Vigilância e ruído em Hacked Circuit (2014) de Deborah Stratman

Por Natália Reis

“Such a satisfying idea – noise annoys – at once

simple-to-grasp kernel and yet capable of inflation into

the most grandiose theories of subversion. But… who

is there to be annoyed and in what ways?”

Simon Reynolds

Astro Noise foi o nome dado por Edward Snowden ao arquivo encaminhado à jornalista Laura Poitras em 2013 contendo os documentos que atestavam uma série de violações de privacidade cometidas por inteligências governamentais nos EUA pós 11 de setembro. A designação é uma referência ao fenômeno descoberto acidentalmente na década de 1960 pelos astrônomos Robert Wilson e Arno Penzias, conhecido como cosmic microwave background radiation (radiação cósmica de fundo em micro-ondas) – um tipo de “eco” ancestral do big bang captado através de um ruído constante nos equipamentos do Bell Labs e cuja radiação pode ainda ser detectada numa porcentagem ínfima da estática da TV. Em um curto ensaio para o catálogo da exposição artística de Poitras (também nomeada “Astro Noise”), Snowden compara a “canção secreta das estrelas” e a aleatoriedade com que pôde ser descoberta às técnicas de criptografia e descriptografia, que refletem tanto a proteção quanto a possibilidade de exposição de nossos dados. 

O ruído por vezes é tido como sinônimo de erro, poluição, um fator externo de intromissão, não categorizável. Musicalmente falando, o crítico Simon Reynolds diz ser possível defini-lo como “interferência, algo que bloqueia a transmissão, atrapalha o código, impede que o sentido seja feito. (…) ocorre quando a linguagem é rompida, é um estado de afasia no qual nossa própria constituição corre perigo.”. Se em algum nível o ruído também pode ser compreendido em termos subversivos, a figura do whistleblower é potencialmente ruidosa quando expõe e desestabiliza um sistema perverso de vigilância e controle. Em Hacked Circuit (2014), filme dedicado a Edward Snowden e ao montador e sonoplasta Walter Murch, a realizadora Deborah Stratman explora a natureza dissonante do ruído para trazer à tona, num plano sequência de quase 14 minutos, procedimentos ocultos da sonorização cinematográfica ao mesmo tempo em que percorre sorrateiramente o espectro paranoico que tomava de assalto o cidadão comum após as revelações de Snowden.  

Já nos primeiros segundos do curta-metragem, somos levados a uma espécie de estado de vigília. O tema musical de A Conversação (Francis Ford Coppola, 1974), um piano solitário e repetitivo composto por David Shire, parece controlar o ritmo com que o cinegrafista avança lentamente por uma rua escura e deserta com o steadicam. Aos poucos, a trilha dá lugar a um tipo de operação acusmática na qual sons de objetos pesados chacoalhados, estampidos e baques em superfícies de metal e madeira podem ser escutados, mas não localizados. Um zumbido persistente se mistura à campainha de um telefone e a uma voz masculina abafada enquanto a câmera prossegue em sua trajetória pela calçada até entrar em um edifício bem iluminado. Até esse ponto não existe nada que indique uma pista do ambiente, nenhum sinal da intenção por trás desse movimento perscrutador.   

Os ruídos cessam para dar lugar à sonorização diegética, que emerge diante da visão de um homem no interior do local servindo café de uma cafeteira. Ele sai de quadro e uma panorâmica lentamente vai revelar o que até agora se manteve incógnito na imagem, mas presente no desenho de som: num estúdio (que mais tarde descobriremos se tratar do Sound Satisfaction, Inc. em Burbank, Califórnia), equipado com uma mesa de sonoplastia, um operador (o mesmo homem que vimos na antessala) observa nos monitores à sua frente Gene Hackman como Harry Caul, o protagonista de A Conversação, ao passo em que um artista de foley do outro lado da mesa acompanha com atenção suas movimentações. 

A cena exibida em quatro telas de tamanhos diferentes retrata os momentos derradeiros do filme de Coppola. Nela, Harry Caul, um especialista que presta serviços privados de espionagem, colapsa ao contemplar a possibilidade de estar sendo submetido aos mesmos métodos de vigilância que empreende diariamente. O personagem de Hackman passa a buscar por dispositivos de escuta até destruir completamente seu apartamento, mergulhado na degradação das certezas que mantinha sobre sua privacidade. Lançado ainda no calor do escândalo de Watergate, e com Walter Murch responsável pela edição de som, A Conversação é uma obra que se apoia de forma substancial nos seus aspectos sonoros para estabelecer um clima delirante de vulnerabilidade e desconfiança. O que Stratman faz em Hacked Circuit é deslocar desse contexto um ponto crítico e desmontá-lo como quem exibe o esqueleto metálico de um mecanismo. O circuito é exposto, desvendado. 

Numa coreografia quase orgânica e ao mesmo tempo cautelosa, a câmera se movimenta pelo estúdio testemunhando as técnicas empregadas pelo artista de foley, que troca instruções com o operador da mesa enquanto reencena, fazendo uso de diferentes objetos – um gesto que  revela ainda outro aspecto do som, para além da comprovação: a dissimulação –, todo o episódio final de aniquilamento. O steadicam atravessa o ambiente e sai pela porta de trás num movimento de recuo, os sons são projetados para fora e o cinegrafista volta para a rua escura. O tema de Shire reaparece em meio a uma profusão de ruídos cada vez mais altos, reconhecemos a calçada, a esquina, reavistamos a entrada do edifício. Nesse movimento circular, o circuito se fecha e um pacto é selado. Cabe a nós como detentores do segredo desconfiar do que vemos e ouvimos a partir de então. Encerrar o filme “com pedidos de desculpas, gratidão e admiração” a Snowden e Murch é reafirmar a necessidade de atenção aos sistemas que se desenvolvem longe dos olhos, sejam eles de dedicação artística às paisagens sonoras, sejam eles de repressão. 

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A voz, essa sobrevivente

Por Rubens Fabricio Anzolin

Começo pelo princípio: o verbo. Capitu e o Capítulo (2021), assim como boa parte dos filmes recentes de Júlio Bressane, é uma obra falada. Ou melhor dizendo: uma obra declamada. Uma obra em que qualquer respingo de verdade irá se revelar senão através da encenação, elemento inerente a qualquer ruído sonoro que a escrita antropofágica de Bressane privilegie. Em Capitu e o Capítulo, ouvimos o barulho do mar, que sobrevoa soberano as paredes de uma casa depauperada. Há também um piano afiado, no interstício das cenas picotadas dos outros filmes do cineasta. Por fim, temos ainda o violino, tocado com esplendor por um músico fleumático, em riste, enquanto os pensamentos de Bentinho (Vladimir Brichta) encontram-se cada vez mais e mais em direção ao delírio. Nenhum destes ruídos, no entanto, é capaz de dar conta da realidade, são todos sons de um mesmo fingimento, de uma mesma peça de arte amorfa que é Capitu e o Capítulo. Aliás, o grande trunfo do cinema de Bressane talvez repouse justamente nesse distanciamento moral com o mundo, muito político, por sinal, em que o cinema de tão irreal e alastrado torna-se cada vez mais verdadeiro. À parte o desvio, voltemos à Capitu, e principalmente ao  que interessa: a voz de Capitu. É somente na voz, aquela mesma que sai da boca afiada de Mariana Ximenes e do clamor exotérico de Enrique Diaz (Casmurro) em que podemos confiar. Em um filme como este, cerceado por estímulos tão deformados, a voz é a única verdade da mentira de Bressane.

Existe uma cena, logo no início do filme, em que dois homens são vistos de cima, conversando, apenas através de seus chapéus. Neste ínterim, nada se escuta, e tudo o que nos é proposto pela imagem é exatamente isto: a suposição. Algo muito parecido se dá logo a seguir, quando Capitu circula com um giz na parede a sombra do rosto do marido. Isto é: para Capitu, o que importa é menos a imagem real de Bentinho, mas sobretudo a imagem projetada pela luz que atinge o marido. No universo de Bressane, a sombra sempre foi um portal para o enlevo, o desatino, já que ela, mais que tudo, é um atributo da escuridão, local onde tudo pode se formar à face do olho, a partir da incerteza da luz. Pensemos no monólogo de fundo vazio de Sedução da Carne (2019), interpretado por Mariana Lima, ou mesmo no Casmurro/Machado de Enrique Diaz, rarefeito às fantasmagorias de uma literatura brasileira fadada ao apodrecimento precoce (como Junqueira Freire ou Castro Alves). Personagens regados ao invisível do preto, à liberdade das masmorras, e que são por isso formas não-absolutas, um tanto quanto indecifráveis. Se em Capitu e o Capítulo Mariana Ximenes contorna o perfil das sombras de Bentinho, idealizando um objeto em falso, é justamente porque a sombra não é Bentinho, mas sim sua projeção, sua deformidade. 

Tal projeção, aliás, concebe-se finalmente neste contraste de uma imagem sem voz: Vladimir Brichta pode elucidar a insanidade que acomete Bentinho: sua voz sobrevive à deformação da pele, aos olhos arregalados, à suposição da traição que o ator encarna. Já a sua sombra (aquela que Capitu projeta) permanece como sendo silente – eis uma voz em falso, uma miragem. A sombra de Bentinho é muda, inane, resultado exclusivo do que se projeta a partir do seu rosto. Sua sombra não tem voz, coisa que permite ao desenho sonoro de Capitu e o Capítulo contornar o imaginário de seus personagens na mesma medida em que Júlio Bressane cria costuras de sonoplastia nos entre-lugares: as cenas de seus filmes anteriores, a praia carioca, as orquestras que permeiam muito mais o imaginário do filme do que o filme em si. A partir daí, assimilar que Capitu prefere enxergar não a Bentinho, mas à sua sombra, é essencial: pois gradativamente o personagem vai aderindo à perturbação de sua própria imagem, de sua altivez sonora – coisa que a cena do corvo, mais ao final do filme, dá conta de comprovar, quando o delírio enfim toma desdobramentos reais, num esgoelar-se a si mesmo violento que os olhos não podem ver – apenas supõem, com os ruídos do animal fazendo as vezes da garganta do personagem. Quando se perde a imagem da mentira, nem mesmo o campo sonoro resiste à tentação de também querer-se um enganador.

Há muito tempo, inclusive, que me parece que o cinema de Júlio Bressane passa por essas paredes da suposição, jogos teatrais enigmáticos e espaciais que revelam sobretudo aquilo que transborda a mente de quem vê. Um local em que apenas a voz é imune ao delírio, pois nela reside a certeza da fala. Coisa parecida já tinha sido fabricada nos teatros de guerra de Cleópatra (2008) e Beduíno (2016), à base de monólogos, e que retorna de modo fulminante em um filme mais silencioso como Garoto (2015), quando as sombras das pedras e a melodia da natureza dão o tamanho da tensão do mundo.

Diante de tais formulações frequentes no universo do cineasta, o imprescindível está no fato de que a camada sonora invade o mundo na ausência da imagem, na presença da escuridão. A partir do momento em que nada se vê – ou que aquilo que se vê também se perde, se indiferencia – a melodia passa a fazer parte da bagunça, restaurando a desordem natural do mundo. Enfim, soa-me ser este o resultado final do procedimento bressaniano: se o fundo é o vazio, se as imagens chocam-se constantemente, a sonoplastia funciona para adulterar ainda mais esta bagunça, forjando à fórceps um imaginário caótico. No entre-meio destes jogos de delírio, dessas brigas de casais e das reconciliações inesperadas está a voz, esta sobrevivente. Por isso mesmo é curioso que um filme como Beduíno (2016), por exemplo, seja basicamente uma grande DR: pois tudo que se imagina e repele no outro está no campo da indefinição, da deformação e do ruído, enquanto tudo aquilo que é capaz de conciliar os dois amantes pertence apenas ao coro da declamação, ao que nasce com o ator, ou seja, à voz.

É nesse sentido que Capitu e o Capítulo dá continuidade a um ciclo de cinema que cada vez mais se interessa por uma arte da mancha, uma arte do ruído. Investigar no plano as deformações da imagem, do rosto, dos corpos. Afinal, se Dom Casmurro sempre foi sobre o distúrbio emocional que é o ciúme – sobretudo acerca daquilo que as imagens e os sons do ciúme produzem no inconsciente, de maneira quase elementar -, Capitu… é um pouco sobre esse distúrbio que está na imagem, no rumor, nos espelhos distorcidos, na pintura de olhos (que remetem tanto à mãe de Bentinho quanto a uma miragem de Capitu) que vigia e rege tudo ao redor. Uma mesma sensação que, inclusive, encontra-se no pseudo-narrador de Enrique Diaz (que interpreta Casmurro e assina como Machado), numa espécie de piscadela de olho de Bressane em fazer um dois de um, como se fosse ele todo, enfim, uma coisa só. E como se o torpor que emerge de Vladimir Brichta fosse exatamente fruto daqueles papéis destroçados de Diaz/Casmurro/Machado, resultado de uma noite incólume, banhado nas incertezas da escuridão de uma poesia brasileira já ferida e derrotada, encolhida em um sono de morte.

Em síntese, Capitu e o Capítulo é antes de mais nada um filme sugestivo, lacunar, de portas abertas, mas que mais e mais se anula e imbrica na mesma medida em que existe. Um pouco como o narrador de Dom Casmurro, mais sugestivo que acertivo, mais especulativo que taciturno, que quanto mais projeta mais se perde na própria miragem, transformando culpa e desejo em coisa única, indistinta, fundamental. Mecanismo deveras similar, vale lembrar, à relação dupla que estabelecem Sancha (Djin Sganzerla) e Capitu, seja pela fisionomia ou pelos cabelos louros que facilmente se confundem aos olhos de Bentinho. No cerzir dos panos, depois de toda a deformidade, depois de todas as lacunas lacunas, depois da imagem perder os sentidos, os contornos, depois de virar pintura, transe, sombra, retornaremos à voz, à declamação, à poesia maldita de Álvares de Azevedo que Diaz tão lindamente refaz. Pois o que unicamente permanecerá no cinema de Bressane será sempre a voz, ilesa aos enganos, aos desvios sorrateiros da imagem, às flores murchas que tomam conta do cenário, ao espelho deformador. 

Quando enfim Sancha colocar um véu sobre a câmera, como quem borra aquilo que se vê de uma briga de casal, como quem produz a mentira, ficaremos não com a sombra de Capitu, não com seu perfil errático, desmedido, mas sim com a sua voz, inane à mentira, certeira nas palavras, limpa e clara como no cinema dos grandes cineastas, que fazem da poesia sobretudo aquilo que se escuta como resultado do corpo, como se o cinema fosse um livro que pudesse ser visto. Ficaremos com Capitu, mas na certeza de que toda ela é uma aberração, um monstro, um desvario, um objeto indefinido ao mesmo tempo que é tudo. 

E depois não restará mais nada. Nem mesmo os créditos. Entrará um samba agudo, uma câmera na mão, e Júlio Bressane derrubará ao chão toda a nossa fantasia, todo teatro de fantoches. Já que, afinal, o cinema é apenas uma mentira. Das boas, é verdade. Mas ainda assim uma bela de uma mentira.

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A conquista do barulho

Por João Pedro Faro

Como as cartelas de texto no cinema silencioso, a trilha de som em À lombre de la canaille bleue (1985) existe paralelamente às narrativas estritamente visuais. Da mesma forma, quando lhe interessa, irrompe a desconjunção em que se insere para colar com as imagens. Diálogos ora são ignorados por ela e preenchidos pela música incessante, ora acabam por serem dublados (estando sempre descolados dos lábios dos personagens). São falas que se explicitam narrativamente, mas permanecem em um outro tempo, em uma outra linha de construção (onde o som direto não existe). Isso não significa que som e imagem estejam em guerra, está mais para um convulsivo desencontro onde tanto o que se vê quanto o que se ouve percorre uma trilha paralela de imprevisibilidades que acabam por formar, no processo do tempo de tela, um filme sísmico e barulhento.

Pierre Clementi, realizador, ator, cinegrafista, saxofonista e incendiário, estabelece sua câmera Beaulieu como que em uma autoritária livre-associação de registros por Paris (aqui rebatizada de Necrocity), o que quer dizer que tudo pode ser filmado ao mesmo tempo em que se fixa sobre personagens teatrais e tramas futurísticas mirabolantes com a precisão de um furor narrativo. Não à toa, o personagem que interpreta em cena é o próprio canalha a quem o título se refere, uma espécie de autoridade máxima que trabalha para manter a cidade de Necrocity a mais caótica possível. Nessa trama, ininteligível em termos típicos, mas concentrada e linear para padrões vanguardistas, um grupo de personagens destrutivos (que vão de líderes de organizações criminosas até viciados proféticos) transita e persegue-se por entre espaços urbanos altamente ficcionalizados. São como as figuras que Lang aprisiona em Spione (1928), revestidas por couro e habituadas à correria, mas na estetização junkie de uma sociedade não mais estruturada pelos poderes, mas pelos desejos. 

O que os persegue é essa trilha de som incessante, pertinentemente ruidosa, que combina improvisações musicais pós-punk com a linha de narração declamada por Clementi, e alguns restos de diálogos dublados fora do tempo. Essa amálgama sonora derrete as imagens ao longo da projeção, desafia constantemente qualquer concepção diegética para evidenciar processos alternativos de realização decididos a não se conformarem, a irem por caminhos difusos que rumam para as combinações mais violentas. São instrumentos metálicos que se associam a guitarras em reverberação e sons indecifráveis, sobrepostos pelo ritmo das palavras de Clementi. 

As palavras, de um texto críptico que oferece grande parte do extracampo à encenação ficcionalizada, apontam para diversos signos policialescos e futurísticos que expandem o que discorre pela estrutura entorpecente do filme, sem nunca interromper o fluxo do indecifrável. Ou seja, a pronúncia de frases que determinam personagens por títulos – Seringue para uma viciada em heroína, ou Inspetor Bastão para um dos algozes – os posiciona nesse cosmo teatral de definições popularescas, ao mesmo tempo em que os mantém em uma abordagem de indefinições e incompreensões: um furor lírico fortificado por palavras declamadas em voz firme e imagens que as oferecem mutações caracterizadas. Enquanto narra as confusas ocorrências de um mundo inventado, a voz de Clementi é soturna e controlada, dedicando a cada frase o tempo de um verso transmutado para uma tirinha dominical aventuresca.

O que ocorre, portanto, é uma construção sonora decididamente narrativa, que se comporta esteticamente pela fruição de suas raízes ulteriores à imagem. Ao passo em que lhe permite remembrar os registros através de uma narração que lhes dê escopo, também o inconforma com caminhos para além do que se vê, ou então, que define as imagens mais do que elas próprias, por conferir todo o sentimento à encenação. Não por acaso, a rítmica musical do longa quase nunca se encaixa com a duração dos planos, elas não convergem temporalmente, pois o tempo da música está interessado em aglutinar-se com o ritmo das texturas e dos ruídos imagéticos que perpassam as imagens. Especialmente nas sequências internas e, mais ainda, nas internas dos apartamentos arruinados dos junkies distópicos, as texturas sonoras e imagéticas encontram um compasso raro nas andanças da obra. Nos caminhos noturnos pela cidade, é tarefa das luzes de bares e faróis aglutinar-se à melodia dos metais, gerando essa sensorialização espacial e ambiental que é, acima de tudo, narrativa.

A máquina de Pinball, uma das imagens recorrentes de À l’ombre de la canaille bleue, acaba por ser um signo para certa elucidação da experiência: um composto vulgar de pequenas caracterizações que funcionam para que um centro de interesse (a bola, ou no caso, a câmera) passeie por luzes cintilantes e barulhos agudos (por vezes, até enfadonhos) por esse gesto quase lúdico de momento. Os cantos atingidos por esse meio de captação colecionam ideias de ficção científica, política, erotismo e aventura pelo gosto da acumulação, onde está toda essa carga de berros, palavras, ruídos e deformações sonoras construídos pelas deixas dos registros imagéticos que encenam (e também sobrepõe) personagens, cenários e situações sem começo ou fim, apenas acumuladas nessa perseguição por reverberações fílmicas que se amontoam para inventar um mundo próprio onde tudo que restou são as sensações. 

Se o cinema sonoro inventou o silêncio, dá para dizer que o produto cinematográfico de Clementi é uma conquista de invenção do barulho, onde ele é o definidor estético e dramatúrgico. Quanto mais alto, maior é a euforia, quanto mais distante, maior a devassidão. O barulho, aqui, é todo um rumor de combinações entre o concreto e o nebuloso, tendendo sempre à incompreensão, em que os sentidos do ouvinte são avidamente sequestrados por suas modulações, e onde as tramas das imagens encontram não apenas o sentimento (que não está delimitado pelas performances dos atores), mas também as dimensões dos cenários, o eco das cores e o alcance das luzes.

Termina sendo lógico que a última palavra que Clementi declama, antes de ler os créditos da produção, seja justamente “ficção”. Enquanto a única trilha, que reina por 80 minutos como composição fílmica sem interrupções, monta e remonta as encenações presentes na imagem, o que há de constante, em um filme onde a instabilidade de seus processos é o pilar da estrutura, é a capacidade de fabulação do disforme, do arranhado e do ensurdecedor. 

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Às mulheres que seguem, ignorando o falatório

Por Geo Abreu

Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.

De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.

Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.

A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?

O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.

Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.

O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.

Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados. 

A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?

É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?

Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.

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A Poesia Sonora de Blue

Por Chico Torres

Blue (1993), de Derek Jarman, é uma obra composta de fragmentos sonoros-textuais que se conflitam e se complementam, em uma interpenetrabilidade constante. A força dessa contradição produz a unidade estilística do filme e o preenche de humanidade. Todos os riscos de Blue, suas mudanças bruscas, seus saltos narrativos, suas múltiplas atmosferas ganham um relevo homogêneo devido a essa energia que unifica forças ambíguas: temos, então, vida e morte, céu e inferno, sublime e banal amalgamados através de uma unidade poética que oscila como o badalo de um sino que produz dois sons que se separam e se unificam ao mesmo tempo.  

A narração, os diversos efeitos sonoros e os temas musicais funcionam não apenas como criação não visual de um tempo-espaço que precisa ser imaginado. Eles também cumprem essa função, mas não determinam o tom do filme. Blue não pode ser visto como uma obra cinematográfica que “perdeu” sua imagem e que agora tem na narração, nos efeitos sonoros e na música os elementos que devem sustentá-la, deixando que as imagens sejam produzidas individualmente, em nossa subjetividade. Pelo contrário, a obra cria uma série de fragmentos sonoros-textuais que podem ou não determinar um tempo-espaço, mas que também são poesia, discurso, manifesto, ensaio etc. Tal multiplicidade narrativa e sonora que se apresenta diante da tela azul, portanto, não apenas sugere imagens, mas, sobretudo, sensações, muitas delas de caráter abstrato ou contemplativo.  

O filme possui uma estrutura narrativa cubista. A princípio, a narração, sempre estabelecida como monólogo interior, se estrutura em diferentes ambientações: uma voz que evoca, através da poesia, a beleza sublime do azul; um homem em situação de guerra que vive suas mazelas; e o relato do próprio Jarman e sua experiência com o HIV e a perda da visão. Essas vozes, à medida que se repetem, se misturam e surgem como que contaminadas por todas as ambiências que fazem parte da obra. Essa multiplicidade de vozes, afinal, representa a interioridade do próprio Jarman, seja em forma de poesia, de metáfora ou da mais crua e terrível realidade. Aqui ele se apresenta, com a mesma intensidade, como poeta, pensador e ser humano consciente de sua finitude, expondo sem melindres a aspereza que essa consciência pode provocar. 

Toda a sonoridade do filme acompanha sua narrativa, sempre através do equilíbrio entre suas tensões. Se temos a evocação poética acompanhada por uma música barroca, uma elegia ao azul, temos, por outro lado, elementos sinistros que se estabelecem não só através da música, mas também de ruídos e ambientações sonoras. A diversidade musical e sonora é imensa: temas musicais que se sustentam por si mesmos ou são um paralelo daquilo que é narrado; paisagens sonoras que cumprem funções narrativas, poéticas e sensoriais; elementos sonoros que presentificam o personagem que narra (os sons do bar do homem que vive a guerra; os sons dos aparelhos médicos, das ondas do mar etc). Ainda que esses elementos possam surgir separadamente, há um esforço constante de mesclá-los, de modo que os elementos sonoros se complexificam junto à multiplicidade narrativa. À medida que o filme avança, aprofunda-se a fusão dessas vozes e desses sons, havendo a unificação entre o celeste e o demoníaco. Desenha-se, assim, a alma do criador, em conflito constante, nos proporcionando sensações ambíguas, sendo possível, por exemplo, sentir calma e angústia ao mesmo tempo. 

Blue, enquanto um filme-ensaio, extrapola a estrutura autobiográfica e memorialista baseada no formato diário/monólogo interior. É a poesia que contamina todo o filme, não apenas em sua presença explícita em seu tom propositadamente exagerado, mas também em suas incursões disruptivas, em sua maneira não convencional de fundir sensações e ambientações. Ainda que pese toda crueldade do mundo real, com a presença da morte e da maldade em suas múltiplas formas, Blue é também sobre a beleza, sobre uma beleza profunda e ao mesmo tempo superficial, que corre sobre os ouvidos e que é simples como o azul que insiste sobre a tela. Uma obra múltipla, polifônica, que entende a contradição como a estrutura da vida e da subjetividade humana. É assim que Jarman compôs o seu testamento, nos entregando a força de sua angústia, de seus pensamentos e, sobretudo, de sua poesia.

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Rio, 360 Graus (Rio Babilônia, Neville D’Almeida, 1982)

Por Anita Gonçalves

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Em “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2015), longa mais recente de Neville D’Almeida, o desmantelamento do Rio de Janeiro “Cidade Maravilhosa” se faz por via do tempo fechado, tapando qualquer brecha de luz solar, qualquer eventual perspectiva de esperança naquele espaço trágico e arruinado. Em contraste, “Rio Babilônia” (1982), realizado mais de quatro décadas antes, também partilha da dissolução do estatuto de cidade-paisagem idílica e harmoniosa, mas, dessa vez, através do Sol, irradiante: ao mesmo tempo que queima e incendeia o asfalto, incide sobre e ilumina tudo aquilo que, em ebulição, se vê fora das limitações de uma representação estática, despovoada e sóbria de “cartão-postal”.

Como ponto de partida em “Rio Babilônia”, existe tal imagem do “Rio de Janeiro cartão-postal”, enquadrado perfeitamente através da janela do edifício da Companhia Nacional de Relações Públicas: é o Rio de exportação, disciplinado e devoto aos gringos, fonte geradora dos lucros e luxos dos que ganham com a venda de tal representação de cidade. Mas essa paisagem postal, imaculada e despovoada, será justamente convulsionada, corrompida e superada, havendo, em contrapartida – e que passa a ser central, revelado pela luz do Sol de 40 graus – tudo aquilo que essa imagem pura de “Cidade Maravilhosa” necessariamente esconde. Em um momento de diálogo entre Marciano (Joel Barcellos) e o excelentíssimo Doutor Liberato (Jardel Filho), quando este, aparentemente gozador de um estatuto público de prestígio e imponência, em uma espécie de elogio, diz que a cidade caminha ao progresso, querendo exaltar a paisagem polida e virginal com a qual se depara quando vai ao clube e sobrevoa o mar e os prédios de helicóptero, Marciano rebate: “construíram aquele prédio e esconderam a favela que tem ali atrás”.

Opondo-se a esse ato de “esconder”, “Rio Babilônia” é um filme que repudia o privado e celebra o público, operando primordialmente por meio de uma qualidade, baseada na luz e frontalidade, que impede a existência do privado e obstrui qualquer ensejo de sigilo. O Rio de Janeiro de contrastes e contradições – complexo e diversificado, e sobretudo desigual, ocultado pelos prédios, indústrias, empresas e (especialmente) cartões-postais – é fulcral, sendo aquilo que se desejaria esconder e privar, aqui, o coração das imagens.

Por meio das lentes confrontadoras e nunca mansas de Neville, há uma exposição da desigualdade, da violência e de um povo que passa fome, em meio ao contexto praticamente explícito de crise inflacionária e carestia (“a inflação cai, mas a comida não”, manchete discreta de um jornal). Assim, a cena onde Marciano mostra o “real Rio” à estrela norte-americana Linda Lamar, desobedecendo às próprias limitações territoriais da cidade, capital do estado propriamente dita, e levando-a para a Baixada Fluminense – mais especificamente o momento do saque coletivo à caminhonete que transportava feijão –, é certamente violenta e brutal, praticamente uma cena de batalha que expressa a tamanha fome da multidão; mas também, em um estremecido clamor de “feijão para o povo”, dignifica aquele ato e expressa a celebração do público, fazendo da cena envolta por uma atmosfera eufórica de esperança na potência energética, rebelde e insubordinada de um povo (ainda) oprimido.

Já na cena do Morro da Babilônia, o morro é uma espécie de templo sagrado, genuinamente belo e instigante na orbe fílmica; no entanto, desprezado e violentado por aqueles que não conhecem verdadeiramente sua força divina. É lugar de sincretismo onde Jesus Cristo e Oxalá convivem em harmonia, mas, ainda assim, onde a violência invade e irrompe nas imagens de serenidade. Dona Zica, aqui praticamente feita uma santa, reza a Ave Maria, enquanto o canto que escuta no rádio invade as imagens de violência; e, apesar de sua força sagrada – que no fugaz tempo que perdura nas imagens, já as toma -, tem um policial apontando o revólver em sua cabeça. Mesmo que seja o morro o ponto mais alto, onde o Sol menos incinera, onde a brisa bate mais leve e onde o céu está mais próximo, os policiais atiram e matam a sangue frio; enquanto milionários, criminosos impunes, fazem a festa – até que o asfalto esquenta demais, derretendo as extravagantes armaduras da burguesia.

O filme expõe as paixões, prazeres e fraquezas, tidos como motivo de constrangimento, de figuras de um “corpo dominante”, despindo-as, tornando-as dominadas, vulneráveis e enfraquecidas, submetendo suas representações por meio da qualidade fílmica de um cinema que enfrenta e subverte a realidade. No ato final do assalto que interrompe a performatividade da festa privada da elite, filma-se, com irreverência, e aqui sim, capturando, como reféns, seus convidados da cabeça aos pés, exibindo aquelas figuras de forma tão crua, fora de seus pedestais, sem terem como recorrer aos seus estatutos, pois estão atadas e amedrontadas. Em “Rio Babilônia”, no tocante a uma certa condição frontal e humana das imagens, o que interessa é o que está debaixo dos vestidos das madames e dentro das calças dos doutores.

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O prazer generalizado, enrustido nos discursos e publicizado e liberto nas imagens, paira sobre todo e cada plano, frustrando esforços para delegá-los à esfera privada, constrangida e retraída em si mesma, inexistente e ofuscada pelo clarão solar em “Rio Babilônia”. A sacanagem de exportação, higiênica e restrita, é desacatada, e a sacanagem manifestada é a do prazer público, sujo e belo, sem limites e sem cortes. Aqui, empresários, industriais, diplomatas, parlamentares, carregando ridiculamente seus insustentáveis títulos e esbanjando decadentemente seus luxos, são desnudados, desvirginados e destituídos da postura e formalidade que asseguram e legitimam sua imponência; e têm suas taras expostas, por meio de orgias com prostitutas de luxo em apartamentos trancados a sete chaves – mas que o Sol não esconde e a câmera não perde por esperar em expor.  E o povo extasiado também se deleita, livremente, sem que forças conservadoras de “Rio Babilônia”, fracas e impotentes, sejam capazes de acobertar, conter e domesticar: o sexo público e popular e sua beleza e força indomáveis penetram nas imagens, as quais proporcionam e impulsionam que extrapolem qualquer limitação. Contrapondo-se ao despovoado e sóbrio cartão-postal, o filme tem como força motriz as pessoas e suas paixões pulsantes, movidas a calor e reveladas pela luz que o Sol emana.

Com exceção das imagens que fazem a burguesia nua de refém, vulnerabilizada e ridicularizada, o enquadramento menos aprisiona e mais dá vazão àquilo que é expresso – e menos capturado – nas imagens: as pessoas em transe e suas manifestações flamejantes de amor, prazer, paixão. Sem seguir normas que precedem e determinam com exatidão o que está no quadro e subvertendo qualquer ordem possivelmente pré-estabelecida, a câmera se adapta e submete-se ao movimento que filma, anda junto e conflui com a liberdade daquilo que está manifestado nas imagens.

Nesse sentido, o filme renuncia muitas vezes da narrativa perfilada a um só eixo para dar lugar à expressão genuína do êxtase e da embriaguez; do batuque, do samba, da atração na cena do lançamento do perfume, por exemplo, onde mesmo durante o discurso de Paulo Villaça, o empresário bronco, Pat Cleveland, a Linda Lamar, requebra e mal serve ao que foi contratada, acena e se encanta, olhando e sorrindo para o que está fora do quadro; e nada sai como foi esperado e encomendado. O bronco grita: “eu tô pagando!”, enquanto a festa explode – para além da dimensão imagética do quadro –, totalmente fora de seu controle.

Há momentos, relativos a essa falta de controle, cujo caráter se aproxima do documental, onde meninos passam na frente da câmera e tapam a paisagem postal e turística, até então caucasiana, da praia, ou até mesmo cenas nas quais existe uma interação disruptiva das figuras com a câmera. São momentos consonantes a essa permeabilidade do enquadramento que permitem que as figuras e seus corpos em quadro se expressem livremente, quase como se não estivessem, como se, apaixonadas, impetuosas e em ebulição, transcendessem ou enfim sublimassem. Aqui, o rigor se faz no deixar fluir aquilo que está em quadro, criando uma situação fílmica que se pauta pela liberdade e pelo inesperado, sempre esquivando-se de qualquer tendência de um quadro-postal estático, ordenado e controlado.

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Somado a esse caráter libertino do quadro, ao longo do filme, ocorrem mudanças bruscas e repentinas de atmosfera fílmica, sobretudo de gênero e de encenação, pois cada cena, e até mesmo cada plano, possui um certo grau de autonomia e liberdade expressiva em relação ao todo, assumindo a imprevisibilidade, sem se ater a um único eixo narrativo que pode parecer ser proposto de início. Esse todo, o filme em si, é multifacetado e livre, desprendido de qualquer coisa que beira restringi-lo a um único fio condutor disciplinado e bem-comportado. Entretanto, não se opera exatamente por meio de um abandono da narrativa, mas por uma narrativa que não determina os trilhos, que não necessariamente dita o que está por vir, constituída por cenas-expressões transitórias desse Rio de Janeiro fílmico que aqui se constrói: esse lugar babélico, complexo e exorbitante, onde as pessoas que vivem ou que passam por ele, são o que verdadeiramente o constituem.

Ao longo dos sete dias sagrados, o boêmio Marciano, em seu itinerário insubordinado e caótico, cruza com inúmeras figuras – como patinadoras, eruditos, traficantes, jornalistas, capangas, artistas, mães e filhos, prostitutas, empresários, estrelas, cafetinas, deputados, estrangeiros, etc – que, mesmo quando passageiras, são extremamente centrais e expressivas em cada cena onde surgem e em cada plano em que aparecem, vulnerabilizadas e/ou, sobretudo, libertadas.

A beleza existe, revelada pela luz e pelo calor que arde na cidade do caos, lado a lado com a violência e brutalidade incendiária que essa luz inerentemente também revela. A beleza em “Rio Babilônia” não é comportada, apelativa e precisa – como a paisagem despovoada e imutável do cartão-postal. É a beleza humana de um povo apaixonado e suado, frágil e forte, exposto frontalmente, iluminado pelos raios solares e pelo enquadramento que menos limita e mais liberta. É uma beleza subversiva e insubmissa às tentativas de controle, as quais, na forma de discursos, acabam por se tornarem superadas pela linguagem confrontadora do filme, que faz desses meros discursos, insuficientes e falso moralistas, medíocres e pequenos demais frente a expressividade e exorbitância das imagens incineradas e iluminadas, libertinas e sagradas.

Como uma promessa final, por via do poema de Neruda (na voz de Christiane Torloni) e do Sol que alvorece e preenche a última imagem do filme, “Rio Babilônia” tem fé. Fé na potência humana, inquieta e desobediente do povo, e, apesar da descrença no chapado cartão-postal, esperança – que no filme se realiza – de que um dia o Cristo haverá de abraçar a todos, de que um dia, ó Rio de Janeiro, “para todos os teus filhos, não só para alguns, dês o teu sorriso, espuma de náiade morena”. Além disso, crê em Deus; mas um Deus que não está acima de tudo e todos, ou apenas ao lado dos ditos pudicos (pois não há quem seja), mas dentre a gente mundana, humana, livre e extasiada, e emergido nas imagens ousadas e devassas, que – assim como os antigos babilônios, próximos aos deuses com seus monumentais e altivos templos – se aproximam dos céus, através do Cristo Redentor eminente, dos sagrados e frescos morros e da própria sublimação das paixões por meio da libertinagem e depravação da ordem. Nas palavras de Jairo Ferreira: “Mestre do cinemão, gênio no experimental, Neville agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta”1.

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1 Jairo Ferreira em “Neville D’Almeida, retaguarda da vanguarda”, no livro “Cinema de Invenção”, 1986.

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A Dama do Lotação (Neville D’Almeida, 1978)

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Por Gabriel Papaléo

A leitura de Nelson Rodrigues sempre prezou pelo escândalo, e é comum – ainda que equivocada a meu ver – a noção de que seus arquétipos e suas teses são datadas, que não existe espaço para elas no cenário contemporâneo brasileiro atual, mas a forma que retrata as neuroses de uma burguesia carioca, e o como expõe as vísceras dos desejos e perversões reprimidos reflete um segmento da sociedade que não parece ter mudado, e sim se higienizado, sob seus obscuros desejos de poder. Num canal tão disposto a abraçar a aspereza e a putaria de Nelson como Neville D’Almeida, a dramaturgia aflora bem diante da encenação abertamente declamada. Em A Dama do Lotação, Neville sequestra Nelson para imaginar as maneiras que Sônia Braga dribla o eixo familiar de aparências onde os ideais de masculinidade são passados como legado de defesa, de uma atitude sexista sobretudo de medo.

E o que move esse legado é a fanfarra da hipocrisia, propulsionada especialmente pelos chavões do que as instituições esperam dos choques entre homens e mulheres. A amizade masculina falida, alvo no qual o diretor se diverte ironizando, é vista sob a mesma desconfiança até que a psicanálise, na figura de Claudio Marzo forçando a ideia de fidelidade e amor pelo marido em Solange mesmo que ela grite por violência, clame pelo expurgo. Segundo o diretor, nenhuma instituição segura essa fina camada que une os indivíduos sob suas capas de autoridade, e o desejo estimula as perversões sem categoriza-las como tais, sempre buscando esconde-las em algum subterfúgio moral, intelectual, ou financeiro.

Na sequência na qual Solange, Carlinhos e seus amigos vão na boite Barbarella da época, a tensão é por debaixo da mesa, escusa, no segredo, implorando por um desejo oculto. O perigo do flagrante permanece o motor das ações de Solange diante da recusa inicial do sexo, uma intuição em reação aos julgamentos de Carlinhos e seu pai. “A esposa deve ser frígida”, o pai afirma, porque sabe que sexo bom é aquele controlado pela instituição, seja ela qual seja (nesse caso, a família). A castidade imposta muito tem a ver com esse medo, essa tensão do desafio, de homens tão reféns do desejo feminino que tremem diante da possibilidade das mulheres perceberem seu poder sexual – uma variável impenetrável da fragilidade dos seus poderes autoproclamados. O que escapa de Carlinhos é o que motiva o desejo de Solange.

Não por acaso, Solange sempre reforça que os homens com quem transa são “piores” que seu marido, porque no limite esses sexos só existem para que tolere melhor a realidade do seu casamento. Existe um acordo de civilidade entre os homens que aqui interagem, seja Carlinhos com seu pai, seja Carlinhos com seu amigo, seja o motorista do ônibus com o cobrador, que prevê secretamente que as relações horizontais e confiáveis são apenas entre eles, como se o suposto mistério feminino fosse cruel o suficiente para não ser digno de confiança. A questão mais engraçada da sátira multifacetada que Neville propõe é que algo nunca discutido entre esses homens é que os seus desejos são a única forma de quebrar esse elo civilizado, de que secretamente esses homens entendem que relação alguma resiste ao desejo do pau; e assim Solange consegue dar pro pai do marido, pro melhor amigo do marido, e literalmente nada muda.

O que escapa à sátira, pontualmente, são as relações femininas que Neville filma. Como em Matou a Família e Foi ao Cinema, parece que existe uma atenção dramática especial, mesmo diante da crítica de classe, a relações que escapam dos homens que buscam o controle. A bela cena de tensão entre a mãe de Nuno Leal Maia e sua amiga (e amante) Matilde é um toque de mergulho no melodrama sem a ironia que atravessa todas as outras relações do filme. Nesse sentido Neville parece estar filmando Nelson Rodrigues até quando não está, mas diferente do carnaval cataclísmico de Rio Babilônia, aqui o diretor deixa seus comentários sociais diretos escorrerem por entre a dramaturgia, mais pontuado, ainda que não mais sutil. Essa atenção às neuroses da classe média perdida não furta o diretor de filmar o Rio de Janeiro contrastante, visto pelas janelas dos ônibus, na janela fechada do carro, na praia cheia que nunca acessamos – sempre sob o ponto de vista de Solange, sempre diante da progressão do seu arco dramático de pouca transformação e muita autopunição.

Evitar as perversões do outro na suposta civilidade da cidade culmina no desligamento de Solange dos planos familiares, do que se espera dela, e portanto tudo deve acabar numa praia vazia, da última foda com Sônia Braga e Paulo Villaça, felizes em estarem isolados, diante de uma utopia apenas deles depois de se conhecerem num ônibus, descartável como qualquer relação a qual Solange se submete em busca de sentir algo, de ser punida por seus atos. Seja chamada de segurança, seja de medo, seja de raiva de classe, o fio que liga o emocional dessa classe média retratada é o da vontade de sumir da cidade.

Esse mal-estar de classe é por todo momento refletido diretamente na forma que se lida com sexo, como se esse fosse um canal apropriado de intimidade para não se ter vergonha ou culpa de implorar por violência, por punição. Solange busca ser a mulher de todos principalmente porque quer sofrer alguma consequência que seja de seus atos; a questão é que no Rio de Janeiro, se você é de berço, se você é abastado, se existe privilégio de classe que seja, a possibilidade de que se arque com alguma responsabilidade é muito pequena. Cabe à dama explorar seu prazer implodindo as noções de masculinidade e família dos que a machucam sem sua autorização.

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É Tudo Verdade: Alvorada (Anna Muylaerte, Lô Politi)

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Alvorada, de Anna Muylaert, junto com O processo (Maria Augusta Ramos) e Democracia em Vertigem (Petra Costa), se agregam em uma trilogia que acompanha os acontecimentos relacionados ao Impeachment de Dilma Rousseff.  Se O processo e Democracia em Vertigem se atêm a uma visão ampla, traçando panoramas e detalhes dos acontecimentos que culminaram no fatídico ano de 2016, Alvorada completa a trilogia sendo a versão contemplativa daquele momento. O filme não se preocupa em destrinchar aquilo que já foi detalhado exaustivamente, mas se põe como representante do vazio e da melancolia, em uma versão mais intimista no que se refere à atmosfera dos últimos dias da presidente no poder.

Em certo ponto do filme, Dilma afirma que nunca perdeu o equilíbrio. Pelo contrário, precisa compreender o fato de que outras pessoas o perdem em situações-limite. Em certo sentido, Alvorada também parece se imbuir da personalidade serena de Dilma, seguindo com sobriedade os seus últimos momentos como presidente. Não apenas ao lado de Dilma, mas acompanhando a rotina do Palácio junto de diversos funcionários em suas atividades cotidianas, o documentário consegue, através de seu olhar mais contemplativo que narrativo, se sustentar em formas simbólicas interessantes.

Esse simbolismo se dá justamente por meio dos funcionários e de suas funções. Além da equipe de Dilma, vemos uma série de empregados do Palácio em suas atividades ordinárias: a guarda e suas cerimônias, o processo de limpeza da piscina, a cozinha etc. Se as atividades básicas que fazem o Palácio da Alvorada funcionar continuam as mesmas, uma série de mudanças sutis ocorrem durante esse processo de mudança. A troca das cadeiras vermelhas por azuis é apenas um dos exemplos desse simbolismo que se realiza nessa dinâmica em relação aos objetos.

Assim, essa trilogia feminina acaba sendo completada pelo documentário singular de Anna Muylaert, se realizando através de uma visão mais intimista e sóbria sobre o início de um dos processos mais traumáticos da história do país. De forma silenciosa e prática, o filme consegue ter algo como uma objetividade melancólica, ainda que em diversos momentos o seu tom pareça vago e impreciso. Um filme que não se preocupa em preencher lacunas, mas sim de ser um olhar mais pessoal e específico sobre os bastidores de uma tragédia pessoal e política.

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A pós-verdade no É Tudo Verdade

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Dois filmes exibidos no Festival É Tudo Verdade representam bem, e de maneira irônica em relação ao título do festival, o que se costumou chamar de pós-verdade. Esse termo, que vem ganhando a alcunha de conceito, surgiu para nomear a crise política que se instaurou no século XXI no que se refere ao modo como as redes sociais se tornaram meios para a disseminação em massa de notícias falsas. Desse gatilho inicial, se desenvolvem não apenas as famigeradas fakenews, mas uma série de teorias conspiratórias e brigas políticas em torno de discursos. Assim, a pós-verdade se instaura no campo da linguagem e do valor semiótico da imagem propagada na internet: não mais importa aquilo que é sustentado cientificamente, mas apenas o modo como certas informações são transmitidas (e por quem são transmitidas), privilegiando interesses particulares e ideologias misturadas à teorias da conspiração que ganham alcance global.

Em Mil Cortes (A Thousend Cuts) e Sob Total Controle (Totally Under Control), temos a presença dessa problemática em contextos diferentes. No primeiro, vemos o modo como o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, sustenta todo o seu governo numa guerra contra as drogas, realizando uma lógica de extermínio de pequenos traficantes e usuários, além de censura implícita à imprensa através do discurso de ódio por meio de bots que investem seus ataques sobretudo à Maria Ressa e à sua equipe de jornalismo da Reppler. Além desse recurso usado nas redes sociais para promover ataques sistemáticos, vemos como Duterte criminaliza a atividade jornalística usando o seu poder político, em um esquema que se concretiza com o julgamento de Ressa, acusada de injúria cibernética, além de outros processos que ainda se desenrolam. Um quadro asqueroso que une um tipo de espetacularização da política que maquia o desmoronamento da democracia das Felipinas e que tem como um dos seus sustentáculos os bots das redes sociais.

Já em Sob Total Controle temos um recorte do início da pandemia do novo Corona Vírus nos EUA. Ainda que tenha envelhecido rápido, o filme traça um panorama interessante do início da pandemia no mundo e a irresponsabilidade do governo norte-americano em relação a isso. No que diz respeito ao tema da à pós-verdade, o documentário revela a postura negacionista de Trump e o modo como o seu desprezo à ciência chega à população, fazendo provavelmente o primeiro processo de politização globalmente conhecido do vírus em questão. As consequências dessa politização nós já sabemos, pois essa realidade é quase que sistematicamente repetida aqui no Brasil. O excesso de desinformação por parte do governo gera um clima de desconfiança constante sobre aquilo que estava estabelecido e soluções duvidosas aparecem em forma de milagre: é o caso do uso da hidroxicloroquina como remédio preventivo contra a Covid-19. O discurso interesseiro e sem fundamento toma o lugar do fato e do dado científico, a narrativa se sobrepõe àquilo que deveria ser consenso em nome do bem público.

Assim, esses dois documentários, compondo a programação do É Tudo Verdade, são ótimos exemplos de mostrar como a verdade é escorregadia e frágil. Se ela depende da comunicação e da linguagem para se realizar, a história da humanidade mostra o quanto que quem detém certo poder dessa linguagem e tem como disseminar aquilo que deseja comunicar, se utiliza desse recurso para fins próprios, por mais retrógrados que sejam. Mostra também que com o desenvolvimento da internet esse processo se tornou ainda mais nefasto, já que agora a forma da informação ganhou um novo impulso e a verdade parece ter recebido o ultimato de sua falência.

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É Tudo Verdade: Dois Tempos

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Por Chico Torres

Dois tempos é um roadiemovie em que Yamandu Costa e Lúcio Yanel exploram as regiões fronteiriças entre Brasil e Argentina. Uma busca que procura remontar as origens de Yanel, o primeiro mestre de Yamandu no ofício do violão. Yanel se radicou no Brasil e teve como primeiro lar a casa de Yamandu quando esse ainda era menino. Diante disso, o filme funciona como uma espécie de retorno ao lar, um presente de discípulo para mestre através de uma viagem em um trailer.

O filme não se furta do silêncio e a naturalidade do convívio que se estabelece entre os dois personagens faz com que a presença da câmera seja incorporada à rotina de ambos sem dificuldades. Ficamos com a sensação de que eles estão ali da forma mais autêntica possível, sem que os momentos de silêncio ou de diálogos vagos prejudique o filme. Logo fica visível a sabedoria de Yanel, uma sabedoria popular e que tem na experiência a sua grande validade. Em nenhum momento a figura de Yamandu se sobrepõe a do mestre. Como todos sabem, Yamandu é um dos violonistas de maior destaque no mundo, mas no documentário o seu papel é quase o de coadjuvante e a sua postura é a de alguém que está ali para aprender e para viver a amizade.

O retorno de Yanel representa também o modo como as coisas mudam e ao mesmo tempo permanecem ao longo do tempo, fazendo com que ele se reconheça e se afaste do seu lugar de origem. Mais do que diálogos sobre música (esses praticamente não existem no filme), o que se tem de pano de fundo é um conteúdo espiritual e filosófico que trata sobre destino, morte e fé, mas tudo sob uma simplicidade cativante. A mística do interior Argentino é resgatada através dos encontros com populares, com a visita ao cemitério, à estação ferroviária na qual trabalhou o pai de yanel, tudo isso regado à música tradicional gaúcha presente no Brasil e na Argentina.

Um filme que contempla paisagens, que se debruça sobre uma cultura subterrânea, que coloca dois grandes violonistas no seio da cultura que os alimentou, enfim, um filme honesto que não procura biografar seus personagens, mas deixa que eles sigam como os andarilhos que são.

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É Tudo Verdade: Paulo César Pinheiro – Letra e Alma

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Por Chico Torres

O documentário sobre o Paulo César Pinheiro não traz entrevistados. Só há a presença do próprio poeta, no conforto de sua casa, contando a sua própria história que é complementada com imagens de arquivos. Vemos o panorama de uma biografia que se confunde com a própria “cultura brasileira”, talvez a única cultura que tenha no formato canção um dos seus pilares mais fundamentais de formação de identidade nacional. Junto com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro é sem dúvida, ao menos na categoria específica “letrista”, um dos maiores construtores dessa ideia de brasilidade.

Traçando de modo cronológico, como diz o próprio PCP, um percurso que consegue unir cinco gerações, começando com Pixinguinha e chegando aos jovens compositores do século XXI, o filme aborda satisfatoriamente a potência criativa do poeta, mas não promove conflitos ou investigações mais minuciosas sobre o seu processo de trabalho, por exemplo. Pelo contrário, segue na passividade de contar os sucessos de alguém que teve a chance de viver exclusivamente da música. Como muitos documentários biográficos, a impressão é que se fica na superfície para poder dar conta de uma biografia que parece já oferecer atrativos suficientes ao público.

O filme se mantém no passado, estreito à visão do poeta e de suas saudades, seus encantamentos e o seu orgulho reiterado de ser um dos detentores da moribunda cultura nacional. Não há um mínimo esforço provocativo, dialético, nenhuma centelha de chacoalhar a paz daquele deus impassível que observa tudo e que ainda é capaz de contemplar. O que temos, enfim, é um documentário dócil e muito pouco criativo. PCP sempre aparece em preto e branco, como se estivesse preso a um passado que é constantemente rememorado. Faz pensar o quanto que se perdeu dessa ideia de Brasil com “S” e não com “Z”, o quanto que está datada a ideia do poeta, do compositor, do cantautor, dando lugar aos fuzis e ao funk carioca. Mas, se o poeta está vivendo esse tempo, nada mais digno do que fazê-lo confrontar esse mundo através de suas ideias, de seus voos imaginativo. Mas não, o documentário se mantém em sua reverência para que o homem rememore e lamente. Um lamento justificável e louvável, mas que ganharia muito mais potência se viesse carregado de ideias para o presente, perturbando a paz e exigindo troco.

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É Tudo Verdade: Gorbachev – Céu

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Por Chico Torres

Há dois trunfos no documentário sobre Gorbachev. O primeiro é em relação à forma: o filme possui direção e montagem que conseguem criar uma boa dinâmica e poeticidade para a monotonia das entrevistas e do próprio ritmo de Gorbachev, um homem nonagenário e adoecido. O segundo é em relação ao conteúdo: o entrevistador, desabusadamente, interroga Gorbachev sem reservas, o colocando diversas vezes contra a parede para que ela seja direto em suas respostas. Mas, como diz o próprio entrevistador, Gorbachev é ardiloso e suas falas são quase sempre ambíguas. O filme é conduzido assim até o final, sem grandes revelações, causando a sensação de que o entrevistador teve seus planos frustrados.

Ainda que o foco do filme seja explicitamente arrancar considerações de Gorbachev sobre os diversos fatores envolvidos na dissolução da URSS, o que se tem é um extrato poético e divertido sobre a decadência de um homem contraditório e que se vê solitário no fim da vida. Seja falando de sua falecida esposa, recitando poemas ou cantando canções de modo fanfarrão, quase chegamos a esquecer que aquele homem foi uma das figuras mais importantes e controversas da segunda metade do século XX. Além da presença do que parece ser funcionários que se tornaram amigos, aquela solidão é completada, de modo sugestivo, com retratos na parede de sua esposa e a insistente figura de Putin no televisor.

Nesse sentido, o documentário que parecia se propor a tratar sobre o tema árido da política, acaba que transmitindo um senso poético que, de algum modo, se coaduna com a personalidade errática de Gorbachev. Não temos nenhuma resposta precisa e saímos do documentário sem conhecer quase nenhum detalhe das ideias e dos bastidores dos eventos nos quais o estadista russo esteve envolvido. Por outro lado, tomamos conhecimento da frágil intimidade de alguém que parece estar preso em um limbo ideológico, no limiar de ideias que o deixaram preso em um universo indefinido, onde seus olhos vivos se contrastam com o seu corpo debilitado, como se em sua carne reinasse também um tipo de contradição indissolúvel.

 

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É Tudo Verdade: Eu e o Líder da Seita

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Por Chico Torres

Em Eu e o Líder da Seita (Aganai/ Me and the Cult Leader – A Modern Report   on the Banality of Evil) temos a presença de dois homens que poderiam ser retratados como vítima e algoz, um caso típico de confronto que renderia cenas bastante constrangedoras e redentoras. Mas, se esperamos que embates polêmicos se desenvolvam através desse encontro tão incômodo, ficamos surpresos porque o que encontramos é quase que a história de uma amizade que se dá sem grandes exaltações. Os dois personagens, em uma viagem que transmite a ideia de jornada purificadora, parecem estreitar os laços ao longo do filme, fazendo com que aquela possível história polêmica ganhe contornos mais sutis.

O filme se abre para reflexões sobre moral, fanatismo religioso, consumo e perdão. Sakahara e Araki flutuam entre tensão silenciosa e desconcertante intimidade. Se o primeiro permanece em seu lugar duplo de interrogador intimidador e possível amigo brincalhão, Araki é de fato o personagem que sofre as maiores transformações e quem nos salva da monotonia do filme. Percebemos suas transformações emocionais à medida em que se avança na viagem de trem. No início, Araki aparece tímido e quase assustado com a presença da câmera; no meio, está emotivo e bastante reflexivo, revelando diversos aspectos de sua vida antes e depois de sua adesão à seita. No fim, aparece acuado, visivelmente contrariado por ter que carregar toda aquela responsabilidade.

São essas variações que sustentam o filme. Sakahara, através de suas perguntas e investidas que muitas vezes possuem a intenção de convencer Araki a sair da seita e retomar a sua “vida normal”, conseguem fazer com que ele reflita, ainda que de maneira fugidia, sobre as suas escolhas. Desse modo, vemos o confronto de dois mundos irremediavelmente conflitantes: o de Sakahara, ligado ao consumo e à realização, e o de Araki, ligado à renúncia e ao esvaziamento de expectativas. Mesmo que sejam temas instigantes, os diálogos se realizam de modo natural e, por isso mesmo, muitas vezes são truncados e tediosos. O filme plaina nesse tipo de ambientação morna e não consegue realizar de fato uma investida consistente em nenhum dos temas que levanta. Seu final acaba por condensar tudo aquilo que estava latente ao longo da viagem: o confronto direito e a redenção de Araki através de um pedido de desculpas diante da imprensa. A sensação que se tem é que esse elemento chegou tarde demais, enquanto que os outros, os mais sutis, foram mal aproveitados, talvez por culpa do próprio Sakahara que parece não ter conseguido explorá-los devidamente. Um filme que fica no meio do caminho e que extrai com timidez a complexidade de alguém que parece querer estar além do bem e do mal, mas que acaba por retornar, inevitavelmente, para as questões demasiadamente humanas.

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É Tudo Verdade: Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina

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Para além da questão de uma arte panfletária, aquela desenvolvida na URSS, muitos artistas e pensadores se dedicaram a criar e refletir uma arte que fosse além de sua função pedagógico-revolucionária. A complexidade do que se entende por arte e política possibilitou uma série de desdobramentos que superam o sentido reducionista e datado de “arte revolucionária”.

É diante disso que quero pensar Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina. O filme procura mostrar panoramicamente o percurso e os diversos impulsos criativos que movimentaram o grupo sempre na direção de uma teatro com princípios políticos, mas um político libertário e muito pouco pedagógico. De Brecht a Shakespeare, sob o sol absoluto de Oswald de Andrade, o grupo desenvolveu, através de uma constante evolução estética, um tipo de dramaturgia que tem como centro não o cérebro ou o coração, mas a pelves e as entranhas. Assim, além do texto e da encenação, o corpo surge como elemento fundamental, um corpo liberto, dionisíaco. O filme consegue retratar bem, mesmo que indiretamente, o modo como o corpo foi sendo cada vez mais explorado e radicalizado dentro do Oficina. O irracional, ironicamente, surge como elemento político à medida que explicita ou sugere uma libertação total através do desbunde, indicando um sentido orgíaco e antropofágico para a vida.

A força política dessa dramaturgia se fundamenta também na subversão da própria ideia de arte. O questionamento estético é, portanto, também político, à medida que ao criticar os modelos convencionais do teatro, critica toda uma tradição e dá a ela uma resposta subversiva. Outro esquema que se desenvolve no Oficina é a interação entre artista e público. Ambos se confundem no espaço cênico. No sentido político, é possível entender que essa relação abre espaço para o jogo, para a participação, sendo um instrumento pedagógico poderosíssimo: uma forma brechtiana, mas que tem também como referência o teatro da Antiguidade.

Outros modos de relacionar arte e política são trazidos pelo documentário através de uma série de entrevistas e da presença iconoclástica de Zé Celso Matinez. Esses entrevistados não aparecem, suas falas são representadas por imagens de arquivos existentes desde a profissionalização do grupo. O filme, portanto, procura explorar um formato não usual de entrevista que mesmo podendo causar certo incômodo no início, já que ficamos curiosos para saber se quem fala é exatamente o personagem que aparece na cena, aos poucos vamos nos acomodando nessa narrativa quase errática, incorporando, de certo modo, o espírito irracionalista do grupo.

O filme, ao trazer diversos recortes de Zé Celso em sua longuíssima luta pelo espaço que circunscreve o Oficina, revela um ser contraditório e fascinante. Um homem que perdoa o seu torturador; que confunde realidade com ficção ao dizer “isso aqui é um filme de Glauber Rocha”, fazendo uma alusão ao Terra em Transe, como se esquecesse por um momento que entrega o microfone para um homem real em estado de miséria real e não a um personagem; um homem que luta pelo teatro fazendo teatro, teatralizando a política, numa ingenuidade que surge quase como a negação radical daquela vulgaridade e ambição dos políticos e homens de negócios. O filme, portanto, traça esse panorama através de uma cronologia torta e breve, pois são sessenta anos de um teatro que passou por diversas transformações internas, além de incêndios, ditaduras, revoluções e dissoluções. E a arte continua, como é mostrada em uma das encenações do Oficina, em seu lugar necessariamente à margem, procurando os espaços mais improváveis para fazer de suas bacantes algo de vivo no mundo dos homens.

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É Tudo Verdade: Fuga

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Fuga (Flee) é um filme interessante por unir animação, biografia e documentário histórico, integrando fatos importantes de um passado recente a aspectos subjetivos de um personagem bastante cativante. Apesar disso, o filme se detém às situações traumáticas dos personagens, fazendo com que aspectos históricos e subjetivos de uma realidade tão complexa sejam explorados apenas superficialmente.

Já de imediato conhecemos a história dramática de Amin, um afegão homossexual que foge da guerra e se refugia ilegalmente na Rússia com parte de sua família.  O longa exibe, através da vida em fuga de Amin em sua juventude, alguns aspectos da guerra que se desenrola no Afeganistão desde 1979, além do ambiente desolado da URSS em sua dissolução. Mas esses aspectos, apesar de serem fundamentais para o desenvolvimento do filme, são sempre trazidos através do olhar emocional de Amin. E não é que as emoções do personagem sejam menos relevantes do que um tipo de abordagem mais analítica. O que acontece é que o tom emocional, usado em exagero, acaba por tirar o peso de todo o arcabouço histórico que está por trás daqueles traumas. Conhecemos as situações-limite que são vivenciadas por Amin e seus familiares, mas não sabemos o que Amin fez dessas experiências, como ele desenvolveu os seus estudos e como é que isso o ajudou a lidar com tantos problemas. Sendo ele um homem afegão, homossexual, intelectual, que viveu em duas culturas completamente diferentes e em momentos históricos bastante decisivos, é possível presumir que muito mais poderia ser dito.

Apesar da alta carga dramática daquela história, o tom confessional, realizado através de entrevista que surge como uma forma de purgar o passado, acaba imprimindo alguma leveza ao filme, causando uma sensação de alívio ao perceber que, apesar de tudo, a coisas deram certo para Amin. Uma pena que, através dessa história de superação, conhecemos muito pouco sobre o que moveu aquele homem em sua trajetória, nos restando apenas imagens de um passado que foi apresentado por uma ótica que, mesmo sendo de maior alcance em relação ao público, parece diminuir consideravelmente a grande história de Amin.

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