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Mente aberta com corpo fechado: CAIXA PRETA (Bernardo Oliveira, Saskia)

por João Paulo Campos

No início era tela preta. Pode o cinema produzir estados alterados de consciência e corporalidade? Caixa preta busca inventar efeitos no corpo de seu público – cérebro, barriga e pés pisando-pisantes. Tal qual um poderoso psicotrópico, a fita mexe conosco, provoca, brinca, faz dançar e faz pensar. Faz curtir e faz viajar. Abre a mente e fecha o corpo num mundo que cada vez mais se assemelha a uma sucessão de trincheiras. Pois o cinema, em suas melhores performances, nos chama pra dançar sentados no escuro. E é na tela preta que nós mergulhamos, tal qual uma aventura. Quem topou a alucinação tem história pra contar.

A obra de Bernardo Oliveira e Saskia é um filme do século XX: fita que deseja mostrar sem representar. Estética das atrações, choques e confluências. No preâmbulo do média-metragem que estremeceu o Cine Tenda no início da 26 Mostra de Cinema de Tiradentes, lemos uma cartela que nos joga no fluxo das origens. O começo é o caos e, diante dessa premissa, a arte parece buscar traçar planos ou trilhas nessa bagunça originária. Trata-se de uma obra compósita que nos desafia a uma tarefa difícil, mas cada vez mais sedutora: explodir a racionalidade cartesiana através dos rastros expressivos da diáspora africana num mundo pós-colonial. Tentar explicar este filme já configura, de antemão, um grande vacilo. Temos que navegar, dançar, sonhar. “Pode dormir. Quem não dorme não sonha”, disse Bernardo Oliveira ao apresentar a peça.

Já Saskia provocou o público que encheu a tenda de Tiradentes: “grita aí galera!”. Eu lancei um berro e é assim que começamos: Caixa Preta produz uma estética do grito e do remix. É a ação contra a representação. A mão que monta é a mão que narra. Este é, sem dúvidas, um filme de arquivos. Mas parar por aí seria, logo, outro vacilo. O que Saskia e Oliveira fazem com os arquivos é o que importa. Artistas versados no som, eles terminaram por montar um filme como se fosse uma mixtape. Se hoje tudo é arquivo, o que resta é samplear o passado no presente. 

O filme da dupla articula um volume pesado de registros em variados formatos numa brisa cheia de bugs e glitches, misturando numa alquimia imagens da internet, áudios de variadas origens, vozes dos outros e de um dos diretores que canta e declama, evoca, chama. Convida a habitar a tela preta: origem dos mundos?

O que encontramos é uma espécie de atlas mnemosyne da pretitude que canta e faz caminhos. Sempre no plural, fazendo da curva e da esquina dos arquivos a nossa morada provisória. É um filme para se curtir como se estivéssemos numa festa. Remix pra dormir, sonhar, beijar, transar, gritar, cozinhar, caminhar, estudar: postergar a morte e o sofrer. Se fôssemos destacar uma sensação que aparece na experiência de assistir Caixa Preta, eu diria: tesão. Mas um tesão pelo som, pela colagem de imagens e áudios, pelo passado e, quem sabe, pelo futuro. O som é físico e faz o corpo vibrar. O cérebro fica doido e o prazer das montagens de coisas aparentemente incongruentes nos mostra o poder da estética do remix, traço caligráfico, com variações estilísticas que não podem ser esquecidas, de certo cinema contemporâneo no Brasil. Uma bomba sensorial que ensaia um constante recomeço para aumentar a frequência do mundo. Caixa Preta faz da errância a forma de sobreviver no mundo da arte e da política. Como cantou Tantão: “volume é drama”.

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Regra 34 (Julia Murat, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

Falar de sexo envolve tantas vezes falar desse lugar nebuloso que é o desejo de ser, ao mesmo tempo, Sujeito (o que produz os significados, o que deseja e que fode) e Objeto (sobre o qual os significados são projetados, o que é desejado e fodido). Se tudo dá certo, essas posições vão se intercambiando numa transa ou romance. Desejamos, sim, a libertação do corpo e da mente, mas também a prisão da idealização alheia. É uma contradição da qual o capitalismo tardio adora se aproveitar, projetando sobre corpos e pulsões a ilusão – muito bem sustentada pela indústria de massa – de satisfação pelo acúmulo de propriedades e amantes. E nos oferece uma solução que lhe é muito oportuna: quanto mais eu (me) vendo, mais eu consigo obter. É uma dinâmica de consumo (atenção à polissemia da palavra: “aquisição”, “gasto”, mas também “destruição”, “desaparecimento”) recíproco de corpos; quantidade sobre qualidade, status sobre intimidade, e por aí vai. O novo Regra 34, de Julia Murat, apesar de atravessado por esse embate, parece se interessar muito pouco por suas nuances.

Simone (Sol Miranda), nossa protagonista, é uma jovem estudante negra de Direito que acabou de passar no concurso de defensoria pública com o suporte financeiro de seu trabalho noturno como camgirl. Ela gosta do trabalho sexual – ponto que não devemos nunca ignorar -, e, após contato com um vídeo em específico, passa a incorporar a aplicação de dor e sofrimento à sua prática sexual. Se a premissa por si só já é forte, é porque trata do cabeludo cruzamento entre muitas coisas: sexo, política, privado, aparato público, significados históricos do corpo, a autoimagem pornográfica, performance, os extremos da carne, entre outras coisas ainda mais. A separação em tópicos me salvará de uma síncope:

  • Como posto acima, Simone gosta do trabalho de camgirl. É importante, assim, saber separar o gosto pela performance sexual e o gosto pelo sexo. Obviamente, o estilo de seu trabalho não é o mesmo do da indústria pornográfica tradicional, uma vez que a autonomia envolvida reduz – ou anula – a chance de abuso hierárquico. Não há a chance de um diretor/produtor/ator pressioná-la ou obrigá-la a submeter-se a cenas violentas; no máximo, há a poda da plataforma. Tratar, entretanto, o gosto pela atividade no Chaturbate em equidade ao gosto por fazer sexo é como dizer que o gosto por atuar é o mesmo gosto por viver. O elemento definitivo entre os dois é esse distanciamento ambíguo que abraça algum artifício no objetivo de capturar o olho do outro e que, muitas vezes, cria um olhar externo de si enquanto se vive. Na performance, um corpo torna-se Objeto para que seja Sujeito uma dança, um canto, uma personagem, um texto (no caso da pornografia de Simone, o fetiche alheio). No início, acreditei ser um ar performático geral algo abordado pelo filme. Os diálogos não muito críveis, moldados numa rigidez que contamina a direção de atores, pareciam tratar esteticamente do peso do artificial projetado também sobre a rotina, do âmbito privado infectado pelas falas comuns roteirizadas, pelos vícios comportamentais (a citação por Lucia de uma frase que refere falsamente a Frida Kahlo; quando Lucia e Coyote dançam sozinhos, em planos individuais, antes de se beijarem e atraírem Simone para um ménage: corpos solitários e ensimesmados que “se apresentam” para se encontrar). Mas, à medida que avança o filme, percebemos recair o foco sobre questões de outra chave, e essas ambiguidades que pareciam estar sendo propostas são abandonadas.
  • O corpo da personagem principal é atravessado pelo antagonismo entre o peso da imaculável/descarnada burocracia legal (expressada, às vezes, pelo posicionamento das pessoas no extremo inferior dos enquadramentos, afogadas pela parede) e a desnuda, penetrável, mutilável pele da vida sexual[1]. O filme aproveita o choque entre esses dois polos pelos cortes bruscos entre as sequências em sala de aula/defensoria e as da intimidade em espaço privado. Mas a complexidade que o cruzamento dessas diferentes existências envolve não parece trazer grandes turbulências ao arco do filme: o mundo privado é um, o laboral/legal é outro. Os dois não se misturam, não se contagiam, não se complicam. Apenas entram em choque por justaposição, como estruturas imanentes de funcionamento. Não existe a chance de Simone abrir uma mensagem ou vídeo safado no trabalho, ou olhar para um colega com malícia no escritório; nem, por exemplo, criar alguma burocracia  involuntariamente nas suas práticas sexuais.[2] Coyote (Lucas Andrade), colega da faculdade de direito, é seu amigo colorido, mas, novamente, isso não afeta sua companhia ou presença em sala de aula. Por isso, Simone é quase barroca, com a diferença que sua dualidade libidinal não vira conflito, é apenas um traço “disruptivo” da personagem. As demais desconstruções estão todas em discussões com chefes de trabalho, professores de direito, colegas da universidade e a amiga Lucia (Lorena Comparato). Um filme sobre a proximidade entre o corpo carnal e o institucional, postos como imunes um ao outro e em cheque apenas verbalmente, nunca por ação ou circunstância de cena. Daí a rigidez dos diálogos, não há acaso abalando sua forma cartesiana de tratar os tantos movimentos da premissa. O funcionamento usual das conversas é o seguinte: Simone acha “x”; Lucia acha “y”; nenhuma dá o braço a torcer; uma das duas vai embora. Essa dinâmica se repete em outros casos de conversa, terminando geralmente em silêncio rancoroso. Mas, entre as amigas, a saída no meio da conversa acontece ao menos três vezes (quando Simone tenta atiçar a raiva de Lucia no beijo, quando discutem sobre a possibilidade de redenção de abusadores na varanda de Lucia, quando Lucia confronta Simone após vê-la deprimida e de corpo marcado). Os conflitos são todos verbais – e binários, à medida que nenhum parece ser suportável para as partes envolvidas a ponto de ser resolvido. Quando as coisas não terminam em saída ressentida, terminam em ebriedade e pegação. Ou seja: em abstenção. As questões sociopolíticas e psicossexuais são tratadas, a rigor, pela linearidade dos diálogos entre personagens sem qualquer maturidade emocional.
  • Eis que o filme escolhe pela irresponsabilidade da protagonista nas suas aventuras pelo BDSM. Entre os conhecedores da prática, é sabido ser o respeito à consensualidade a sua chave central. Ela é o único elemento que separa a aplicação de dor, sofrimento, humilhação e dominância do abuso; que faz com que seja a prática de uma fantasia e não de uma verdadeira violência. O controle precisa ser desejado por quem é controlado, e a confiança entre as duas partes permite esse afloramento. Apenas a firmeza do pacto entre as duas partes garante ao submisso a posição de Sujeito dentro da objetificação voluntária: o respeito ao seu “basta!” (geralmente a famosa “palavra de segurança”), muita conversa para compreensão dos limites, manifestações de carinho no meio ou após a sessão, etc. Se o tom lúdico da prática ficar sequer turvo, pode acontecer o que chamamos de “sub drop”: uma queda hormonal súbita que causa sintomas variados, de insônia e crise depressiva a espirros e tosse. Isso explica o choro copioso de Simone após uma descontrolada sessão de sexo violento com Coyote transmitida online. Existe uma amiga de Simone, Nat (Isabela Mariotto). Ela que lhe manda o vídeo de aplicação de dor, e quem constantemente avisa sobre o cuidado necessário na prática para a autopreservação. A protagonista voluntariamente recusa os conselhos e, por conta disso, entra por livre e espontânea vontade em ciclos de hostilidade sexual sem limite definido, com margem para ser abusiva e abusada. Não se trata do contraditório movimento de encontrar liberação na constrição, ternura no sofrimento, pulsões de vida na dor. O movimento do filme coopta o sexo e a pulsão de morte, estabelecendo uma gradual jornada suicida atravessada pelo consumo do corpo de Simone (virtualmente desde o começo, concretamente com o desfecho). Num filme que mostra ter feito suas pesquisas básicas sobre o BDSM (pois existe uma figura que alerta sobre a prática segura e responsável, e existe uma cena com o “sub drop”), por que – e a quem – interessa que a protagonista renuncie à própria segurança – e, em última instância, a seu lugar de Sujeito nessa jornada – e se ponha no lugar de completa objetificação?
  • Regra 34 é o primeiro vencedor brasileiro do Leopardo de Ouro em 55 anos, desde Terra em Transe, de Glauber Rocha. Numa mesa redonda da ArtRio do ano passado[5] (um evento de arte e mercado assim como Locarno ou Cannes), o historiador de arte Igor Simões pontuou a predominância massiva de obras figurativas de artistas pretos – todas, naturalmente, envolvendo pessoas e arquétipos pretos pintados. A observação não era uma crítica sobre es pintores, mas sobre a rejeição curatorial de uma arte preta abstrata. Aponta não só uma recusa dos seus potenciais de leitura do mundo, do pensamento e da arte como um todo, mas também a predileção para a exposição e venda do corpo negro (se não mais da sua carne, da sua figura pintada ou esculpida). Uma cutucada ao evento, e aos mecanismos da supremacia branca operantes, aqui, na forma de tendência de mercado. Regra 34 fez a fala de Simões ressoar em minha cabeça, à medida que não se aprofunda no ciclo de consumo que atravessa os corpos filmados, mas, mesmo assim, apresenta corpos que desesperadamente querem ser consumidos. Trata-se de um filme que aborda as contradições desse desejo, ou de um que só raspa a superfície disso como subterfúgio do consumo desses corpos?

[1] Curiosamente, por esse amálgama também é atravessada a figura da atriz, Sol Miranda, candidata a deputada federal pelo PSol em 2020 e pelo PSB em 2022.

[2] Impossível não lembrar de “Seguindo Todos Os Protocolos”, de Fábio Leal, um dos grandes refrescos do cinema brasileiro do ano passado. O conflito entre o movimento erótico e a moralidade política é ponto chave do longa e ele é posto com muito êxito num único corte: um jump cut faz a tela do laptop do protagonista Francisco sair do pornô para um informe de 200 mil mortos por COVID-19; a tragédia coletiva embarreirando o tesão no virtual (aponto, novamente, a polissemia de “virtual”: “do meio eletrônico”, mas também “do espaço mental”, “da potência não realizada”). Decerto, em algum momento, o erotismo ganha enfim lugar material no apartamento de Francisco, mas com as idiossincrasias obsessivas decorrentes de seu medo do contágio: tentar transar com um plástico entre ele e o outro cara, necessariamente usando máscara, etc. 

[3] Vale a pena mencionar o excelente texto de Geni Núñez acerca do erotismo no catolicismo, que tem chave na repressão, submissão e controle, e de suas semelhanças e diferenças com a prática BDSM. Disponível em: <instagram.com/p/CmmgVEPPkGF/>.

[4] [SPOILER] Simone, em troca de 20.000 tokens, oferece a um fã do Chaturbate (que afirmou em áudio querer muito vê-la sofrer) ir à sua casa e fazer o que quiser com ela: “A regra é que não tem regras!”. O filme termina num close up da protagonista prestes a abrir a porta sob batidas furiosas. O corte para os créditos se dá nela sorrindo, indicando que está tentada. Retomemos os sentidos de “consumo”: ela foi adquirida, e será potencialmente destruída. A conotação escravista do desfecho é evidente.

[5] Conversas ArtRio: Artista Negro, Galerista Branca. O debate parte de um quadro do pintor cuiabano Gervane de Paula, cujo título dá nome à mesa redonda. Conversa disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k9ZlGXD2Buk>.

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Avatar: Franquia frustrada ou antifranquia?

Por Bernardo Moraes Chacur

Na superfície, Avatar (2009) não destoa muito dos blockbusters recentes, treze anos depois do seu lançamento original: seja pela onipresença da intervenção digital, pelo uso de 3D, ou pela duração de mais de duas horas. Sob outros aspectos, no entanto, é um objeto estranho no contexto do cinema de franquias.

Com relação à narrativa em torno do filme, temos de um lado a marca autoral de James Cameron, em oposição aos diretores (geralmente) intercambiáveis empregados pela Disney[1], por exemplo. Ao invés de um cronograma de quatro lançamentos anuais, um perfeccionismo que exigiu quatro anos para a produção do primeiro longa e mais de uma década para a entrega da continuação. Seria fácil exagerar e romantizar indevidamente esses contrastes, mas talvez a única sabotagem possível no capitalismo tardio seja justamente algum grau de ineficiência.

Enquanto o público contemporâneo foi gradualmente condicionado a esperar pelo retorno cíclico do já conhecido, de personagens, histórias e cenários familiares, Avatar entregava novas vistas: a topografia insólita, a fauna e flora cujas características se embaralham, uma multiplicidade de cores e fosforescências, a exploração do 3D. Se há uma cena que encapsula essa profusão, é o momento no qual o herói busca se conectar com uma das feras aladas: depois de transporem uma cachoeira, os Na’vi se concentram em um dos cantos do quadro enquanto um novo panorama se descortina do lado oposto. Há movimento e formas estranhas vindo de todas as direções, acompanhados por oscilações da “câmera”. São imagens que seguem inusitadas, talvez por não terem sido canibalizadas até o momento em continuações, prequelas ou spin-offs. Ou talvez por possuírem algo de único e fugidio e que dificulta que sejam engarrafadas em série.  Os detratores de Avatar costumam menosprezá-lo justamente por essa suposta falta de “pegada cultural”, como se o citacionismo nerd e decoração de festas de aniversário fossem métricas indiscutíveis de valor.

Outra crítica recorrente é apontar os clichês do roteiro escrito por Cameron, mas em 2022 vários desses elementos genéricos parecem menos usuais, à medida que Hollywood se afasta dos tipos de filmes que fabricou por décadas. Mesmo a postura anti-establishment do enredo, que poderia ser lida como tímida ou inconsistente, se revela mais certeira com alguma boa-vontade. 

Uma cratera na memória racial

Logo antes da última briga, o vilão pergunta ao herói:  qual a sensação de trair a própria raça? A palavra poderia estar se referindo tanto à espécie (à raça humana) quanto à sua condição de branco. Os dois sentidos cabem no contexto, aplicados a um protagonista que havia rejeitado tanto o antigo corpo quanto o ideário do Destino Manifesto.

Tudo isso está no primeiro plano do enredo, reiteradamente e sem subterfúgios. Vale lembrar, no entanto, que certo grau de anticolonialismo, pró-ambientalismo e simpatia/condescendência pelos povos originários já circulavam havia décadas pelo cinema de Hollywood. A carga polêmica desses temas já estava tão esvaziada a ponto de render tratamentos como o oscarizado Dança com Lobos (Kevin Costner, 1990) e a animação Pocahontas da Disney (Eric Goldberg e Mike Gabriel, 1995) – tantas vezes comparados a Avatar em tom de deboche. Nesse tipo de filme, os genocídios costumam ser retratados como uma História confortavelmente distante, sem comunicação ou comparabilidade com os dias atuais. A produção de Cameron, ambientada mais de cem anos no futuro, talvez pudesse ser lida assim, como simples alegoria do passado, um faroeste revisionista sob uma capa de ficção científica.

Mas há elementos extemporâneos que desafiam essa interpretação. Por exemplo, quando o vilão orienta as suas tropas a destruir a árvore que é o centro da vida material/espiritual dos Na’vi, se vangloriando de que assim criarão “uma cratera na memória racial” dos nativos. Se a retórica dos tempos coloniais e neocoloniais ainda cultivava a farsa da Missão Civilizatória, a fala do coronel reflete um raciocínio que não só reconhece a própria crueldade como a instrumentaliza em nome da eficiência, a exemplo da política de Choque e Pavor (Shock and Awe), em voga durante as duas invasões do Iraque e diretamente citada por outro personagem ao longo do filme.

Boa parte dos soldados que recebem essas ordens de extermínio é negra, detalhe tão tétrico quanto apropriado (uma vez que representam 12% da população dos Estados Unidos, mas 21% das forças armadas da ativa[2]) e evidenciado em mais de um contraplano. Tanto o discurso militar quanto a composição étnica desse exército privatizado ancoram Avatar no presente. Tendo como referentes simultâneos a conquista do Oeste e as guerras do século XXI, Cameron situa a invasão de Pandora em uma História contínua de depredação.

Uma vez reconhecida a carga política de Avatar, também é necessário admitir o óbvio e dizer que a maior bilheteria de todos os tempos possui limitações como discurso anticapitalista ou polêmica racial, narrando uma história de salvador branco que se revela mais índigena do que os próprios indígenas. Cameron também perpetua aqui o mito no qual o anticorpo necessário para enfrentar a brutalidade dos invasores brancos é um invasor branco com uma dose extra de valores progressistas.

Ainda assim, há imagens que articulam uma perturbação genuína, como as dos animais em chamas após o ataque à árvore-ancestral, semelhantes às do holocausto ambiental que se intensificaria a partir de 2020 na Amazônia. Sempre se falou sobre o potencial (e perigo) da ficção como doutrinadora ideológica, mas qual a extensão dessa influência, caso ela se exerça? Como as pessoas que viram e reviram Avatar conciliam a clara mensagem pró-ecológica e seus próprios posicionamentos políticos? Mesmo considerando as várias camadas de desinformação e negacionismo envolvidas, podemos imaginar que pelo menos parte desse enorme público foi capaz de processar as ideias propostas pelo filme e mesmo assim reagiu com indiferença, considerando-as impertinentes ou inaplicáveis à realidade.

(Reassisti Avatar em setembro de 2022, em um multiplex de Brasília, em sessão razoavelmente cheia. Poucos dias depois o candidato derrotado à reeleição para presidente receberia quase 52% dos votos no Distrito Federal. Em 2018, esse percentual havia sido de quase 70%.)

Não é raro que cinéfilos de esquerda consumam filmes com graus variados de conservadorismo, cativados pela narrativa, por interesse estético, histórico, pelas neuroses desse discurso, por masoquismo e, ocasionalmente, identificação – relações que também devem se verificar ao longo de todo o espectro político.

Nunca foram modernos

Em Pandora, os Na’vi estão conectados aos animais e vegetais que os cercam – mas isso acontece pela via de um rabo de cavalo que é simultaneamente penteado e cabo USB. Os seus antepassados seguem vivos na grande árvore, mas isso é aferível graças a impulsos elétricos mensurados pela equipe de cientistas. Avatar habita essa contradição: valida outras perspectivas, na contramão do racionalismo clássico, mas para isso, recorre ao lastro desse mesmo racionalismo. Há sobrenatural e saberes ancestrais, mas como territórios a serem conquistados pela ciência.

Há pelo menos duas formas, que não se excluem mutuamente, de interpretar essa postura. A primeira seria ressaltar a inconsistência, alojada sob a boa intenção. A segunda é avaliar o que acontece com essas descobertas científicas no contexto do enredo, desconsideradas e ridicularizadas assim que se tornam inconvenientes para os interesses econômicos em jogo. Há aqui, mais uma vez, um exemplo do saldo geral de Avatar: para cada elemento simplista, outro momento lúcido e onde cada lugar-comum pode ser tornar vívido graças à inspiração visual e narrativa.

Cena pós-créditos: impressões após assistir Avatar: O Caminho da Água (2022)

Vi o segundo filme pouco depois da conclusão do texto. Seguem minhas impressões sobre como ficaram os temas desenvolvidos acima, à luz do novo episódio:

Há um bom número de repetições em Avatar 2: da estrutura, de situações e personagens (do vilão, inclusive). Se parte disso pode ser atribuído a inércia própria das continuações, em pelo menos um caso enxergo mais uma reiteração pertinente do que falta de originalidade: ainda no prólogo, vemos novamente os animais e a mata incendiada, uma imagem cujo horror se renova a cada vez, dentro ou fora do universo ficcional — e que deve ter continuado a assombrar James Cameron.

Com relação à política, desde o primeiro momento não há qualquer ilusão de convivência pacífica: a invasão humana já começa brutal e encontra como resposta imediata atos de terrorismo. Posição bem mais direta do que o típico deixa-disso centrista predominante no cinema/discurso mainstream.

Na trama original, cada ideia “radical” parecia conviver com outra mais conservadora. Essa dinâmica se repete na nova história, mas o polo menos convencional tende a ser  favorecido. Os êxtases da filha adotiva do herói são diagnosticados pelos cientistas como epilepsia, explicação que é desautorizada mais à frente. Jake Sully prioriza a família nuclear em detrimento da tribo e do povo, mas tem algumas de suas convicções postas em cheque ao final da intriga.  

Avatar 2 conecta mais uma vez o capitalismo passado e contemporâneo. A caça aos tulkuns combina séculos de pesca às baleias (especialmente a extração de espermacete) em cenas que detalham um processo tão cruel quanto eficiente de chacinar animais pelo lucro. Não por acaso, a eventual desforra contra os soldados e baleeiros será mostrada de forma igualmente clara e cruenta, com certo prazer vingativo.

Há um peso incomum na ação e na violência em cena, especialmente em comparação com a falta de densidade prevalente nas últimas décadas de cinema de entretenimento. Costuma-se atribuir essa falta de gravidade ao uso de CGI, mas Cameron e equipe demonstram que é possível criar um mundo ficcional convincente com ferramentas digitais. Não me parece coincidência que um tal resultado seja obtido por um diretor capaz de articular, em suas imagens, reflexão e revolta genuínas sobre a realidade que nos cerca.


[1] Ironicamente, uma vez que a Disney absorveu a 20th Century Fox em 2019, Avatar também virou mais um ativo do estúdio.

[2] Dados de 2021 e 2019, respectivamente.

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Festival de Brasília: A Invenção do Outro

Por Geo Abreu

Longa-documentário, vencedor da Competitiva do 55º Festival de Brasília, acompanha expedição da Funai e o reencontro entre parentes Korubo separados por disputas com etnia vizinha.

O filme começa com informações em cartelas, salientando a presença no comando da expedição, realizada em 2019, do indigenista Bruno Pereira, especialista em populações indígenas que vivem em isolamento, na época ainda técnico ligado à FUNAI. Em junho de 2022 Bruno acompanhava o jornalista norte-americano Dom Phillips numa viagem pelo Vale do Javari quando ambos foram assassinados.

Apesar desse fundo trágico, na qual a morte de Bruno se confunde com a própria política indigenista brasileira, em eterno conflito com os interesses do agronegócio, o documentário se ocupa da existência dos personagens Korubo em relação com a equipe com a qual dividem a jornada registrada pelo filme.

Estabelecendo logo de início a escolha por planos fechados em detrimento de planos abertos, geralmente usados quando se filma na Amazônia, Bruno Jorge aposta numa fotografia de detalhe, bem aproximada. Assim estabelece diferenças entre corpos brancos/corpos indígenas e também salienta costumes: cortes de cabelo, adereços, pinturas.

Já no momento do encontro com a equipe a língua se impõe como outro marcador de diferença. Um dos técnicos da Funai é responsável por traduzir o que dizem os Kurubo, o que acompanhamos via legendas. Em meio a brincadeiras muito masculinas, de zombaria sobre a troca de irmãs ou de bravatas sobre disputas mano a mano, a embarcação segue levando a equipe em busca dos parentes arredios de Xuxu e Takvan.

Interessante notar que a equipe da Funai não seja formada apenas por homens brancos, mas também por indígenas de diferentes etnias e pelos quais o documentário pouco se interessa. Sem eles seria quase impossível transitar pelos rios ou estabelecer acampamentos com a agilidade empregada pelo grupo. E eles seguem ali, o filme inteiro em segundo plano, enquanto a câmera se ocupa, quase sem pudor, dos Kurubo, estabelecendo uma relação de proximidade que não vemos ser negociada em momento algum, talvez porque eles sim representem a diferença ou, ao contrário, a semelhança de uma imagem idealizada de indígenas selvagens e ingênuos.

Entre encenações de batalhas, da apresentação de usos e também da arte das bordunas carregadas pelos Korubo – conhecidos vulgarmente como “índios caceteiros” por suas habilidades na fabricação e manejo de bordunas – o filme preenche o tempo de espera pelo reencontro entre parentes com imagens de caça e trato de animais selvagens, como macacos e preguiças, com o objetivo de alimentar o grupo. Cru e cozido e relações de predação como ontologia vem à mente quando estes mesmos animais reaparecem na história, agora em relações amistosas, quase amorosas, fazendo parte das famílias.

O privilégio de observar estilos de vida tão diversos e organizar racionalmente a coexistência desses modos de relação com o mundo é o que nos ganha emocionalmente na relação com o filme dirigido por Bruno Jorge. As sequências do reencontro entre as famílias e seus irmãos perdidos são tão afetuosas, barulhentas e humanas quanto a presença avassaladora de mosquitos, insetos, aves e demais existências que compõem a floresta amazônica. É instintivo apalpar o corpo para espantar as carapanãs ou cair num misto de choro e sorriso dentro da sala de cinema.

Essa imersão sensorial no filme também se deve ao trabalho de edição de som realizado por Bruno Palazzo. Conseguir dar um corpo audível aos diálogos captados em trajetos de lancha em rios caudalosos ou no meio da mata fechada e extremamente povoada de vida (e barulhos) deu ao filme e ao técnico o prêmio de melhor edição de som do Festival. A quem se interesse por som de cinema documental, sugiro ouvir Palazzo falando a respeito do trabalho com esse material.

A escolha por filtrar alguns trechos com o uso do slow motion – com a intenção de estender o tempo de algumas sequências, segundo o próprio diretor – parece alcançar o oposto, estabelecendo uma quebra no fluxo quase hipnótico de estar no mato experimentando relações com seres mais que humanos, sendo tragados pela grandiosidade de tudo ao redor, sentimento que talvez se perca no filme também, já que são poucos os planos abertos, dados ao respiro diante de tanta intensidade.

Ainda no quesito sensorial, há muito apelo ao que se come, ao que se diz com naturalidade sobre sexualidade, genitálias e demais traços materiais das relações com os outros e com o mundo ao redor, dando a impressão de uma intimidade tão conquistada quanto dada por certa, que quase nos esquecemos do exercício de imaginar o que pensariam os Korubos se estivessem em nossa companhia na sala de cinema, vendo a si mesmos e nos assistindo reagir ao que é exibido na tela. Que experiência seria? Compartilharíamos pupunhas cozidas e discordaríamos a plenos pulmões, estendendo a sessão por muito mais que duas horas e meia? Quero acreditar que sim.

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Festival de Brasília: Mandado (João Paulo Reys e Brenda Melo)

Por Geo Abreu

Voltar ao Complexo da Maré ocupado pelo Exército. Brasil, 2015.

Em 2014, por conta dos Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro, o Governo Dilma Roussef autorizou a ocupação militar do Complexo de Favelas da Maré, devido ao fato de que as principais vias expressas da cidade cruzem esse território, além da proximidade com o Aeroporto Internacional do Galeão, porta de entrada da maioria dos turistas que tomariam conta da cidade naquele período.

Neste processo, um mandado coletivo foi expedido para que qualquer residência em pelo menos duas das 17 favelas que compõem o Complexo pudessem ser alvo de buscas e invasões executadas pelos militares, sem maiores justificativas. Há excepcionalidade nessa medida? É disso que trata Mandado, longa exibido na noite de 17/11, na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.

O filme escolhe perseguir a legalidade desse mandado coletivo, entrevistando juristas e especialistas em direito, além daqueles que atuaram junto às ONGS e demais órgãos de luta e direitos humanos durante esse episódio, intercalando esses depoimentos “especializados” com os de alguns moradores, entre eles, Cadu Barcellos, cineasta e roteirista morto num assalto enquanto voltava para casa em 2020, e Marielle Franco, a vereadora mareense assassinada junto com o motorista Anderson Gomes, que a conduzia quando o carro em que estavam foi alvejado por arma de calibre de uso restrito às Forças Armadas, em 14 de março de 2018.

Esse é o ritmo que se impõe como normalidade da perda violenta de parentes, amigos, irmãos e que envolve o documentário num clima pesado, reforçado ainda mais pela trilha sonora original que reforça a dramaticidade do assunto e algumas vezes antecipa o tom com o qual o expectador deve receber a próxima informação.

Muitas dúvidas surgiram sobre o timing do filme e seu lançamento, tantos anos depois dos depoimentos tomados e da ocupação militar que durou 14 meses, com a presença de um policial para cada 55 moradores. Enquanto escrevo esse texto, manhã de 26 de novembro de 2022, a Maré amanhece mais uma vez devastada pelas mortes ocorridas no contexto de uma operação policial que durou quase 24 horas, descumprindo os dispositivos jurídicos que estabelecem horários de início e finalização de operações em favelas, entre outras ilegalidades.

Observando as coisas por esse prisma, o da circularidade desse tipo de ação político-militar, amparada por excepcionalidades que só se aplicam a comunidade periféricas, e que tem o Rio de Janeiro como espécie de laboratório de práticas eugenistas em pleno ano de 2022, o assunto abordado por Mandado nos parece em processo e urgente.

A aposta da curadoria do Festival na escolha desse filme merece destaque, pois se alinha à proposta de apresentar “narrativas atravessadas por escombros, nas quais não há garantias.” Lembrar que nossa democracia representativa, essa mesma pela qual lutamos voto a voto no último pleito para presidência, é também aquela que, mesmo quando ocupada por representantes da “esquerda” trata a periferia como algo descartável. E aqui estamos nós, espectadores do mundo Brasil, de volta ao movimento violento da garantia de mais um dia de vida. Só mais um dia comum.

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Festival de Brasília: Sessão de curtas

Por Geo Abreu

Nossos Passos Seguirão Os Seus…, Ulton Oliveira (RJ)

Não é a Primeira Vez que Lutamos Por Nosso Amor, Luis Carlos De Alencar (RJ)

Calunga Maior, Thiago Costa (PB)

Rumo, Bruno Victor E Marcus Azevedo (DF)

A criação de memórias tem aparecido como tema em muitos dos filmes exibidos aqui em Brasília nesses dias de festival. A necessidade de pôr em marcha uma série de materiais, entre fotos e vídeos,  sobre histórias que “vieram antes de nós” acabam trazendo para a discussão ideias como preservação e acesso a arquivos públicos (Nossos Passos Seguirão os Seus), a importância de arquivos pessoais para composição de histórias publicas (Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor) e a necessidade de registrar encontros e performances políticas, na preemência da  criação de grupos de ativistas (Rumo) para que assim as “novas gerações” saibam quanta luta foi necessária para que alguns direitos básicos fossem garantidos.

Qual a relação entre produzir um documentário sobre um personagem fundamental de greves acontecidas no começo do século XX, outro sobre a formação de grupos de discussão e ação política no terreno das lutas travestis/lésbicas/gays dos anos 70/80/90 e a história de um grupo ativista negro, fundamental para que a UnB fosse a primeira universidade brasileira a implantar o sistema de cotas no Brasil? Os arquivos – públicos e particulares -, em sua complexidade de conservação, acesso e reelaboração.

Na vontade de produzir um filme como registro da existência de Domingos Passos, importante figura do movimento operário do começo do século XX no Rio de Janeiro, Uilton Oliveira encara a ausência de imagens de seu personagem a partir da produção de episódios ficcionais com os quais intercala o discursivo do filme. Entre páginas de jornais e publicações operárias vai montado uma memória possível de Passos e apresenta um procedimento que que tem se tornado comum nos documentários contemporâneos: buscando na ficção a composição das lacunas que o material de arquivo traz.

Em Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor, Luis Carlos de Alencar se baseia numa robusta pesquisa sobre a história dos movimentos e associações travestis, lésbicas e gays brasileiras, suas histórias, os núcleos regionais na Bahia, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além de trazer em paralelo também alguma história de associações de caráter semelhante surgidas nos Estados Unidos e as discussões que pautaram as reivindicações destes movimentos entre as décadas de 70 e 90.

Contradições internas, as tentativas de aproximação com o movimento operário – aquele mesmo, do ABC Paulista, que nos rendeu um ex-operário presidente – e medidas necropolíticas aplicadas principalmente sobre corpos travestigêneres no Brasil, muito antes que o termo virasse moda, são alguns dos assuntos abordados pelo longa documentário que cumpre papel importante na organização da memória dos movimentos políticos de contestação da binarismo heterossexual. Vale frisar a importância do acesso à arquivos particulares dos entrevistados, ressaltados pelo diretor durante debate pós-sessão.

Nesse sentido também, não fosse uma escolha dos próprios membros do coletivo EnegreSer por uma autoprodução da memória e a salvaguarda desse material em arquivos particulares, um filme tão potente quanto Rumo – dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo -, talvez não fosse possível. A história do grupo de estudantes negras que se reuniu para reivindicar não apenas as cotas quanto a própria respeitabilidade das existências pretas nos cursos da UNB, acabou por se auto afirmar, na medida em que muitos da grande equipe envolvida na produção do documentário é fruto desse processo contínuo de luta.

“Produzir-se à frente, como uma memória do futuro”, frase do filme Calunga Maior, de Thiago Costa, arremata a ideia de que, para além da pesquisa em arquivos já existentes, é a própria produção de material que se impõe hoje, conscientes de que, independente de quantas gestões antidemocráticas passem por nós, a luta por direitos entre as comunidades negra, indígena, travesti, LGBTQIA+ é uma constante. Pensar seriamente sobre arquivos particulares como alternativa para a não preservação de arquivos públicos demanda experiência no auto registro, na produção de memórias escritas dos encontros, além do cuidado com a integridade desse material.

Em Rumo há também a escolha por uma auto ficção que parece ocupar o lugar de ligação entre os blocos documentais. A solução de sair de um momento ficcional, em que a câmera acompanha um personagem que com a simples quebra da quarta parede, passa da ficção ao documentário, se apresentando e revelando sua ligação com a UNB e o movimento negro contemporâneo que vive a universidade pública em Brasília hoje é um dos maiores acertos do filme.

Sugere uma transição sutil entre tempos sobrepostos, como a própria ideia de escrever o passado enquanto atira uma pedra hoje. As várias possibilidades de uso e também de confronto com o arquivo que estes filmes apresentam sugerem ainda uma abertura para que, numa ecologia em que tantas imagens são produzidas o tempo todo, filmes possam cada vez mais se apropriar desse acervo quase infinito, reelaborando passado e presente na intenção de produzir imagens de futuro para o cinema brasileiro

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Festival de Brasília: Mato Seco em Chamas

Por Geo Abreu

“A única coisa que nos interessa são as nossas lendas, as lendas da Ceilândia.”

Em questão de meia hora, Mato Seco em Chamas resume sua história num prólogo: Chitara se transforma numa das gasolineiras mais respeitadas da Ceilândia e, a partir de seu lote no bairro do Sol Nascente, passa a extrair petróleo e produzir gasolina, abastecendo os motoboys da região. Enquanto aguarda o retorno de sua irmã Léa à liberdade, Chitara constrói sua reputação, atraindo inimigos que tentam tomar sua plataforma à força. Ao se impor à realidade, a heroína se firma como lenda viva daquela comunidade.

Com esse mote de odisseia – uma das personagens segue criando mundos enquanto espera o retorno da outra, que voltará para contar tudo o que viu do outro lado dos muros de uma penitenciária -, o filme acomoda essas interrupções e o desaparecimento de Léa, com cenas sobre o cotidiano do Sol Nascente – essa Ítaca sulamericana -, com a história de Andreia e sua campanha política voltada às mulheres encarceradas, e, claro, com a vida da plataforma de petróleo comanda por Chitara.

A etnografia da ficção, conceito desenvolvido por Adirley Queirós e Joana Pimenta para esse movimento que questiona as estruturas do documentário e as relações do cinema com a realidade encontra em Mato Seco seu melhor desenvolvimento. A extrapolação das histórias de vida das atrizes soma-se ao que seriam possíveis soluções para seus problemas reais executados no campo da ficção, sendo moldadas também pelo fluxo de uma história pública que acompanhamos via noticiário, e que segundo os diretores, molda o filme no seu corte final.

Num movimento pendular de ida e vinda, alguns episódios retornam, como uma história contada repetidas vezes na esquina do bairro. Esse procedimento de repetição é que garante que as trajetórias de Chitara e Léa sejam lembradas por anos, ou enquanto durem as pessoas de sua geração remanescentes do Sol Nascente.

Enquanto procedimento narrativo também, Adirley e Joana trabalham com performances públicas que ajudam a produzir uma memória do filme na comunidade: a constância do trabalho no lote, com o barulho das máquinas em atividade; a produção de todo um aparato ancorado na realidade de uma campanha política para a candidatura fictícia de Andreia (criação de comitê, realização de reuniões, panfletagem e carreata com carro som); as várias rondas noturnas do caveirão Brutus pelas ruas do bairro. A produção dessa memória do filme ajuda a criar a ideia entre os moradores do Sol Nascente de que aquele filme já foi visto.

Esse compromisso com a contra-narrativa, essa que cria memórias e se inscreve no cotidiano das pessoas, marca o trabalho dos diretores, aqui fazendo cinema para a cidade-satélite da Ceilândia que, sem uma sala de cinema sequer, tem como espelhos de si mesma os muros, as ruas e a memória de seus moradores.

É radical propor um cinema que é projetado enquanto se realiza como produto, já que essa é a única possibilidade de exibir um filme na Ceilândia: fazê-lo. Buscando suporte em outras modalidades artísticas, como a performance – da motociata, do caveirão – e a instalação – a plataforma de petróleo no quintal do vizinho– os diretores executam também uma longa observação de personagens reais pinçados da própria comunidade.

Essa observação participante dedica longos planos a um culto evangélico: onde uma criança de colo que acompanha sua mãe já começa a cantar aquelas canções, enquanto fora do templo o mundo parece escoar junto com a chuva que cai na rua sem esgoto. O baile no ônibus libera a energia daquelas mulheres de todas as cores e tipos de corpos, que se esfregam e se beijam porque o desejo das trabalhadoras precarizadas é do final de semana, é da boca das amigas, é ritmado pelo funk. Já quase no fim do filme, vemos os documentos do processo que levou à prisão de Léa acompanhados da sua leitura em voz over e é impressionante como nenhuma informação espanta porque já conhecemos muito da personagem, a partir de sua performance como narradora das próprias histórias, aquelas que não passaram pelo processualismo judicial mas, formam a figura, o arquétipo da guerreira urbana, o mito, a lenda do Sol Nascente.

Operando entre ficção e inscrição em processos reais, Adirley Queirós e Joana Pimenta levam Mato Seco em Chamas a tomar uma materialidade expandida que radicaliza não só a forma, mas a essência do cinema, a vida mesmo como obra de arte, já nem tão burguesa assim (e ainda bem).

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Festival do Rio: Parte #4

Diário de bordo

Por Pedro Tavares

UM CASAL: SOPHIA E TOLSTÓI (Frederick Wiseman, 2022)

Sophia e Léo Tolstói num jogo de espelhos muito funcional. É pelo espaço e pela relação direta da personagem e a câmera, num monólogo que serve como devaneios de uma pré-discussão com somente Sophia em cena que Wiseman faz, neste retorno à ficção, uma combinação de angústia humana e a libertação pela natureza.

CANÇÃO DE AMOR (Max-Walker Silverman, 2022)

Há um nítido engajamento pelo sentimento de estranheza perpetuado por Silverman ao acentuar neste conto sulista de solidão uma camada cômica, principalmente com personagens secundários. É um filme já visto outras vezes visto no cinema contemporâneo americano e já cansado. Há uma beleza entranhada sobre a ação da sobrevivência aliada à beleza do meio, a imagem em 16mm, mas não suporta todo o filme.

WALK UP (Hong Sang-Soo, 2022)

Uma das esferas de Walk Up é que há um limite até para o confessionário desenfreado de Sang-Soo em seus filmes. Como um comentário bem humorado sobre estes limites, incluindo o do sonho e da imaginação e ode ao cinema que pela montagem tudo pode. Sang-Soo é único e na singeleza sabe ser cruelmente sincero mesmo quando a saída é encher a cara e fazer filmes.

A PRAGA (José Mojica Marins, 2021)

Ainda que mais próximo de um conto de horror convencional – ou um longo episódio de suas séries televisivas -, Mojica acha caminhos para trabalhar questões sociais e existenciais que outrora faria de forma mais radical. Aliado ao hercúleo trabalho de Eugenio Puppo para resgatar e finalizar o filme, A Praga nos lembra quão versátil e relevante Mojica foi por toda carreira.

OPERAÇÃO HUNT (Lee Jung-Jae, 2022)

É afrontoso ver um filme que se baseia num arquétipo, numa cartilha de saídas funcionais e tão apático que nem mesmo o simples trabalho de escapismo barato o filme de Lee Jung-Jae é capaz de fazer. Você já viu este filme antes em diversas línguas. Escolha um melhor.

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Cobertura: Festival do Rio parte #3

Diário de bordo do Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

PADRE PIO (Abel Ferrara, 2022)

Pio como receptador do mal que volta e meia nos assola. Ferrara coloca Pio como uma extensão e comentário vivo do que o filme de fato narra, um mundo prestes a curvar-se ao fascismo. E como Jesus chora ao contemplar Jerusalém e Jeremias escreve o livro de lamentações com tristeza, angústia e medo, Pio replica este gesto de desesperança no silêncio e na repetição de rituais que desembocam em uma das cenas mais potentes do filme quando Pio transparece, enfim, sua aflição.

CARVÃO (Carolina Markowicz, 2022)

Fábula rural interpelada por um pungente thriller de corrupção que dialoga diretamente com seu entorno. A realidade que instiga uma escolha corpulenta pela moral tipicamente brasileira e tão pulsante em pequenas comunidades. Por estas brechas o filme sustenta a linha de tensão e estilhaça argumentos puritanos conforme se aproxima das casas da região a lembrar que a necessidade é muito maior que os valores.

NIGHTSIREN (Tereza Nvotová, 2022)

Um bom filme para sessão dupla com Carvão. Tereza Nvotová também faz uma fábula rural interpelada por questões que envolvem valores e Nightsiren a parte da presença de bruxas num vilarejo. Bruxas estas que são estudadas pelo viés da subversão ao conservadorismo e não pelo lado mágico que geralmente são implicadas. A cólera geral criada pela vizinhança esboça um filme de vingança silencioso e de reapropriação do espaço criado para a liberdade e não para o medo.

EO (Jerzy Skolimowski, 2022)

Não é um exercício inédito ao colocar extremos opostos em representação para analisar seus comportamentos – a lembrar de Bresson, por exemplo – e EO, o burrinho que dá nome ao filme, é o observador das devastações humanas. Ele é uma espécie de Sr. Hulot do apocalipse e o que realmente instiga no novo filme de Skolimowski é a insinuação do valor da neutralidade do observador, de códigos não estruturados no comportamento do animal para que tenhamos qualquer insinuação de suas reações – o que de certa maneira nos remete aos filmes mudos que na ausência da palavra se esgueiram na linguagem corporal e nos gestos.

O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV (Sergei Lonitzsa, 2022)

Lonitzsa segue com a série de resgate de imagens e condensá-las sob um conceito. Este talvez seja o mais prático no sentido de uma lógica narrativa e que através dos depoimentos aborda a banalização do mal e como estes atos de horror parecem de um passado distante ou impossíveis de serem recriados pelo real. É um exercício que pela repetição coloca-se em xeque, porém aliado ao seu valor histórico, não cerceia o horror quando ele deve ser, de fato, exibido.

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Festival do Rio 2022 – Parte #2

Diário de bordo do Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

FOGO-FÁTUO (João Pedro Rodrigues, 2022)

Musical antirrepublicano. Neoconstitucionalismos à base de corpos e amor – bombeiros que cedem aos desejos ao invés da defesa nacionalista e heroica. João Pedro Rodrigues equilibra o cinismo do debate sugerido à contemporaneidade pela diluição de uma pauta frontal e que naturalmente se atrela às imagens, nivelando assim confronto e afeição.

CONVERSANDO SOBRE O TEMPO (Annika Pinske, 2022)

Apesar do clássico rigor que dilui para observar a queda do estado burguês – ao contrário de uma narrativa da vida burguesa que obviamente subentende um estado de desespero geral -, o longa de Annika Pinske observa a ilusão de superioridade num esquema narrativo contemporâneo e que aposta na distância como manobra concreta sob o real. Ainda que se aproxime de um desgaste, principalmente por filmes de grife de festival, o filme de Pinske funciona em boa parte do tempo.

MATO SECO EM CHAMAS (Adirley Queirós, 2022)

Afirmar a distopia no Brasil de hoje não é novidade para Adirley Queirós, mas o que reforça toda trama dos “gasolineiros” e presidiários como resistência ao bolsonarismo é como o filme dialoga com o real, indo da narrativa paralela e o infiltrando, a ponto de interromper o filme para dar ênfase ao desejo das personagens (que se confundem com suas vidas reais) pela liberdade e como Mato Seco em Chamas, além de mais um diagnóstico certeiro sobre o Brasil pós-golpe, é uma chave de recomeço para muitos ali filmados.

FOGARÉU (Flávia Neves, 2022)

O incêndio incitado por Flávia Neves em Fogaréu não leva suas brasas para muito longe. A hipocrisia incrustada no cotidiano nacional vem na base do didatismo – neste sentido o controle narrativo de Neves é ótimo – e desmistifica a família conservadora brasileira através da figura de uma mulher de esquerda. A questão é sobre qual aplicabilidade esta junção óbvia se faz?

O CONTADOR DE CARTAS (Paul Schrader, 2021)

Schrader é tão versátil como realizador que desta vez faz um filme-farsa para criticar frontalmente o sistema de torturas do exército americano e o orgulho patriota que cerca este gesto brutal. Em seu entorno há uma trama de gênero envolvendo campeonatos de Poker, vingança e um amor tortuoso com dos finais mais belos de 2021.

BRIGA ENTRE IRMÃOS (Arnaud Desplechin, 2022)

Aqui temos um caso curioso: se Desplechin outrora criou bons subterfúgios para evitar o contato direto com o conflito, neste ele escancara a proposta de um distanciamento claro entre conflito e montagem para depois colocá-los num encontro frontal tão mecânico que a única possibilidade crível aqui é que Desplechin abriu mão de seu filme para obedecer ordens de um produtor.

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Festival do Rio 2022 – Parte #1

Diário de bordo durante o Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

MEU LUGAR NO MUNDO (Adrián Silvestre, 2022)

O filme de Adrián Silvestre se revela uma medida bem competente entre o drama envolvendo identidade de gênero e a vida corriqueira, como ele se torna um elemento primordial para toda ação, da busca pelo amor às crises existenciais e principalmente pela afirmação no mundo enquanto um olhar externo está a julgar cada ação.

TRÊS TIGRES TRISTES (Gustavo Vinagre, 2022)

O mais controlado filme de Vinagre troca o enfrentamento usualmente visual dos filmes anteriores por um manifesto didático e até bem humorado como comentários acerca do momento trágico momento que vivemos sem abandonar a representação do cotidiano LGBTQIA+. Certamente trata-se de um suspiro antes de um grande lamento sobre o Brasil de 2018 para cá em que a risada se confunde com o choro.

BROKER (Hirokazu Kore-eda, 2021)

Kore-eda vai à Coréia do Sul e faz uma espécie de filme americano de sua carreira depois do europeu The Truth. Broker é um filme agridoce e que bate incessantemente na jogada do tema ácido com diversas saídas tragicômicas para transformá-lo em objeto de discussão sem que crie mal estar no espectador. É um filme menor de Kore-eda que parece estacionar na zona de conforto com abordagens mais acessíveis que as tradicionais de sua filmografia.

REGRA 34 (Júlia Murat, 2022)

Curioso que este filme de Júlia pareça mais com um filme de Lucia, distante de seus filmes anteriores e que remete ao ambiente de Praça Paris, por exemplo. Um conto tipicamente carioca que associa de traumas, injustiças sociais e violência com liberdade, sexualidade e BDSM. É um gancho ousado e igualmente duvidoso, ainda que a primeira camada de conflitos esteja relacionado à seriedade de eventos corriqueiros no Rio de Janeiro e que a liberdade seja uma forma inerente de escoar a dor – através da dor, o que está em cheque é a forma, o modus operandi, a maneira de concatenação deste universo.

DECISION TO LEAVE (Park Chan Wook, 2022)

Como Kore-eda, Chan Wook fez um exemplar americano de seu trabalho. Digo isto no sentido de um trabalho mais palatável e menos espetacular. Porém, Decision to Leave está mais próximo de trabalhos que se baseiam na linguagem propriamente dita e não em uma abordagem teatral como se espera de filmes com este rigor. É um filme feito para o corte, para resultados imediatos e efeitos instantâneos. Chan Wook sabe refletir estas intenções nos personagens a exemplo do detetive que não dorme e que sobrevive a um casamento falido e usa o trabalho como subterfúgio. Basicamente um longo exercício de subversões com certa funcionalidade.

PALOMA (Marcelo Gomes, 2022)

Se “Meu Lugar no Mundo” dilui os desejos e afirmações de uma mulher trans no cotidiano, aqui temos uma versão televisiva desta abordagem, condensada em um único conflito didático o bastante para o elo dramático com o moral quando narra o sonho e busca de Paloma para casar na Igreja.

NOITES DE PARIS (Mikhael Hers, 2022)

Fins e recomeços. Recorte de um tempo, uma família, um sentido e um sentimento concentrados no grão. Pessoas que chegam e vão, momentos bons e ruins – a vida da família de classe média oitentista em Paris como uma poesia. Corações a bater, olhos a piscar, conflitos a criar e diluir.

QUANDO NÃO HÁ MAIS ONDAS (Lav Diaz, 2022)

Teatro da culpa. O denunciador e o denunciado corroídos enquanto Lav Diaz trabalha de duas formas distintas para cada um. Em comum, há o aspecto teatral, que nunca esteve tão coeso e Diaz concatena muito bem palavras e ações ao potencializar cada um de maneiras particulares aliado ao tempo, elemento primordial do cinema do realizador.

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OS DEUSES DA CIDADE

por João Paulo Campos

Para mim, cineasta e etnógrafo, praticamente não existe nenhuma fronteira entre o filme documental e o filme de ficção. O cinema, a arte do duplo, é já a passagem do mundo real para o mundo imaginário e a etnografia, a ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é a contínua passagem de um universo conceptual a um outro, uma ginástica acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos.  – Jean Rouch por Enrico Fulchignon.

Abre os olhos e começa a escutar. O mundo está em fricção – e sempre esteve. Os mestres loucos (1955) é um filme que se escuta com os olhos e se olha com os ouvidos. Uma obra que convida o espectador a um engajamento sensorial de corpo inteiro – cabeça, barriga e pés inquietos se articulam diante da coreografia que se desenrola no ecrã. É bem conhecido que Jean Rouch, engenheiro de formação, conheceu a África em 1941 e lá foi responsável por dirigir a construção de estradas e pontes, contribuindo, portanto, para o processo de urbanização num período de transformações radicais das nações africanas. O espaço urbano é, portanto, um dos focos de atenção do cineasta desde antes de sua formação antropológica e cinematográfica. 

Quando iniciou sua pesquisa de doutorado em 1947 em que estudou feitiçaria, sacrifício e possessão entre os Songhay sob orientação de Marcel Griaule, o autor encontrou uma África radicalmente diferente do que havia lido em tratados de Antropologia clássicos. O contexto sociocultural que surpreendeu Rouch era marcado pelo conflito, pelos efeitos da urbanização desordenada e das lutas pela independência. Esses fenômenos encontraram expressões particulares em seus numerosos filmes, de  Au pays des mages noirs (1947) à Petit à petit (1969) e adiante, dos filmes etnográficos “clássicos” aos experimentos de “etno-ficção”. 

Uma coisa deve ser dita de uma vez por todas, os mundos que encontramos nas obras de Rouch, sejam seus experimentos mais radicais ou os filmes considerados – erroneamente – mais cientificistas, acadêmicos ou caretas, são mundos em que o sono e a vigília se imbricam numa coreografia surrealista. As cidades e aldeias que vislumbramos nos filmes de Rouch são, ao fim e ao cabo, espaços surrealistas. 

Como engenheiro cultivou a admiração pela obra de Eiffel – Torre Eiffel e Paris (Le beau navire, 1990) e pontes do Rio Douro no Porto – Portugal (Une poignée de mains amies, 1996). Curiosamente, em sua experiência pregressa na França, o “cineasta-antropólogo” destruiu pontes para evitar o avanço das tropas nazistas num trabalho coletivo de guerrilha urbana contra a tirania. O caminho de Rouch foi, portanto, trilhado pela derrubada de pontes do nazismo para então se engajar na construção de estradas e pontes para a nova África urbana. Para além do trabalho de engenheiro, Rouch construiu também pontes sensíveis entre povos e campos do saber, entre a imaginação e a realidade, entre a ficção e o documentário, entre o sonho e a vigília, sendo um dos pontos originários, como veremos, tanto da antropologia contemporânea quanto de certas tendências do cinema atual.

É esse contexto em transformação que encontramos neste curta-metragem emblemático e não menos polêmico.  A primeira imagem que percebemos após os créditos iniciais é a aparição de uma máquina central para a iconografia da modernidade e modernização mundiais – imagem originária não apenas deste processo social, mas também da mitologia do cinema: um trem em movimento. Mas Rouch não busca aqui mimetizar o train-effect e seus mal-entendidos historiográficos – hoje já solucionados pelos historiadores do primeiro cinema. Vemos o trem atravessar o plano da esquerda para a direita enquanto dois homens aguardam sua travessia. Um corte inverte a posição dos corpos e máquinas. O movimento do trem se encerra da direita para a esquerda numa operação notável de montagem que figura a máquina moderna como uma espécie de cortina de teatro que corre para desvelar o universo espacial e cultural que servirá de palco para um (contra)espetáculo de uma realidade imaginada coletivamente. Uma multidão de homens, mulheres, mercadorias, construções e máquinas toma conta do quadro. A voz de Rouch narrador surge com a desaparição da figura para anunciar o contexto e, sobretudo, o espaço em que estamos. “Accra, a capital da Costa do Ouro”. A apresentação se desdobra num comentário pontual: “é uma verdadeira babilônia negra”. 

De repente nos encontramos num centro urbano povoado por gente apressada que se desloca para todos os lados freneticamente. O típico movimento de uma cidade em ebulição nos é mostrado em curtos planos que configuram uma sequência de vislumbres da cidade. Percebemos mulheres carregando mantimentos em suas cabeças, carregadores empurrando carrinhos repletos de recursos, carros elegantes cruzando as vias, táxis navegam por entre as ruas ensolaradas, caminhões são vistos levando pilhas de mercadorias, enxergamos motocicletas estacionadas à beira da rua, ciclistas atravessam o quadro com cuidado para não serem atropelados, bares e lojas habitam a periferia dos quadros – um caminho possível no (re)fluxo alucinante da urbe. 

Rouch continua a ensaiar seus comentários: o etnógrafo diz que estamos observando uma cidade em que se reúnem imigrantes de todos os lados da África Ocidental. Como todo centro urbano, a cidade produz um efeito magnético que atrai gente de toda sorte vinda da Nigéria, do Níger, do Alto Volta, do Sudão “para viver a grande aventura das cidades africanas”. E continua: “Nestas cidades, o trânsito nunca para, o barulho nunca para”.

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Os mestres loucos se inicia, portanto, por uma sucessão de vistas urbanas de uma nova cidade que o cineasta soube habilmente registrar e comentar para a posteridade, criando uma obra que perturba a imaginação reducionista que sustenta uma noção de África ancestral e parada no tempo (como se a ancestralidade fosse experimentada num tempo “homogêneo e vazio”) ao manifestar um mundo africano em plena transformação – um universo social, econômico, cultural, político e também estético que se apresenta como verdadeira amálgama de tempos, lugares e materiais heterogêneos. A vida, como sabemos, está sempre em movimento – mesmo quando nossos corpos se imobilizam diante do terror da tirania.

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

A estratégia panorâmica continua a ser usada por Rouch – vemos uma série de curtos planos descritivos de uma paisagem desigual que fricciona carros de luxo e trabalhadores pobres. O cineasta descreve uma variação de tipos sociais da comunidade “mais interessante” do local formada por gente dos Zabrama, dos Sonrat e Djerma. São imigrantes vindos da região de Gao e de Nyamey. O que se segue é a descrição de um verdadeiro mosaico do proletariado urbano de Accra, uma vez que estes homens aventurosos se transformaram em estivadores no porto, “Sumuguli” (contrabandistas), “Kaya-kaya”(carregadores e serventes), “Grass boys” (fabricantes de relva inglesa), “Higiène boys” (exterminadores de mosquitos), “Cattle boys” (pastores e negociantes de gado), “Bottle boys” (comerciantes de garrafas de cerveja velhas), “Tin boys” (negociantes de bidões vazios), “Timber boys” (negociantes de madeira para construções), “Gutter boys” (homens da limpeza nas ruas das grandes cidades), “Gold mine boys” (rapazes das minas de ouro). O cortejo de subalternos termina de forma conveniente nos bares dos trabalhadores, chamados “Week-end in California” e “Week-end in Havana”, onde ressoam as músicas Calypso vindas das Índias Ocidentais. Trata-se de uma paisagem produzida pela globalização e expansão da urbanidade e dos modos de vida coloniais na África – veremos que não se trata de uma simples assimilação. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Este preâmbulo apresenta, portanto, o ambiente urbano em que vivem os interlocutores de Jean Rouch. São trabalhadores imigrantes que viveram o conflito entre o campo e a cidade, entre a vida comunitária da aldeia e os choques da cidade do dinheiro e do trabalho subalternizado, da aventura insidiosa do mundo urbano capitalista sob a tutela do patrão. Após a demonstração deste teatro urbano, o narrador nos apresenta as bordas da cidade – onde acontecem os rituais dos Haouka. Do meio de uma fanfarra nas ruas de Accra saltamos para sua periferia. Jean Rouch diz: “Então, perante este barulho, esta fanfarra, os homens vindos das calmas savanas do Norte, têm de refugiar-se nos arredores da cidade. Aí, todos os domingos à noite, entregam-se a cerimônias que ainda conhecemos muito mal”. Neste instante surge uma imagem de contornos barrocos: na escuridão completa do quadro emerge um rosto contraído pela possessão de espíritos. Um foco de luz ilumina parcialmente o semblante de um homem negro em transe. Suas feições apresentam uma expressividade tensa e violenta, um rosto deformado pela evocação “dos novos deuses, os deuses da cidade, os deuses da técnica, os deuses da força: os Haouka”. 

Fotograma de Os mestres loucos (1955)

Deste lampejo na escuridão passamos para o quartel general dos Haouka: o mercado de sal. De acordo com o narrador, os membros da seita se encontram todos os dias depois do trabalho neste local. Trata-se de uma comunidade no seio de uma sociedade urbana que radicaliza a desigualdade entre os ricos e os despossuídos: eles jogam cartas, conversam, fumam, tocam instrumentos, cochilam em meio aos malotes de mercadorias. Os membros do grupo embarcam num carro aos domingos de manhã e saem da cidade. Das amplas estradas de concreto passamos para uma trilha estreita que nos leva para um local secreto, palco de uma performance ritual transformadora. É a casa de Mountyeba, um plantador de cacau de Níger – o padre de todos os Haouka. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

O segundo bloco do filme, que mostra o ritual propriamente dito, começa com a apresentação do espaço, os objetos e a dinâmica performática do ritual pela narração de Rouch. Interessante notar o caráter processual da cerimônia sob investigação. O etnógrafo descreve as etapas do processo na medida em que a performance se desenrola na banda imagética.  A articulação do comentário do narrador aos registros documentários, ao contrário do que pode parecer a princípio, não configura uma explicação da cultura alheia ou espelhamento logocêntrico da realidade num prisma cientificista sem sabor. A voz de Rouch funciona como um comentário ensaístico livre que tensiona as imagens pela descrição atenta aos detalhes dos corpos em interação com o ambiente. É uma voz literária que relata uma experiência de encontro com a alteridade – uma narração que parece descrever um sonho num país estrangeiro. 

Vemos a preparação do espaço e a separação de objetos rituais. Personas e símbolos característicos do universo moderno europeu e norte-americano surgem em cena num gesto de reinvenção intelectual e pragmática dos signos dos colonizadores. O narrador descreve o altar da cerimônia, intitulado “Palácio do Governador”, a “Pedra do Sacrifício” e alguns símbolos importantes, como a estaca “Union Jack” e o “Telegrama-Carta”, que é nada menos que um programa de cinema antigo do filme A marca do Zorro. Estes elementos estrangeiros povoam a emergente cosmologia dos Haouka – uma cosmopolítica africana urbana cuja manifestação ritual ensaia uma espécie de trincheira em que novos deuses se misturam a performances contra-coloniais e anseios por direito à cidade. 

Rouch dá atenção especial às metamorfoses cinéticas dos corpos no espaço. A câmera deambula pelo campo do ritual e observa as modulações corporais dos membros da seita entre movimentos frenéticos, gestos violentos, a espera paciente que antecede as possessões e até o repouso do anfitrião que cochila com a cabeça encostada no sangue que corre nas paredes externas do “Palácio do Governador” enquanto os espíritos Haouka não chegam.

“E a possessão começa”, diz o narrador. Os corpos começam a convulsionar pelos pés e as mãos. A respiração se torna difícil e os olhos dos homens começam a revirar. Rouch costura planos fechados dos membros em transformação e registra a travessia da possessão. Um homem pega uma tocha de fogo para se queimar num gesto de provação – ele não é mais humano e sim um Haouka que não teme o fogo e nem sente dor. Outro personagem surge de um matagal numa caminhada desconcertante. É Gerba, que foi possuído pelo Haouka “Samkaky”, o “condutor da locomotiva”. O espaço central da cerimônia vira o palco de um ritual polifônico de cura do horror e suas doenças, uma coreografia contra o terror colonial que apresenta uma força corpórea que toma conta dos corpos dos espectadores. Como toda boa performance, seja artística ou ritualística, o ritual filmado por Rouch produz uma inervação corporal que é nos é oferecida a sentir – na barriga. Nestas cenas a faceta sensorial do cinema de Jean Rouch se sobressai, e somos impactados pela cinética subversiva e caótica de figuras ondulantes em metamorfose num espaço que mistura o sonho e a vigília. 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Um teatro da crueldade emerge das entranhas desses emblemas e aparições de personas dos colonizadores: uma estética das vísceras e coração, diria Antonin Artaud, encontra a câmera ágil de Rouch. O terceiro possuído é o “Capitão Malia”, o “capitão do Mar Vermelho” que realiza uma estranha coreografia de “slow-march” num gesto que mimetiza, comenta Rouch, a marcha das paradas militares do exército britânico. No entanto, não há lentidão alguma na marcha do capitão do exército imaginário. O homem caminha rapidamente e com passos pesados numa movimentação que deforma e subverte a liturgia colonial-militar, desautorizando seu simbolismo de poder e submissão através de uma estética grotesca.

O quarto possuído efetua uma inversão não apenas de posições de poder (colonizador-colonizado), mas também de gênero. Surge a “Madame Lukotoro”, o narrador nos diz que se trata da “mulher do médico”. O homem recebe um vestido enquanto faz gestos caóticos com as mãos e convulsiona seu corpo em transe numa tremedeira louca. Outros Haouka surgem nos corpos possuídos dos trabalhadores: o “Governador” berra insultos em francês, enquanto o “Tenente” pede ajuda do “Caporal de Serviços”, espírito que flana entre os possuídos dando uma assistência simbólica aos necessitados. Vemos essa figura intermediadora passar de um homem a outro numa descompassada performance de serviçal, enquanto a “Locomotiva” atravessa o quadro desordenadamente em suas idas e vindas, bagunçando nossos sentidos e contribuindo para o desenho de uma imagem caótica do mundo colonial. 

De repente, “uma mulher cai no chão”, a única que participa desta encenação ritual. Rouch comenta que ela se chama Magagwa e é uma importante cafetina de Accra. Encontramos ela babando no chão enquanto é possuída por um gênio feminino, a “Madame Salma” – a mulher do Tenente Salmon, um dos oficiais franceses que, nos diz Rouch, foi um dos primeiros a chegar no Níger ainda no século passado. A mulher recebe o vestido e o chapéu colonial e inicia seu papel neste drama caótico: inspecionar a nova estátua do “Governador”. O “Tenente” então quebra um ovo na cabeça do monumento improvisado do “Governador”. “Porquê um ovo?”, pergunta o narrador. Antes de responder por meio das palavras, o filme responde com as imagens. Rouch efetua uma montagem dialética que confronta o gesto ritual na periferia da cidade com registros da cerimônia oficial de abertura da Assembleia Legislativa em Accra. As imagens do “Palácio do Governador” fictício e sua estética grotesca fricciona a liturgia militar-colonial do governo britânico. Diante das imagens do Trooping the Colour, símbolo da soberania britânica, Rouch lança um comentário que desdobra parcialmente o espectro estético e político do ritual dos Haouka: “Se a ordem é diferente num local e noutro, o protoloco é o mesmo”. No instante que a asserção se encerra, voltamos para o teatro dos Haouka em transe. O colonialismo é levado ao delírio pelo ritual cuja força performática é potencializada pela montagem do filme de Rouch.

O mundo colonial e o teatro do maravilhoso que sustenta sua utopia ao mesmo tempo que ofusca o terror que realmente produz são redesenhados sob o signo do horror e do grotesco. Um dos efeitos da mimesis colonial reinventada pelos Haouka e registrada por Jean Rouch é, portanto, a desautorização simbólica das relações de poder e subalternização entre colonizadores e colonizados. A performance do poder e seus signos são escovadas a contrapelo na periferia de Accra. Nesse processo ritual, a mimesis se torna arma de guerra – instrumento de uma resistência cultural que, no entanto, não encerra o que está em jogo tanto no rito quanto no filme em questão.

Repentinamente surgem o “General” e o “Soldado”. O primeiro está exasperado e reclama de tudo, um melindroso. Da mata vêm o “Secretário Geral” e o “Motorista de Caminhão” – todos personagens urbanos do funcionarismo público britânico e francês. Com a chegada do último possuído, o “Commandant Mougou” (o “Comandante Mau”), todos os Haouka estão reunidos. O “Governador” convoca uma “round-table” e junta todos os Haouka na mesa-redonda. É a “Conferência do Cão”. A voz de Rouch nos diz: “é preciso sacrificar o cão, é preciso comê-lo” e será o “Capitão” o responsável pelo sacrifício. Assim que o animal é degolado todos os Haouka se precipitam para beber o sangue e lamber a “Pedra do Sacrifício”. 

Aos gritos e insultos, o “Capitão” interrompe o banquete e convoca uma nova conferência para decidir se o cão será comido cru ou cozido. A assembleia decide cozinhar o cachorro e, assim que a água ferve, os Haouka, “que não temem nem o fogo nem a água a ferver”, mergulham suas mãos diretamente no caldeirão para tirar desesperadamente os bifes de carne do animal. O que se segue é uma disputa pelos melhores pedaços: cabeça e tripas. O caldo do cão é armazenado em garrafas de perfume velhas para seu uso posterior, como foi decidido na reunião.

Ao fim do dia, os Haouka vão-se embora. O narrador nos conta que os táxis e caminhões foram alugados apenas para o período diurno e, se a cerimônia se estendesse pela noite, seria necessário pagar a tarifa noturna. Antes de encerrar o ritual, um contratempo surge. A “locomotiva” não quer ir embora antes de falar com o anfitrião. Rouch mostra a movimentação do homem em transe, que para no meio dos homens numa pose torta e diz para Moukayla, o padre: “a festa deste ano correu muito bem. Para o outro ano, temos de fazer duas festas destas. Nós, Haouka, vamos ficar muito contentes”. E Rouch interpreta a cena na banda sonora dizendo que é desta forma, de cerimônia a cerimônia, que “o ritual fixa-se e estabelece-se”. E assim a “locomotiva” vai embora e a noite cai nos arredores de Accra.

O terceiro bloco do filme se inicia com um movimento vertical de câmera que capta o movimento de um luxuoso carro preto numa rua repleta de gente e automóveis estacionados. A câmera está distante e filma o movimento da rua em plongée – de cima para baixo. Saltamos de volta à cidade grande, palco do dia-a-dia de trabalho dos membros da seita dos Haouka. Neste momento há uma operação notável do filme. Rouch vai até os ambientes de trabalho e pontos de encontro dos Haouka e registra suas atividades no dia seguinte à cerimônia, com especial atenção às mudanças na fisionomia de seus rostos. A montagem confronta a aparição dos corpos em transe durante o ritual com suas atuais e renovadas aparências. As feições grotescas do dia passado se converteram em sorrisos saudáveis que lampejam em meio ao fluxo cotidiano da cidade grande.

 

Fotogramas de Os mestres loucos (1955)

Essa montagem dialética reforça um conceito que pensa o ritual como um processo transformador que não diz respeito apenas à uma simples reprodução de um passado tradicional no presente. O ritual dos Hauka não pode ser resumido a uma transmissão ou fixação de costumes por meio de uma cerimônia tradicional. Trata-se de um rito de cura do terror colonial que carrega em sua prática uma futuridade que diz respeito tanto à cura de mazelas individuais quanto a uma libertação de amarras coloniais coletivas. Uma mistura de tempos heterogêneos num contexto de conflitos e transformações sociais.

O filme de Rouch revela que o papel da mimesis colonial entre os Hauka é complexo e até mesmo contraditório. A atenção especial que o cineasta dá à ambientação urbana e à caracterização cosmopolita de Accra e seus habitantes é crucial para essa reflexão crítica em torno da obra. Sabemos que a mimesis é uma das principais fontes do poder colonial, atuando na origem da subjetivação do colonizado por meio da educação formal e treinamento militar, por exemplo. No entanto, esta arma de guerra pode também se virar contra os colonizadores. Uma das características fundamentais da mimesis é sua ambiguidade. Os colonizados podem se tornar parecidos com os colonizadores, mas não muito. Aqui se encontra um dos focos da sujeição racista: os colonizados nunca serão iguais aos colonizadores. Há uma lacuna inelutável  no gesto da imitação, um ponto de fuga que pode ser utilizado também para bagunçar toda ordem e sentido da cultura e das relações de poder coloniais. 

Um dos efeitos possíveis da performance ritual dos Haouka é justamente esse uso guerrilheiro dos poderes da imitação, aspecto que foi comentado por uma série de autores mundo afora. Imitação, aqui, não significa simulacro ou falseamento, como um entendimento platônico (ou neo-platônico) do termo nos levaria a pensar. Em sua tradição aristotélica, retomada por autores como Walter Benjamin, a mimesis é pensada como um circuito de aprendizado diante da alteridade do mundo. A imitação produz, portanto, metamorfoses, o que a qualifica como uma força da alteridade. Ao imitar os colonizadores, os Haouka deformam sua imagem através de uma sensibilidade crítica e fervilhante – gesto capaz de desautorizar os signos e práticas do poder colonial. Um dos feitos de Os mestres loucos é criar uma instância expressiva capaz de nos fazer sentir uma imagem pulsante e grotesca do universo colonial performado na periferia de um grande centro urbano da nova África.

Mas resumir o filme – e o ritual – a um gesto de resistência cultural, assim como o escolher o contra-argumento corrente de que os Haouka estariam articulando um passado ancestral de uma África perdida num tempo de crise é tentar dar um ponto final explicativo a um filme que recusa explicações definitivas.

O que encontramos no filme de Rouch é, também, as entranhas de uma nova ordem mundial que foi se estabelecendo no século passado. Se o autor encontrou uma África muito distinta daquela descrita nos manuais de Antropologia em suas viagens a partir dos anos 1940, isso se deve também a profundas transformações globais que afetaram fortemente diferentes centros urbanos pelo mundo. Longe de homogeneizar as diferenças culturais entre as nações, o que chamamos de globalização produziu profundas variações sociais, econômicas, políticas e culturais. Os signos, mercadorias e práticas atravessam oceanos e continentes, mas encontram formas singulares em cada localidade. Como vimos no filme de Rouch, elementos culturais estrangeiros são reinventados de formas surpreendentes no dia a dia das pessoas. A mímesis dos Hauka, assim como o uso de termos estrangeiros para nomear bares, automóveis e classes sociais em Accra e outras regiões urbanas de países pobres, também expressa um desejo coletivo de participar desta modernidade global. Trata-se de uma reivindicação de direitos sociais e políticos que permitam uma espécie de credencial plena nesta sociedade mais ampla que se fortaleceu no pós-guerra e hoje se encontra em crise generalizada. 

O que vemos é, em parte, expressões culturais de um anseio coletivo pelo mundo de sonho das novidades da indústria cultural, têxtil, automotiva etc. Ao fim e ao cabo, os Hauka apresentam um desejo de modernidade que não deixa de ser uma forma de resistência cultural singular, tomando a forma de uma reivindicação por direitos à cidade num contexto de urbanização desenfreada sob o signo das modas e mercadorias das grandes potências mundiais. A mimesis serve tanto como ferramenta para o confronto poético quanto como forma de expressar os anseios por direito à cidade que caracterizam as relações entre centro e periferia nas cidades pós-coloniais.

Já foi amplamente comentado por antropólogas e antropólogos o caráter profético do trabalho de Jean Rouch para a Antropologia, uma vez que o autor antecipou discussões que ganharam corpo apenas nos anos 1980, como a crítica à etnografia clássica e seus efeitos de verdade e o incentivo ao uso de operações etnográficas experimentais como a escrita polifônica e a montagem literária.

De fato, Rouch foi um visionário da antropologia e já neste filme, considerado por muitos um dos mais acadêmicos, caretas e cientificistas do autor, ele empreendeu uma etnografia experimental que fez uso surrealista e por vezes dialético da montagem de fragmentos registrados em campo. No entanto, não encontrei comentários a respeito do caráter premonitório de sua poética documentária e seus ecos no cinema contemporâneo mundial – um contexto marcado por diferentes experimentos em torno da dimensão háptica das imagens cinematográficas. 

Os mestres loucos, assim como outros filmes do autor, criou pontes impossíveis entre a abordagem científico etnográfica dos fenômenos socioculturais e a estética corpóreo-sensorial dos registros da vida urbana, dos mitos e rituais africanos. O filme nos conduz por uma viagem imaginária por paisagens de outrora e alhures, mas sem perder o pé da reflexão intelectual. A reflexividade antropológica é friccionada por uma mise en scène epidérmica que acolhe os corpos dentro e fora do transe, com atenção também ao movimento perpétuo das novas cidades que se apresentavam como um vulcão de carne e pedra sob o sol quente da savana. Trata-se, portanto, de uma insuspeitada síntese entre a geometria e o êxtase, o conhecimento científico e a experiência sensorial de um mundo movediço – em plena transformação. 

Termino com a certeza de que Rouch foi um daqueles narradores que tanto estimularam Walter Benjamin e que, segundo sua leitura do mundo moderno ainda emergente do século XIX, foram se tornando cada vez mais raros nas cidades europeias. Me refiro àquela figura que se desloca no espaço e se afunda no tempo, personagem síntese entre o sábio e o mercador viajante: uma pessoa capaz de intercambiar experiências coletivas em vez de vivências individuais. Jean Rouch foi um verdadeiro aventureiro dos mundos de sonho, um construtor de pontes em busca da constelação do despertar do terror do mundo colonial da tirania, da fome e miséria. Jean Rouch, além de “cineasta-antropólogo”, foi um engenheiro do sensível.

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