além de uma destrutiva histeria sexual epidêmica.
Os mortos-vivos alienígenas se alimentam do gesto vampírico de sucção da força vital do outro. Em campos energéticos próprios, esses corpos viventes transformam a sua presa em uma carne estragada, cadáveres secos, desesperados por qualquer energia que possa lhes restabelecer uma fisicalidade digna. Mais do que isso, estão instigados pelo prazer inerente às descargas elétricas pulsantes, que poderão lhes trazer energia e relegar o outro a uma múmia. Uma vítima descreve a sensação de ter sua força vital sugada como “a experiência mais esmagadoramente sexual e horrível” de sua vida.
Enquanto a descida da alienígena, em sua mutação física para uma fantasia sexual viva, traz à terra uma epidemia de vampirismo, onde cada vítima tomada pela falta de força vital corre atrás das pulsões sexuais enérgicas que restituirão seu corpo de prazer, o astronauta continua a sonhar com ela. O desejo não se esvai, nem em meio ao apocalipse. Pelo contrário, quanto mais a humanidade é dominada pelos alienígenas vampíricos, maior é a necessidade do astronauta em reencontrar o cadáver que ama. Escondida na cripta de uma catedral, ela o aguarda, em um canal direto com sua nave-mãe, responsável por resguardar parte da energia vital sugada dos humanos. É o palco para o sexo perfeito.
Nus, em cima de um túmulo, o astronauta e a vampira estão juntos novamente. Em uma rara brecha de seu transe, ele enfia uma estaca no coração dela, destruindo a existência morta-viva. Nesse gesto, ocorre a tão sonhada penetração. Juntos ascendem ao espaço pelo canal da nave-mãe, com a estaca penetrada em sua carne e os olhares encontrados. A humanidade está salva, e o astronauta conseguiu transar com sua morta. Um dos personagens explica anteriormente: “a força vital se mantém em todas as coisas, mesmo no pós-vida”. Portanto, fica claro que, para Hooper, não há nenhum prazer espiritual no pós-vida que nos é oferecido, pois ele é gerado e mantido por tudo que é carnal. Estejam os corpos apodrecidos ou cheios de vitalidade e volúpia, ambos caminham para um além movido pelo desejo devorador de um lascivo centro de energia primordial. Não há espírito, apenas a carne, o sexo e a energia gerada entre esses dois.
É possível que o oferecimento de um pós-vida esteja entre os motores da lente de Stan Brakhage, em O ato de ver com os próprios olhos (1971). Ao levar uma câmera para um necrotério, o cineasta exibe planos de precisão caótica: os cadáveres anônimos, estendidos em macas, têm sua carne manipulada de todas as formas pelos patologistas. A carne rígida é aberta, revirada, seus órgãos expostos e fatiados, sua pele removida, dobrada. O processo é assistido em uma aproximação de teores tanto enervantes (o corpo morto é levado aos limites de suas capacidades físicas) quanto meditativos. Está aí a precisão do caótico, quando Brakhage consegue repousar diante do grotesco, compreendê-lo através do lúdico. Lúdico porque há, em todo o cinema de Brakhage, a curiosidade pelo possível, uma busca constante em ver e perceber como as coisas que são de uma forma podem vir a se tornar de outra, formas deformadas, amorfas, mas ainda formas. Novas ao olho.
Então, quando fixa o olhar sobre o corpo em autópsia, quando se propõe a ver a mudança das formas rígidas da pele cadavérica serem abertas, dando lugar às maleáveis e rubras formações internas, os órgãos reluzentes e carnudos, o que prevalece é o desejo por ver o que está formado transformando-se em outra formação. Quando se abre um crânio, a pele da parte de trás da cabeça dobra para cima do rosto, que abre espaço para a remoção de um cérebro. O cérebro, suas rugas profundas, reluz, banhado em sangue, movendo-se nas mãos ativas de um médico. Quando é retirado por completo, Brakhage foca no interior do crânio vazio, suas concavidades à mostra, o branco de seu osso marcado pelas profundidades desenhadas. As formas se modificam, e há um interesse muitíssimo objetivo em focar em seus desdobramentos.
Não há qualquer som no filme. O silêncio é uma forte trilha sonora, é parte do que faz Brakhage ter uma imersão tão intensa e metódica na procura pelas formas. Quando sua lente enquadra as profundezas das tripas de algum cadáver, ou quando percorre as extensões dos corpos embalsamados, é tarefa da luz incidente sobre esses objetos de foco preencher o ritmo das imagens. Nas escuras redondezas de um plano, o que define o tempo de permanência em determinada imagem é justamente a iluminação que a permite ser vista. Seja na luz amarelada que revela uma mão petrificada, ou na luz vermelha que guarda os corpos já explorados, o jogo está nas linhas que se formam pelas superfícies (ou, nesse caso, pelos interiores) e que permitem que aquelas imagens sejam vistas.
A fixação do olhar no cadáver garante os registros das transformações de suas formas, e estas, impostas pelo vivo (os médicos e suas mãos que tocam e recortam os corpos), são o cerne do desejo do olho. Ao vermos um torso sendo aberto, a caixa torácica raspada por uma espátula, os órgãos manuseados e expelidos pelo outro, existe uma incapacidade por parte da câmera de desviar o quadro. Em sua intensa aproximação dos cadáveres, não resta pulsão além da vontade de continuar a olhar, de ver mais possibilidades do interno, da faca cirúrgica, das tripas, pois não há nada que se aproxime tanto da transcendência quanto perceber, pelo outro, intimidades físicas de nossas entranhas.
O vivo interessa apenas como contraste, nunca como existência particular. Quando, nos planos finais, Brakhage filma um médico idoso, de gravata borboleta e caneta no jaleco, não conseguimos associá-lo aos sensoriais eventos e efeitos que foram expostos nas vívidas capacidades do corpo morto. Não pensamos o vivo como dominante, apenas como complemento necessário para que todo o resto seja visto.
Invejamos os mortos. Sua rigidez, a pose eterna imutável – só lhe resta ser manipulada pelos cortes e aberturas. Seus corpos são capazes de assumir formas sem que nada os impeça, sem que algo tão primário quanto a dor interrompa o processo. A irreversibilidade de cada gesto que lhes é imposto, quando seus intestinos são recortados ou quando suas cabeças são partidas ao meio, não é nada para eles. A falta de consciência os engrandece, não há limites para a exploração da sua carne, estão prontos para revelar os interiores que conviveram a vida inteira sem expor.
Diferente dos cadáveres do filme de Hooper, que emanam sexo a todo momento com sua energia vital, os corpos em autópsia no filme de Brakhage são instrumentos do erotismo enquanto desejo por possibilidades antes impossíveis. A maior capacidade da carne morta, na mais áurea das luzes que fazem com que o registro na película aconteça, é estar disposta a qualquer imposição. É essa sua liberdade, sua nova forma de vida, e é o ato de ver, com os próprios olhos, a tão desejada disposição do corpo em ser qualquer outra coisa além do que já foi.
Ambos os cineastas dispõem a câmera diante das possibilidades de formulação do grotesco. Enquanto a carne, em Hooper, está sempre disposta à violação, tanto imagética quanto dramaturgicamente, Brakhage aguarda que a violação aconteça, que seja capturada pelo registro. O desejo dos autores pela expansão das capacidades do físico encontra lugar cativo no cadáver: é nele que as possibilidades das formas grotescas são fomentadas e cultivadas.
Nas tripas expostas, nada deixará de se mover ou de reluzir. Penetramos, rumo ao registro do que vemos, por incursões intensas pelos putrefatos. O que o cadáver diz sobre nosso estado futuro, nossa existência final, é tão provocante ao tempo do agora, que sua mera petrificação, exposta diante do olhar, já é o bastante para que o magnetismo consequente de sua presença leve à fixação por tudo que ainda somos capazes de ver. Então, a questão já não é mais sobre como olhamos para os mortos, e sim como fazemos para parar de encará-los o tempo inteiro.
Por Luís Flores
Um plano em close-up nos mostra a tela de um jogo pornô, com escala de cores simplificada, na qual um homem penetra uma mulher por trás. Para simular o ato sexual, o jogo se vale de uma pequena fração da ação replicada infinitamente, em loop digital. Corte para um braço mecânico, na forma de rolo gigante, que testa a qualidade de um colchão recém-fabricado. Corte para o garoto que controla, no primeiro-plano, um joystick em formato fálico, enquanto no fundo do quadro vemos o mesmo computador com o jogo pornô. Os movimentos repetitivos e velozes do jogador adquirem uma gestualidade masturbatória, embora a relação corporal e intersubjetiva do sexo tenha sido abstraída pela mediação da máquina. O que essa combinação de imagens nos diz?
A sequência descrita corresponde à abertura de Como viver na RFA (Leben — BRD, 1990), gravado em 1989 pelo cineasta Harun Farocki, logo às vésperas do processo de reunificação da Alemanha. No restante da narrativa, vemos a malha fina de instituições que governam, por meio de fluxos ininterruptos de modulação, cada esfera da vida cotidiana no país. Ao reunir cenas pedagógicas distintas, de cursos instrucionais, treinamentos, sessões de terapia e testes de produtos, o filme expressa a tendência à vida simulada — e continuamente doutrinada — que rege as relações sociais de um mundo tomado pelo neoliberalismo. A cena do colchão, que remete a outros testes industriais mostrados (a poltrona e a máquina de lavar), ecoa também nas pessoas que são submetidas a contínuos treinamentos e procedimentos de padronização. Não seria essa, afinal, uma das dimensões mais totalizantes da vida, sob o domínio do capitalismo tardio, esse que atravessou, desde a queda do Muro de Berlim, mutações mercantis e tecnológicas ainda mais complexas? Como se o mundo fosse, em sua configuração midiática abrangente, uma instância de preenchimento, com estímulos infinitos, para cada necessidade básica de um indivíduo?
Farocki, que fez parte da militância estudantil da década de 1960, em Berlim Ocidental, estabeleceu ao longo dos anos um projeto sistemático de mapeamento cognitivo das ordenações tecnológicas do mundo, especialmente aquelas que atravessam o campo do olhar. Sua filmografia pode ser entendida como o esforço de compreender criticamente os dispositivos e processos que condicionam a própria possibilidade de ser e agir no mundo. Para isso, ele organiza, a partir da década de 1980, duas frentes principais de trabalho: a observação incansável da realidade, no intuito de apreender alguns aspectos imperceptíveis da sociedade pós-moderna; e a remontagem crítica das imagens do mundo (poderíamos dizer, ensaística).
Como viver na RFA, embora guarde algo da forma do ensaio (por expor as imagens em encadeamentos argumentativos), pode ser situado entre os chamados filmes de observação. Trata-se de um conjunto significativo de obras, produzidas entre 1982 e 2013, que se debruçam sobre situações sem interesse cinematográfico explícito, seja pela escassez de oportunidades de drama, pela dificuldade de condensação do tempo ou pelo elevado grau de padronização. São filmes como Uma imagem (Ein bild, 1983) e Natureza morta (Stilleben, 1987), que observam processos de fabricação de fotografias publicitárias (da Playboy alemã, no primeiro caso, e de estúdios de propaganda, no segundo); O treinamento (Die Schulung, 1987), O que há? (Was ist los?, 1991), O re-treinamento (Die Umschulung, 1994) e A entrevista (Die Bewerbung, 1997), que mostram, assim como Como viver na RFA, dinâmicas de adestramento dos sujeitos no universo corporativo; A aparência (Der Auftritt, 1996), Os construtores dos mundos das compras (Die Schöpfer der Einkaufswelten, 2001), Não sem risco (Nicht ohne Risiko, 2004), Um novo produto (Ein neues Produkt, 2012) e Arquitetos Sauerbruch Hutton (Sauerbruch Hutton Architekten, 2013), filmes que mostram, de maneira geral, reuniões de negociação e de tomada de decisão, no circuito econômico da produção global.
O que fica explícito, no conjunto, é o desejo do diretor de investigar a existência, nos dispositivos contemporâneos, de novas modalidades de controle dos sujeitos e de padronização do mundo, que se pautam principalmente pela antecipação dos gestos e desejos (algo que ocorre, é claro, em múltiplas e intrincadas camadas). Tal dimensão operativa ou performativa — no sentido basilar do termo, a maneira como a linguagem é manuseada para padronizar determinados efeitos — corresponde a uma quebra dos modelos concentracionários filmadas por um documentarista como Wiseman (e estudadas por Farocki na fábrica e na prisão). Em Como viver na RFA, assim como nos filmes de treinamento corporativo, há uma primeira operação de suspensão tácita da negatividade por parte do cineasta, a fim de que ele possa assumir como válido o sistema observado e enfrentá-lo em uma relação imanente. Num segundo momento, contudo, que envolve a emulação formal desse mesmo sistema, as contradições do objeto começam a aparecer. A observação prolongada, associada às ilações sutis da montagem, mostram como a pedagogia corporativa, que pretende ensinar as pessoas a agirem da maneira desejada em cada situação, acaba por se tornar um trabalho de assimilação que violenta o próprio eu do sujeito.
O sujeito é atacado, justamente, nas suas posições de singularidade, pois é toda a sua subjetividade que deve ser adestrada para melhor se adequar a um sistema de produção global. Nada mostra melhor isso do que a própria sequência de créditos de O treinamento: junto à trilha musical estranha, vemos uma imagem computacional de formas humanóides alaranjadas, sem diferenciações entre si, que caminham em meio à paisagem desertificada. É uma metáfora perfeita para a dinâmica de padronização do universo corporativo agenciada pelo instrutor — mas não uma metáfora qualquer, pois ela mobiliza justamente uma imagem sintética, pautada pela lógica da simulação realista. O que vemos surgir em filmes como esse, incluindo Como viver na RFA, é um cerceamento constante das manifestações de vida do sujeito, sobretudo ali onde elas escapam aos diagramas instituídos pela razão instrumental. A ordenação totalizante do mundo, em suas redes de processos e circuitos técnicos (que não deixam de ser os da arte), encarrega-se de podar cada indivíduo daquilo que, nele, constitui um transbordamento — podar, ou, então, capturar e canalizar para outro lugar.
Esse outro lugar, cabe dizer brevemente, é a esfera do consumo. Não basta ao capitalismo avançado se apossar até mesmo das horas de sono dos sujeitos contemporâneos: para o sistema dominante, essa posse precisa ser rentável. Em dois dos filmes que citei antes, vemos maneiras usadas pelas corporações atuais, apoiadas por agências de propaganda e por pesquisas científicas de ponta, para medir e prever cada mínimo movimento dos circuitos de desejo. Em determinado momento de O que há?, por exemplo, um espectador (que parece ser o próprio Farocki), com a mão estendida ironicamente para a tela, tem seus níveis de estímulo medidos por meio de eletrodos, ao assistir trechos de comerciais televisivos. A voz do diretor oferece uma interpretação aberta para o gráfico das medições, que vai surgindo por cima das imagens mostradas na tela. As imagens, destinadas a exibir e vender produtos, delineiam as representações desses produtos com base em instrumentos sofisticados de exame neurológico, a fim de canalizar, no nível mais imediato, os desejos e as emoções dos consumidores em potencial.
Em Os criadores dos mundos das compras, por sua vez, vemos como os shoppings são arquitetados com base em aparelhos exaustivos de medição e controle: um deles rastreia os impulsos do olhar dos sujeitos; outro contabiliza o tráfego de pessoas por cada região do território; um terceiro, ainda, analisa automaticamente perfis de consumo, a fim de otimizar a distribuição dos produtos no supermercado. Para aumentar a compreensão crítica do sistema, Farocki chega até mesmo a entrevistar o analista de sistemas responsável pelo software que examina os perfis de consumo do supermercado. Todo o resto, desde os pacotes temáticos da praça de alimentação até a concepção estética do edifício, torna-se secundário diante dessa codificação incessante do mundo, sob a forma de dados programáveis. Por meio das articulações da montagem, que ligam, dentre outras coisas, os registros das conversas dos arquitetos e executivos, aos softwares de medição, Farocki introduz fissuras de reflexão crítica ao planejamento do mundo para fins de consumo. Vai sem dizer, todavia, que esses problemas basilares da arquitetura e da esfera de produção global são indissociáveis, na atualidade, dos próprios circuitos e espaços de circulação da arte. (A arte que é, sem dúvida, um dos poucos campos que ainda pode restituir ao ser no mundo alguma dose de intensidade passional).
Se nos deslocarmos novamente ao universo do trabalho, cabe apontar que Farocki se preocupou frequentemente, em especial até o final dos anos 1970, em filmar o gesto do trabalhador na fábrica e em representar os espaços da produção industrial. Nas décadas de 1980 e 1990, ele ainda aborda essa temática, mostrando o processo de ocultamento do trabalho e de expurgação da figura do operário, decorrente grosso modo dos avanços tecnológicos das máquinas. A partir desse ponto, também, os problemas marxistas de alienação e exploração, bem como o modelo disciplinar da fábrica e da prisão, são recobertos labirinticamente pelos princípios da “economia criativa” que diluem, com suas novas práticas de modulação subjetiva e ordenação do tempo, as fronteiras entre a vida e o trabalho. (Onde foi parar, afinal, o louvável direito à preguiça que era defendido com tanto brilho por Lafargue, cem anos antes?).
Ao mesmo tempo, Farocki explicita em seus filmes o modo como a própria subjetividade é capturada sistematicamente, por meio de estratégias de controle e medição, no circuito totalizante da produção e do consumo global. Nesse contexto, o campo de manifestações passionais do sujeito se torna cada vez mais limitado; a paixão resta empobrecida, enfraquecida, adestrada, perde justamente o caráter de excesso que a caracterizaria. Resta, é claro, o desassujeitamento do sujeito, conclamado por Foucault, a inservidão voluntária, ou então o retorno ao singular da experiência e ao cosmológico, ao mundo propriamente dito. Mas e a paixão? Terá ela forças de interromper o movimento de uma racionalização que deseja, sob as diversas modalidades da técnica, tomar posse do mundo, em sua totalidade? Guardando, sobre isso, mais dúvidas do que respostas (e tentando fazer rima com os escritórios filmados por Farocki, espaços sufocados, pouco propícios à paixão), opto por terminar este ensaio com uma coleção de imagens incontidas, com gestos de revolta, desobediência e insatisfação: https://www.youtube.com/watch?v=aD4thXRn80M
Por Beatriz Pôssa
The secret life of Arabia
Never here, never seen
Secret life, evergreen
(The secret life of Arabia, 1977; David Bowie)
Nomad (1982, Patrick Tam) se inicia quase como um pastelão, nos apresentando os irmãos Louis e Kathy e seus respectivos interesses amorosos, Tomato, Pong e Shinsuke, através de situações cômicas, como uma confusão numa piscina pública e num restaurante. Todos os personagens são levados um ao outro por jogos do acaso, uma faceta de leveza que perdura por quase todo o filme até que há um corte brutal em seus últimos minutos. Se podemos classificar um filme como adolescente, sua primeira hora me parece um bom exemplo devido à atmosfera de imediatismo e desejo por liberdade, em que suas paixões são o ponto central de suas vidas. Há uma pulsão muito juvenil que rege os quatro personagens em suas escolhas afetivas, pulsão esta que combina suas aspirações burguesas de amplas mansões a um senso compartilhado de entitlement, como se o mundo estivesse ao dispor de suas vontades. Esse sentimento se estende até no ato de inventar um novo país, essa criação de uma utopia insular na segunda parte do filme, quando os personagens finalmente são confrontados pelo peso das tradições e a herança de conflitos milenares; tornando-se na meia hora final um derradeiro filme de samurai.
O filme abre com Louis, personagem de Leslie Cheung, aqui com um dos seus papéis mais ingênuos, e seu olhar distraído se derrama sobre as paredes do quarto enquanto ouve a voz da mãe falecida em fitas velhas. Sobre o televisor de Louis, no qual está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma festividade nas ruas de uma cidade anônima, reside uma miniatura de Nomad, o navio que protagoniza seus sonhos febris de partir para Arábia, a promessa de paraíso sussurrada pelos cômodos da grandiosa casa com vista para o oceano que divide com sua irmã Kathy e a madrasta, por quem nutre um desejo secreto e a observa enquanto toma sol na varanda.
Kathy invade seu quarto praticando o kabuki, uma modalidade de teatro japonês que demonstra ter aprendido com o namorado, e lembranças de momentos íntimos com o amante atravessam rapidamente a tela, seus gestos ritualísticos ricos de uma dramaticidade única. Louis assiste a irmã recostado na parede e dois dos mais importantes álbuns de David Bowie emanam de sua cabeça como um halo: Low (1977) e “Heroes” (1977), os dois primeiros discos da trilogia de Berlim, conhecida como a fase mais experimental de Bowie – em um só plano as influências culturais são postas em confronto. A relação de Bowie com a Berlim Ocidental foi intensa para dizer o mínimo, e os álbuns produzidos durante esse período dialogavam com o complicado momento político na Alemanha durante a Guerra Fria. Consequentemente, sua trilogia, que finaliza com Lodger (1979), conversa com a juventude alemã que efervescia com uma arte absolutamente disruptiva de meados dos anos 70 ao mesmo tempo que estava fisicamente dividida, uma oposição ao desejo simbólico e simplesmente físico de constituir um só grande ser, um anseio sessentista sob os ares da Era de Aquário.
Bowie talvez seja o maior exemplo de uma geração resultante da revolução sexual, sua obra e sua pessoa agindo como um catalisador das mudanças que ainda seriam experienciadas pelo mundo, concebendo uma música embebida em experimentações andróginas com um grande apetite pela liberdade. Os álbuns produzidos no período em que residiu em Berlim evocam muito desse sentimento compartilhado: era uma tentativa de encontrar na música alguma resposta, ou no mínimo um refúgio, para os conflitos políticos e sociais vividos naquelas décadas. Aliado a isso, havia por trás da criação de diferentes personagens que caracterizariam sua carreira um desejo de se modular multiplicidades, buscando a transfiguração do corpo em uma experiência artística e utópica. Sua obra traz um um reflexo da necessidade dos jovens da época pela formação de um organismo, alguma configuração de agrupamento que oferecesse conforto para que fosse possível explorar a fluidez de suas paixões.
A presença de Bowie na paleta de referências de Louis é interessante porque demonstra o desejo de Tam em retratar uma comunidade que busca o prazer sensorial e espacial, ou seja, dimensões que dizem respeito acima de tudo ao corpo. Uma das sequências mais potentes de Nomad é justamente a que evidencia uma impossibilidade do encontro romântico entre Pong e Kathy, que se inicia com as repetidas interrupções na casa de Pong. O plano de ficar a sós é arquitetado perfeitamente: Pong manda a irmã e a mãe para o cinema, mas não esperava ser atrapalhado pelo irmão mais novo e os idosos de sua família, que invadem a placidez da sala compartilhada. O casal trava daí uma coreografia extensa de troca de lugares, explorando o espaço da casa até esta se tornar pequena demais para seus desejos, o querer de ficarem juntos visível em seus gestos imprevisíveis e quase virginais no dividir da cama de solteiro. Quando mesmo na privacidade do quarto são incomodados, reiniciam o movimento e o jogo ao saírem de casa e entrarem no ônibus, a troca de olhares e beijos deliberada, levando ao momento do êxtase em que parecem não controlar mais os próprios corpos e se agarram até parecerem se fundir, e Tam dá ênfase a um plano da mão de Pong escorregando pelo corrimão enquanto carrega Kathy no colo.
Essa coreografia apaixonada é cortada por Kathy recebendo a notícia de que Shinsuke, seu namorado, está de volta da guerra, retirando a mulher da bolha idílica em que parece viver durante a primeira parte do filme. Tam constrói a sequência como um momento final de filme de terror, os olhos de Kathy aterrorizados pela realidade que agora teria que enfrentar, tendo o homem que ama se tornado um desertor do exército japonês. Até aquele momento nenhum conflito real havia invadido o universo daqueles personagens, todos os desentendimentos resolvidos de maneira rápida e com graciosidade; e mesmo que nada de imediato aconteça com o grupo, nós como espectadores já reconhecemos os maus agouros e o filme assume ares premonitórios. Cada cena de beleza é permeada pela certeza de um acerto de contas, principalmente quando acessamos a verdade de Chiyoko, secretária de um designer de quem Louis é fã e amante da tia de Kathy; que tem a missão de certificar que Shinsuke irá cometer o seppuku.
Logo no título do filme e do navio-personagem, existe a evocação a povos andarilhos, sem residência fixa, que ultrapassam as fronteiras nacionais sempre em busca de horizontes mais promissores. É um desejo de se jogar ao desconhecido no reconhecimento de que fronteiras não passam de meros acordos tácitos entre as nações, linhas imaginárias responsáveis por acolher uns e expulsar outros. Há em Nomad um comentário categórico tanto sobre a influência ocidental quanto a japonesa que pareciam contaminar a vida da juventude honkongiana do início da década de 80 – como o que hoje analisamos como uma faceta do processo assimilatório da globalização – evidenciando até mesmo o olhar muito mais crítico sobre a “invasão cultural” japonesa do que à presença ocidental, principalmente na relação travada entre Pong e Shinsuke. A herança do conflito sino-japonês é articulada no filme como uma disputa de língua e masculinidade, e as influências japonesas no geral são vistas com maus olhos devido ao passado colonialista do arquipélago.
A partir do retorno de Shinsuke, os personagens decidem recomeçar e inventar um espaço em que seria possível viverem suas paixões e dedicarem suas vidas aos interesses do corpo apenas, o anseio de partirem para Arábia como uma meta mais próxima do que antes, pois agora existe algo material, um inimigo claro, que os empurra para fora do berço. O refúgio em um casebre litorâneo se torna uma utopia multicultural, e com ingenuidade acreditam realmente que assim vão escapar do destino que bate à porta. O navio, Nomad, corta o horizonte, um ponto fixo na paisagem, e Kathy vive uma vida dupla ao se encontrar com os amigos na ilha e o taciturno Shinsuke no navio. É lá que confessa a Shinsuke que gosta de Pong porque com ele não precisa pensar, “é físico, só físico”.
Uma sessão dupla interessante seria assistir Nomad ao lado de O Império do Desejo (1981, Carlos Reichenbach). Ambos os filmes possuem o movimento de explorar as paixões e a sexualidade em uma realidade ilusória na praia, apenas para serem atravessados pela violência e uma brutalidade que não abre brechas para fuga pois encontra os personagens completamente desprevenidos e entregues ao prazer momentâneo. Em um interlúdio dos jovens na praia, vivendo das “coisas simples” como o imaginário burguês idealiza ao compartilharem almoços e camas naquela comunidade recém-criada, aprendemos que Tomato e Louis estão esperando um filho, um gosto do amadurecimento porvir. Shinsuke está entocado no navio distante da areia, excluído e deprimido, seu destino torpe amaldiçoando a alegria daquela nova experiência, mas os sonhos com sua execução contaminam apenas seus próprios pensamentos – os casais na praia não interrompem a oportunidade de viverem uma felicidade efêmera pela certeza da fatalidade iminente. Enquanto descansam sob o sol e compartilham uma garrafa d’água, Tomato reclama do tédio e diz “não fazemos nada para a sociedade”, ao que Louis responde “que sociedade? Nós somos a sociedade”.
Em poucos minutos, Chiyoko, que até então havia se revelado de maneira apenas submissa e dedicada para o grupo, reaparece para terminar seu trabalho. O banho de sangue que se dá em diante só salva o casal que está à espera de uma criança, a fertilidade como uma chance de redenção diante do indizível. Tam interpreta a paixão como um meio e um fim: não existe outra via de acesso ao paraíso além da entrega, a via crucis do corpo. Nomad abraça a potencialidade enganosa da utopia como artifício de uma juventude burguesa, explorando através dos seus corpos um atravessamento cultural que na mesma medida é veneno e cura. A realidade impetuosa que encerra a utopia também abandona os cadáveres na areia, e as águas manchadas de trauma lavam os corpos que ainda permanecem em pé. Nessa articulação complexa, o casal abraçado na praia está de encontro com a vida adulta, esse abismo; e Nomad, o navio à deriva, parte em direção à terra prometida.
Por Lucas Saturnino
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
(Herberto Hélder)
O poeta Herberto Hélder leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? O dom da consciência nos sujeita a tentar encontrar algum sentido para a vida e o fato da morte instiga balanços. Quem foi? O que fez? O que deixa ou leva? A sua iminência incontornável suscita medo, reflexão ou mesmo fascínio. Se o que a sucede é o maior dos mistérios, talvez só haja uma certeza quanto ao prolongamento da vida após a morte: além do tácito testemunho do mundo, a permanência dos que partem na memória dos que ficam.
O encontro de três pessoas que porventura jamais se encontrariam é o mote de Something Useful (İşe Yarar Bir Şey, 2017), da cineasta turca Pelin Esmer. Na estação de trem, duas mulheres cruzam-se por acaso, intromissão, simpatia, curiosidade genuína pelo outro e receptividade ao amparo oferecido. Com cerca de 40 anos, a advogada e poeta Leyla é duas décadas mais velha do que a enfermeira Canan. Elas se conhecem em diferentes estágios da vida, conquanto igualmente suspensas entre o dia em que nasceram e aquele em que irão morrer. Something Useful registra estados pendulares, acompanha almas em movimento, jornadas introspectivas que se entrelaçarão. O destino de uma é o presente do passado (a reunião comemorativa dos 25 anos de formatura da turma do secundário de Leyla), enquanto a outra tem um encontro marcado com a morte (a pedido de um médico que trabalha consigo, Canan se comprometeu a ajudar um homem que deseja morrer).
O homem é Yavuz, que 6 anos antes sofreu um acidente e ficou paralisado, sem os movimentos do pescoço para baixo. Ele havia pedido a um amigo íntimo, o médico com quem trabalha Canan, que o deixasse morrer, mas seu amigo, por amá-lo tanto, foi incapaz de realizar a eutanásia com as próprias mãos. Após muita insistência, e sentindo a firmeza da resolução de Yavuz, ele consentiu em arrumar outra pessoa que pudesse consumar o pedido fúnebre — uma jovem enfermeira precisando de dinheiro. No trem que atravessa o país e a noite, Canan conta a história a Leyla, que se propõe a acompanhá-la.
A narrativa é sucinta e precisa — e as encruzilhadas existenciais se colocam sem alarde. São três personagens cujo encontro os deixa profundamente afetados uns pelos outros e Esmer estrutura a obra em torno das reações dos atores principais (Basak Köklükaya, Öykü Karayel e Yigit Özsener, magistrais). A câmera muito próxima e atenta às suas expressões faciais, sensíveis e eloquentes. Aos sorrisos gentis de Köklükaya, à perceptível aflição de Karayel e aos olhos penetrantes de Özsener. Um filme fora de moda? Talvez, o que pode explicar o pouco espaço que lhe foi concedido no circuito de festivais.
A câmera procura gestos mundanos. Como Leyla esperando na fila do banheiro ou pedindo passagem para sair do seu lugar no trem e a senhora ao lado se espremendo no assento sem se levantar. Ou a dificuldade das personagens em chamar um táxi. Quando as duas chegam na porta do prédio de Yavuz, são necessários 4 minutos de filme (entre hesitações e campainhas) até que a primeira suba e entre no apartamento. O trabalho do diretor de fotografia Gökhan Tiryaki (conhecido por sua colaboração com Nuri Bilge Ceylan) é digno de destaque, em especial no tocante à viagem de trem, à captura dos humores refletidos gestualmente e ao jogo visual e simbólico com espelhos e reflexos.
É belo o momento em que Yavuz vê Leyla pela primeira vez: “Eu me irei com a benção de uma poeta!”. Leyla, sentindo-se subitamente insegura ao encontrar-se diante do objeto de sua irrefreável curiosidade, observando do alto da janela a indeterminação de Canan em subir, torcendo para não ser abandonada. E, logo em seguida, sendo acalmada pela encantadora música da vizinha, professora de violoncelo — a arte que, ao menos aqui, alivia as agonias e põe as angústias em perspectiva, perpetuando-se no tempo.
Nesse filme sobre a morte, crenças religiosas não fazem parte da equação. Ninguém se importa com isso. Something Useful nos chega da Turquia secular — a segunda metade se passa em Izmir, uma das mais antigas cidades portuárias do Mediterrâneo. A presença da religião só se manifesta da maneira mais explícita quando o funcionário do trem fecha repentinamente as cortinas da janela de Leyla, interrompendo o fluxo de consciência dela, sob o pretexto de evitar que pedras sejam arremessadas no vidro — “Porque eu sou uma mulher bebendo cerveja?”, confronta-lhe a personagem.
E não é o seu único desgosto em relação ao estado das coisas: Leyla adora contar e ouvir histórias, mas é irredutível quanto a não dar moral para o político que entra no café pedindo votos; ela se levanta e deixa o estabelecimento antes que ele sequer tenha a oportunidade de abordá-la — o que explica a admiração da personagem pelos grafiteiros que, de modo rebelde, inscrevem a sua expressão subjetiva na paisagem do país.
Se há, portanto, uma dimensão, digamos, transcendental em Something Useful, ela está nas conversas que comovem, nos encontros que transformam, na afabilidade com que os personagens se abrem intimamente aos outros. O esquema cinematográfico operado por Esmer consiste em defrontar o registro dos gestos mais cotidianos com a perspectiva extasiante das conversas que trazem a possibilidade do sublime para um dia qualquer.
Something Useful também é uma inventiva variação de Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) — à exemplo do grande plano-sequência de 10 minutos do jantar comemorativo. Leyla e Yavuz observam o mundo através das janelas à sua frente, fronteiras mediadoras entre interiores e exteriores. A diferença entre um e outro é uma questão de mobilidade, que literalmente impõe um limite no horizonte de possibilidades de Yavuz, incapaz de ir atrás das histórias como faz Leyla. Ele não é mais capaz de exercitar a própria curiosidade. E ela, numa pequena gafe de sinceridade desmedida, afirma que perder a curiosidade equivaleria a estar morta.
Assim como James Stewart no clássico de Hitchcock, Yavuz se encontra imobilizado, mas pior: em caráter permanente. A sua janela, de frente para a socialmente estimulante movimentação da bela beira de mar de Izmir, foi o que lhe restou para seus olhos verem em primeira mão — “assistindo vidas saudáveis”. Leyla, ao contrário, está em constante deslocamento, observando as pessoas ao redor, divagando, especulando, fascinando-se — desde o início na estação, quando o desenho de som se abre dos pensamentos interiores que permeiam a mente dela para os murmúrios ambientes do mundo.
A poeta, contudo, não sai por aí pescando histórias sem gerar tensão. Canan questiona as motivações de Leyla: “Uma jovem enfermeira precisando de dinheiro e um homem aleijado querendo morrer devem render um bom poema, não?”. Surge a questão entre eles: o artista instrumentaliza a curiosidade, as experiências, a compaixão? Voltemos ao primeiro plano do filme: no princípio, a encenação é frontal e mistura-se com a matéria bruta, sendo necessário um enquadramento para formalizar o ponto de vista desejado.
Leyla vai procurando as palavras, experimentando-as, podando o poema. “Você se inspira na vida real?”, pergunta Canan, enquanto as duas brincam de decifrar sombras no teto do quarto de hotel. Something Useful fala de morte para tratar da vida e reflete sobre ambas para debater arte. O cinema de Esmer é um cinema de personagens: Leyla, a poeta consagrada; e Yavuz, o leitor que não conseguiu estabelecer-se como autor. Ela trabalha como advogada, para pagar as contas e também porque queria fazer “algo de útil”. “A poesia não é útil o suficiente?”, rebate ele que, contemplando o próprio fim, se encarrega de deixar as contradições do ser com os vivos que continuarão a alimentá-las.
Já Canan acredita não entender de poesia. Quem lida com a morte todos os dias não precisa ler sobre coisas fúnebres. Ela sonha em ser atriz, o que, nota-se, certamente não é tão útil quanto o trabalho de enfermeira. O filme tem como base a disposição dramática de dilemas acerca da célebre inutilidade da arte (chamemo-la só aparente ou não) e de qual proveito se tira de existir por existir. “O que eu faria no lugar deles?”, sentimos Leyla formular em pensamento, sem exprimir em voz alta, tal qual uma espectadora exemplar.
No belo poema da conclusão, Leyla escreve sobre “uma ansiedade que remonta à infância”, motivada por palavras que lhe tiram o sono desde a mais tenra idade, como que se referindo à dificuldade de se expressar, encontrar os termos adequados. Yavuz julga que Leyla costuma manejar as palavras para se esconder atrás delas. Mas não naquele momento, pois é justamente a franqueza que faz o encontro dos três ser mágico. E então viver se torna uma questão de prolongar as conversas que valem a pena.
“Hoje não bastou e amanhã você quer fazer algo útil de novo?”. Algo útil, afinal, talvez seja a paixão pelas coisas gerais, como escreve Hélder, ou a paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos, como mostra Esmer. Ao fim, antes que o lirismo inútil da música de Bach dê espaço aos sons ambientes da cidade em dia útil e as personagens voltem se mesclar com a multidão, Leyla lança aquele último olhar que se dedica a registrar uma memória derradeira do que virá a fenecer em instantes.
Como não temos acesso ao contracampo, esse olhar também se dirige a nós, incluindo-nos na conversa, confrontando-nos com as mesmas inquietações dos personagens. A morte, conceito tão intangível quanto concreto, é a epítome do que todos sabemos se tratar, sem que ninguém realmente compreenda o que representa. De qualquer forma, na expressão saudosa de Leyla transparece a sua resposta possível para aquela que é a questão decisiva em tributo à memória dos que partiram: sim, tinha paixão.
Por Gabriel Linhares Falcão
Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.
O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.
As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.
O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.“[1]
A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.
Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)[2], por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.
Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão.[3]
Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada.[4]
É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.
Mesmo que sempre evite comparações[5], Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:
“Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl[6]
Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um milagre: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.
[1] Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010.
[2] Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).
[3] Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010)
[4] Gasometer I (2010)
[5] Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um Homem com uma Câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.
[6] Entrevista com Helga Fanderl por Andrea Piccard, em Cinemascope nº 55
Por Geo Abreu
“Takumã Kuikuro leaves his village in Alto-Xingu, Mato Grosso, with his wife and children, to live in Rio de Janeiro for a while”.[1]
Ta
Ku
Ti
Ü
Ka
Kagihutü / aʒiutˈ
Carioca / kaɾjˈɔkɐ /[2]
Imagens do Rio de Janeiro visto de Niterói, Praia de Icaraí, Museu de Arte Contemporânea, aeronave, Oscar Niemeyer. Das imagens conhecidas passamos a uma voz que preenche fortemente o vazio na tela, tomando a atenção.
A língua Kuikuro, do ramo Karib, vibra em materialidade e se impõe trilhando uma linha condutora entre nós e as imagens. A legenda que acompanha parece acessória a certa altura. Poderíamos prescindir dela? Na paisagem sonora do filme, além do barulho do mar e da música de Carlos Malta e da banda Pife Muderno, somos levados por uma cadência cuja mecânica necessita estalar a língua no céu da boca e compor fonemas em T e K, gerando palavras que ganham presença e se aproximam de nós como uma antiga canção de ninar, distante na memória, salva em algum lugar do corpo como arquivo.
Tomada por esse dispositivo que crio na relação com o filme (e que me mantem alerta), sigo observando a cidade conhecida sendo descrita por um homem de sunga vermelha, sentado em algo muito baixo, em conversa com uma mulher, que é mãe e avó. Sorrio quando ela diz ter entendido o que significa kagihutü (G com som de R; T+U+trema soa como T+A+~; sílaba final forte; pegada gutural): pessoa que nasce na cidade do Rio de Janeiro.
Naquela conversa algo se revela sobre o termo que nomeia o filme e que eles apreendem como revelação dupla sobre a natureza mesma do lugar e de quem nasce lá. Será que a palavra carrega algo de força ou segredo compartilhado, encapsulado nesses fonemas, e por isso fascina tanto o cineasta e seus interlocutores? Entrevemos alguma relação com o movimento das águas doces, até porque Carioca Era um Rio[3] cuja nascente está esquecida em meio a esgoto e entulhos.
No episódio sobre a estranheza da água salgada – que não lava e serve apenas para brincar -, um primo entra na conversa e traz para jogo a definição mais simbólica e distante do meu quadro de referências que já vi sobre a cidade: o Rio de Janeiro como cidade “colar de miçangas.” Banhos de mar nos permitem acumular miçangas o suficiente e levá-las para casa. Essa ideia de acúmulo aponta o que exatamente? Memórias? Beleza? Algo conhecido que se aproxima como fricção entre a água arenosa e o sensorial das miçangas sobre a pele? Nenhuma das alternativas anteriores ou talvez todas elas: miçangas são feitas de diversos materiais como pedra, ossos, conchas, vidro[4]. Tentar a aproximação desse sistema cognitivo via conhecimento branco me leva a usar ferramentas ligadas à transcendência e me fazem cair sentada de bunda na areia.
Um tanto derrotada, desisto de acompanhar o relato audiovisual da viagem da família Kuikuro via banda sonora e retorno à prática das imagens em busca de algum sucesso em me aproximar de Takumã e sua câmera.
//Desplugo a cabeça oca do aparelho sonoro e ajusto as lentes.//
Ainda na conversa que nos conduz pelo filme, vemos mãe e filho falando sobre o ruído que existe na produção de imagens do Rio de Janeiro. Uma defasagem produzida no confronto entre discurso jornalístico, via TV, e jogos de ficção. Entre noticiários e novelas, favelas, violência e tragédias se contrapõem às praias do Leblon e Ipanema, que parecem bonitas – e são mesmo, alguém sublinha, enquanto vemos crianças brincando na areia com o mar ao fundo. Mais uma vez os cariocas enquadrados entre as figuras de mar e morro.
A necessidade de produção de sentidos através de imagens, do entendimento dessa engenharia, leva Takumã ao Rio de Janeiro em companhia da esposa e dos filhos. Este curta é um trabalho seu de conclusão do curso de Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
Num dos momentos mais poéticos do filme, nos afastamos da posição de importância de Takumã como cineasta Kuikuro e seguimos, via montagem, os pensamentos de sua filha, a menininha de rosto absorto e cabelos ao vento que, retornando à sua aldeia, mantém em lembrança os momentos de brincadeiras com adultos e crianças da cidade, o episódio com a música de Anitta, o banho de mar com os irmãos. E assim nos encontramos frente a um cineasta apenas, em exercício livre, treinando esta outra gramática que quer manejar. Selamos um pacto sem palavras.
A mediação que Takumã exerce abre frentes e lança no tabuleiro do jogo cinema outras chaves de interpretação do mundo via imagens e sons, trazendo para o cenário da encenação frente às câmeras sua mãe e irmãos, pai, avô, além da língua Kuikuro. Nesse exercício as forças parecem seguir duas linhas diferentes: numa, o cineasta que deve representar sua aldeia em circuitos de legitimação artística; noutra o simples aprendiz de ofício, aquele do olhar em formação, passível de erros e acertos, e sobretudo, livre para experimentar e criar formatos. No choque entre essas duas possibilidades alguns limites de ação se impõem a ele e sua câmera? Como produzir os desvios ou respiros?
As escolhas estão com ele. De alguma forma, embalada pelo ritmo metálico e robusto das palavras em Kuikuro me vem a vontade de acompanhar sua trajetória e pensar sobre ela, elaborar estratégias de aproximação e distância em gestos bem conhecidos e naturais, como numa brincadeira, a que tentei produzir no começo do texto, quando o reconheci via audição como alguém tão próximo quanto um primo que eu não (ou)via há tempos.
[1] Sinopse do filme na plataforma Mubi.
[2] Transcrições fonéticas feitas via plataforma online. A biblioteca da ferramenta não possui a opção “kuikuro” como idioma.
[3] Carioca Era Um Rio, Filme de Simplício Neto. Rio de Janeiro, 2013. Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=Uzj-9m4ZYW
[4] Trecho retirado do verbete Miçanga na Wikipedia
“Essa febre é um invasor noturno que atinge o paciente durante o sono profundo.
Ele pula da cama e corre para a ponte.
Lá, ele acredita ver além das ondas,
árvores, florestas, prados floridos.
Sua alegria explode em mil exclamações.
Ele sente o desejo mais ardente de fluir para dentro do oceano”
(Atlantiques, Mati Diop, 2009)
I – Despossessão
As cenas iniciais de Atlantique (Mati Diop, 2019) nos jogam em uma briga dentro de um canteiro de obras. Souleiman e seus companheiros de trabalho exigem dos encarregados o pagamento atrasado há três meses, e os encarregados argumentam que o patrão viajou e não deixou o dinheiro. Para os jovens trabalhadores, não há o que fazer, apenas pegar o transporte de volta à cidade e abandonar a obra. Da caçamba do carro, as torres imensas em construção são o símbolo de uma derrota anunciada, de uma negociação impossível, de distâncias intransponíveis. Indiferente, explorando outros trabalhadores, as torres continuarão a crescer.
A montagem por oposição dos rostos derrotados dos jovens trabalhadores e da torre futurista inacabada é uma apresentação quase direta demais do conceito de acumulação por despossessão, proposto por David Harvey para descrever o funcionamento do novo imperialismo neoliberal. Se a expropriação das terras e do direito sobre os próprios corpos das pessoas originárias de África e de América pelos colonizadores europeus foi o sustentáculo inicial do capitalismo, o neocolonialismo contemporâneo mantém e expande a despossessão fundadora. Contratos de trabalho, direitos trabalhistas, bem estar social são promessas ilusórias, enquanto a torre é concreta (e cada vez maior). Mas estamos no quase, pois entre os rapazes e as torres, a montagem nos mostra o mar de Dakar. E o desânimo vira cantoria e excitação entre os jovens.
Essa é a primeira faceta das múltiplas do mar em Atlantique: entre os despossuídos (de terras, de direitos, de dinheiro, de perspectiva…), o mar é também uma fuga. O sonho do emprego melhor na Espanha, de uma vida a recomeçar – além das ondas. O Atlântico evocado pelo título é então uma presença constante no filme: dessa incerta esperança, ao temido pesadelo do naufrágio, passando pelo enigma do retorno assombroso. Mais do que uma paisagem, o mar funciona no filme de Diop como um recorrente contraponto, descontinuando a especialidade do filme para uma imagem de imensidão simbólica – um portal do tempo-espaço de África e da afro-diáspora.
Com Souleiman encontramos Ada. Entre Ada e Suleiman, a paixão.
Mas… “Você só fica olhando para o mar”.
Ada está às vésperas de um casamento arranjado com outro homem. Pressionada pelos pais, a negociação parece ser simples: esquecer a paixão adolescente, manter-se virgem até o casamento e submeter-se a uma união sem amor e/ou afetos com Omar. Ainda mais despossuída na cena do capitalismo global, o desejo de Ada está fora da transação comercial, assim como qualquer vislumbre no contrato econômico, social e familiar da possibilidade de possessão dela de seu próprio futuro e corpo. Como o quarto nupcial branco cenograficamente decorado para ostentar uma negociação fria e calculada do matrimônio de Ada e Omar, não há lugar para a vida e suas pulsões nesse arranjo – no máximo para algumas selfies posadas.
Se a paixão de Ada está fora dos cálculos de risco, os contratos sociais, econômicos e familiares se dissolvem quando esta arde: queimando a cama não usada na transação jamais consumada. A partir de então algo se conjura na narrativa do filme, no momento que esse intenso desejo não pode mais ser contido. E ainda que uma parte do enredo dedique-se a uma investigação policial do que não pode ser explicado (com a sordidez de exames médicos para aferir virgindade e interrogatórios abusivos), Atlantique é um filme devotado a atmosferas e sensações – a febre como invasora noturna e devaneio (e não como sintoma). Ao fim, diante do inverificável, o investigador não pode mais do que apenas (e já) encontrar a si mesmo.
II – Possessão
“Alguns pescadores voltaram do mar com a rede tão cheia que todos correram para ver o que eles tinham pescado. As pessoas gritavam que haviam pescado um peixe enorme. As crianças e toda vizinhança foram ver. Mas, quando se aproximaram da rede, não viram um peixe, mas o corpo sem vida de Souleiman”.
No momento de virada do filme, os jovens despossuídos (agora também da própria vida) retornam para enfim obterem as suas possessões – de vinganças e de paixão.
Sem mais promessas, o mar é então apenas um perigo no contracampo de cada sonho, cuspindo de volta o espírito dos despossuídos. Conclamados por aquilo que na expropriação capitalista não se pode conter – a raiva pela exploração e humilhação cotidiana, a paixão não consumada – os jovens retornam como assombrações febris.
E então, algo se complica na ficção especulativa proposta por Mati Diop, pois as fronteiras de morte em vida e da vida na morte são borradas. Afinal, como podem em morte possuir aqueles que em vida não possuíam nada? Um corpo, uma vingança, a consumação da paixão: quais os limites da possessão despossuída?… Essas assombrações não são zumbis ou fantasmas tradicionais desse gênero narrativo. Com exceção de Souleiman, os jovens rapazes tomam posse dos corpos das suas amigas, irmãs e namoradas. É assim que esse corpo feminino possuído pelos espíritos dos rapazes pode enfim reverter (ainda que temporariamente) o sentido da expropriação – e fazer o patrão cavar a cova para seus corpos perdidos no fundo do oceano. O topo da torre é também o fundo do mar.
Em Atlantique, a possessão é assim, ao mesmo tempo, assombro e triste reencontro, acerto de contas com o patrão explorador e reparação financeira para as que ficaram. O sobrenatural que o filme mobiliza não é então marcado pelo terror ou pelo medo, mas por paixões incontroláveis que não se podem evitar: irão queimar.
III – Exorcismo e Renascimento
“(…) o corpo da mulher negra conserva a possibilidade de um Outro desejo. Um desejo que não pode alimentar a maquinaria do capitalismo global ou as críticas ao mesmo tempo porque o texto político fundamental aos dois campos não a contempla. Fora do Patriarcado e fora da História (as narrativas do sujeito transparente [a coisa da interioridade e da liberdade]), o desejo prometido pelo corpo sexual feminino continua como um guia ainda por ser delineado para uma práxis radical (…)” (Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável, p. 77)
O reencontro de Ada e Souleiman marca por fim a última possessão do filme: a do sexo. Temos uma comunhão que é a entrega e a despedida de duas trajetórias: o espírito que pode enfim partir e da adolescente que assume sua autonomia na vida adulta. Uma posse de si para Ada que constrói-se lenta, mas continuamente: na recusa de entrar no carro de Omar, na negociação persistente da venda do iphone, na atenção às instruções do novo trabalho no bar. Não é irrelevante que esses reposicionamentos digam respeito ao seu (não lugar) na acumulação por despossessão capitalista – ocupando as fendas de informalidade e da precariedade do trabalho, mas também da amizade, do amor e dos experimentos de beleza (para lembrarmos da expressão da Saidiya Hartman).
Ada: a quem o futuro pertence, olha enfim para a câmera. Afinal, possuir a si é possuir sua própria imagem. Um olhar desconcertante para exorcizar também o filme como possessão.
O mar é também renascimento.
Por Chico Torres
O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.
Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.
Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.
Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.
Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.
Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.
A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.
Por Anita Gonçalves
“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.”
“Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”
(Voragem, Junichiro Tanizaki)
Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.
Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.
Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.
Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).
Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.
Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.
Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.
Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.
Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.
O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?
Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.
O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)
Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.
Por João Lucas Pedrosa
“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”
Kazuo Ohno, Treino e(m) poema
Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.
Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.
A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.
Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.
O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.
O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.
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A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.
Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.
Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.
O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.
Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.
Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.
Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.