Fata Morgana (Werner Herzog, 1971)

Por Daniel Dalpizzolo

Fata Morgana inaugura uma fórmula que seria reaproveitada por Herzog em filmes como Lições das Trevas e Além do Infinito Azul — e representa também um breve índice das intenções do diretor no documentário, e da liberdade com que ele costuma manipular suas narrativas dentro do gênero. A partir de imagens registradas na região do Saara, na África, o cineasta compõe uma aventura impressionista que se desprende da veracidade intrínseca ao registro documental para, com reforço da narração em off, reconfigurar suas imagens sob a esfinge de uma ficção-científica distópica, originando uma antologia de miragens que nos deixa a sensação de estarmos o tempo todo observando nosso próprio mundo sob a ótica de um ser alienígena — num contato primário cheio de mistérios e obstáculos cognitivos, propícios ao imediato estranhamento.

É a partir deste radical desafio estético que Herzog elabora seu primeiro ensaio sobre a natureza exploradora e dominante do homem — não apenas em relação ao mundo em que vive, o qual desafia e depreda constantemente, mas também entre sua própria espécie, segmentada por traçados territoriais, culturas, línguas e crenças distintas. Fata Morgana traz em seus planos do continente africano pequenos fragmentos do nosso mundo contemporâneo, através de indícios da opressão vivida pelos povos africanos sob a ação do colonialismo europeu — apresentada simbolicamente logo nas primeiras imagens, formadas por diferentes takes da aterrisagem de um mesmo avião branco em um aeroporto do deserto, fundindo-se mais à paisagem a cada corte com a abstração provocada pela massa de calor que emana do solo, até torná-lo um elemento indissolúvel do cenário — e da miséria que se alastrou pelo continente após os conflitos.

São, em suma, recortes da paisagem árida do deserto que preenchem o mais amplo dos três capítulos em que se estrutura o filme, intitulado ironicamente como Criação. Embora seja imprimido um significado controverso à superfície destas imagens (acompanhadas por uma narração de trechos do Popol Vuh, livro que retrata o mito maia sobre a criação do mundo), Fata Morgana parte de um comentário desiludido sobre os caminhos percorridos pelo homem nesta jornada muitas vezes desenfreada – e não raramente nociva – de desenvolvimento, especialmente na sociedade pós-industrial, refém da produção em massa, da constante evolução tecnológica, da ambição pelo poder e pela dominação, do desejo de posse irrefreável. Se o cinema de Herzog costuma olhar para a natureza terrestre como uma estrutura selvagem, bela e ao mesmo tempo ameaçadora, em Fata Morgana – ou Lições das Trevas, ou O Infinito Azul, ou muitos outros filmes – também não deixa de observar que a hostilidade pode estar presente em igual medida tanto nela quanto nos próprios homens. Se seu cinema é geralmente lembrado por refugiar-se em personagens outsiders, loucos e sonhadores – características também observadas no próprio cineasta -, cujas idiossincrasias não costumam ser facilmente aceitas pelos padrões sociais, Herzog também permite ao espectador um contato com sua visão sobre a estrutura desta sociedade da qual eles tendem a se segregar — seja para viver com os ursos, como o Timothy Treadwell de O Homem Urso, ou dirigir patrolas na Antártida, como o filósofo entrevistado logo ao início de Encontros no Fim do Mundo.

Em Fata Morgana, especificamente, Herzog comunica este olhar desiludido para nossa realidade através de um híbrido entre criação e destruição, civilização e ruína, os homens e o espaço que os situa no tempo. A narrativa evoca um filme de ficção-científica justamente como forma de agregar um sentido duplo ao espaço filmado. O deserto do Saara, com sua imensidão de colinas e planícies, é a representação da natureza crua da terra como palco possível tanto para a vida quanto para a morte — dependendo muito, e especialmente, de como lidamos com ela. Em muitos dos longos travellings do filme, seguindo esta lógica, o deserto não se apresenta sozinho. Acompanham-no os rastros de morte e ruína, representados não apenas pelas carcaças de animais estiradas na areia, mas por signos que evidenciam a passagem do homem pelo local em um sentido pouco harmonioso — sabe-se, através de subversões, que estes vestígios não representam o desenvolvimento sustentável e equilibrado, mas sim os conflitos bélicos ocorridos no continente, de forma semelhante a tantas outras partes do mundo.

A criação e a destruição, mais do que justapostas, são fundidas em uma mesma percepção, apropriada pelo filme através desta ótica peculiar de quem olha para a realidade com um misto de estranhamento e miopia, como que em contato com uma série de miragens (por sinal, tradução do termo Fata Morgana). Herzog condensa assim a passagem dos homens pela terra — ou, pelo menos, a dos ainda capazes de sentir alguma indignação. E dela parte para o Paraíso, como reflete o título do segundo dos três capítulos do longa (que se encerra com outro mais curto, intitulado Idade Dourada), quando o filme entorta de vez em seu radicalismo estético, intercalando canções românticas do cantor folk canadense Leonard Cohen com frases e reflexões cada vez mais desiludidas. “No paraíso, os homens chegam mortos ao mundo”, é o que salienta a narração em um dos momentos derradeiros da apoteose herzoguiana de Fata Morgana — e é basicamente esta a sensação que sobrevive da experiência com o filme. Se alguns anos depois, em Lições das Trevas, o alemão colocaria o homem em contato com o apocalipse na terra, aqui, em um dos seus primeiros longas, já nos conduz a um passo mais próximo dele, deixando-nos à deriva, sem proteção e despojado de esperança, à espera do fim do mundo.

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A Invenção de Hugo Cabret (Martin Scorsese, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

A história de amor entre Martin Scorsese e o cinema não é mais uma novidade. Se a nouvelle vague francesa, de Godard e Truffaut, é considerada hoje o primeiro grupo de cineastas declaradamente cinéfilos, filmando obras assumidas em uma consciência que ao mesmo tempo reverenciava e refletia as preferências cinematográficas dos autores, Scorsese por sua vez é, entre os cineastas da geração anos 70 do cinema norte-americano, talvez o que mais abertamente tenha declarado sua devoção pela sétima arte – seja nos filmes realizados ou em entrevistas concedidas sobre o assunto.

Em A Invenção de Hugo Cabret, o diretor expõe abertamente estes sentimentos e traz o amor ao cinema e ao poder da imaginação como força motriz da trama e de sua bela encenação. Do primeiro ao último minuto, vivenciamos uma fábula que, com seu visual embasbacante e seus impressionantes efeitos 3D, somente poderia existir no cinema, numa fantasia que se constroi em um mundo à parte da nossa realidade. A Paris do filme, de tons alaranjados e crepusculares, é apresentada como cenário fantasioso e impossível. Cada plano da capital francesa é uma imagem da cidade que você nunca mais verá, a não ser em A Invenção de Hugo Cabret.

Neste cenário próprio da ficção, Scorsese nos situa pelo olhar do menino Hugo Cabret, um órfão miserável que vive em uma estação de trem. A primeira parte do filme surge como uma fábula dickenseniana passada toda dentro da enorme e minuciosa estação (lembra sem muito esforço a mais famosa obra de Dickens, o clássico da literatura infanto-juvenil Oliver Twist). É notável a habilidade do diretor ao construir este cenário e nos posicionar no centro dele junto do protagonista, complementando-o com um grande número de personagens secundários que auxiliam a compor uma ambientação abrangente e imersiva.

Cada detalhe da estação, dos corredores às enormes engrenagens dos relógios nos quais Hugo se abriga, é composto com esmero, tornando-nos íntimos do espaço em poucos minutos. A exemplo do filme anterior de Scorsese, Ilha do Medo, em que o diretor dedicava parte considerável da narrativa para que o personagem de Di Caprio simplesmente explorasse a ilha-sanatório em que estava preso, aqui Hugo percorre todos os cantos da enorme estação, e a câmera de Scorsese, com uma decupagem leve e fluída, persegue o garoto por sua realidade sofrida e pouco entusiasmante. Em seguida, rompe esta realidade com o surgimento de uma garota e da aventura em que se metem, levando-os ao centro dos interesses do filme: a ode à magia e ao encantamento do cinema.

O grande trunfo de A Invenção de Hugo Cabret em sua segunda metade, que homenageia o precursor da ficção e dos efeitos especiais no cinema, o mágico e cineasta francês Georges Méliès, é equilibrar seu encantamento declarado pelo cinema de forma ao mesmo tempo emocionante e levemente didática, tornando possível que tanto os cinéfilos mais ardorosos quanto aqueles que mal conhecem a história da sétima arte possam se encantar com a homenagem de Scorsese. Ao resgatar às novas gerações a essência do trabalho de Méliès, o diretor naturalmente faz de seu filme uma viagem pelo que há de mais essencial nos mecanismos da fábula, que se vale da construção de novas realidades para fazer-nos esquecer a nossa por algumas horas – e, também por isso, é justamente ao fazer seus personagens sentarem numa sala de cinema para contemplar a restauração das principais obras de Méliès que o filme se encerra.

O momento final é tão simbólico que mesmo a falta de sutileza de algumas sequências anteriores torna-se um problema menor diante do expressivo significado deste ato – que propõe um olhar para o passado, para a gênese da magia artística, valendo-se da beleza proporcionada pelos recursos tecnológicos do cinema digital. O cinema, a arte que salvou Scorsese da violência do bairro em que cresceu, das drogas e da depressão, é também a arte que salva Hugo da solidão, Méliès do esquecimento e da decadência, e frequentemente a nós, espectadores, dos tantos problemas que nos acometem diariamente. É sobre este poder de resgate do cinema que fala A Invenção de Hugo Cabret, um filme dedicado inteiramente à magia dessa arte tão encantadora e envolvente, e filmado de forma tão apaixonada que se torna praticamente impossível não nos entregarmos a ele.


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Tudo Pelo Poder (George Clooney, 2011)

Se observarmos a atual conjuntura política norte-americana, não há nenhuma surpresa no teor da trama de Tudo Pelo Poder. A campanha idealista que lançou à vitória o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, Barack Obama, e a posterior decepção com seu governo, até então carregado de ideias megalomaníacas e poucas ações efetivas, dão sustentação a um olhar desiludido para as engrenagens do poder. Na expectativa pela renovação dos mecanismos de um país que enfrenta grandes dilemas (econômicos, políticos e em suas relações internacionais), a vitória do candidato democrata parecia uma solução apropriada para dedetizar a Casa Branca e levar à frente do país uma nova perspectiva de trabalho, mas não foi isso que aconteceu.

Se o marketing da corrida eleitoral de Obama se revela hoje mais preciso que sua atuação política, nada mais natural que este novo filme de George Clooney atacar justamente na construção da imagem de um candidato democrata à corrida eleitoral, e que esta imagem de campanha, pautada por discursos fortes e convicções ideológicas que logo se revelam falsas ao espectador, seja construída na superfície de um jogo de mau-caratismo. E é uma pena que, ao final desta trama de intrigas mesquinhas, por vezes alheias aos complexos jogos políticos geralmente filmados pelo cinema, Clooney se acovarde detrás de uma postura arredia e insipiente — ou, como se diz no palavreado popular, não fazendo mais que “jogar tudo pro alto”.

Tudo Pelo Poder não vai muito além de um exercício rasteiro de cinismo, e se satisfaz trabalhando sua visão da política de maneira infantil, num discurso que afina com o ponto de vista popularesco sobre o meio político, segundo o qual todas as pessoas ali envolvidas parecem presas ao esvaziamento ideológico, à corrupção moral, à desconsideração da ética etc., o que não permite ao próprio filme se desvincular de discursos falaciosos no estilo “independente de quem estiver no poder, eles vão nos foder” — o que não passa de preconceito trabalhado de um jeito totalmente preguiçoso. Por construir esta treva irreparável de maneira tão superficial, o filme acaba se mostrando politicamente irrelevante, sem fazer muito a não ser reafirmar ideias vazias e grosseiras.

Mas, se por um lado Tudo Pelo Poder decepciona por tratar o espectador de forma tão leviana quanto qualquer falsa ideia de marketing, também é difícil negar que a dramaturgia de Clooney vem se aprimorando (é um filme muito eficiente em sua estrutura) e que existe uma força interessante quando estas questões são deixadas em segundo plano para serem focadas as relações de convivência e de poder entre seu ótimo protagonista, Stephen Myers (Ryan Gosling), assessor de imprensa do candidato Mike Morris (interpretado pelo próprio Clooney),  e as pessoas com quem precisa lidar diretamente em seu trabalho, no qual percorrerá uma linha céu/inferno/céu que, ao invés de derrubá-lo, o fortalecerá assim que aprender a jogar o jogo de intrigas dos bastidores da campanha (em suas nuances, aliás, essa visão de backstages fala muito melhor sobre o comportamento humano do que sobre qualquer aspecto do meio político que procura retratar).

É interessante observar também que Myers não se encaixa no padrão “homem idealista que descobre a realidade suja que o cerca”; desde o início já demonstra ter inclinação ao egoísmo, à mentira, à manipulação e aos desvios éticos, enfim, aos valores condenados pelo filme — afinal, nas primeiras sequências marca um encontro com o assessor do candidato de oposição, come a estagiária, etc. —, o que dá muito bem o tom da vingança planejada por ele no terceiro ato, mas torna inaceitável a forma encontrada pra fechar todas as ideias do filme, depois daquele twist cataclísmico. A cena final, na qual, detendo agora o controle da situação, Myers repete a ação da sequência de abertura, analisando o local em que Morris irá se pronunciar para o público, com as falas que serão ditas reproduzidas em voice off, se resume em apelar mais uma vez para a denegrição barata do meio político, sem chegar a lugar algum (o plano final é especialmente repulsivo). Clooney mira no alvo mais fácil de ser atingido, enquanto seu próprio filme parece uma boa representação do quanto esta é uma visão insuficiente — nem seu protagonista, nem qualquer outro personagem contrapõem as denúncias feitas, ou seja, não parece haver possibilidade de solução para o universo em que ele se instala, e assim o filme termina por dar as costas à sua própria denúncia, mostrando ainda que a verdadeira força da história poderia estar justamente na capacidade de transgredir essa denúncia sistêmica para se fixar nas questões humanas que suscitam dela, que poderiam ser uma chave interessante para se discutir de forma mais abrangente as questões gerais da obra.

O que me faz recordar dos grandes filmes políticos já feitos em Hollywood (impossível não mencionar o John Carpenter de Eles Vivem e Fuga de Los Angeles, duas obras essencialmente políticas — mas que não se tratam de filmes tão sérios quanto Tudo Pelo Poder, não é?), e do quanto eles fazem falta nestes dias em que o afronte vazio se tornou sinônimo de opinião e de posição ideológica, em que a condescendência geral com o moralismo de boutique transmite cada vez mais uma ideia de revolta coletiva que não sabe de onde parte nem para onde vai — um barulho pelo barulho, que assume um tom ainda mais cacofônico ao diluir-se por mensagens e correntes compartilhadas mecanicamente nas hoje tão populares redes sociais da internet. Tudo Pelo Poder, à exceção de ser um filme envolvente quando focado nos conflitos particulares de seus personagens, acaba, no geral, se mostrando não mais do que um reflexo de nossa cínica realidade.

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Melhores filmes de 2011

As retrospectivas de final de ano nos ajudam a fazer uma leitura geral do circuito cinematográfico no Brasil — tanto para pontuarmos as obras mais interessantes que passaram por aqui quanto para detectarmos os equívocos de distribuição de nosso limitado circuito. Para esta seleção de 10 grandes destaques entre os filmes exibidos no país em 2011, optamos por validar apenas obras que tiveram sua estreia comercial oficial este ano, o que impossibilitou a presença de filmes que participaram da programações de festivais e mostras de cinema e também os que aportaram por aqui direto para as prateleiras das locadoras. A lista está em ordem alfabética.

Além da Vida (Clint Eastwood, 2010) 

Há muito firmado e reconhecido como um autor, Clint Eastwood segue ainda assim com filmes mal vistos ou incompreendidos. Encerradas as suas atividades como intérprete e a trajetória de sua persona cinematográfica de durão com a bela retirada de cena que tivemos em Gran Torino, Clint continua na entrega do que há anos vem fazendo de melhor: dirigir. O Clint cineasta que pega questões importantes pelo mundo para fazer não filmes de teses ou didáticos, mas fábulas humanas com uma sensibilidade e olhar cinematográfico cada vez mais escasso em seu métier: a superação da segregação racial no belo e tão discutido Invictus, e agora esse Hereafter, um filme não sobre os mortos, mas sobre o apego dos vivos a eles (como um dos irmãos preservando em si próprio o antigo chapéu de sua metade que partiu). Bem possível que tenha sido encarado com a expectativa errada, a de filme espírita e sobre o além, quando em realidade o seu maior trunfo é se manter o tempo todo no plano terreno e materialista, com os seus eixos girando mais em torno da vida antes da morte, e da relação dos personagens com ela. Um grande filme sobre encontros, perdas, procuras e reencontros. Sobre a vida. (Vlademir Lazo)

As Canções (Eduardo Coutinho, 2011)

Todo artista tenta se expressar no limite de suas capacidades, sendo que os melhores, vez ou outra, chegam em um ponto tão extremo de seus limites que acabam inventando uma linguagem. O que dizer então de alguém como Eduardo Coutinho, que desafiou paradigmas em Jogo de Cena, depois de anos em estudos variados no documentário nacional, formando a mais diversificada carreira de um cineasta brasileiro? Que levou a um patamar ainda mais radical o dispositivo de construção de uma obra artística em Moscou? O que dizer sobre Eduardo Coutinho, que volta à base de tudo em As Canções, um filme que ao mesmo tempo é síntese e testamento de sua obra tão contundente? As Canções, que simplesmente nos convida a ouvir anônimos cantarolando músicas que são caras às suas trajetórias individuais, montando um painel sentimental sobre a entrega dos seres humanos, é a prova catártica e definitiva de que os grandes artistas são aqueles que, acima de qualquer coisa, sabem que a maturidade pode significar, também, simplicidade. (Thiago Macêdo Correia)

As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

O apanhado geral de uma vida de imagens: da fotografia à nouvelle vague, dos documentários às instalações, da infância a um último filme. Esse é o projeto ambicioso, e ainda assim muito divertido, de Agnès Varda em suas praias. Mais do que um documentário autobiográfico comum, Varda parece pegar emprestado o gesto compulsivo de colecionar dos seus Catadores e tornar-se, assim, ela também uma acumuladora de imagens, de pessoas, de lugares que atravessaram sua trajetória. Varda e suas imagens se indiscernem a ponto de não haver acanhamento para a diretora em se fantasiar como uma enorme batata ou para o seu filme esconder Chris Marker atrás da animação de um grande gato laranja. Em um filme que flerta em muitos momentos com a pieguice e o ridículo, a bricolagem quase caduca desses momentos é um ato de coragem — e puro cinema. (Kênia Freitas)

Caminho Para o Nada (Monte Hellman, 2010) 

Neste retorno de Monte Hellman após 20 anos longe das câmeras, acompanhamos um jogo metalinguístico fascinante em torno de uma equipe de cinema que produz um filme de uma história real, sobre um crime real. Mas não é tão simples assim: há o passado, há o presente e há o futuro do fato, e as três camadas narrativas se diluem umas nas outras até chegarmos a um nível de abstração tão feérico que só nos resta aceitar Caminho Para o Nada como um exercício visceral sobre sua própria encenação. A imagem aqui é recebida não como produto final, mas como um processo das informações ali contidas; uma extensa via a ser percorrida pelo olhar para chegarmos a uma possível veracidade daquilo que é filmado — e que pode não estar na imagem, ou, no caso do cinema, sequer existir. Confrontamos uma verdade particular pertencente a cada uma das cenas; uma verdade que é somente delas, e que na tela, enquanto processo de si mesma, é suficiente para que o filme nos fascine. (Daniel Dalpizzolo)

Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010) 

Ponto culminante não só para a carreira de seu diretor, que há um bom número de anos vem assinando uma sucessão ininterrupta de obras-primas, Cópia Fiel ergue-se como a redefinição de toda uma necessidade dramática para a contemporaneidade. Representar para viver, interpretar para que se chegue ao essencial, temos neste filme uma das operações estéticas mais significativas do presente século, de importância que ultrapassa o interesse cinematográfico para alcançar um domínio comum a toda expressão humana. Na implosão do romance gozado pelo casal de protagonistas, o nascer e o morrer de um impulso narrativo, o abismo entre a realidade e a ficção, tudo aquilo que alimenta o relacionamento de dois amantes, mas também o que motiva o contato entre o homem e a arte. Filme que justifica o cinema. (Fernando Mendonça)

O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011) 

O garoto do título do filme mais recente dos irmãos Dardenne é um corpo arredio, lutando contra um mundo que não lhe acolhe. Na verdade, mesmo quando as coisas passam a aparentemente seguir um caminho de redenção para este personagem, o garoto permanece incontrolável. Não é somente o mundo que não lhe cabe, mas sua essência que não permite que ele ceda ao universo que o rodeia. Ele luta contra a mulher que lhe dá a mão, luta contra a porta de um carro, luta contra a ideia do pai, para posteriormente acatar que a idealização do pai é justamente o que não corresponde à realidade. O corpo que não para de se debater, em determinado momento, se torna imóvel. É então acontece algo que pode ser tido como divino, quando a vida prevalece diante da morte. Para além de um discurso cinematográfico, a conclusão de O Garoto da Bicicleta é uma declaração de amor dos Dardenne à vida, à continuidade e, principalmente, à mudança. Neste filme, um corpo arredio pode encontrar a paz. E isso só pode ser visto como um verdadeiro milagre. (Thiago Macêdo Correia)

Singularidades de uma Rapariga Loura (Manoel de Oliveira, 2009)

A paixão é um sentimento engraçado à medida que se cria consciência de que aquilo que se sente não é exatamente por uma pessoa, mas por uma falsa imagem gerada a partir dela. Com este espírito, temos em Singularidades de uma Rapariga Loura uma obra concisa e eficiente em que o centenário Manoel de Oliveira adapta um conto de Eça de Queirós para tratar justamente da tolice na qual um homem se afunda a partir de uma imagem equivocada criada sobre uma mulher. Ricardo Trêpa observa Catarina Wallenstein emoldurada pela janela e parcialmente tapada por seu leque (e posteriormente pelo véu da cortina) e é esta cena emblemática e bela que sustentará para ele uma mentira que acobertará momentaneamente o pequeno desvio moral da moça. Quando descobrimos onde enfim o filme vai chegar, próximo ao final dos pouco mais de 60 minutos, tudo desaba sobre os ombros — nos de Trêpa e nos nossos. Oliveira prega uma peça tão deliciosa e encantadora que se torna impossível resistir ao filme. (Daniel Dalpizzolo)

Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Apichatpong Weerasethakul, 2010) 

Conhecemos Apichatpong Weerasethakul por filmes que se sustentam em quebras narrativas embasbacantes (como Síndromes e um Século e, especialmente, Mal dos Trópicos), e o que torna Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas ainda mais impressionante é como este aguardado choque surge logo nos primeiros planos e se mantém não na narrativa, mas dentro de cada uma das imagens subsequentes. Situações cotidianas banais dividem espaço organicamente nos planos com elementos sobrenaturais, e na diluição de camadas existenciais, da realidade e do imaginário, o diretor cria um universo exímio em que explora o potencial fantástico das lendas e crenças da Tailândia para filmar um belo conto sobre a morte, com situações que nos conduzem constamentemente ao sublime. Pode parecer de difícil assimilação a quem não está habituado à linguagem de Apichatpong, mas não encontramos em qualquer filme ocidental lançado no Brasil em 2011 um conjunto de cenas tão poderosas. (Daniel Dalpizzolo)

Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011)

Trabalhar Cansa é um filme tecido em uma operação delicada: conjugar na mesma obra uma crítica social e de costumes com uma fábula sobrenatural sobre o mal-estar contemporâneo. Nos perguntamos durante quase todo o filme do que se trata: das relações de trabalho/poder que perpassam as familiares/afetivas? Ou da necessidade de enfrentar o monstro que se esconde dentro de cada um? Alívio podermos sair do filme sem saber, com um final que filmando uma dinâmica de grupo das mais clichês de uma agência de empregos consegue trazer o grito e a libertação mais engasgados. Os diretores, Marco Dutra e Juliana Rojas, nos mostram que filmar as relações sociais no Brasil não é fazer apenas um drama ou uma sátira, mas também um filme de horror. (Kênia Freitas)

Um Lugar Qualquer (Sofia Coppola, 2010)

Assim como seu colega Jim Jarmusch (a quem já homenageou em Encontros e Desencontros), Sofia Coppola gosta de extrair do tédio o desenvolvimento do caráter de suas personagens. Não é um comentário jocoso: Um Lugar Qualquer é bastante exemplar nesse sentido, pois extrai do vazio todo o conjunto de motivações e peculiaridades que movem as personagens e as fazem se relacionar entre si. No caso, um pai e uma filha passam um tempo juntos e vão com isso se conhecendo e se aproximando; nada faz sentido fora desse quadro, e é portanto por esses momentos de interação que pulsa o sentido da obra, ela respira e é fresca e calorosamente humana. Aos poucos vamos compreendendo que o “lugar qualquer” é onde estão nossos sentimentos. (Filipe Chamy)

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Os Monstros (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

“Quando ouço a sua música me dá vontade de ser livre. Ser livre pra criar”.

Desvincular o diálogo travado pelos amigos à beira-mar do procedimento de realização de Os Monstros é uma tarefa improvável. Embora sejam personagens fictícios, João, Pedro e Joaquim, interpretados por três dos quatro realizadores que assinam o filme, fortalecem ali, mais que laços de amizade, uma necessidade de vínculo artístico e de expressão que diz muito sobre o próprio filme e sua existência. Não por nada a sequência ocupa exatamente o centro da narrativa: se no plano inicial vemos João tocando um instrumento de sopro ruidoso e desafinado praticamente engolido pela escuridão solitária da noite que emoldura seu corpo, ao final vemos esta mesma linha sonora conquistar um sentido ao lado da guitarra não menos ruidosa de Eugênio, o quarto amigo/realizador, em uma gigantesca jam session registrada pelos equipamentos de som de Pedro e Joaquim – e, é claro, pela câmera, que legitima nosso olhar como parte integrante da ação e passeia por entre eles inquieta.

A arte como escape das desilusões da vida, a força das amizades para superar problemas e a inaceitação social não são temas inéditos, mas o que há de mais interessante em Os Monstros é como estas ideias básicas desenvolvidas durante a primeira parte (em situações corriqueiras como perda de emprego e fim de relacionamento) se conectam para dar a si mesmas e ao filme um sentido intimista e bastante particular – sem deixarem por isso de ser universais, mas se valendo mais do que representam aos quatro personagens-realizadores do que o que devem representar ao público. A jam session final, que se encerra com os quatro completamente exauridos e ofegantes, é  uma ação que sintetiza a existência do filme, em que mais do que estes princípios de fuga/força o que se vê é uma necessidade de expressão vigorosa, um expurgo vital através da arte de um grito travado ao fundo da garganta, implorando pra sair.

Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, os ‘inventores’ do filme, como se auto-denominam nos créditos de encerramento, assumem através destas opções um risco que deixa o filme constantemente sobre a corda bamba. Apesar desta consciência de necessidade de expressão fortalecer uma visão geral da obra, em tela o cinema do quarteto cearense vai de momentos bastante envolventes, como a conversa na praia e a festa que frequentam depois (que celebra um olhar interessante dos autores aos seus próprios personagens, homens adultos que têm de lidar com questões quase adolescentes, como admitir a entrega sentimental a uma mulher), a planos e cenas bem menos atraentes, como as andanças pela rua com a câmera balançando vertiginosamente em frente aos corpos e a sequência do espetáculo desajustado no bar. Em alguns momentos o clima de improviso soa mais receptível como teorizador das ideias deste cinema do que efetivamente uma opção funcional para colocá-las em prática, o que torna a experiência um pouco desigual.

Os Monstros representa uma nova geração do cinema brasileiro, que aos poucos conquista espaço em festivais de cinema e até mesmo no circuito (o primeiro filme do quarteto, Estrada Para Ythaca, teve distribuição a nível nacional), mesmo que em esmagadora minoria em relação à produção mais genérica. E se por um lado vê-se nesta renovação um interessante sopro de novidade a um cinema hoje em dia raras vezes capaz de criar alternativas a si mesmo, também parece ainda não ter encontrado um porta-voz forte o suficiente para que ela seja consolidada no Brasil. Filmes como Estrada Para YthacaOs Monstros mostram um caminho, além de algumas tendências estético-narrativas (e como todas as tendências, esta tem seus prós e contras). Mas se o resultado em geral soa ainda um pouco imaturo, o que de melhor pode-se extrair da experiência é que, neste cinema, o desejo de expressão sobressai-se às fórmulas e até mesmo às tendências que abraçam. Os Monstros, mesmo com seu desequilíbrio, é apreciável enquanto manifesto esperançoso por um cinema brasileiro mais preocupado com sua legitimidade de criação do que com cifras.

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Todas as Noites (Eugène Green, 2001)

Há algo de mítico na noite que motiva cineastas a trabalharem este simbólico período do dia, além de cenário, também como licença poética ou até mesmo personagem (há exemplos que vão desde Aurora, de F. W. Murnau, a Um Tiro na Noite, de Brian De Palma, isso sem falar em pelo menos um terço da filmografia de Jacques Tourneur, entre muitos outros). É o caso de Todas as Noites, o longa de estreia de Eugène Green, praticamente uma elegia à noite e seu poder de nos envolver em conflitos intensos, por vezes existenciais ou oníricos — seja em vivências ou através de pensamentos e sonhos, tanto os que temos com os olhos abertos, encarando o teto do quarto antes de dormir, quanto os que ganham vida inconscientemente durante o sono. Nos versos que abrem o filme, e que sonorizam um plano da lua que surge quase como elemento sobrenatural na imagem, ouvimos uma voz feminina entoar versos de contemplação e celebração à noite, captando com precisão a atmosfera em que se envolve o filme: “Desde que a noite é para mim o tempo mais precioso em um sonho, meus pobres olhos, para que eu não deixe de sonhar, dormem todo o dia”. Mais que uma canção, o que ouvimos ali, imediatamente, é um convite para viajarmos por um delicioso delírio cinematográfico que, com sua estranheza estética e história de motivações por vezes aparentemente incompreensíveis, carrega uma magia que se assemelha muito à de um bom sonho noturno.

Todas as Noites existe em um universo à parte de qualquer classificação genérica massificada ao longo destes anos todos de cinema, o que nos leva àquela sensação inenarrável de estarmos diante de um filme de Eugène Green, de uma arte que ignora realidades e aspectos formais que não somem à sua linguagem particular, permitindo-se desprendimento da verossimilhança que imagina-se existir em filmes tão centrados em experiências humanas. Desta forma, embora exista em tela algo a ser expressado, não se trata necessariamente de uma ação, mas muito mais da representação de sensações que fortaleçam ou estejam ligadas aos sentimentos dos personagens — o que possibilita, por exemplo, não haver necessidade de classificar imagens em diferentes níveis de origem (como ações “reais” ou imaginação, sonhos, metáforas etc.), já que ali tudo pode coexistir através da realidade artística — algo que se tornaria mais evidente em seus filmes seguintes, mas que está presente aqui com grande força. Green, como alguns outros cineastas (que têm se tornado cada vez mais escassos à medida que o público parece perder o interesse por desafios cognitivos e, em contrapartida, compra picaretagens babacas como tal — é, estou falando de A Origem), compreende a arte como um campo simbólico e único, e não se restringe a filmar baseado na “surda” inteligência humana, como bem classifica o próprio diretor no arrebatador diálogo final de A Ponte das Artes, a homenagem dele à música e ao poder conectivo e sensorial da arte.

A partir do momento em que a música da abertura encerra e somos apresentados aos dois jovens amigos, o que vemos não é um registro banal de uma relação humana, mas uma busca por capturar algo próximo à sua essência, dar uma forma ao envolvimento de ambos com suas questões existenciais e à interferência que as experiências vividas têm na maneira com que lidam um com o outro e consigo mesmos. Desde a primeira cena, em que observam uma garota selvagem nua banhar-se em um rio, a fábula de Todas as Noites instala-se em uma realidade em que os dias parecem intangíveis, e as noites o grande palco das ações consumadas e dos principais conflitos vividos. “Vamos esperar até o anoitecer. O único momento em que se pode ser feliz é a noite” é o que diz Jules, o personagem de Adrien Michaux, quando cogitam abordar a moça do rio para tentarem perder suas virgindades com ela. E o pensamento representa mesmo o que se vê daí em diante — com ela, pela não consumação do ato, mas também com outras mulheres que passam por suas vidas: na primeira investida de cada um, a tentativa de conquista só funciona com Henri, que, depois de deixar a cidadezinha em que viviam para estudar em Paris, seduz a mulher de seu professor convidando-a a ir ao seu quarto à noite — Jules tenta pela primeira vez com uma angelical atriz durante um passeio vespertino pelo bosque, e o máximo que consegue arrancar são lágrimas, dela e mais tarde suas.

É a escuridão da noite que abriga os principais conflitos e contatos do filme, como se o diretor fechasse os olhos às possibilidades de consumação na presença do sol — as cartas e declarações platônicas, por sua vez, são recebidas com belos planos do parque e das ruas, iluminados por uma luz radiante. Assim, Todas as Noites atravessa duas décadas da vida de Jules e Henri, passando por períodos importantes da história francesa, como a revolução juvenil de maio de 68, e situações constantes das relações humanas (perda da virgindade, amor, casamento, etc), mas sob uma ótica bastante particular e que, conforme os anos avançam, vai se mostrando cada vez mais extraordinária — o desfecho da relação de Henri com a mulher de seu professor, o destino da personagem e a forma com que Green ao final faz uma conexão entre os três personagens principais formam uma história teoricamente inusual e meio maluca, mas o incrível mesmo está em como, na ficção de Green, soluções aparentemente insanas ou inverossímeis se tornam bastante funcionais por aquilo que representam, pelo sentimento que carregam em cada detalhe da encenação, das atuações, e pelas sequências de força descomunal que essas coisas geram quando combinadas. E não seria absurdo se, ao final, ambos despertassem ainda com 17 anos, deitados no bosque, esperando a noite cair para baterem à porta da loura selvagem. O sabor de um sonho bem sonhado é a sensação deixada por esta pequena pérola de Eugène Green.

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Jam Session #1 – Prelúdio para Matar

Daniel Dalpizzolo e Robson Galluci debatem a obra-prima Prelúdio para Matar, um dos principais (e certamente o mais influente) filmes do mestre do horror italiano Dario Argento. Como o próprio nome do artigo, roubado das sessões musicais improvisadas de jazz, insinua, é um artigo sem uma estrutura exata, que através de seus desvios temáticos e da linguagem despojada tem por objetivo proporcionar um exercício livre de pensamento e de exposição de ideias, apresentado na íntegra aí para vocês.

Daniel: Provavelmente não existe maneira melhor de começarmos a falar sobre Dario Argento do que tratando sobre Prelúdio para Matar. Não por ser o filme mais popular do diretor, mas sim porque é a partir dele que percebemos em Argento um real diferencial em relação aos demais cineastas ligados aos filmes de horror e suspense ou aos gialli e aos filmes policiais. É a quinta obra para cinema dirigida pelo italiano, mas os trabalhos anteriores, mais especificamente os três filmes que compõem a Trilogia dos Bichos, são filmes predominantemente narrativos, o que não os torna maus filmes, claro, mas os diferenciam daquilo que, ao nosso entendimento, Argento faria a partir de Prelúdio para Matar — e que se tornaria a essência autoral, o diferencial deste diretor tão peculiar. O Pássaro das Plumas de Cristal, por exemplo, o primeiro de Argento, é completamente dependente da sua história e da tensão que esta história cria pra resolução do mistério, e também da própria resolução desse mistério. Mas essas coisas pouco importam a Prelúdio para Matar. Importam ao protagonista, sim, mas a Argento e ao espectador muito pouco, e menos ainda ao resultado do filme enquanto experiência. Se a velha é a assassina ou se fosse um alienígena doidão, simplesmente não faz diferença. A história soa mais como um pretexto pra que o filme nos envolva numa atmosfera específica, que nos leve pelos fluxos sensoriais que ele constroi através das imagens e da trilha sonora brilhante do Goblin, que combinadas causam um efeito quase indescritível, embora a gente se esforce a todo instante para colocá-lo em palavras. E são esses fluxos que fazem os filmes do Argento serem experiências tão intensas e tão empolgantes.

Robson: E a história é tanto um pretexto que há aquela enorme volta ocasionada pela inserção do livro no enredo — absolutamente do nada —, com os objetivos muito claros de incluir mais um assassinato e culminar na sequência em que o Hemmings explora a mansão, uma das mais emblemáticas do filme. Mas o interessante é que, por mais que dessa vez toda essa quebra da narrativa, esse desrespeito à lógica sejam meramente utilitários, com função de preparar terreno ou fornecer pretextos pra algumas cenas, mais tarde o Argento vai começar a usar isso conscientemente, transformar em outra marca do seu cinema. Começa já no filme seguinte, Suspiria, construído em torno daquela espécie de vazio narrativo, um prólogo, um epílogo e só. Quebrar o filme no meio vai acontecer em Phenomena. Mansão do Inferno tem aquela estrutura de dois jogos de resta-um consecutivos, que como que ajeitam as peças para que a narrativa aconteça, mas os dois jogos são a única coisa que constitui o filme — de certa forma, a narrativa acaba quando está pronta para começar. E nem é preciso falar de Tenebre. Então Prelúdio, conscientemente e inconscientemente, já traz em si praticamente todas as questões e procedimentos que vão nortear o cinema do Argento dali em diante, e, para mim, na maior parte do tempo é a instância mais bem acabada desse cinema.

Daniel: As próprias grandes cenas de Prelúdio para Matar (de Argento de uma maneira geral, mas em especial nesse aqui) me parecem, cada uma delas, composições trabalhadas de maneiras particulares, e como você diz, já usadas de um jeito conscientemente desconexo, como se cada uma tivesse vida própria, como se não importassem ao todo da forma como a gente vê tradicionalmente nos filmes (se alguém quiser arriscar falar do “roteiro” de Prelúdio para Matar vai dar com a cara no chão, porque é um traçado cheio de becos sem saída). Os assassinatos e as sequências de tensão de Prelúdio se constroem muito mais por suas lógicas específicas de ambientação (a relação do personagem e da câmera com o cenário em que se encontram etc.) do que pela lógica tradicional das narrativas de cinema — como por exemplo o filme te preparar uma personagem por quem “torcer” antes de sua morte, seja por alguma ligação dela com o protagonista ou com a história central, seja por alguma simpatia que se crie com essa personagem. Aqui não há isso. As vítimas entram em cena e logo depois morrem, e são sequências extasiantes, que convertem a violência em algo prazeroso e que fazem você querer ver mais gente morrendo, por mais indecente que isso possa parecer (e o plus do filme talvez esteja aí, em seguir um protagonista mas te dar essa oportunidade de ansiar pelas mortes e vibrar com elas, e ao mesmo tempo também dilatar ao máximo o tempo entre uma morte e outra, te deixando ali na tensão à espera delas).

Robson: Inclusive usando o artifício da câmera talvez-subjetiva, que é um grande insight e serve tanto pra criar suspense, na oscilação que indica que o personagem pode estar sendo observado, quanto pra colocar o espectador nessa posição que se confunde, por vezes, com o assassino. E mesmo quando não faz isso, ao evidenciar a presença física da câmera dentro da cena, o Argento no mínimo intensifica o papel de voyeur do espectador — não há como escapar de uma parcela de “culpa”, seja na identificação visual com o assassino (explicitada no plano final), seja na consciência de que o fato de o espectador estar ali pra ver é o que possibilita a imagem e assim por diante. Claro, isso vem do Hitchcock, mas o Argento encontrou uma solução formal muito boa pra colocar a questão em seus filmes sem nem ignorar a precedência do Hitch, nem simplesmente copiá-lo. E outra coisa que me chama a atenção nas grandes cenas de Prelúdio — para falar a verdade, nas grandes cenas de vários dos gialli do Argento — é como ele sempre tenta evitar a artificialização da imagem que se baseie em qualquer coisa que não a câmera (nem sempre com sucesso, é claro). Nos gialli ele não usa, por exemplo, a iluminação estilizadíssima do Bava, ou os cenários meio barrocos (e sim em Suspiria e Mansão do Inferno). Não que a abordagem do Bava seja pior ou qualquer coisa parecida. O ponto é que o Bava foi um dos fundadores do giallo, uma influência com que o Argento teria que lidar de alguma forma, e é um aspecto notável como ele se esforça em vários sentidos pra encontrar, criar um estilo próprio em Prelúdio e que depois ele segue praticando no gênero. Citações ao Edward Hopper à parte, na maior parte do tempo a mise en scène (estava demorando pra usarmos a expressão) é criada unicamente a partir do modo como os elementos são posicionados no quadro. É estranho falar isso se referindo a um filme do Argento, mas dá uma impressão de naturalismo em certo sentido: tem um piano e um banco ali, não são um piano e um banco notáveis, são absolutamente comuns, e a iluminação também é comum, discreta — até elegante, fazendo uso inteligente de luz e sombras, mas nunca beirando o expressionismo como em Olhos Diabólicos, do Mario Bava —, e o Argento encontra o ângulo exato de onde filmar aquilo e tornar a imagem única, incomum, e nem um pouco naturalista. Ou não propriamente o ângulo, porque a câmera se mexe muito, mas o fluxo ideal, como ir de um plano a outro da forma perfeita. É um cinema de movimento puro, objetos em movimento e o movimento da câmera registrando isso. Dá até pra traçar um paralelo maluco com o John Woo.

Daniel: O paralelo que eu traçaria com maior facilidade é mesmo com Sergio Leone. E essa sequência do piano é perfeita pra exemplificar no que Prelúdio para Matar tanto se parece com Era uma Vez no Oeste, por exemplo, um filme que embora seja um western classicão, com todas as características do gênero presentes e sendo utilizadas com muita força, é quase que algo à parte nesse gênero. De um modo geral por serem filmes em que tanto os resultados estéticos quanto o efeito que eles causam no espectador, cada um à sua maneira, me parecerem ser semelhantes — de uma forma quase lírica. Mas também por ambos serem filmes que utilizam a montagem dos planos, o corte de uma imagem pra outra, não exatamente como um ponto de corte da imagem (não me refiro a elipses, mas à mera progressão da ação que é encenada no filme), mas como uma equação de adição, que vai fazer com que a sensação de tempo daquela sequência se dilate (e é interessante o que você disse sobre ser um cinema de movimento puro, pois esse movimento no caso do Argento — e de Leone — está em como o diretor enxerga/filma a cena, e não exatamente na ação filmada, como geralmente deve ocorrer). Por alguns momentos, soam como se fossem diferentes recortes de uma ação congelada (o fato de o primeiro assassinato ser visto por nós muitos minutos antes de ser visto pelo protagonista no filme também ajuda a fortalecer essa sensação). A troca dum plano pro outro não necessariamente significa que a sequência avançou; a ação pode permanecer exatamente onde está, e conforme isso se acentua a tensão de cena também se acentua. No caso da sequência do piano (também um baita exemplo pro que já foi comentado a respeito de grande parte das cenas serem quase inúteis umas às outras, sobreviverem sozinhas etc., afinal a sequência é mais uma que não acrescenta absolutamente nada ao filme, mas que é fatal pra nossa experiência com ele), que é realmente a minha favorita nesse sentido: o David Hemmings tá lá tocando o piano dele, a câmera invade a janela, observamos ele anotando notas, as teclas as executando (os closes são excepcionais, os recortes da ação fazem praticamente perder a noção do todo por alguns segundos, naquela busca pelo ângulo ideal que você comentou), a câmera deslizando pela partitura até que ele ouve um barulho estranho, o pó de reboco caindo sobre o piano, a câmera subjetiva deslizando sobre a laje como se fosse a visão do assassino… enfim, e tudo que se segue (rola até close em gotas de suor na face). A cena se sustenta em uma ação que parece durar o dobro do que ela de fato deve durar, e é algo que prende o olhar duma forma impressionante. Pode parecer bobagem pra alguns, mas são nesses detalhes que alguns grandes filmes se distanciam dos trabalhos médios: um diretor como Argento (ou como Leone) pode se dar ao luxo de pegar uma cena que pode ser descrita em cinco linhas de roteiro e transformar em cinco minutos de cinema pulsante, que não se restringe a simplesmente contar uma história (que é uma das funções do filme, mas nem sempre é a principal, e aqui definitivamente não é), mas sim a envolver o espectador nessa áurea particular em que o filme se instala. Praticamente todas as cenas de Prelúdio para Matar me causam esse efeito, e não tem nada mais prazeroso que se perder em um filme assim.

Robson: Sergio Leone é um paralelo mais próximo mesmo, e como o Argento trabalhou com ele em Era uma Vez no Oeste, é certo que o modo como Leone abordava a tradição do gênero teve seu efeito no Argento. Era uma Vez no Oeste é um western despido de tudo que não seja a essência do gênero, é exatamente essa busca pelo western essencial. Qual é o formato mínimo de um western? O homem em busca de vingança, o vilão mercenário, a consciência do ‘”fim do western” como gênero (que já tinha se tornado um elemento comum na época de Era uma Vez no Oeste) etc. Fora essa estrutura mínima, não há nada, e aí se abre espaço pra tudo isso que você citou, a distensão do tempo, o olhar detalhista pra cada grão de poeira, pra cada rosto marcado, um filme que transcorre em slow motion sem que haja nenhuma sequência de fato em slow motion. Outro filme assim é Corrida sem Fim, do Monte Hellman, que é o road movie mais primordial que se pode imaginar, não resta nada além da estrada (inclusive no título original, Two-Lane Blacktop), nada além de seguir pela estrada. Essa coisa toda de essência e tal é fugidia, é claro. São tentativas cujo sucesso é incerto, mesmo depois de concluídas, vai que algum dia alguém consegue ir mais fundo no que define um desses gêneros, ou talvez não seja sequer possível chegar a um fundo, nem exista um fundo — mas isso é outra questão. Voltando ao Argento, me parece que Prelúdio é isso, essa busca pelo giallo mínimo. Lembro que conversamos uma vez sobre como, fora o sangue vermelhão, as mortes no filme são muito pouco gráficas, e nem são tantas assim, considerando a sua duração de mais de duas horas no corte original. Prelúdio é, quase em sua totalidade, atmosfera. E são filmes — os três, e devem haver outros exemplos, quem sabe algo do Jean-Pierre Melville, mas conheço pouco sua filmografia pra afirmar — que se destacam muito pela sua estética. Se pensarmos, é natural: despojando o filme de tudo que não seja absolutamente necessário pra conformá-lo em um dado gênero — de qualquer ligação com a realidade, da necessidade de encadeamento lógico, de explicações psicológicas etc. — é preciso trabalhar a imagem pra preenchê-lo. Não tem como se esconder atrás de outra coisa, da complexidade narrativa, filosófica, da trama intrincada. E é um procedimento que se firmou — não necessariamente buscar a essência, mas usar elementos já previamente codificados, até mesmo excessivamente codificados, e que portanto não exigem nenhum trabalho adicional, como muletas pra armar um esqueleto mínimo do filme e se concentrar sobretudo na forma. Por isso o cinema de gênero, pelo menos desde os anos 60, se transformou num lugar acolhedor pra diretores que queriam fazer experiências estéticas. O homem atrás de vingança é sempre o mesmo, vem de uma tradição, não importa arranjar-lhe um motivo pra vingança que seja melhor, que tenha mais nuances que o motivo dos antecessores, e sim filmá-lo de uma forma única. O assassino de luvas pretas também, basta estar ali, com suas luvas pretas (mas alguns diretores e produtores de gialli custaram a entender isso, dadas as longas e elaboradas e inúteis explicações que surgem no final de muitos filmes da época, inclusive no próprio Prelúdio para Matar). Com uma série de elementos assim já dados de antemão, o diretor se vê livre pra se preocupar sobretudo com a imagem, e o Argento foi um dos caras que ajudou a solidificar isso, a legitimar essa abordagem, antes de a crítica dar qualquer atenção a ela. Transcender o gênero mergulhando fundo nele. A peculiaridade é que Prelúdio para Matar, diferente de Era uma Vez no Oeste, foi feito com o gênero a que se conformava ainda no auge, o que provavelmente é a causa de alguns erros de julgamento do Argento e de problemas no filme (como a própria explicação psicológica e certos problemas de ritmo que sabotam parcialmente a jornada do diretor em direção ao núcleo do giallo).

Daniel: E por mais que seja um filme de certo modo revolucionário para o próprio giallo ou para os filmes de horror (lembro que John Carpenter, por exemplo, diz que pensou em Halloween depois de ver Prelúdio para Matar; e todos já devem saber da importância de Halloween pro gênero slasher e pra quase tudo que envolve o cinema de horror norte-americano dos anos 80, talvez o que mais obteve sucesso diante do grande público, e que é a base maltratada pelos filmes genéricos de serial killer que surgiam em calhamaços em Hollywood até pouco tempo), o maior beneficiado com essas experiências estéticas/narrativas/sensoriais que o Argento fez aqui é justamente o próprio cinema do Argento. Isso de buscar a essência da experiência com um filme, e trabalhar cada sequência até que o limite da relação entre a imagem e o espectador fique a ponto de se estilhaçar, é uma característica que se vê nos melhores filmes de Argento, especialmente os dessa fase prolífica entre Profondo Rosso e Terror na Ópera, e que, aliás, encontra um ponto máximo no próprio Terror na Ópera, que talvez seja o filme do Argento com a concepção estética mais surtada e emblemática, levando algumas questões do cinema dele às últimas consequências — em especial isso que também já foi colocado de as origens do ponto de vista adotado pela câmera se confundirem entre o olhar do assassino, o nosso olhar/desejo, ou um olhar neutro, de um terceiro observador, que no caso seria a própria câmera, da forma como geralmente é trabalhada. Em Prelúdio para Matar já existem vários planos-ensaio que nos lembram daqueles longos travellings pelos corredores do teatro, ou da cena do apartamento, que talvez seja a mais longa do filme e que é o grande ápice de Terror na Ópera (e onde mais fica evidente essa habilidade de dilatar/confundir o tempo e misturar essa sensação de desconforto com a própria tensão da ação). É um filme que merece uma conversa especial só sobre ele, até por delimitar um marco na filmografia de Argento. Mas, pra finalizar, o fato é que a discussão sobre Prelúdio para Matar ser ou não a obra máxima de Argento (por vezes penso que sim, mas o cara fez Terror na Ópera e Tenebre e isso não me permite afirmar nada) é ínfima diante do que realmente interessa quando se vê o filme: é uma obra-prima fundamental pro cinema, por todas essas discussões que possibilita e pela intensidade da experiência que nos permite viver.

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A Religiosa Portuguesa (Eugène Green, 2009)

De onde emana a beleza dos filmes? Está na fluidez dos atores; na precisão dos olhares; na angulação da câmera e no enquadramento escolhido pelo diretor para expressar com a força necessária os sentimentos da encenação? Acredito, particularmente, que sim. E se, apesar da subjetividade artística, estas são características em geral (e muitas vezes de maneira equivocada) medidas por um padrão formal de técnica e de qualidade, o primeiro contato com o cinema de Eugène Green funciona como um choque, um despertar ao mesmo tempo estranho e fascinante que, mais do que encantamento por sua expressividade poética inenarrável, nos possibilita ver o cinema funcionando de outro modo, em outro ritmo, em outro tom.

Não foi com A Religiosa Portuguesa, último de seus longas, que este primeiro contato aconteceu comigo — foi na verdade através de A Ponte das Artes, filme que desde então vive forte na memória como uma das experiências mais emblemáticas e bonitas que já tive. Mas, tanto neste quanto naquele filme, a concepção artística de Green obedece rigorosamente às ideias de encenação que compõem este seu cinema único, genuínamente d’auteur. Um cinema onde os planos não necessariamente precisam raccordar para serem colagens perfeitas; onde os atores recitam seus textos encarando frontalmente o espectador; onde a câmera, nosso guia eterno, rasga o espaço cênico ao meio para nos colocar em locais até então insuficientemente explorados.

Exploração, aliás, é uma palavra-chave para A Religiosa Portuguesa. O filme parte da chegada de uma atriz francesa, apresentada por um intertítulo como uma “mulher solitária”, à cidade de Lisboa, onde filmará cenas da adaptação de uma clássica história de amor proibido entre uma religiosa portuguesa e um oficial francês. Através da narrativa hipnótica de Green, acompanhamos esta mulher, frustrada pela quantidade incontável de amores fracassados (e que ela trata por profanos) pelos quais tem passado, a explorar diversos bares, ruas, becos e demais cenários da capital portuguesa, topando com personagens que, assim como ela, também parecem à deriva no mundo, em uma substancial busca por significados e razões.

É através deste conjunto de encontros que a exploração e a busca se transformam em contatos, e consequentemente em experiências — que, enfim, é a essência do que mantém a vida, e também o filme, em movimento constante. A viagem a Lisboa é vista por Green como uma jornada espiritual, com uma devoção encantadora à cidade e à cultura portuguesa, como se elas recebessem do diretor um poder mítico potente o suficiente para levar respostas ou conforto às ânsias de sua personagem, que nos cenários sempre fotografados de forma apaixonada e reverente se depara com belas apresentações artísticas e com obras de arte e de arquitetura, mas também com homens deprimidos, crianças órfãs, amores efêmeros, reencarnações que atravessam séculos e, finalmente, com um duplo de si em uma mulher que materializa a imagem da personagem que ela interpreta no filme encenado dentro do filme.

É neste momento fatídico do encontro na igreja que A Religiosa Portuguesa nos mergulha no ápice do cinema de Green, em uma longa sequência de mais de 12 minutos que, ao lado de outras como a tentativa de suicídio, a apresentação dos três tenores e o final à beira do rio, todas de A Ponte das Artes, certamente é, à sua maneira particular e embasbacante, uma das mais expressivas que podem ser encontradas no cinema recente. E simplesmente deve-se poupar palavras a ela, por dois motivos: primeiro, para não antecipar a resolução dos temas centrais e nem desgastar a beleza sem igual do diálogo que ocorre entre as duas personagens; segundo, porque nada seria suficiente, nem mesmo a reinvenção do vocabulário, para transmitir o que se sente quando em contato com uma cena de tamanha grandeza.

A encenação de Eugène Green, acreditem, ainda vai além de todo este poder mítico e da beleza estranha e desconcertante. Também à exemplo de A Ponte das Artes, A Religiosa Portuguesa é repleto de observações e easter eggs fascinantes, que amplificam a experiência para além de seu arco dramático existencialista (como a participação da equipe de outra obra espetacular filmada recentemente em Portugal, Aquele Querido Mês de Agosto, cujo diretor, Miguel Gomes, atua em uma ponta). Especialmente as cenas com o personagem do diretor do filme dentro do filme, que mais do que ser um alter-ego de Green, é de fato interpretado pelo próprio diretor — personagem que rende algumas digressões divertidíssimas e que dão à história um contraponto bastante espirituoso, como na hilária cena da danceteria, em que ele bebe uns drinks e tenta seduzir umas loiras dançando vergonhosamente na pista.

A brincadeira de Green com sua própria imagem vai longe: o filme que faz, para estranhamento da equipe, é um projeto teoricamente incompreensível: são apenas dois atores, que não contracenam juntos e não possuem sequer uma linha de diálogo. “É um filme experimental”, tenta resumir a atriz à sua maquiadora momentos antes de filmar, procurando clarear as coisas pra coitada, completamente perdida ali. “Ou seja, chato”, recebe de volta. “Espero que não seja. Gosto muito dessa história”, retruca, sem convicção. Momentos depois, já atuando, os olhos da protagonista se enchem de lágrimas e contrariam o script do diretor. Após cortar a encenação ele questiona: “Porque você chorou? Não era pra chorar”. Ao que ela responde: “Veio naturalmente, não pude evitar. Quando você estiver na sala de montagem verá que esse é nosso melhor take”, numa provação muito interessante do ato de filmar.

Seja na tragédia de sua protagonista ou na comédia autoparódica de seu diretor, A Religiosa Portuguesa é este processo interminável de buscas, de experiências, de questionamentos e de transformações, que atua tanto na vida de suas personagens quanto no cinema em que elas habitam. Diante disso, a nós, espectadores, somente resta experimentar o sublime e viajar nesta intensa experiência pela arte transgressora de Eugène Green.

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Editorial #1

Por Daniel Dalpizzolo

Acredito que a maior parte das pessoas que estão lendo este editorial já sabe quem somos e de onde viemos, e de certa forma deve imaginar um pouco do que pretendemos com o lançamento deste novo veículo do Multiplot!, mas faz-se necessário retomar um pouco de nossa história e, junto disso, apresentar a nova casa, as pessoas e as seções que a compõem.  O Multiplot! surgiu em 2008, como um blog coletivo de cinema cujo objetivo era simplesmente o de reunir um grupo de velhos amigos, conhecidos de fóruns de internet e chats alucinados de messengers, que ali se reuniam para demonstrar (com toda versatilidade/surtagem permitida pela plataforma dos blogs) em post aleatórios e em eventuais especiais temáticos o seu amor pelo cinema.

Vale lembrar que todos nós, sem exceção, antes de conhecermos a pessoa que cada um dos demais é, conhecemos o cinéfilo que nele habita. Foi assim que os vínculos se construíram, e certamente é por esses interesses em comum que eles se tornaram tão fortes. E foi pela força desses vínculos que, após um longo recesso do blog Multiplot!, e depois de experiências de seus componentes em outros portais e sites de cinema da internet, retomamos nossa ideia inicial, existente antes mesmo de nos aventurarmos pela blogosfera cinematográfica: a de ter um site de cinema.

O Multiplot! é composto por dez integrantes, como vocês podem ver na página do expediente. Nossa proposta pode ser resumida facilmente. É uma revista eletrônica voltada à crítica cinematográfica, que busca, antes de qualquer coisa, praticar o objetivo básico de qualquer texto sobre cinema: estender a experiência que temos com os filmes através de análises, artigos, matérias e especiais, sejam eles sobre os filmes em circuito ou de outras épocas, seja aleatoriamente ou em torno de temas específicos — como o que vocês podem visualizar em nossa estreia, analisando e discutindo a obra do grande cineasta Max Ophüls, certamente um dos responsáveis por esta paixão tão forte que nós do Multiplot! e tantos outros cinéfilos espalhados mundo afora sentimos pelo cinema.

Através do especial, composto pela biografia deste gênio e críticas para 19 de seus filmes, buscamos organizar ideias e uma análise geral tanto dos filmes quanto das principais características de Ophüls, da pulsão iminente destes filmes e do estilo único com que filmava, que o fizeram ser um diretor diferenciado, um genuíno artista que buscava caminhos até então inexplorados pela arte. Fazer jus ao legado deixado por Ophüls é uma tarefa praticamente impossível, é verdade, mas o resgate deste cineasta nos pareceu a melhor forma de darmos início ao projeto, torcendo para que ele sirva de incentivo para que os cinéfilos que nos visitarem busquem conhecê-lo e se aprofundarem na sua obra. Vale lembrar que especiais como este serão lançados a cada quatro meses — mas, no tempo intermediário, outras propostas coletivas devem surgir em torno de temas e autores.

Além do especial também temos em nossa estreia uma seleção comentada sobre a Hollywood dos anos 70, alguns textos sobre filmes atualmente em voga no circuito nacional, como A Árvore da Vida, Lola, Meia-noite em Paris e Super 8, além de críticas para filmes de outros anos e décadas, que serão recorrentes por aqui. As atualizações do Multiplot! serão semanais, procurando equilibrar textos dos filmes que estão passando nos cinemas com as raridades e os filmes de escolas e de diretores que cultuamos e que temos por interesse repassar para os eventuais leitores, pois afinal a arte, e no caso específico do Multiplot! o cinema, não merece ser resumida ao seu caráter efêmero da experiência instantânea — e sim atravessar gerações para viver eternamente em nosso imaginário.

Agosto de 2011. 

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Die verliebte Firma (Max Ophüls, 1932)

Por Daniel Dalpizzolo

No cinema de Max Ophüls, a ilusão do espetáculo e as desilusões da vida caminham paralelamente, ora em sintonia, ora confundindo-se e conduzindo o espectador pelo braço por entre seus jogos de encenação. Pensando nisso, a abertura do primeiro longa-metragem do diretor não poderia ser mais genuína, mais legitimamente ophulsiana. Die verliebte Firma inicia com dois amantes entoando uma canção no topo de uma colina. Uma imagem muito bonita, muito romântica. Dão-se os créditos, e a cena desaba. “Corta”, grita o diretor. O que víamos, aqueles dois amantes perdidamente apaixonados, não passava de uma mentira; coisa do cinema.

Ambos os atores são marido e mulher que, no que se encerra essa encenação de um casal em êxtase de amor, desfazem-se das máscaras teatrais, discutem por causa do trabalho e rompem o relacionamento. Estamos, enfim, de volta à realidade. Exaurida, a mulher abandona as gravações e deixa o filme órfão de uma atriz. É o primeiro conflito de Die Verliebte Firma, e Ophüls, hábil manipulador de narrativas labirínticas e em constante movimento, nos lança muitas dúvidas: afinal, torcemos pelo que? Para o filme dar certo? Para o casal fazer as pazes? Ou por nada disso?

Logo à frente essas questões se perdem, e conhecemos a real protagonista do filme: uma aspirante que é convidada a ocupar o lugar deixado pela atriz. É a chance da vida dela, mas tudo tem um preço. No caso, o próprio corpo. A sedução pelo sucesso encontra-se com o desejo carnal, e, assim como todos os homens que a cercam, ao invés de concentrar-se nos seus esforços como atriz, Ophüls prefere priorizar os corredores e as salas do backstage para observar sua jovem personagem lutando contra as investidas dos membros da equipe, mais interessados em transar com ela do que em fazer o filme dar certo.

A comparação é uma sacada que, mesmo vinda lá de 1932, não poderia pertencer mais a nosso tempo (e qualquer passada de olho mais atenta por canais de televisão ou sites de entretenimento evidencia isso): a escalada para o sucesso neste meio, para Ophüls, é um ato equivalente à prostituição. Um olhar desiludido para o próprio cinema, para a arte e o entretenimento, que mais tarde seria desenvolvido em muitos outros filmes do diretor, chegando ao ponto máximo em seu filme-testamento, Lola Montès, quando construiria um espetáculo circense todo centrado nos relacionamentos e escândalos amorosos de uma condessa francesa.

A resistência sexual da garota acaba se tornando também uma abnegação da fama. É aí que os conflitos presentes lá no prólogo retornam à cena e se resolvem de uma forma um tanto quanto estranha. Já não nos importamos mais com eles, mas Ophüls traz de volta a atriz para o filme e para seu marido, fazendo com que a jovem aspirante, ao renegar o corpo aos domínios de seus superiores, também perca a chance de ser lançada ao sucesso, ganhando como consolo um parceiro para um pequeno romance em Berlin. Uma desilusão que ainda é pintada como salvação. “É por eu me importar com você que faço isso”, diz o diretor ao mandá-la embora, livrando-a do filme, do show business e dessa relação predatória que ele mantém com seus escravos — e lacrando um convite perfeito para viajarmos pela obra tão duramente apaixonante de Max Ophüls.

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Liebelei (Max Ophüls, 1933)

Por Daniel Dalpizzolo

A obra de Max Ophüls pode ser sintetizada como um grande ensaio sobre o amor. Mas é preciso ter ciência, antes de tudo, de que este amor sobre o qual falamos não existe por mera representação romântica/açucarada, típica das love histories do cinema. O sentimento entre um homem e uma mulher, por maior que seja sua beleza no momento em que é vivido em tela, cerca-se por fragilidades, consequências e acontecimentos que podem ser circunstancialmente trágicos para alguém, seja para eles mesmos ou para outras pessoas — afinal nesta inacabável ciranda alguém sempre sai perdendo. Nas histórias de Ophüls, os amantes não vivem em uma redoma de vidro; estão em contato direto com a sociedade que habitam e portanto são suscetíveis às mais diversas interferências, à paixão de outra pessoa, ao desejo de um deles por alguém, a um ocasional desvio moral, etc. Ophüls não fecha seus olhos para nenhum dos lados deste jogo. Seja o mais singelo dos beijos ou um passeio de carruagem ao som de uma doce trilha-sonora; seja a desilusão, o desespero, o desfecho trágico de um romance “proibido” ou a necessidade de se superar o passado: para a representação do amor em seus filmes ser plena, ele nos permite experimentar os dois extremos.

Liebelei é o primeiro trabalho construído por Ophüls através dessa complexa visão narrativa sobre o amor, que seria desenvolvida mais tarde em filmes como A Ronda e, especialmente, na obra-prima Desejos Proibidos — para os quais também poderia ser considerado um filme-esboço. Poderia, mas não será, porque tratar Liebelei como um esboço seria reduzir a intensa experiência à qual Ophüls submete o espectador com este monumento cinematográfico — que notavelmente representa o momento em que o diretor, poucos filmes após sua estreia no cinema, começava a evidenciar uma construção de identidade e de valores que viria a ser especificamente sua, de seu cinema.

Em Liebelei, a representação do amor e de suas nuances ocorre em diversos pólos. A história parte de um encontro casual entre dois militares e duas garotas em uma ópera. Um dos homens comanda as investidas e demonstra estar muito mais interessado nelas do que o outro. O motivo da distância de seu colega conhecemos poucos minutos depois: o coração bate por outra mulher. Mas é mais complicado do que isso: bate pela baronesa do reino ao qual servem, a mulher de seu superior, com quem tem um caso extraconjugal às escondidas, e por quem o amor é retribuído. O círculo de relações de Liebelei, tipicamente ophulsiano, percorre diversas formas e representações do amor, e começa a apertar à medida que a inocente jovem se apaixona cada vez mais pelo militar e este passa a correr mais perigo por causa das fofocas que rondam o reino, indicando que ele seria o amante da baronesa local.

A fama de Max Ophüls se firmou principalmente por seus travellings elaborados e pela extrema habilidade em fazer dos planos de seus filmes imagens em movimento – que podem assumir perspectivas opostas a partir de um simples deslizar da câmera, conduzindo o olhar do espectador àquilo que o filme quer que ele veja/saiba/sinta. Mas o que impressiona mesmo na composição visual e no melodrama de Liebelei é a força dos planos fixos sustentados por Ophüls em momentos-chave de sua narrativa, a intensidade que transborda da tela e da impressionante expressividade de seus atores, agregada à precisão dos cortes, especialmente naquelas sequências em que seus personagens  encontram-se próximos dos conflitos máximos que suas relações (de amor ou de poder) podem demandar.

É  impressionante a encenação de Liebelei, e cito em especial o uso planejado do close (e o saber usar um close, algo que cada vez mais parece ter se perdido com o tempo) em dois momentos muito específicos, que carregam no olhar de seus atores, no timing absorsivo dos planos, um poder dramático quase mítico. No primeiro deles, logo ao início, a declaração do militar à baronesa, ao mesmo tempo preenchida de amor e de lamentação, onde compreende-se o prenúncio da tragédia de Liebelei. Tragédia cujo peso e  inflexão serão sentidos mais tarde, já ao final do terceiro ato, no segundo momento de uso do close beirado à perfeição: quando a jovem apaixonada recebe de seus amigos a notícia da consumação da tragédia – quando Ophüls invade a privacidade de sua personagem num plano único de dor insuperável, uma imagem que parece durar a eternidade.

Se ao longo do filme podemos vivenciar o máximo da beleza de um melodrama, por exemplo, com aquele passeio de carruagem pela neve (“te amarei para sempre”, a mais banal das promessas de amor, também um prenúncio irrevogável da desilusão), o terceiro ato é todo ele um contraponto devastador, que surge a partir de um crescendo de tensão e amargura até chegar a um desfecho asfixiante – e o plano final, em que a câmera de Ophüls, aí sim, movimenta-se panoramicamente para deixar o apartamento e refazer solitária um percurso pela paisagem coberta de neve, é de marejar os olhos. Em Liebelei, primeira verdadeira obra-prima de Max Ophüls, encontramos o que de melhor existe no cinema deste brilhante diretor, percorrendo os ciclos do amor e suas mais diversas passagens, do enamoramento à infidelidade, do esplendor de um beijo apaixonado à dor da perda e da morte; ao  “para sempre” e o valor que ele possui na efemeridade da vida.

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Lachende Erben (Max Ophüls, 1933)

Por Daniel Dalpizzolo

Consta que Lachende Erben, comédia romântica realizada por Max Ophüls na Alemanha em 1933, era vista pelo próprio diretor como mero trabalho de rotina, sem muito destaque em sua filmografia diante de obras planejadas em torno de seus temas favoritos e de suas perspectivas cinematográficas. O que evidencia aquele velho jargão que diz que autores muitas vezes subestimam bons trabalhos seus, talvez por se cobrarem demais ou por terem vivido alguma experiência desagradável durante a produção, sei lá. O fato é que, encaixando ou não na visão geral da obra de Ophüls, Lachende Erben é uma comédia luxuosa, digna da assinatura de um cineasta deste nível.

Como uma das melhores credenciais do filme, a boa e velha polêmica: mesmo tendo sido lançado muitos anos antes, o filme foi proibido de veicular na Alemanha a partir de 1937, quando já estava no poder o mitológico líder Adolph Hitler. O motivo? Segundo os nazistas, o filme poderia “ferir” os sentimentos nacional-socialistas e promover a desordem pública — algo que é perfeitamente compreensível ao situarmos esta produção excêntrica e sarcástica no contexto político e social do país, mesmo tempos antes do início do regime nazista, em seu ano de produção, quando a Alemanha sentia na pele o caos econômico promovido pela quebra da bolsa de Nova York ao final da década de 1920.

Ophüls e o roteirista Felix Jackson, baseados na história de Trude Herka, aprontam uma brincadeira que se assemelha muito ao cinema ocidental norte-americano, às screwball comedies malucas que se tornariam famosas em Hollywood naquela mesma década. O filme parte com o sobrinho de um milionário empreendedor de uma fábrica de vinhos recém-falecido chegando ao velório do velho e, a contragosto, se encontrando com toda parentada para acompanhar a leitura do testamento – desesperançoso, já que sequer tinha contato com o tio. O testamento está gravado num disco de vinil. Colocam-no para rodar, enquanto a câmera de Ophüls encara a imponente imagem do velho num quadro gigante acima da vitrola.

A encenação espetacular de Ophüls, com direito a um brilhante contra-plano com ângulo subjetivo do olhar do velho através do quadro, acompanhando a parentada roer os dedos de raiva e esbanjar desprezo por ele durante a leitura do testamento, faz o filme conquistar simpatia logo de início. Se mesmo seus filmes mais dramáticos jamais se despiram de um olhar levemente cômico sobre as tragédias existenciais tão caras a nós humanos, em Lechande Erben tudo é calcado exclusivamente no potencial cômico que cada situação desperta. Com o final do testamento, descobrimos o conflito central da história e ele por si só é um absurdo: todos os bens, do capital à multimilionária empresa, são passados para o pobre sobrinho, um alcoólatra, contanto que ele cumpra uma única condição: jamais beba uma gota de álcool novamente.

Um mordomo, todos os familiares e até um cachorro treinado pra denunciar: é todo mundo contra nosso protagonista, tentando forçá-lo a beber e a descumprir a regra dada pelo velho, o que acarretaria na abertura de um novo testamento. Com ritmo preciso (característica sempre presente em Ophüls) e enxutos 70 minutos de duração, Lechande Erben é um filme delicioso de ver, por seu sarcasmo, por sua extravagância cômica e pela ousadia de, na Alemanha dos anos 30, sair desfilando valores politicamente incorretos, obsessão por dinheiro, travessuras burguesas, pessoas tentando passar a perna umas nas outras, apologias à bebedeira e, acima de qualquer coisa, fazer uma ode à vida regrada por nossos desejos, seja por dinheiro, por uma mulher ou uma boa garrafa de vinho.

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La tendre ennemie (Max Ophüls, 1936)

Por Daniel Dalpizzolo

Nos créditos de abertura de La tendre ennemie, os personagens principais, três fantasmas de ex-amantes de uma mesma mulher que morreram “casualmente” após alguma experiência com ela, são apresentados através de inter-títulos como Vítima 1, Vítima 2 e Vìtima 3. No que se encerram os créditos aparece um último letreiro: O culpado: a existência. A brincadeira dá de cara o tom desta comédia dramática de Max Ophüls, e também imprime muito sobre as idéias colocadas em prática pelo diretor tanto neste quanto em seus filmes subseqüentes, especialmente os que realizou em seu retorno à França depois da experiência em Hollywood.

Ophüls soube lidar com seus personagens com um respeito que pouco se vê.  Não são, nem aqui nem em filme algum, figuras pré-programadas para sustentar idéias específicas através de suas ações. Também não estão presos às posições sociais ou narrativas que se criam para eles dentro do universo dos filmes, ou meramente das cenas em que participam. Possuem graça e vida. No que talvez seja o momento mais singelo de sua obra, em O Prazer, a câmera desliza sem cortes do teto de uma igreja, no qual observamos uma pintura sacra angelical, em direção às mulheres sentadas nos bancos à escuta do padre. São prostitutas, e elas choram ouvindo algumas palavras sobre a vida.

Em La tendre ennemie, não se julga se a mulher é vagabunda, se trepava com dois homens ao mesmo tempo, se está casada com um e sai com o outro ou se deixa outro esperando na entrada de um navio e o leva a meter uma bala na cabeça por não suportar tamanha desilusão. Os homens estão na terra e estão, todos eles, suscetíveis a passar por experiências boas ou ruins, por sensações distintas, ilusões e prazeres. As ações irão interferir na vida de alguém, no destino de alguém, mas… como controlar isso? Essa é a regra do jogo que jogamos. Essa é a regra ditada pela existência. E, bem, o filme já adianta antes de qualquer outra coisa: ela é a nossa vilã.

Aqui Ophüls deixa a mulher, figura geralmente protagonista de seus filmes, em segundo plano para colocar os fantasmas de seus amantes discutirem – sarcasticamente, em meio ao casamento da filha dela com um deles, seu ex-marido corno – o que os levou à morte. Cada um foi importante na história dos demais, mas riem uns dos outros e de si mesmos e da mulher que dividiram. Nem mesmo a forma com que discutem a postura dela demonstra de maneira escancarada sentimentos como raiva ou rancor. Se não fosse com eles seria com outra pessoa, então que abram uma champagne, bebam e deem risada da situação. Alguém, invariavelmente, teria que passar por aquilo, e foi a vez deles. A existência implica nisso.

A habilidade estética e narrativa de Max Ophüls em recriar a vida através de um “espetáculo” — e esta palavra é muito importante quando se fala de Ophüls — de cinema foi desde sempre bastante avançada. São pouco mais de 60 minutos de um filme frenético, cheio de idas e vindas no tempo e enquadramentos que dividem planos existenciais distintos, com homens atravessando fantasmas, fantasmas atravessando homens e toda leva de truques que se torna possível nesta brincadeira. A consciência de Ophüls em encarar o cinema antes de qualquer coisa como uma experiência estética, e portanto sensorial, rende novamente momentos muito empolgantes neste filme que, embora longe de entrar para antologias, dá um prazer imenso de ver.

E este é um dos motivos pelos quais vivemos, não é?

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Desejos Proibidos (Max Ophüls, 1953)

Por Daniel Dalpizzolo

Madame de… é a protagonista de Desejos Proibidos, Louise, à qual o filme também deve seu título original. É assim que a conhecemos, pois é o máximo de informação que Max Ophüls permite a nós, espectadores, encontrarmos sobre a origem dela em meio às referências visuais e aos diálogos do filme. O recurso, além de uma licença poética que se resolve brilhantemente em muitas cenas, também está ligado ao olhar com o qual o diretor observa o triângulo amoroso formado por ela e por seus dois homens, habitantes dos palácios, das carruagens e de outros ambientes da luxuosa aristocracia europeia do século XIX — um jogo de amor, de pertencimento, de vingança e outros sentimentos distintos, de mentiras, enganações, promessas, muita pompa burguesa, desilusões e abismos, com o qual Ophüls chega ao ápice da sua sofisticação e da virtuosidade narrativa e estética.

A sequência de abertura, em que apresenta nossa protagonista, já diz muito sobre este olhar de Ophüls e sobre a superfície na qual pretende mergulhar com sua câmera inquieta e exploradora. A senhora, mulher do general André, do qual obviamente também não saberemos o sobrenome, procura um par de brincos de grande valor em seus pertences. A câmera de Ophüls ocupa o que seria um olhar subjetivo da senhora, percorrendo gavetas e portas de armários em busca dos objetos. Antes mesmo de conhecermos o rosto dela, sua identidade já nos é revelada através de seus bens, dos belíssimos casacos de pele, dos vestidos, das jóias e chapéus que a vestem para dar-lhe uma personalidade — e, neste vaidoso jogo de aparências, uma posição social. Mas somente após encontrar os brincos — e colocá-los — é que vamos descobrir quem de fato é esta mulher, quando as lentes de Ophüls se voltam a um espelho que emoldura a bela face de Danielle Darrieux em uma imagem que parece saída de um álbum de fotografias muito bem planejado. Porque a primeira imagem de Louise, é claro, tem que ter toda elegância que lhe é permitida.

Isto para, na sequência seguinte, a finesse ser deliciosamente jogada num buraco. Por debaixo da pompa aristocrática de Louise e de seu marido, aquele casal admirado pela sociedade, estão as boas e velhas sacanagens. Endividada e desesperada, ela penhora os brincos para evitar que o marido descubra os problemas em que se meteu, mentindo a ele que os perdeu enquanto acompanhavam uma ópera junto de amigos.  A venda dos brincos, para Ophüls, surge como uma irônica quebra do sossego, um ponto de partida para a tragédia que viria a acometer a vida do casal, como se ali, ao se desfazer deles, a Madame estivesse vendendo também parte de sua alma e de sua tranquilidade, que passarão de mãos em mãos até se dividirem entre dois homens: o marido, que compra os brincos de volta e dá para uma amante, e o futuro amor de sua vida, o Barão Fabrício Donati, que coloca as mãos nos brincos para, mais tarde, devolvê-los (sem saber) como presente a Louise, com quem terá um caso.

O insano conflito narrativo de Desejos Proibidos se constrói em pouco mais de 30 minutos de filme, nos quais Ophüls torce e distorce uma alucinante narrativa cíclica (que traria de A Ronda, um de seus filmes anteriores) percorrendo todos os caminhos feitos pelos brincos até eles retornarem, com um novo significado, às mãos da Madame – agora símbolos do verdadeiro amor e do desejo. Nestes 30 minutos, vemos a habilidade narrativa e visual do diretor evidente em cada plano, cada sequência e movimento elaborado de câmera, utilizando os requintados ambientes em que a história se desenvolve para compor alguns dos mais belos quadros de sua obra, seja pela pura plasticidade visual ou pela profundidade que podem atribuir aos sentimentos trabalhados através dos personagens — chegando ao ápice na colagem das valsas dançadas por Louise e Fabrício durante diferentes bailes, quando no uso da elipse Ophüls acompanha a progressão da paixão que nasce entre ambos em uma longa sequência de colagens que merece ser vista em pé.

Mas a visão do diretor sobre o amor, já discutida no texto de Liebelei, surge aqui ainda mais trágica e negativista, mostrando um cineasta cada vez mais amargurado e desesperançoso com a possibilidade da vitória deste sentimento tão puro diante de um mundo tão desprezível, sugado pela superficialidade das aparências e pela baixeza humana. Nos poucos momentos em que Louise e Fabrício têm para mostrarem um ao outro o seu amor, jamais nos aproximamos da doçura e da inocência das representações românticas de Liebelei. As cenas de amor em Desejos Proibidos surgem sob uma atmosfera estranha, opressiva e desoladora, que vai tomando conta do filme à medida que se fortalece a consciência de Louise sobre a impossibilidade de viver por aquilo que sente — como que estando ciente de que sua existência estará indefectivelmente presa à posição social que ocupa ao lado do marido.

Ophüls trabalha em Desejos Proibidos um processo gradativo de letargia. Conforme os conflitos se estreitam, as existências de Louise e dos brincos vão se equilibrando até chegarem a uma relevância quase equivalente na história — dois objetos de posse para um marido de orgulho ferido. Se o controle sobre a esposa é impossível por conta de suas pulsões voluntárias, o general apreende os brincos e, consequentemente, sua alma, e o significado romântico que eles passaram a ter depois de reconquistados por ela é arremessado contra ela própria, que neles projeta a tragédia incontornável e se depara com uma relação de poder e de dominação que só seria destruída pela própria tragédia. A resolução do conflito não poderia ser mais devastadora: disso tudo, resta apenas o corpo de uma Madame que, embora siga no mundo, praticamente faz uma opção pela não-existência, pela própria anulação.

Por mais trágica que seja sua história, porém, não é possível sair de Desejos Proibidos sem estar completamente encantado e maravilhado com o filme. Porque aqui a chave de tudo está naquela palavrinha maldita, hoje em dia presente em 50% dos textos escritos sobre cinema. Sim, é de mise en scène que vive Desejos Proibidos, e por mais que toda obra de Ophüls possa ser vista como um dos mais perfeitas representações do poder e do significado da mise en scène, é aqui que o diretor atinge um patamar sublime de expressividade quase sobre-humana, um requinte visual que não existe em praticamente nenhum outro filme que eu me lembre de ter visto até então. Ao final, naquele lindo quadro de encerramento, não dá pra não pensar em Desejos Proibidos como uma obra-prima máxima, que em toda sua beleza, dor e poesia serve, acima de tudo, como uma recompensa para qualquer amante do cinema.

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A Nova Hollywood em 25 filmes

Por Daniel Dalpizzolo e Vlademir Lazo

Mapear um período tão rico da cinematografia norte-americana como o da Nova Hollywood foi uma tarefa prazerosa, mas que ao mesmo tempo nos exigiu um bocado de rigor e prospecção nas escolhas. Primeiramente pensamos numa lista bem compacta com vinte títulos, que percebemos que seria insuficiente, sendo decidido em seguida pelo acréscimo de cinco outros filmes. Ainda que muitos de nossos favoritos tenham ficado de fora, a relação a seguir é um consenso a que chegamos dentro de nossas preferências particulares, das discussões no momento de incluir e cortar filmes e cineastas, até formarmos esse top composto por um título por diretor.

Na Mira da Morte [Targets,1968], de Peter Bogdanovich

Bogdanovich é um dos mais cinéfilos entre os cineastas americanos, colocando muito de seus estudos nesse primeiro longa que acontece entre a passagem da decadência dos grandes estúdios para a consolidação da Nova Hollywood. Roger Corman, Karloff, Samuel Fuller (co-autor do roteiro, não creditado), filmes B e de baixos orçamentos em geral, tudo passado a limpo em um jogo de espelhos entre o monstro da ficção e o da realidade, com o do cotidiano superando o da imaginação. Houve outros bons filmes nesse período de transição, mas Targets ocupa melhor a posição de marco inaugural de uma era em substituição a uma outra que não existe mais. (Vlademir)

Meu Ódio Será Sua Herança [The Wild Bunch, 1969], de Sam Peckinpah

A ópera da violência de Sam Peckinpah encontra seu expoente máximo no final deste explosivo e radical western, quando os quatro amigos caminham rumo à morte em um plano de uma dureza frontal absurda — e que antecipa um tiroteio brilhantemente encenado, um daqueles momentos de antologia entre tantos na obra do Tio Sam. Um filme que, complementado pelo crepuscular Pat Garret & Billy the Kid, também de Peckinpah, lacra definitvamente este gênero construído sobre códigos de conduta e moral não mais aplicáveis ao mundo, porém que se mantêm com todo seu delicioso anacronismo em uma página muito especial da história do cinema. (Daniel)

Cada um Vive Como Quer [Five Easy Pieces, 1970], de Bob Rafelson

A péssima tradução nacional do título pode causar certa confusão no primeiro contato com esta obra amarga e pessimista. É um dos mais desiludidos filmes norte-americanos do período, com um Jack Nicholson melancólico e agressivo tendo que lidar com tudo aquilo que gostaria de anular de sua vida — incluindo aí suas próprias ações diante dos problemas dos quais foge. O plano-sequência em que toca piano enquanto a câmera de Rafelson viaja pelas memórias na parede, o encontro com o pai sobre a montanha e o final são momentos antológicos. (Daniel)

Corrida sem Fim [Two-Lane Blacktop, 1971], de Monte Hellman

A exemplo de Cada um Vive Como Quer, a obra-prima de Monte Hellman também é um road movie de uma desesperança sufocante. Um filme que parte de uma viagem pelas autoestradas americanas e vai perdendo sua parca linha narrativa até chegar ao completo abstratismo, absorvido pela própria questão existencial trabalhada através de seus jovens personagens que, descrentes no futuro, resignam-se a condições miseráveis de sobrevivência, dando a si um valor equivalente ao das peças dos carros que pilotam, mecanizando completamente as relações entre eles e consigo mesmos. (Daniel)

O Estranho Que Nós Amamos [The Beguiled, 1971], de Don Siegel

Siegel e Eastwood são mais lembrados pelos filmes de ação do período, porém o ponto alto de suas parcerias foi com esse melodrama gótico cuja seriedade e sentido dramático antecipa um bocado da obra de Eastwood como diretor. Uma disputa pelo poder e confronto entre os sexos, com um único indivíduo em um duelo massacrante contra uma maioria esmagadora de mulheres. Um thriller psicológico com perversões, mutilações, incesto e lesbianismo. (Vlademir)

Operação França [The French Connection, 1971], de William Friedkin

Se os velhos heróis do western foram mortos por Peckinpah, em Operação França William Friedkin faz nascer um novo conceito de herói, influenciado pela violência urbana cada vez mais descontrolada das grandes metrópoles. A câmera não o poupa de nada: envolvimento com prostitutas, pilantragem, extorsão, até chegar ao ponto máximo em que combate o crime da forma mais simbolicamente suja possível: matando um homem com um tiro pelas costas. É o filme policial indo de encontro direto à deturpação de valores e à degradação social do momento, e que se vale da coragem de seu autor para promover uma importante revolução de conceitos no cinema comercial do gênero. (Daniel)

Cidade das Ilusões [Fat City, 1972], de John Huston

Já veterano como cineasta, John Huston sempre prezou por uma filmografia irregular, mas quando acertava era capaz de cometer filmes inesquecíveis como esse Fat City, cujo material vai de encontro com a obsessão do diretor com a noção de eterna derrota (temática que domina a sua obra, pelo menos nos seus melhores filmes), e com uma força que não muitos filmes celebrados do período possuem. (Vlademir)

Dillinger [idem, 1973], de John Millius

John Millius foi um influente personagem da geração Nova Hollywood, colaborando com roteiros e produções de outros autores e também dirigindo alguns filmes — Dillinger sendo o melhor deles. Uma revisão de um mito do filme de gângster do período clássico hollywoodiano sob a ótica dos padrões estéticos e morais do novo momento vivido pelo cinema norte-americano, personificado na figura do sempre genial Warren Oates. Fica ainda melhor se visto numa dupla-sessão com Inimigos Públicos de Michael Mann, especialmente pela dualidade de olhares sobre o personagem existente entre eles. (Daniel)

Terra de Ninguém [Badlands, 1973], de Terrence Malick

O mesmo argumento pode ter ser encontrado em outros filmes, mas não existindo em suspenso e se movendo sempre como uma travessia onírica em meio a matanças e perseguições. A ambição de Malick depois cresceria desmedidamente filme a filme, porém o seu cinema talvez nunca tenha sido tão eficaz quanto na sua estreia (já com grandes preocupações pictóricas). (Vlademir)

A Conversação [The Conversation, 1974], de Francis Ford Coppola

Francis Ford Coppola era um dos cineastas do período mais esforçados em tentar reproduzir o cinema europeu em Hollywood. Suas incursões viscontianas são sempre mais lembradas, mas talvez seu melhor filme seja este suspense nos moldes de Antonioni — uma das tantas releituras de Blow Up existentes no cinema. Gene Hackmann paranoico enlouquecendo e destruindo o próprio apartamento para tentar encontrar uma escuta é, como em Corrida sem Fim e no próprio Blow Up, um terceiro ato que transcende as questões de trama para levar o cinema onde realmente interessa: na gênese das sensações. (Daniel)

Nasce um Monstro [It’s Alive, 1974], de Larry Cohen

Larry Cohen releu nosso mundo moderno para tratar no cinema de diversos aspectos sociais contundentes através de filmes fantásticos de baixo orçamento, projeto que iniciou com esta alegoria de horror sobre um bebê contaminado pela poluição industrial durante a gravidez que nasce, como o próprio título nacional já antecipa, sob forma de um ser mutante, matando os médicos durante o parto e fugindo do hospital para causar o terror pela cidade. (Daniel)

Renegados até a Última Rajada [Thieves Like Us, 1974], de Robert Altman

Da série de revisões de gêneros a qual Altman se dedicou por longo tempo pode-se preferir McCabe & Mrs. Miller ou O Perigoso Adeus, mas dentre o melhor período de sua carreira não se deve esquecer de Thieves Like Us, uma visão negativa e desglamourizada de um microuniverso específico e isolado (o do gangsterismo), mas desprovido do tom cínico e maldoso com que muitos trabalhos posteriores do diretor se caracterizariam. (Vlademir)

Crime e Paixão [Hustle, 1975], de Robert Aldrich

Por trás de uma típica história policial de rotina, todo um projeto de cinema que escancara uma sociedade corroída, onde a cada momento se descortina uma faceta bem escrota do mundo, em que todos (bons e maus) formam parte de uma escória imunda e sem salvação. The Grissom Gang talvez seja o melhor trabalho de Aldrich nesse período, porém Hustle representa como nenhum outro a cartilha das intenções do diretor. Burt Reynolds em seu grande papel no cinema. (Vlademir)

Assalto à 13ª DP [Assault on Precinct 13, 1976], de John Carpenter

Talvez o filme de John Carpenter que mais se assemelhe ao conceito geral da turma da Nova Hollywood e de seu cinema predominantemente urbano. Uma atualização de Onde Começa o Inferno, western do mestre Howard Hawks, cineasta base para o cinema de Carpenter, sobre um pequeno grupo de policiais que precisam defender uma delegacia da invasão de um bando infinitamente maior de arruaceiros. Um legítimo filme policial do período com uma tensão e violência que pulsam da tela. (Daniel)

Josey Wales — O Fora da Lei [The Outlaw Josey Wales, 1976], de Clint Eastwood

Eastwood já maduro como diretor, no mais pictórico e impressionista dos seus filmes, carregado de imagens sombrias. Não fica muito atrás de Os Imperdoáveis, com seu projeto de vingança se convertendo ao final num comovente libelo pacifista, e com a perda da inocência de uma América em frangalhos cujos retalhos passariam a ser a tônica dos projetos mais relevantes de sua filmografia. (Vlademir)

A Morte de um Bookmaker Chinês [The Killing of a Chinese Bookie, 1976], de John Cassavetes

Um ensaio sobre a decadência em um filme de invenção que desmembra o gênero policial através do cinema único de John Cassavetes. Embora seja menos lembrado que outros filmaços deste mestre do cinema independente, A Morte de um Bookmaker Chinês é talvez o filme em que ele melhor pinta a selva urbana e seus cantos mais obscuros. O centro de tudo é o personagem de Ben Gazarra, dono de um clube noturno afundado em dívidas de jogo que precisa realizar um serviço ingrato para safar seu pescoço, e que nos conquista por reunir todos os seus esforços em uma luta desmedida pela defesa de seus sonhos. (Daniel)

Taxi Driver [idem, 1976], de Martin Scorsese

De Niro e Scorsese trataram de interpretar e dar forma às neuroses que o roteirista Paul Schrader concebeu num período de depressão, resultando num dos filmes mais populares dos anos setenta. Seus autores definem o protagonista como uma figura do Velho Testamento, determinado a limpar a sujeira e escória das ruas, indo e voltando insone pela cidade com seu carro simbolizando um caixão ambulante. (Vlademir)

Trágica Obsessão [Obsession, 1976], de Brian De Palma

O melhor filme de Brian de Palma nos anos 70 é esta obra-prima de extrema profundidade dramática que promove uma releitura de Vertigo, do mestre Alfred Hitchcock, com uma impecável inversão de elementos. A partir de um jogo de espelhos com o cinema De Palma constrói uma obra de arte de pulsão própria, com um perfeito domínio de encenação e de narração. Como de habitual em De Palma é um filme capaz de nos levar por caminhos estéticos jamais percorridos com tamanha força. (Daniel)

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa [Annie Hall, 1977], de Woody Allen

Um filme que lembra a Nouvelle Vague francesa, pela desconstrução narrativa/estética que promove e, mais modestamente, por suas sacadas visuais. É uma obra-prima deliciosa de Woody Allen. Annie Hall surge em blocos como que reproduzindo fluxos de memória para falar a ­respeito dos bons e maus momentos de um relacionamento a dois — sempre mesclados pela sensibilidade e senso de humor aguçados do diretor/roteirista. É também uma eficiente ponte entre a comédia física de seus trabalhos iniciais e seu período de maior amadurecimento dramático e artístico. (Daniel)

A Outra Face da Violência [Rolling Thunder, 1977], de John Flynn

O lado B de Taxi Driver, e também escrito por Schrader (roteirista mais importante da Nova Hollywood?), é uma espécie de negativo do filme de Scorsese, ainda mais violento e brutal (e sem o conforto que a presença de um astro como Robert De Niro traz a maior parte do público). Méritos principalmente para Flynn, que depois continua uma interessante e subterrânea carreira no cinema americano. (Vlademir)

O Despertar dos Mortos [Dawn of the Dead, 1978], de George Romero

O mundo vivendo o apocalipse, zumbis circulando pelas ruas à caça de carne humana e Romero colocando seus personagens para se refugiarem dentro de um shopping center. Uma plotline digna de um gênio em um dos melhores filmes de horror de todos os tempos, com um número inigualável de cenas e ideias brilhantes sendo trabalhadas em uma narrativa alucinante, através da qual Romero equilibra com perfeição suas observações sociais e as intenções básicas de um filme do gênero: entreter, chocar e sugar o espectador para dentro de sua própria atmosfera. (Daniel)

Fedora [idem, 1978], de Billy Wilder

O filme mais anti-Nova Hollywood da lista, mas existindo muito por causa dela (e um dos melhores de sua época), não tanto como um rancor de Wilder, é somente para a sua geração o que Crepúsculo dos Deuses representara para os antigos ídolos do cinema mudo, numa versão ainda mais desvairada daquele argumento. Um filme totalmente anacrônico, ao mesmo tempo a representação de um funeral: o do cinema clássico americano. O testamento do seu diretor. (Vlademir)

O Assassino da Furadeira [The Driller Killer, 1979], de Abel Ferrara

O ítalo-americano Abel Ferrara pode não ter feito parte da Nova Hollywood, mas seu longa de estreia se encaixa perfeitamente na lista como uma potente e punk visão de cinema das ruas e dos guetos propagada pela geração. É uma releitura hardcore de Taxi Driver através de um ponto de vista ainda mais visceral, com um protagonista que pelas circunstâncias em que vive acaba fazendo parte da escória tão criticada por Travis — se lá Travis usa da violência para tentar “limpar” a sujeira das ruas, aqui ela existe pra sujar mesmo. “Este filme deve ser tocado alto” diz o letreiro inicial, perfeita síntese desse ruidoso filme B que pinta a violência como uma decadente válvula de escape da própria merda. (Daniel)

O Show Deve Continuar [All That Jazz, 1979], de Bob Fosse

O musical era um gênero considerado ultrapassado e um tanto água-com-açúcar no começo da Nova Hollywood. Coube ao antigo coreógrafo Bob Fosse resgatar a dignidade artística do gênero, acrescentando matizes mais ricas nos que dirigiu, como em Cabaret e nessa sua autobiografia quase absoluta, em que dialoga com o Anjo da Morte enquanto contempla o abismo e sua própria autodestruição. (Vlademir)

O Portal do Paraíso [Heaven’s Gate, 1980], de Michael Cimino

Um filme-monstro, ao mesmo tempo abençoado e maldito. Faroeste esplendoroso, a meio caminho entre Peckinpah e Visconti, entre Pat Garret e O Leopardo. O filme de arte europeu e a revisão do western americano. Seu fracasso coincide com o surgimento dos blockbusters, de uma mudança na mentalidade do público e de uma virada de jogo nas regras da indústria. Uma obra-prima absoluta que encerra toda uma era. (Vlademir)

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