Seguindo Todos os Protocolos (Fábio Leal, 2022)

Por Natália Reis

Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar. Francisco, como muitos de nós, é adepto de procedimentos capilares radicais feitos no banheiro de casa e recorre de vez em quando às propriedades paliativas dos cristais, óleos essenciais, tarô e meditação. Ele lê os últimos estudos sobre as respostas imunológicas da vacina, taxas de mortalidade, reações medicamentosas. Segue os protocolos, não sai de casa por razões banais, sabe qual é o melhor modelo de máscara, mas não sabe qual é o plural de “álcool em gel”. Julga quem compartilha as escapadas do isolamento no Instagram e acaba sendo criticado por isso. Francisco não sabe, mas é a pessoa mais bonita do mundo.

Já faz um tempo que venho me questionando sobre o sentido de um incômodo que tenho com a ideia de “filme pandêmico” enquanto gênero. Ainda não consegui chegar a uma conclusão quanto a isso, mas, conversando com um amigo, levantamos alguns motivos prováveis dessa cisma: “pode ser que esse filme já nasça um tanto datado, fixo num momento histórico” ou ainda “se aproveite de forma leviana do tema para conquistar certos espaços”, ou como gostamos de chamar (venenosamente) “filme espertinho”, o tipo de obra consciente dos mecanismos aos quais vai recorrer para arrematar o maior número possível de respostas positivas. O filme de Fábio Leal não é um filme espertinho, é um filme esperto. De uma esperteza tamanha que me deixou por quase 48 horas pensando nele, com medo de começar um texto que não desse conta nem de parte dessa esperteza. É esperto porque é sincero, engraçado, dolorido e se vale de personagens totalmente adoráveis e palpáveis nas suas neuroses e desejos. Também não merece ser descrito apenas como um “filme pandêmico”, pois ainda que a pandemia seja esse acontecimento de proporções globais, seus efeitos devem ser individualizados para não nos tornarmos dormentes. Acredito que as aflições compartilhadas pelo protagonista interpretado pelo próprio diretor vão além do momento atual. A vontade, e muitas vezes dificuldade, de se relacionar, de encontrar no outro uma companhia ou mesmo o gozo rápido, são sentimentos que acompanham a história da humanidade. Sentimentos terrivelmente humanos. 

Seguindo todos os protocolos (2021) vai narrar a saga de Francisco, homem branco, gay, classe média, em busca de uma transa que não ofereça riscos de contaminação por Covid-19. Passado quase um ano de quarentena, a necessidade de estabelecer contato físico vai se tornar uma grande questão na sua rotina de cuidados e preocupações que ocasionalmente extrapolam em paranoia, e nos encontros nem sempre satisfatórios com outros rapazes, quer sejam no ambiente virtual ou no seu apartamento bem decorado. No desencadeamento de um processo de autoficcionalização, tão bem sintetizado na obra truth, fiction de Leonilson na parede de Chico, Fábio nos presenteia com momentos de humor genuíno, sem apontar dedos ou se amparar em críticas pontuais. O humor aqui é muito mais um meio – pelo qual as contradições e insatisfações de seus personagens podem vir à tona – que um fim. Em poucas palavras: tudo é muito sério e ao mesmo tempo nada é sério. 

Oscilando entre tópicos dolorosos que perpassam a conjuntura pandêmica, como o afastamento dos vínculos afetivos ou o medo de contágio que se desenvolve em ansiedades mais profundas e a precarização do trabalho, e instantes de leveza, de uma intimidade construída na perscrutação dos corpos masculinos e um erotismo arrebatador digno de Robert Mapplethorpe, o filme vai desembocar numa comédia sensível, rendendo cenas memoráveis de interação entre personagens tão prismáticos que podem transitar pela brutalidade e o enternecimento sem nem nos darmos conta. A sensação que fica é que, ao trabalhar a distância e a solidão na impossibilidade do toque, estamos diante de uma obra que se avizinha bastante de um filme como Un chant d’amour de Jean Genet. Se Genet faz uso do encarceramento para tratar desses temas, Leal vai pegar alguns dos maiores temores da nossa geração e moldá-los para que caibam numa história sobre os embaraços da reaproximação e da insatisfação sexual na quarentena, ao mesmo tempo que resguarda – como um segredo prestes a ser partilhado – a esperança e a possibilidade de expurgo dessas mazelas num gesto tão singelo e libertador quanto um passeio de moto pelo quarteirão.

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Meus Santos Saúdam Teus Santos: Carta a Rodrigo Antônio

Por Geo Abreu

Filho, larga a vaidade, prepare-se

És do povo és da mata

garanto-lhe

Rodrigo,

sei que entendes o que vou dizer: como é bom encontrar filme amazônida na programação de um festival. Nosso sotaque anasalado guiando o percurso de um filme e dessa vez não pelo viés da exotização mas sim de algo que pouco se fala: a força da mistura entre religiões de matrizes africanas e indígenas discretamente representadas naquele plano do maracá junto a imagem de Cosme e Damião. 

Não vou chamar de zombaria a representação que geralmente se faz dos espíritos da floresta em muitos materiais audiovisuais sobre a Amazônia, mas de uns tempos pra cá, a caricatura feita disso me assombra como falta de respeito. Curupira, Mãe D’água, a filha de boto da novela das nove, não pegam da força desses arquétipos sequer o farelo. Enquanto numa cena de Meus Santos – aquela do contra-plongée das árvores balançando ao vento -, o barulho das folhas me fez sentir como se fosse possível respirar aquelas imagens. Me senti pequena e abraçada no meio daquela mata. 

É sob a forma de expressão desse mistério que repousa o limite entre um exotismo esvaziado e o respeito com a transmissão de conhecimentos cujos multiplicadores se tornam mais e mais escassos. E do que trata teu filme senão de assumir o compromisso com esse papel de transmissão? 

Em A Memória de Sangue (2021, Elom 20ce), a personagem-narradora também nos conta sobre seu processo de autoconhecimento a partir da religião, no caso, o Vodu. A serenidade com que fala sobre o segredo, que ao mesmo tempo em que é guardado também deve ser multiplicado, é aquele da pessoa cujo processo de formação se completou. Lakoélé, a protagonista, hoje canta numa banda e usa elementos desse conhecimento ancestral em suas performances, seja nas letras, no ritmo ou nas pinturas do rosto e, para além do trabalho efetivo junto às irmãs do Vodu, estabelece a música como lugar de experimentar essa força em outras medidas e encontrar algum equilíbrio entre esses dois mundos. Ouvir Lakoélé e sua história me fez lembrar de Mateus Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020, Tenille Bezerra) e a missão que se traduz em música. Encontrar esse equilíbrio entre manutenção e partilha é uma chave poderosa e apaziguadora.

Cavalo tá pronto?“, “Ainda não, mas quer estar”. 

Interessante que tu escolhas mostrar a jornada com suas dificuldades, os diferentes tempos que se cruzam em expectativa e suspensão, e que o filme nos deixe ainda no começo desse caminho. Abristes uma janela para o quintal da tua avó. Mostrastes fotos, cartas. Essa pesquisa que faz parte do processo e que nos fala de como é difícil reprogramar para estar de volta por completo. Reaprender a ver é um exercício demorado, não é isso também que teu filme nos mostra?

Fui realmente pega por algo que dizes a certa altura: Mistério não cabe na boca e o que eu sinto no corpo, grita“. Alguma janela interior se abriu a partir disso, como enxergar para dentro. 

Me despeço aqui, torcendo por ti e pelo restabelecimento da comunicação entre tu e tua avó.

Beijos.

Geo Abreu.

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Filme Caseiro (O Dia Posse, Allan Ribeiro)

Por Luiz Soares Jr.

Os Walsh e os Ludwig do auge da era clássica nos deram instantes privilegiados, elegias encarnadas no lusco-fusco evanescente de tantas inolvidáveis obras de ourives; para os modernos, restou a desolação câmera na mão e atalhos de zooms descontínuos pelas crateras da cidade arruinada pela guerra: o neo-realismo e a nouvelle vague não falaram de outra triste Venise; e os pós-pós, aqueles que erigiram sua obra de linguagem sobre os escombros da obra diegética, acmé fascinatória e litúrgica quando clássica e cinema verdade ladeira abaixo quando moderna?

Godard, Kluge, Fassbinder maneirista, Kurt Kren actionista…inauguraram uma enlutada posteridade, nossa História aziaga do significante flutuante, do lugar de fala, do dispositivo e do simulacro; neste filme quase-caseiro mas com ambições narcisistas demiúrgicas (o seu ‘objeto’ Brendo, pelo menos, é devedor desta exaltação enlutada, desta excitação mortificada, desta paradoxal chama que nasce das cinzas do confronto com a ninfa Eco e em O dia da posse com a tela virtual da TV), Allan Ribeiro fala da percepção maníaco-depressiva dos BBBs desfolhados antes da primeira floração (digo: paredão) e dos presidentes tirados a fórceps do Poder antes do decisivo decreto’ para entrar na História, hebdomadária e mítica; não, não se trata de má poesia, de elegia avant la lettre ou de metáfora segundo o espírito, de metonímias desfiguradas pela totalidade que falta, pois aqui o objeto jamais vai ser reconstituído por inteiro, uma vez que, como o próprio sujeito da enunciação fracassada exprime, “quando diante de uma câmera jamais conseguiremos ser nós mesmos”; O dia da posse, que passou e transbordou de maniera povera por todos os codex do cinema pós-pós acima enumerados,  nos fala desta ruptura instransponível, desta falha, desta fratura, impossibilidade de ser que trafica o fantasma pelos meios assombrados da imagem documental de base, sua morada senão ideal pelo menos possível, à mão: a grande épica, como o kammerspiel intimista encantatório, jamais pertencerão a Brendo, porque, tardio dentre os tardios, é um personagem elaborado pela retórica niilista que sabe que o rosto jamais vai coincidir com a máscara e que a persona humana é a invenção a posteriori de plenipotências de teatro e de elocução, de gesto e de quadro encimadas por ninguém senão as miudezas de um microfone de lapela, uma câmera DV de baixa definição, um Dream’s factory de BBB, panteão consagrado de um último capítulo surrupiado à sua plenitude pelos fac-similes lívidos e canhestros da TV mofo numinosa do youtube; mas voltemos ao fulcro, ao centro, à ribalta do final de Cidade dos sonhos de Lynch: “… o que sei é que ninguém que é filmado por uma câmera jamais consegue ser ele mesmo”.

O documentarista pós-Coutinho, pós-Lanzsmann e Flaherty, pós-Annales, pós-Histoire(s) du cinema sabe que o seu objeto nunca é totalmente documental pois, desde a falsa ou secundária contraposição (desmascarada pelo Godard da boutade ‘fim de caso’ “Toda ficção é um documentário sobre a sua própria confecção”) entre Lumière e Méliès, sabemos nós também que a captura do Real pela câmera de filmar jamais conhecerá a integridade de um olhar sobranceiro que nos guia e significa senão com o auxílio da inervação fantasmática da ficção; e o que é o Fantasma, senão o arquétipo daquilo que se atualiza numa imagem, inervada, como em todo cinema, por mediações invisíveis (montagem, cadre adstringente, luz, raccord), ou pelo fora de campo? o Fantasma necessariamente vai desaguar numa Imagem, pois como ela o seu significado é consanguíneo a mediações infra e supra visíveis, à saturação pelo fora de campo; as imagens quaisquer, comezinhas “achadas” ou duramente resgatadas à lixeira do youtube de O dia da posse ( cadre do cadre do celular, vista à janela, corpo que flutua sobre as águas em plongée alucinatória, o corpo tumefacto e o gesto evasivo de Brendo falando direta, frontalmente para nós) são devedoras do Fantasma daquilo que Brendo persegue como um bico-de-pena ao gesto do sfumato de Da Vinci e Manet: à Fama, a mais irrisória das quimeras de nosso tempo, seu fetiche e obsessão; todos os filmes, infra ou supra ficcionais, de primeira mão ou superestruturados, primeiros e últimos, originários ou tardios, devem ao Fantasma a sua inspiração-mor, mas jamais a sua execução, que é sempre obra de um manejo ultra-mediado dos significantes e materiais; O dia da posse não aposta na sofisticação dos codex linguísticos do cinema do simulacro e da enunciação diferida, de perífrase ou citação, do dispositivo e do lugar de fala devedor de fora de campo, mas em sua simplicidade frontal e dialógica com o personagem que o obceca como a Fama ao garoto da periferia do Brasil ele nos ensina algo extremamente atual sobre a potência, comum às pessoas marginalizadas politica ou geograficamente, de se servirem da infra estrutura tecnológica para permitirem ao sonho um meio de se engendrar artefato, de se materializar numa imagem, talvez o meio mais poroso às fantasmagorias alucinógenas do devaneio que habita sob as armadilhas do desterro cotidiano; o que é afinal sonhar, pensava o Freud da segunda teoria das pulsões ( 1918), senão imprimir à experiência cotidiana rememorada segundo um continuum de significantes evasivos ou refigurados por ordem temporal outra, um diapasão frenético ou em câmera lenta, ao gesto uma beatitude extática, à causalidade uma tinta de delírio intempestivo, e assim atualizar todas as camadas superpostas do id massacrado pelo prático-inerte da necessidade e da utilidade do dia a dia, dando-lhe enfim a chance de advir à superfície? o sonho de ser ator de novela, BBB ou presidente da República é indiferente, pois depende, como pensava o Deleuze de Diferença e repetição e o Kojève que leu Hegel para os existencialistas, do delírio psicótico impresso no corpo do Desejo pela época (nossa época onívora de sintomas, de grandezas e diapasões energéticos suspeitosos necessita talvez desta tríade de poder para satisfazer seu élan megalômano), mas o essencial a se reter aqui são ao mesmo tempo a insistência sintomatológica de sua expressão ( expressa pela morosidade ou repetição de certos planos), a grandeza histérica do gesto e a simplicidade neutra da fala com que desejos que atingiram os cimos da volúpia do id em se apoderar do ego se apoderam agora do quadro e da frontalidade expositiva; os clássicos sempre foram frontais, simples ( jamais simplistas: o simples acumulou em sua trajetória a imensidão das mediações do percurso fenomenológico, arregimentou vertigens e potências), porque haviam passado pelo abismo e sublimado sua potência maligna, mas sem o abismo jamais haverá suprassunção; em um livro autobiográfico, Mankiewcz nos diz de seus personagens intelectuais, como na obra prima A quiet american, que quanto mais potente  a loucura mais espessa deve ser a máscara da razão; Brendo não é louco como o personagem de Redgrave no filme de 1958, mas um dia chega lá: o delírio de nosso tempo consiste em chegar à Fama sem passar pelo Trabalho, ou em termos filosóficos pela categoria hegeliana do Reconhecimento; desta erosão da experiência pelo delírio já generalizado demais para estar vivo de que Brendo é o intérprete e porta-voz Alan Ribeiro tira a experiência possível dos momentos em suspensão ( no tempo) e dos espaços prenhes de afetividade, como a mãe ao celular e os pés na maré que sobe; o personagem talvez não tenha olhos para ver, mas o diretor solicita ao espectador que complete o circuito invisível de uma vidência impossível ao campo estreito daquele rapaz um tanto deslumbrado demais para poder ver que o evento mais suntuoso de que será testemunha reside não numa tela de tv, e sim ao alcance de sua mão e de nosso olhar; a experiência, no cinema primeiro (guloso e escatológico) e no pós-guerra, sempre foi o ouro do pobre; as festas infinitas do plano sequência e locação ou o uso onívoro da profundidade de campo encapsulavam o presente num maravilhoso escrínio de tempo e espaços puros, a perder de vistas; um respingo desta oferta voluptuosa do milagre ao alcance da percepção cotidiana, agora um milagre para olhos que sabem finalmente ver (lembram-se da cega de Chaplin, ao final? “agora, eu posso ver”, ali eticamente, pois ela podia enfim adivinhar sob as vestes encardidas e rasgadas do vagabundo o grande homem que ele fora sempre) salpica a duração linear de O dia da posse com um rastro de revelações que certamente o post do Facebook ou a foto do Instagram já surrupiaram para o seu códex reminiscente, memorialista de registros hebdomadários efêmeros, mas que numa tela grande de cinema, arte monumental (monumento fúnebre, como nos ensinaram Godard e Daney, também está valendo, pois continua a ser um desvairado in memoriam), subitamente se reerguem das poeira citadina dos dias quaisquer (registrados por registros quaisquer,  e esta banalidade do mal arendtiana não nos deve escapar nunca da vista inocente dos registros cotidianos, pois a exceção do Mal, do delírio ou do sonho sempre habitaram o cerne da dita normalidade, uma vez que afinal com que material se engendraria a negação do Real senão com as hastes precárias e fecundas do próprio Real?) e se postam diante de nós; o encanto e a surpresa pelo encontro com rastros de vida vivida aqui e ali nos surpreendem talvez ainda mais por ser, como dito no início deste texto, um filme quase-caseiro, um filme registro, um filme que recupera o frêmito e o tremens do Real capturado tão sordidamente pelo cadre miniaturizado do celular; em sua pequenez e condensação, em sua negação senão frontal pelo menos subliminar da escritura em sua totalizante abdução da percepção nua, O dia da posse recupera recônditos tesouros perceptivos, que talvez mais do que idos e vividos estejam ainda por vir.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: O Dia da Posse

Por Geo Abreu

A tradição do encontro com personagens documentais comuns e extraordinários, que muito deve ao cinema de Eduardo Coutinho, é resgatada por O Dia da Posse, de Allan Ribeiro. O cineasta nos apresenta Brendo, rapaz de fala fácil que cruza diversas referências pop em suas preleções, indo desde pronunciamentos políticos a discursos de eliminação em reality show, alimentando assim um sonho de infância: ser presidente do Brasil. 

Ribeiro e sua câmera tiram partido do confinamento ao expor uma das características desse período: a crescente importância da relação com telas na vida da cidadã comum. Tevês, monitores, telas de dispositivos móveis, visor de câmera, olho mágico, janelas. A imposição desse regime de economia da atenção traz consigo a necessidade de manter uma imagem íntegra de si para ser mostrada, enquanto os rostos de Allan e Brendo expressam a dificuldade disso. A vida entre frestas e a imposição desse contato mediado por telas como as únicas possibilidades de comunicação com o fora nos últimos dois anos. 

Nesse ponto é que se misturam dispositivo e personagem, com Brendo mostrando desenvoltura diante do confinamento e do excesso de exposição frente às diversas possibilidades de enquadramento, como alguém que passou a vida inteira sendo treinado pela cultura audiovisual até este momento. 

O diretor desempenha bem o papel de provocador, estabelecendo alguns jogos para que Brendo ganhe desenvoltura e, brincando, produza discursos dignos dos personagens que deseja ser. Ele conta histórias de quando se descobriu pobre ou de como pretende cursar medicina, logo após a graduação em direito. Esse gancho é puxado a partir do encontro da câmera com vestígios de uma pequena cirurgia de extração de dente feita pelo próprio Brendo no apartamento em que ambos estão confinados. 

Entre os blocos de apresentação e adensamento do personagem principal, o diretor também se expõe, em tomadas na praia, construindo assim episódios que promovem uma quebra na narrativa, suavizando a monotonia da locação única. Marcando o caráter de externalidade desses trechos em relação a linha

narrativa principal, Ribeiro elabora jogos de dentro/fora, mostrar/esconder, a partir dos quais reforça a diferença entre as subjetividades expostas no filme, mantendo o foco e o zoom no rosto de Brendo, enquanto brinca na areia sozinho com sua câmera. 

Entre o experimental e o vídeo caseiro, duas categorias que o próprio filme aventa sobre si, Ribeiro explora as possibilidades dessa multiplicação de telas. O comportamento de Brendo, que parece ter nascido pronto para o momento em que – quase – todas as casas tenham se tornado o palco de um show com transmissão via web,produz pontos de contato com o filme Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, quando, por exemplo, o vemos despedir-se de seu pequeno Palácio da Alvorada e de todos nós, ao fim de um mandato curto e ainda assim marcante. É nesse ponto também que (re)conhecemos um cineasta maduro, capaz de tirar um filme do bolso como quem brinca de fazer cinema.

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 2

Por Natália Reis

Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios. 

A começar por Transviar (2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo.  De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações. 

Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.

Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor. 

Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada. 

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Cinema, dinheiro e marmitas

Por Geo Abreu

As condições do país-brasil se (con)fundem com as condições do cinema brasileiro na atualidade.

Trilhando um trajeto particular pelos programas de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes – e assumindo sem pudor que escolho os filmes realmente curtos – emendei sem pensar muito a respeito: Ácaros, de Samuel Marota, Dinheiro, de Arthur B. Senra e Sávio Leite e Corre de Marmita, de Luiz Pretti e Phillipe Urvoy. 

Apesar da escolha ao acaso, executar os filmes nessa sequência fez muito sentido. Algo de continuidade em movimento ascendente, tanto pelo ritmo imposto pelos filmes quanto pelas temáticas conjugadas. Em Ácaros somos apresentados a uma imagem sem definição, “pequena”, “ruim”. O movimento da imagem é intenso, sugere trabalho, conhecimentos específicos, ação. Na saída daquele fosso acompanhamos um belo movimento de câmera que revela a grandeza de uma sala de cinema em ruínas, metáfora concreta dos dias que correm. Trabalho arqueológico de história do tempo presente executado em quatro minutos. As salas de cinema de rua minguam no mundo neoliberal, cujo tempo liso escorre em enxurrada, fazendo de tudo ruína.

E qual o papel do dinheiro nessa história? Uma convenção tão antiga e agora, mais do que nunca, espiritualizada por códigos digitais e transferências em tempo real? Em Dinheiro, somos apresentados ao histórico do papel que passou a representar um índice de troca entre entidades de naturezas diferentes. Várias versões do papel moeda brasileiro, seus brasões, generais, ditadores, cidades, índios – como na capa de um álbum do Sepultura – completamente deslocados como escala de valor em relação à sua representação numa nota de mil cruzeiros. Vibrando na tela, notas de dinheiro e notas fiscais servem de moldura para frases icônicas sobre o capital e suas contradições. Outros quatro minutos densos em que a montagem impõe o ritmo, e através dele se conecta ao filme que escolhi na sequência.

Corre de Marmita é ágil como a urgência que sugere. Seus onze minutos transcorrem como o pensamento acelerado que é necessário para se equilibrar na cidade: entre celular, deslocamentos e sobrevivência. O curta conta a história das pessoas envolvidas numa ocupação urbana no centro de Belo Horizonte que, em meio a luta pela permanência da ocupação, produzem ações de assistência à população em situação de rua distribuindo marmitas. No contexto da pandemia de Covid-19 o filme fala de direito à moradia, insegurança alimentar e outros arranjos de vida. Seguimos o grupo por andanças nas ruas e coleta de doações, enquanto a montagem do som atua sobre as diversas conversas que se cruzam, produzindo um mosaico de opiniões não-jornalísticas sobre o período, sem moralizar escolhas e temas. Além de uma visão sobre redes de solidariedade, Corre de Marmita fala sobre criação/manutenção de redes na luta por alternativas à comidificação do dia-a-dia. A dificuldade que é escolher cair fora e tentar viver sem ser esmagada pelo rolo compressor do capitalismo neoliberal e seus esquemas de produção de escassez é um tema que instiga. Observar o crescimento do número de pessoas em situação de rua e a precarização dos profissionais do audiovisual (e das artes em geral), ambos fenômenos que espelham o mesmo processo, e notar o aparecimento de filmes que sejam sintomas disso é usar o cinema como ferramenta dialógica, como instrumento da história do tempo presente, a catalogar os agoras. Esse conjunto de três filmes consegue sintetizar e pôr em movimento entendimentos sobre brasil-mundo e cinema-brasil.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: Germino Pétalas no Asfalto

Por Gabriel Papaléo

As redes de apoio, o conforto para facilitar, melhorar, e tornar mais visível a convivência com pessoas trans e travestis, são fruto da escuta e da vontade de grupos que abraçam sem desmedidas a franca ação direta. Como no curta Corre das Marmitas, também presente na Mostra de Tiradentes, Germino Pétalas no Asfalto faz do retrato de ações sociais o seu panorama de resistência contra o desgoverno atual. No filme de Ricardo Pretti e Phillipe Urvoy, o elogio experimental ao poder do movimento; aqui, no filme de Coraci Ruiz e Julio Matos, a opção pela escuta na câmera, pelas entrevistas e relatos. É um campo já coberto anteriormente pela diretora ao retratar em Limiar a transição de gênero de seu filho Noah, aqui também presente como um dos amigos do protagonista Jack, um menino de 15 anos que tem seu processo de transição filmado pelos diretores por anos. O que promete no seu primeiro plano uma investigação do amadurecimento, de um corpo e de uma personalidade, se torna um coral de demonstrações de afeto para se fazer presente diante de quem precisa de apoio ao tomar escolhas que infelizmente ainda soam tão incômodas a uma sociedade retrógrada.

É um filme que propõe o olhar para as alternativas, para as formas de organização e união que surgem como parapeitos para pessoas que são rejeitadas nos meandros mais normativos sociais no Brasil – religião, política de situação, relação afetiva, família. Nesse campo, visitamos um encontro mediado por Victoria, personagem que se identifica como “travesti feiticeira”, e que cria rodas de conversa e escuta para compartilhamento das experiências, suas e alheias, sobre sua identidade e como ela se insere no social. É através dela que o filme se permite passagens mais performáticas, focadas no misticismo dessa nova religião travesti, uma revisão de ícones de religiões outras para propor visibilidade diante do apagamento. É um jogo narrativo tendendo a transgressão mas que é montado como causa e consequência das mais básicas, mesclando essas alternativas afetivas com a violência do bolsonarismo e seus tentáculos, o que sublinha demais as ideias propostas pelos diretores.

O detalhamento na estética do cinema observacional, mais atento aos processos e comportamentos, acaba conflitando com a disposição pontual de criar uma disparidade com a violência dos relatos trans e homofóbicos dos homens da extrema direita que têm seus palcos nas igrejas e nas sessões parlamentares. Essa disparidade é reforçada até a exaustão, tanto na montagem quanto nos grafismos que volta e meia tomam a imagem, animações que propõe uma “sensibilidade”, uma “pureza” desses gestos que se espalham pela cidade (como o título propõe), mas que acabam domesticando e trivializando um tanto essas ações de pertencimento. Os glitches na imagem, que surgem como dizendo que as representações estéticas estão em crise, também soam gratuitos e afirmam mais ainda que o forte do filme é na temática e nos personagens que retrata.

Em certo momento, uma pessoa toma o microfone no encontro da UNA para falar sobre como a pós-modernidade aceita que as mudanças de estrutura social podem ser feitos dentro do próprio sistema heteronormativo, e como ter essa visão é algo perigoso e insuficiente para dar conta das vontades e anseios da comunidade que representa. Essa fala não apenas evidencia bem toda a disposição do filme em focar nos rituais alternativos, uma questão moderna por excelência e que serve bem ao senso de coletividade despertado por essa transformação pessoal de Jack e seus amigos, como também preenche lacunas que o filme infelizmente deixa, ao apostar mais num panorama um tanto genérico das trocas necessárias para se confrontar essa dura realidade de enfrentamento.

É complicado pensar nos termos de forma e conteúdo em filmes como esse, não só porque seria um reducionismo estético separar as duas margens que nunca deveriam soar dissociadas, como também se argumenta que fazer isso é cair no binarismo que a própria natureza temática do filme critica – mas a desconexão entre as boas intenções e a articulação estética sobre elas fica bem evidente. A câmera parte de um relato de amadurecimento, das incertezas e da identidade na formação de jovens, para se contentar com o que se espera do registro afetuoso tantas vezes vistos sob temas sensíveis e atuais – não por acaso presentes com frequência em Tiradentes. Fica a torcida por um alcance maior de público para elucidações acerca do tema; é a limitação e a vontade de Germino Pétalas no Asfalto.

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25ª Mostra de Cinema de Tiradentes

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 1 (Natália Reis)

GERMINO PÉTALAS NO ASFALTO (Gabriel Papaléo)

SESSÃO DE CURTAS: CINEMA, DINHEIRO E MARMITAS (Geo Abreu)

O DIA DA POSSE (Geo Abreu)

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 2 (Natália Reis)

FILME CASEIRO: O DIA DA POSSE (Luiz Soares Jr.)

MEU SANTOS SAÚDAM TEUS SANTOS: CARTA A RODRIGO ANTÔNIO (Geo Abreu)

SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (Natália Reis)

AVÁ: ATÉ QUE OS VENTOS ATERREM (Gabriel Papaléo)

ANOTAÇÕES SOBRE UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI, DE ÉRICA SARMET (Geo Abreu)

OS PRIMEIROS SOLDADOS DE RODRIGO DE OLIVEIRA: OS DEUSES CHEGAM PARA MORRER (Luiz Soares Jr.)

BEM VINDOS DE NOVO (Marcos Yoshi, 2022) (João Lucas Pedrosa)

PANORAMA (Natália Reis)

GRADE (Lucas Andrade, 2022) (João Lucas Pedrosa)

SEIS PARÁGRAFOS SOBRE CINCO FILMES (Geo Abreu)

SESSÃO BRUTA (Natália Reis)

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 1

Por Natália Reis

A 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou deixando um gosto agridoce na boca de quem foi pego desprevenido com a notícia, quase às vésperas do festival, do cancelamento das exibições presenciais. Entre momentos preciosos da abertura transmitida no Youtube – como uma homenagem à colossal Elza Soares, que nos deixou essa semana –, a presença da montadora Cristina Amaral comentando sua relação com Adirley Queirós e as vinhetas rememorativas realizadas a partir de antigas entrevistas com figuras essenciais da mostra (como um muitíssimo jovem Francis Vogner dos Reis), sobra ainda espaço para o lamento pela inevitabilidade de uma situação pandêmica que violentamente nos priva de instantes tão recompensadores quanto a conversa acalorada na mesa de bar após uma sessão, ou ainda, tendo em conta a classe dos realizadores, a possibilidade de ter seu trabalho atravessado pela experiência coletiva de uma plateia reunida em frente à tela grande do cinema. Se por um lado o formato virtual representa uma forma de democratização do acesso e de priorização da saúde pública, por outro é bem provável que ele pode ainda facilitar certos processos dispersivos e de carência das condições ideais de exibição. Parte desse lamento reside no fato de que não há muito, na verdade quase nada, a se fazer. Resta celebrar à distância a persistência de um evento que há 25 anos oferece um espaço único de acolhimento e florescimento do cinema brasileiro, apesar de tudo. 

No primeiro dia de festival, decidi focar nas três sessões independentes de curtas-metragens: Mostra Regional, Mostra Foco Minas e a Mostra Temática: Cinema em Transição. Seguem as obras (diversificadas entre trabalhos de veteranos e iniciantes) que mais ressoaram por aqui:

O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo (2021)
de Monique Rangel – Mostra Regional

No filme de Monique, conhecemos Maria da Conceição Rangel, Aparecida Rangel e José Rangel, três familiares que realizam juntos um gesto de imersão nas memórias de um antigo centro de umbanda na cidade de Leopoldina, outrora regido pela matriarca da família já falecida, e hoje uma espécie de depósito de imagens sacras que perecem pela ação do tempo. A relação com a diretora (que compartilha do mesmo sobrenome) não é posta de maneira clara, mas é notável a cumplicidade que ela exerce enquanto ouvinte que acompanha atentamente os relatos dos protagonistas, pontuados por temas que envolvem fé, misticismo e questões de raça. A crença em milagres, as lembranças narradas de um lugar de assombro e a confiança mútua que vai permitir a abertura e o compartilhamento sincero faz com que O que eu gosto de fazer… se concretize como uma experiência encantadora, que deixa claro ainda o papel da história oral na superação da morte e do tempo.

Ácaros (2021)

de Samuel Marotta – Mostra Foco Minas

O curta-metragem é um formato que por si só pode garantir experimentos interessantes, que ultrapassam a simples necessidade de concatenar uma ou mais cenas em um curto espaço de tempo. No caso de Ácaros, em pouco menos de 5 minutos Samuel Marotta realiza um jogo de revelação que se vale de exercícios concretos de escala, aproximação e distanciamento para desvelar uma imagem maior e assustadora. É um filme sobre ruínas que podem abrigar outros mundos (ou seres vivos, além de ácaros), e nada mais certeiro que o uso da trilha de Rebeldes do Deus Neon de Tsai Ming-Liang, um cineasta que, entre outras coisas, sabe localizar e trazer à tona a pulsão de vida que emerge das paisagens decadentes. 

Corre de Marmita (2021)

de Luiz Pretti e Philippe Urvoy – Mostra Foco Minas

No filme de Pretti e Urvoy uma câmera dinâmica acompanha e assimila o “corre” envolvido na coleta e doação de alimentos e materiais de higiene pessoal pela Kasa Invisível, uma ocupação anticapitalista e autônoma de Belo Horizonte cujas áreas de atuação se estendem a ações de cunho social como a distribuição de marmitas para a população em situação de rua num momento de grande vulnerabilidade como a pandemia. A montagem acelerada, os enquadramentos fragmentados de braços, mãos, corpos sem rostos e as vozes determinadas dos integrantes do coletivo condicionam uma fisicalidade e movimento a Corre de Marmita que nos cabe reconhecê-lo como um elogio da ação direta. 

Rua Ataléia (2021) 

de André Novais de Oliveira – Mostra Cinema em Transição

O cinema de André Novais é um cinema conhecido pelo tratamento dado à intimidade e cotidiano familiares como catalisadores do extraordinário que por vezes percorre subterraneamente o ordinário. Nesse filme, gravado há mais de 10 anos e só agora recuperado, Novais mergulha na escuridão total de um apagão na rua para encontrar seu irmão e seus pais como habitantes de uma noite infinita, respingada por uma ou outra fonte de luz. A textura granulosa da imagem que deixa os contornos tão turvos, não restando nada além de cabeças flutuantes, parece enviar uma mensagem codificada de algum lugar do passado: a memória é essa coisa viva que vai tentar se fazer visível quando menos se espera, nesse caso, em uma brincadeira de reconhecimento de fotografias de um antigo álbum de família. 

Yãy Tu Nũnãhã Payexop: Encontro de pajés (2021)

de Sueli Maxakali – Mostra Cinema em Transição

A realocação de aproximadamente 100 famílias tikmῦ’ῦn-maxakali da reserva de Aldeia Verde em decorrência da pandemia é o motivo que norteia o filme de Sueli Maxakali. Mas, sem se ater aos aspectos práticos que envolvem o deslocamento e o isolamento da aldeia, a diretora traz, por meio de cenas absolutamente poderosas de conexão imediata com a terra e de celebração com cantos e danças, um vislumbre da força vital que transborda de suas imagens: a ritualização da esperança. 

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Desta para uma melhor: Cow (Andrea Arnold, 2021)

Aqui o objeto é simplesmente isolado, qualificado, extraído do ambiente, projetado em um novo mundo; o pedaço de real não tomado para ser confrontado com as partes manuais da obra, ele é tomado “para ser tomado” e não adquire essa virtude, essa eficácia singular senão pelo fato de ser destacado do resto. [1]

Michel Leiris

Por Pedro Tavares

Resumido como um retrato íntimo de duas vacas, o documentário de Andrea Arnold produzido pela BBC traz dois caminhos conflituosos acerca do objeto e o espectro que o circunda. O isolamento claro e simples em um curral e como Arnold o descontextualiza. Este destaque/isolamento segue a norma de Leiris, de um destaque para a convenção e com ela os fantasmas do senso de falseamento tomam a tela.

Primeiro em uma escada voyeurística numa espécie de câmera-olho (um pouco longe da versão vertoviana e próxima da literalidade) por muitas vezes grudadas ou muito próximas aos animais. E em segundo, conforme o registro de uma rotina óbvia de tratamentos e funções primeiras relacionadas à produção de leite, o filme de Arnold distorce os objetivos dos animais filmados. Como Michel Leiris diz acerca do objeto escolhido, “do fato de ser destacado do resto” traz “eficácia singular do objeto fabricado”. O corpo-tema segue tanto pela ideia de uma eficácia singular (a do destaque) quanto a de um objeto fabricado. A manobra de Arnold que não se dá pela proximidade da câmera e sim pela montagem, é como nos aproximamos destes animais durante o registro rotineiro.

E neste caminhar de repetições de tarefas que o falseado é corroborado como um filme de observação, de distanciamento, de destacamento. Rupturas simplórias sobre o valor dos gestos de seus cuidadores, das ações mais simplórias quanto as mais tenácias sobre a “função” do objeto, ao menos em tela. Quando Serge Margel comenta as palavras de Leiris sobre o isolamento do objeto, ele diz: “Isso já é a descontextualização ou deslocamento do objeto, que perde seu valor de uso, que se separa de seu produtor, de seu lugar de origem, de sua função primeira, para não ser por ele mesmo”.[2]

No caso do filme de Andrea Arnold, conforme se isola estas duas vacas do restante pelas bordas da imagem ou no registro atividades que necessitam apenas de seu cuidador e o animal – como o cuidado com as patas ou até mesmo um parto – mais deslocados eles estão no sentido de seu valor e mais inseridas no contexto afetuoso, seja pelo esgarçamento da narrativa com ações repetidas que o filme ganha ares de uma proto-narrativa, de uma personagem estabelecida a criar uma representação clara para quem a assiste.

Porém, há um escape em Cow: se o filme se desenhara por toda sua duração como uma questão sobre o objeto, seu deslocamento, seu valor e transformara tudo em fantasmagoria, deste mesmo falseado cria-se a subversão. Destrói-se o afeto rapidamente numa ação fria e que traz o fantasma do sentido benjaminiano[3] mais para perto. A vaca, que recebe o nome de Luma, deixa de ser Luma, mãe de um bezerro, produtora de leite e transforma-se no que Arnold filmara por todo o filme. Um objeto assombrado, que se destaca do resto para a produção capitalista e também para a moldura da imagem. Luma é uma tag de identificação presa ao corpo e, antes de tudo, um fantasma.


[1] Artes e ofícios de Marcel Duchamp, 1992.p. 131-132.

[2] Arqueologias do fantasma (técnica, cinema, etnografia, arquivo), 2013.

[3] O conceito de fantasmagoria surge no século XIX, como resultado das mudanças fundamentais nos modos de produção e no modelo econômico.

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Um lugar ideal para fantasmas-banana

Por Geo Abreu

The day Carmen Miranda died
They put a photograph in the magazine
Her dead mouth with red lipstick smiled
And people cried, I was about ten
But today, but today, but today, I don’t know why
I feel a little more blue than then

Pintando o céu do Aterro do Flamengo com tons de rosa e amarelo, um feixe de luz passeia
em busca de pouso. Em meio a arquitetura moderna tardia, um círculo de concreto que
mais parece um olho chama atenção: do centro do olhar brota um enorme coqueiro, como a
coroa de um abacaxi perdida no espaço.

Carmen Miranda finalmente encontraria ali um lugar para descansar. Seus despojos,
devidamente imantados de energia caótica, ocupariam um lugar naquele estranho
mausoléu ao ar livre, onde os fantasmas eram livres para brincar.

Luisa Marques e Darks Miranda, dupla de cineastas e performers, se ocupam do encontro
entre projetos modernistas brasileiros em Maldição Tropical, curta que opera o cruzamento
entre a ambiciosa construção do Aterro do Flamengo e a chegada – sempre apoteótica – da
memória de Carmen Miranda ao lugar.

Construído sob os escombros de dois morros, Castelo e Santo Antônio, responsáveis pelo
aterramento da região em que o complexo foi erguido, o Aterro apresenta assim uma dose
de desespero e fantasmas próprios: as histórias soterradas em sua construção ainda
pairam por lá, pesando a beleza do lugar mais até do que as construções em concreto que
a compõem.

Misterioso e lânguido, o espaço é composto por uma intrigante mistura de vegetação
exuberante, como os abricós de macaco e palmeiras gigantes que, vivos em meio a
paisagem urbana e hoje antiquada do centro do Rio de Janeiro ganham um aspecto
extrínseco e antinatural.

A partir de aproximações produzidas pelo encontro com materiais de arquivo e imagens de
Banana is my Business, documentário de Helena Solberg, as diretoras conectam espaço e
personagem como duas pontas soltas de projetos modernizantes e passadistas de Brasil.

Impressionantemente conectada a esses aspectos de pouca naturalidade e exteriodade que
o parque apresenta, também a Pequena Notável, cantora portuguesa que assumiu o Brasil
como seu e que acabou aprisionada por essa personagem coroada de frutas e balangandãs
paira sob aquele espaço até finalmente escolher um lugar para se fixar.

Assim, o Museu de Carmem Miranda, com seu olho-palmeira, mais do que serve ao
propósito de conjugar mais esta camada de informações ao complexo do parque onde
estruturas mudas e geométricas ajudam a acumular versões mal acabadas da história
desse ex-país do futuro.

Apesar de todo concreto e verde usado na construção do Aterro, Luisa Miranda trabalha a
cor do céu em tons e mesclas entre rosa e amarelo, desconectando o horizonte azul e
adaptando espaço aquele fantasma já bastante distante da figura original a que se refere.
Bailando ao redor do museu, a performer executa movimentos suaves e divertidos
singularizada apenas por uma coroa-abacaxi que imediatamente nos conecta aquela
espécie de Barbie Carmem que ganha vida ao sair de uma caixa do museu.

Jogando com memórias que evocam a história do país mas também do cinema – Uma Noite
no Rio, Banana is my Business – e atualizando o fantasma dessa figura icônica em relação
ao maior parque urbano do mundo à beira mar, Luisa Marques talvez tenha produzido
aproximações de materiais distintos de igual grandeza, explicitando a natureza de parque
de diversões fantasmas daquele espaço lindo e hipnótico.

Ao apresentar o cadáver e a máscara mortuária de Carmen Miranda, o filme também liberta
a mulher por trás daquelas roupas e saltos da prisão de imagem fadada a replicação. Alegre
e melancólico, o fantasma de Carmen se diverte livre pelo Aterro, equilibrando sua pequena
coroa em decomposição, em companhia de espectros os mais variados, principalmente o
fantasma sempre atualizado de Brasil-mundo.

Pelo dito aqui pode não parecer, mas essa é uma das mais belas homenagens a essa figura
icônica de bananas e abacaxis tropicais. Um salve à filha da Chiquita Bacana, que nunca
entra em cana porque é família demais. Puxou a vovó, não cai em armadilha. E distribui
banana para os animais 🍌

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Toda história de amor pelo cinema é também uma história de fantasma (ou sobre minha experiência com Contos da lua vaga)

Por Natália Reis

Quando me deparei pela primeira vez com filmes de vanguarda no início dos anos 60, os trabalhos que achei mais interessantes foram aqueles que estavam desenvolvendo uma linguagem única para o cinema, uma linguagem em que o próprio filme se tornou o lugar da experiência e, ao mesmo tempo, era uma evocação de algo significativamente humano. Comecei a perceber que momentos de revelação ou vivacidade me vieram da maneira como um cineasta usava o próprio filme. Mudanças de luz de um plano para o outro, por exemplo, podiam ser muito viscerais e eficientes, comecei a observar que havia uma concordância entre o filme e nosso metabolismo humano, e a ver que esta concordância era um terreno fértil para a expressão, uma base para explorar uma linguagem intrínseca ao filme. Na verdade, as propriedades físicas do filme pareciam tão sintonizadas com nosso metabolismo que comecei a pensar no filme como uma metáfora, um modelo direto e íntimo, para nosso ser. E senti, na medida em que pude mergulhar nesse modelo e tê-lo nos representando de forma direta e profunda, que o próprio filme tinha o potencial de ser transformador, de ser uma evocação do espírito, e de se tornar uma forma de devoção. 

Convidado a falar das afinidades que podem ser traçadas entre cinema e religião, o cineasta experimental Nathaniel Dorsky trata em seu livro Devotional Cinema de um fator que acredita estar diretamente ligado à crença e à devoção: a capacidade do cinema de provocar respostas físicas no espectador, de se relacionar tão intimamente com nossa fisiologia que estabelecemos um vínculo devocional com alguns filmes. Dorsky ilustra isso no começo do livro relatando uma memória marcante da infância, uma experiência pós-sessão na qual, aos 9 anos de idade, depois de passar quase a tarde toda na matinê, sairia do cinema num estado entorpecido, observando o mundo que se apresentava como que constituído de cores, texturas, luzes e sons insólitos, alienantes. No caminho de volta para casa, a rua lhe pareceu um lugar estranho, e por um momento seu próprio lar também.

Todos nós, de certa forma, e em maior ou menor grau, já sentimos esse entorpecimento. As luzes se acendem e os rostos na sala se tornam confusos, lá fora a claridade injeta a retina com uma realidade ainda distante. Francesco Casetti, em seus estudos sobre o terror que o primeiro cinema provocou nas plateias pouco acostumadas (chamado apropriadamente de “cinefobia”), vai trazer exemplos de indivíduos que diante do evento cinematográfico foram tomados por uma comoção sobrenatural: 

Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você apenas soubesse como é estranho estar lá. É um mundo sem som, sem cor. Tudo ali –  a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar – é mergulhado em cinza monótono […] Não é vida, mas sua sombra. Não é movimento, mas um espectro sem som. (Maxim Gorki)

Uma cabeça  de repente aparece na tela e o drama, agora cara a cara, parece dirigir-se a mim pessoalmente e transborda com uma intensidade extraordinária. Eu estou hipnotizado. (Jean Epstein)

Esse tipo de testemunho me faz pensar nas minhas próprias experiências de arrebatamento, para além do choro mais ou menos contido ou dos pelos do braço arrepiados numa cena que seria revista inúmeras vezes mais tarde tentando reproduzir essas sensações. Um episódio específico talvez tenha me marcado de forma incomum: meu corpo retesado na cadeira desconfortável sendo tomado por uma descarga de medo e maravilhamento, um calafrio na espinha seguido pelo coração agitado e o sangue gelado, a certeza de que minhas pupilas se dilataram tentando absorver toda a luminosidade emitida da tela naquele instante. É difícil descrever o que se passa nessas horas, porque assumir o poder que a imagem em movimento tem sobre você é também um relato de aparições e de mundos transfigurados. E é disso que se trata essa exposição: uma história de amor e de fantasma.

Raúl Ruiz falava de um cinema com a capacidade “de nos deixar viajar até os limites da criação através da simples justaposição de um pequeno número de imagens trêmulas”. Segundo o diretor chileno, “neste impressionismo radical, o nunca visto estaria ao nosso alcance. O cinema se tornaria o instrumento perfeito para a revelação dos mundos possíveis que coexistem bem ao lado dos nossos”. Parte desejo parte projeção, acredito que esse aspecto revelatório do qual falava Ruiz pode manifestar um tipo de presença fantástica/fantasmagórica que por muito tempo esteve confinada aos domínios das habilidades mediúnicas e dons extrassensoriais. A fotografia e mais tarde o cinema não só trouxeram outros mundos –  invisíveis –  à tona, mas nos tornaram capazes de replicá-los e reproduzi-los, um tipo de registro partilhável que de certa forma democratizou o ato de ver e acreditar no extraordinário.

Minha história de assombração não é minha, é uma livre adaptação de Kenji Mizoguchi e do roteirista – e seu colaborador de longa data – Yoshikata Yoda de dois contos diferentes tirados de uma compilação de fantasia escrita por Ueda Akinari, Ugetsu monogatariContos da lua vaga por aqui. Mesclando temas que remetem à avareza e cobiça masculinas (considerando também a inclusão mais branda na lista de referências do conto “Condecorado”, de Guy de Maupassant) em oposição à benevolência e parcimônia de suas personagens femininas, Contos da lua vaga (1953), dirigido por Mizoguchi, narra a trajetória de dois aldeões de Nakanogo, na província de Omi, durante um período de guerra civil no Japão do séc. XVI, e as circunstâncias que envolvem a dissolução de seus respectivos universos familiares. 

Genjuro, casado com Miyagi e pai do menino Genichi, é um ceramista habilidoso que aproveita a escassez de suprimentos ocasionada pela guerra para vender suas peças de cerâmica na aldeia vizinha. Tobei, por sua vez, é casado com Ohama, irmã de Genjuro, e sonha em um dia tornar-se samurai. Certa noite, Nakanogo é invadida pelo exército de Oda Nobunaga, forçando os camponeses a fugirem. Genjuro consegue salvar a última fornada de suas peças, e, juntamente com Tobei, decide atravessar o lago Biwa com suas esposas e filho, na tentativa de levar a mercadoria para ser vendida em outro lugar. No meio do caminho, eles são avisados de que piratas e saqueadores estariam por ali. Miyagi e Genichi saltam do barco e voltam, ficando acordado que, após conseguir arrecadar dinheiro o suficiente, Genjuro retornaria para a família.

Na cidade, os dois homens rapidamente alcançam certa notoriedade. Com os ganhos, Tobei adquire uma espada e armadura, tornando-se samurai, mas negligencia Ohama, que é estuprada por membros do exército e acaba se tornando meretriz. Genjuro é abordado por uma jovem da nobreza, Wakasa, e sua acompanhante idosa, em busca de peças de cerâmica para seu palácio. O ceramista vai até a residência e descobre que ambas foram as únicas sobreviventes de um massacre. Seduzido pelos modos ostensivos com os quais é constantemente tratado, Genjuro se aproxima de Wakasa e, após um período vivendo juntos, ele é avisado por um sacerdote de que na verdade tanto a jovem quanto sua serva se tratam de espíritos amaldiçoados. 

Um ritual de exorcismo é realizado, e os dois fantasmas, assim como o palácio, desaparecem na manhã seguinte. Genjuro retorna para casa e encontra mulher e filho o esperando. Ele é tratado com cuidado e afeto, adormece e, quando desperta, descobre pelos outros aldeões que sua esposa havia sido morta há certo tempo tentando proteger de um soldado seu único alimento. Por fim, vemos Tobei e Ohama juntos, de volta à vida simples. Genichi corre até a sepultura da mãe com uma tigela de arroz num gesto honroso, e ouvimos a voz etérea do espírito de Miyagi. Um movimento de grua faz a câmera ascender aos céus.

As leituras de Contos da lua vaga passeiam pela propaganda anti-guerra, pelos efeitos destrutivos da ganância encarnada na figura masculina e da bondade misericordiosa e reparadora das personagens femininas. O crítico Robin Wood viu ali uma situação na qual as mulheres, apesar de estarem sujeitas sacrificialmente a um mundo de sofrimento provocado pela dominação patriarcal, “causam uma impressão tão forte na vulnerabilidade de sua situação social que nunca as esquecemos, mesmo quando elas estão ausentes por longos períodos de tempo de tela” . Para além das oposições de gênero e entre o material (a multiplicação dos ganhos, os objetos de cerâmica que assumem o estatuto de arte refinada ao serem adquiridos por uma nobre, o desejo de ascensão de classe) e o espiritual, o filme de Mizoguchi também lida com o amor como essa força transcendental capaz de curar feridas e conjurar espíritos. Tobei encontra com Ohama na casa de meretrício, mas está disposto a abandonar uma ideia de “honra”, enquanto samurai e enquanto marido, para ter de volta a vida pacata que viviam. Wakasa, por sua vez, não consegue partir para o além-vida porque nunca pôde experienciar o amor de um homem. Por fim, Miyagi, a esposa que olha pelo filho e pelo marido uma última vez antes de evanescer definitivamente.

Já o amor que transborda na devoção da qual Dorsky fala, para mim vai se manifestar numa cena cujos efeitos físicos já foram mencionados aqui. Mais ou menos na metade do filme, após receber a proposta de casamento de Wakasa, sem ainda saber tratar-se de um fantasma, Genjuro participa de uma espécie de celebração na qual a jovem dança em movimentos lânguidos inspirados no teatro Nô, e canta uma canção envolta por uma aura incomum. A voz suave fala da efemeridade das mais belas sedas diante das juras de amor eterno, é doce e cálida. Entretanto, pouco a pouco, novos instrumentos, extradiegéticos, podem ser percebidos e um ritmo assíncrono se apodera do ambiente. Wakasa demonstra temor e o que acontece em seguida é uma das sequências mais aterrorizantes e belas que já pude experienciar numa sala de cinema.

Uma voz masculina irrompe num canto gutural e nesse momento toda a mise-en-scène é feita refém do tom lúgubre que recai ali como uma sombra aniquiladora. Wakasa recua lentamente, acompanhada pela câmera, as luzes diminuem de forma que ela passa a ser engolida pela escuridão. Uma panorâmica vai revelar a antiga máscara de samurai de seu pai, um daimyo – senhor feudal –  morto na invasão do exército, e cuja presença assombrada agora é materializada no seu canto e na imagem bestial da máscara. Wakasa se refugia nos braços do amado com horror, e explica que essa é a voz de seu falecido pai, enquanto sua serva exclama com admiração que ele parece estar contente:

“Por causa de Nobunaga Oda, aquele detestável Nobunaga Oda, a casa de Kutsuki foi dizimada. Os únicos sobreviventes foram Lady Wakasa e eu, sua criada, mas o espírito do falecido mestre permanece no palácio, e canta assim toda vez que minha dama dança. Não é uma voz esplêndida?”

A cena toda dura menos de cinco minutos, mas é incontornável. Parte do horror vem do fato de que até agora os fantasmas (Lady Wakasa e as criadas) se apresentaram como seres mundanos, que podem ser tocados e sentidos, nos mantendo alheios à sua existência, mas nesse ponto do filme somos surpreendidos com a possibilidade do oculto se revelar sem ser anunciado, com certa violência até. Dizem que o medo é um mecanismo de defesa, mas aqui ele funciona como um chamamento das coisas extraordinárias que podem habitar os limites do real e da imagem. A imagem, por sua vez, quando assombrosa e perfurante, acredito que pode impregnar, possuir um receptor. Eu jamais consegui me desvencilhar do espanto sentido nesse instante: relembro os detalhes como se tivesse o poder de invocá-los e eles tivessem poder sobre mim. Ver rostos na janela de uma casa abandonada, divindades na infiltração da parede ou um ente querido que já partiu na mancha de uma fotografia faz parte dos encadeamentos poderosos aos quais submetemos a visão e a crença. Os fantasmas de Mizoguchi não são só assustadores, estão aqui presentes agora reassegurando minha fé e meu amor pelo cinema:

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A imagem oferecida: o cinema de Ricardo Alves Jr.

Ele fixou os olhos em você?

— Constantemente.
(Hamlet, Ato 1; Cena 3)

Por Rubens Fabricio Anzolin

Pascal Bonitzer costumava defender que o sucesso do cinema estava relacionado àquilo que, em essência, ele era capaz de reproduzir: o movimento e a vida. Ou seja, todo e qualquer procedimento que surgisse depois do registro original significaria uma alternância ou uma mancha diante do momento áureo e verdadeiro da captura. No fundo, a questão que realmente estava em jogo era nada mais nada menos que uma espécie de disputa entre realidade e mentira frente ao que se convenciona chamar de acontecimento. Isto é, se chamava-se o cinema de uma arte primeira voltada às atrações, era justamente porque a ele se devia a capacidade do aparato técnico da câmera em registrar o que de mais espantoso guardava o mundo. (Efeito esse, aliás, que passado um século da invenção cinematográfica, perdura até hoje: independente de códigos ou razões mecânicas, pouca coisa em cinema supera a sensação do espanto — de Mèliés a Ford ou Shyamalan, toda a aparição registrada com louvor será sempre uma hecatombe). 

No entanto, retornando ao dilema de Bonitzer, é possível ponderar que as diferenças da superfície-vídeo e da “superfície-grão”, a “imagem verdadeira”, chamemos assim, sejam muito menos relevantes do que uma revelação que reside no princípio de seu próprio raciocínio: antes de mais nada, a câmera, o ecrã, é a fonte primeira da captura da realidade. À sua própria luz nada escapa, e tudo que emerge diante do registro (aquele que não é adulterado ou modificado, claramente) pode ser lido como verdade. No fundo, a experiência cinematográfica é sobre isto: estar diante de uma janela intransponível, de um feitiço inalcançável.

Considero por bem relembrar tudo isso antes de começar a discorrer sobre o cinema de Ricardo Alves Jr. para que esteja claro que toda e qualquer presença analisada em seus filmes é resultado de um conjunto de fatores humanos que corriqueiramente são carregados até o limite da captura dos planos. O que significa dizer, em essência, que aquilo que existe, aparece, saltando diante dos olhos. E isto se dá não graças a uma trucagem posterior ao procedimento, mas sobretudo devido ao desejo de investigação conferido pelo plano frente aos rostos e corpos de sujeitos tão severamente enigmáticos. Sujeitos estes que, frente à câmera, são incapazes de repelir, transbordando através de faces, marcas e feições uma gama de sensações que dizem respeito ao indefinido.

Em palavras mais simples: de Material Bruto (2006) até Elon Não Acredita Na Morte (2016) o que se estabelece na obra do cineasta diz respeito a um jogo de fantasmas, de corpos que são capazes de estarem diante do ecrã mesmo parecendo não estar. Dentre estes personagens, pode-se rememorar o convidado que nunca chega à mesa de refeições de Convite Para Jantar com Camarada Stalin (2009), passando pelos corpos inertes e calados de Permanências (2010) e chegando aos personagens de Elon — seja do próprio Elon Rabin de Tremor (2014), que assim como o cavalo do filme persegue espaços vazios e escuros a procura do nada, até o próprio Rômulo Braga, na versão mais longa da narrativa, que crê estar atrás da esposa quando na verdade caça incessantemente o espectro de um corpo já morto. 

No fim das contas, o que existe de mais reluzente na obra de Ricardo é uma capacidade bastante singular de estar a capturar a presença humana, tanto a do corpo quanto a do espírito,  oferecendo ao espectador uma operação que privilegia o enigma, o não-visto que acaba por se revelar na concepção fotográfica de seus filmes. Neste contexto, duas obras de sua filmografia mostram-se essenciais na interpretação destes paradigmas: Material Bruto, seu primeiro filme, e Permanências, média-metragem realizado em 2010. Em ambos os casos, o contexto do filme se relaciona diretamente com o local cujas obras transcorrem: centros habitacionais de Belo Horizonte, locais simbolicamente abandonados ao léu pelos órgãos públicos da cidade e que estimulam o embate entre corpos deixados para trás e espaços em ruínas, prevendo assim um ambiente fértil para que haja uma trepidação da realidade. Em suma, o que este par de filmes dá conta de demonstrar é que a vida humana nestes espaços costuma orbitar um outro regime de tempo e de sensibilidades. Como se os sujeitos passassem a fazer também parte das pedras, das paredes e do tempo de uma localidade em específico, permitindo a estes corpos que sejam eles também uma espécie de habitação.

O primeiro detalhe resultante deste contexto que pode ser observado através do cinema de Ricardo Alves diz respeito ao trato com a pele, além da atenção que a câmera obtém quando procura capturar os rostos. Tanto em Material Bruto quanto em Permanências, o tempo transcorre de modo lento, a fazer com que essas marcas da vida (cicatrizes, rugas e olhos constantemente marejados — que, aliás, dizem muito também sobre onde estes filmes se passam e sobre quem são estes sujeitos), adquiram outras conotações através da dilatação dos planos.

Em Material Bruto, cada bloco do filme é dedicado ao esforço do realizador em aproximar-se cada vez mais do potencial de delírio destas habitações: há o personagem de Elon Rabin (o mesmo de Tremor e Elon Não Acredita na Morte) que durantes longos minutos performa uma espécie de surto diante de câmera, como se estivesse a estar possuído. Logo após, temos a presença de uma moça, que sentada em uma cadeira centraliza toda a ação de seus braços como se fosse guiada por uma força oculta, que não provém diretamente da concepção daquele corpo. Ao filmá-los, Ricardo é capaz de revelar um enigma importante: as imagens que forja não se revelam pelo que contém necessariamente de visível, mas sobretudo pelo que emulam e sugerem ao espectador. Não são imagens dadas, denotadas de certeza. São todas imagens oferecidas, operadas para que a presença ou a aparição se faça presente no campo da imaginação. Para que o espectro (o invisível dos espaços) possa também ter um lugar na janela da transparência que é o cinema.

Permanências é também uma obra que opera neste mesmo espírito, mas que diferentemente da catarse física oferecida por Material Bruto (essa presença invisível que possui os corpos e faz com que se choquem), privilegia a extensão do silêncio através da contemplação espacial das habitações. Num sentido mais amplo, permanecer diz respeito não apenas aos corpos que lá estão como também a cada movimento (lembremos de Bonitzer e do que falava sobre a essência do cinema) que a vida humana opera nestes recintos. Acima de qualquer outro, há um longo plano em Permanências que considero mais marcante que os demais: o de um homem mais velho a fumar um cigarro enquanto encara as lentes de Ricardo. Como disse, jamais será factível dizer que há ali uma presença ilustre, a tal imagem fantasma, mas o que o cinema revela a quem o assiste (ao homem e ao filme) é a certeza de que algo pulsa naquela presença, algo de carne, osso e matéria. Algo que se constrói através do agudo da chuva, da densidade da fumaça e dos olhos bem abertos, mediante espaços ocos e compartilhados, onde o filme procura rastejar — sempre na altura dos sujeitos — em busca da emulação de uma memória, essa lembrança indistinta que não se sabe bem o que é, mas que se sabe que existe.

Por outro lado, esse aspecto do fantasmagórico permanece presente também nas obras com apelo ficcional produzidas pelo realizador. De certo modo, é como se o cinema de Ricardo Alves Jr. funcionasse perante uma lógica da perseguição destes fantasmas dos corpos e dos espaços, que se penduram em uma linha muito tênue entre vida e morte. Tremor e Elon Não Acredita Na Morte são exatamente sobre isso: sobre perseguir o indefinido. Impossível não lembrar que Rômulo Braga percorre toda a cidade de Belo Horizonte andando sempre em círculos, passando por locais de grandes circulações, tentando se agarrar a toda e qualquer materialidade que lhe traga de volta à amada: das portas que chuta e arromba até as paredas nas quais sempre passa a mão, é como se este fosse também um personagem que emergiu da imaterialidade dos, e que reconhece a capacidade animada das coisas em se comunicarem com os sujeitos. 

Não deixa de ser curioso, ademais, que Elon seja uma espécie de segurança ou guarda noturno, pois é justamente nessas horas mais escuras que o indefinido faz morada, visto que a imagem já se torna incapaz de registrar com uma definição mais aguçada a verdade. Existe uma cena específica do longa-metragem em que o personagem vai de andar em andar em um prédio vazio à procura de algum sujeito ou de um invasor. Em nossa memória, fica a sensação de um indefinido, como se não fosse impossível que Madalena (Clara Choveaux), sua esposa, estivesse por lá, o assombrando. Em meio à busca, a lanterna de Elon vai jogando luz às paredes abandonadas, e quanto mais o sujeito procura por algo menos é capaz de encontrar uma materialidade concreta daquilo que o atrai. A grande verdade, é que tudo isto não está mais lá, mesmo que esta sensação se faça constantemente presente. Curiosamente, Elon Não Acredita Na Morte é um filme sobre uma mulher que nunca aparece de fato. Aparece seu espelho — no caso, sua irmã gêmea de cabelos louros — e aparece também o seu fantasma, materializado em um belíssimo plano onde Clara Choveaux passa os grãos de café no rosto, como quem tenta provar que é uma superfície verdadeira.

No fim, tudo se descobre como uma grande assombração. Pois tanto Madalena quanto sua irmã nunca estiveram lá verdadeiramente: estava lá, sim, uma presença, um acontecimento, que habitava possivelmente nas tantas sombras que rodeiam este personagem. Se aquilo que existe, aparece, em um sentido mais lógico, então, é factível conjecturar que Madalena talvez sequer tenha existido como um corpo concreto naquela realidade. Pois a imagem de Ricardo não revela nada de legível ou real que não faça também parte do universo da sugestão. Elon não persegue a amada, mas sim a miragem dela, o seu legítimo fantasma. Se é fato que o personagem não acredita na morte, isso se dá justamente por estar muito mais perto do mundo das sombras e dos espíritos do que deste mundo carnal, onde todo e qualquer café que se esfregue no rosto é tão volúvel quanto água. E a única certeza que existe na obra de Ricardo é unicamente aquela de Bonitzer, que perpassa todos esses filmes citados anteriormente: o que o cinema registra, está lá verdadeiramente. Já o que está no extracampo, que faz com que esses olhos, peles, rostos e espaços pareçam tão distantes e distintos, é apenas uma sugestão. Uma tentativa mais clara de aproximar o gesto do cinema a estes corpos e lugares habitados por fantasmas.

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A dança dos pirilampos

por João Lucas Pedrosa

O fantasma pode bem ser a imagem que os olhos deixam escorrer pelos dedos, mas que o espírito a ele com tudo se agarra. Sua raiz etimológica está no que se “faz mostrar” ou se “faz ver” (phantázein); enfim, uma aparição (do “aparecer” phaneín). E uma aparição não é uma imagem que se anuncia; é uma imagem que invade. Que desestabiliza, que estremece o local de surgimento. A aparição se impõe do vazio aos nossos olhos, torna-se o centro de toda atenção e, quando se esvai, fica gravada na mente, voltando quando quer, pulsando em vida própria dentro do espírito. O fantasma é a vida da visão assombrando a vida dos que veem. 

Naturalmente, no cinema, tudo é fantasma. É imagem que passa na tela e invade o espírito. Podemos recorrer à reprodução da imagem novamente mas, muitas vezes, o gosto está na memória da visão fazer do concreto uma tela às retinas do lembrador. Sem Título #1: Dance of Leitfossil, de Carlos Adriano, é essa experiência feita estrutura fílmica e, por isso, é, ao mesmo tempo, um filme de fantasma, de memória e de cinema. 

Adriano abre o curta assumindo o movimento retroativo já com a primeira legenda em fundo preto: “apontamentos para uma autocinebiografia / (em regresso)”. Entra, então, a imagem icônica do sorridente Vassourinha com um indicador levantado em frente à boca, como pedindo silêncio enquanto começa a faixa Desfado, de Ana Moura (o show está começando). Corte para o preto e, junto com os acordes do violão, entram Ginger Rogers e Fred Astaire, dançando na também icônica sequência de dança em Ritmo Louco (George Stevens, 1936). Os movimentos deles combinam perfeitamente com o tempo do fado de Moura.

A escolha por essas duas imagens, em suas texturas rasgadas pelos grãos do tempo sobre papel e celulóide, confere ao filme o tom de colcha retalhada (imagens velhas, reaproveitadas como panos velhos na formação de um novo conjunto). A foto de Vassourinha, por si só, parece uma referência ao mais celebrado filme do diretor, A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998). Um filme em cima da dificuldade de acesso à figura e à história do fenômeno sambista dos anos 1930 e 1940, precocemente morto no auge do sucesso. Ele se mantém por artigos de jornal e documentos legais mal conservados, discos arranhados de sua música: o contato com Vassourinha é necessariamente mediado pela degradação. A imagem usada em Sem Título #1 é cartaz de A voz e o vazio (e o referencial visual à obra mais comumente usado por sites de crítica ou cinéfilos), uma sorte de imagem simbólica associada a Adriano, e que parece adequada para abrir, sob reapropriação e ressignificação, uma série autobiográfica de filmes. A extensa pesquisa para A voz e o vazio foi auxiliada por Bernardo Vorobow, companheiro de décadas do diretor e então já falecido. O acesso a este amado partido, como o filme virá a mostrar, tem um rumo analogamente tortuoso. 

Desfado é uma música vibrante e bem-humorada cujo eu-lírico sente tristeza por estar feliz demais para fazer seu fado: “Ai que saudades que eu tenho de ter saudades / saudades de ter alguém que aqui está e não existe / sentir-me triste só por me sentir tão bem / e alegre, sentir-me bem só por eu estar tão triste”. A dança de Ginger e Fred ao som de Moura se estende num longo plano inteiro, e é interrompido pela tela preta no verso: “e lamentasse não ter mais nenhum momento”. É a primeira fratura de um plano até então sem nenhum corte, que consiste no hipnótico dueto corporal da dupla de dançarinos mais celebrada da história do cinema. O plano estava azulado, e agora retorna esverdeado. O procedimento de colorizar o enquadramento inteiro era muito comum no cinema narrativo dos anos 1910. Sem a existência do technicolor ou tempo para colorização à mão, a indústria recorria a um filtro de cor que tonalizava a cena num todo em tentativa de conduzir sensorialidades que condizessem com o tom do enredo. 

A imagem será novamente interrompida após o fim do número, com a saída dos dançarinos por uma porta, e um lampejo menos de 1s de Bernardo Vorobow rindo invade a tela em tom esverdeado (como um fragmento perdido da cena de dança que acabara de ser cortada) exatamente no verso “que aqui está e não existe”. Agora a cena do filme de 1936 retorna rosada e contrastada, mais quente e receptiva após a visita de Bernardo, para depois ser interrompida pelo preto e pelo lampejo agora azulado do riso de Vorobow. O posicionamento dos cortes mais significativos da primeira metade do filme (a interrupção de Ginger e Fred, o surgimento de Bernardo), necessariamente quando a música fala de fim e de ausência, prenuncia o encaminhamento da segunda metade do curta.

“Não repetir / Apesar do bis”, diz a legenda entre as metades do filme. Retornar, mas de outra forma sempre, como o rumo caótico da memória. Ginger e Fred retornam agora no tom prateado originário, e seus movimentos não duram mais de 2s antes do corte para o preto. Como a luz da lâmpada marcada na retina quando olhamos demais para ela, o último frame da dança antes do surgimento do escuro se repete em nossos olhos após o corte, tornando Ginger e Fred espectros mentais encantados. Eles não mais são interrompidos, mas invadem eles mesmos a estabilidade do vácuo com sua cadência mágica. O lampejo de Bernardo passa pelo mesmo processo; agora, quando surge, tem a mesma duração que os dos atores dançarinos, e o inclinar de seu riso é quase um movimento de dança (surgindo exatamente em “ai que saudade”, “e não existe”, “que aqui está”). A unidade corrente da música vira a liga das três imagens fragmentadas em pirilampos. É a feliz dança dos mortos, que cintilam porque apagam. 

Daí a analogia com o “fóssil de idade” do título: quando mais se passa o tempo, e mais se dissolve a ossada, mais gravada em pedra fica sua forma. No lugar da pedra, o filme grava em psique. A interrupção da imagem é o que a faz durar um tempo a mais no olho e na alma. Sua fragmentação a torna mística: o curto inclinar de Bernardo em riso solto é imagem tatuada e mágica como o flutuar do vestido e dos cabelos de Ginger, dos braços esticados de Fred. Assim como a falta viabiliza o fado de Moura, ela permite a Adriano um lampejo mais longo do amado; o fantasma de Bernardo é a bênção de sua presença. Sem Título #1 é a saudade feita cinema estrutural. E, provavelmente, a mais linda declaração de amor que nós temos. 

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A Liberdade das Imagens Mortas

Por Chico Torres 

O invento da fotografia e do cinema desenvolveu na arte aquilo que há de mais fantasmagórico em seu universo, um desejo presente desde as primeiras manifestações humanas através do rito: a conservação da vida pela representação. Toda a arte, se quisermos pensá-la sob uma possível perspectiva ontológica, é uma expressão desse desejo primitivo de conservação. É nesse sentido que Bazin afirma, em seu Ontologia da imagem fotográfica, que “A morte é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. Cria-se, então, um paradoxo, porque à medida que reafirma a vida e sua conservação, a arte torna flagrante a presença da morte, e é aí que ela cria os seus fantasmas. Para exercitar uma análise psicanalítica desse dado, podemos pensar nas fotografias do século XIX, dos entes queridos falecidos posicionados ao lado dos parentes como se ainda estivessem vivos; pensar também naquele primeiro cinema no qual a imagem funcionava como espetáculo mágico, quando a narrativa e o realismo ainda não haviam dominado o espaço do cinema de massas. 

Ao longo da história, o cinema, como que negligenciando a sua essência de registro desinteressado da realidade, procura desenvolver pela inserção da dramaturgia tradicional uma recepção que mergulhe naquela “segunda realidade” e esqueça, através da transparência, que se está diante de projeções espectrais. Se o primeiro cinema teve como sua força propulsora a imagem em seu sentido mágico, logo ele se transformou em narrativa, de modo que ficou submetido aos imperativos da construção cênica, com suas tramas e personagens.

Mas ainda é possível um cinema que procure seguir o caminho inverso dessa forma de representação transparente e se volte, novamente, para o valor primevo da imagem. Em sentido dialético, já que a inocência do primeiro cinema não é mais possível, abre-se a possibilidade de um cinema capaz de desenvolver uma linguagem que envolve a consciência primitiva da morte e, por isso, do desejo do registro, daquilo que só se faz relevante porque, justamente, foi capturado antes de seu total desaparecimento no devir. Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, filme de Apichatpong Weerasethakul (ou simplesmente Joe), pode ser pensado como esse cinema. Nele, vivos e mortos (ainda que seja difícil estabelecer esse dualismo) convivem tranquilamente em um ambiente que é um limiar entre realidade e fantasia. Se quisermos encontrar algum gênero para o filme, precisamos ir à literatura latino-americana e classificá-lo como Realismo Mágico, já que nele se cria uma junção desinibida entre o absurdo e o banal.

Essa ambientação, saturada de realidade e fantasia, acaba por revelar relações (extra)humanas tolerantes e amáveis, justamente porque cria um elo em que vida e morte são representadas sob o mesmo valor existencial, como se fosse possível encontrar o sentido ético da vida (e da morte) através de um encontro com um espírito. Esse campo aberto não apenas une vivos e mortos, mas converte o humano em macaco, como acontece com Bongsong que se tornou aquilo que perseguia com uma máquina fotográfica; da mesma forma que faz surgir um bagre falante e com poderes mágicos. É como se toda a natureza, orgânica e inorgânica, fosse capaz de se integrar em um mesmo nível de vida e consciência, ideia reforçada pelas matas e cabanas que ambientam o filme. 

Por outro lado, esse naturalismo fantástico não apenas nos coloca diante do inusitado em relação aos personagens e suas interações, mas contamina todo o filme com uma aura mágica em que a presença do espectro, da penumbra, do extremamente escondido e do extremamente iluminado surgem também como imagem primitiva e essencial. Por isso a luz e a escuridão são tão importantes no cinema de Apichatpong, elas parecem querer sintetizar o poder do contraste diante dos nossos olhos, um jogo com as bases elementares que constituem o cinema: luz e escuridão. Nesse sentido, tão importante quanto os personagens é a luz que recai sobre eles, ou a escuridão que os oculta.

E Tio Boonmee não está de todo despossuído de uma narrativa, aquilo que é narrado, para além da evidente ternura de um cotidiano, também se desenvolve como discurso político, todo ele relacionado a essa realidade fantasmática: passado, memória, destruição e recomeço. A encarnação e a lembrança de vidas passadas, dado pertencente ao universo mítico tailandês e de uma cultura apartada do mundo ocidental; a presença da fábula (um gênero de um passado literário) que evidencia a busca de uma beleza que nos faz pensar na opressão da estética do Belo instituída pelo ocidente; do exército do futuro, capaz de fazer qualquer um desaparecer com sua máquina de projeção, mais uma possibilidade de pensar sobre o olhar colonizador que se apropria e refaz a história segundo a sua própria cultura. 

Esses aspectos, ainda que desenvolvidos sob algumas referências diretas, como acontece com os soldados do futuro que remete ao conflito entre Tailândia e Laos, ocorridos entre 1987 e 1988, estão embebidos por esse olhar que converte o místico em algo comum, nos fazendo pensar em um cinema que tem na imagem o seu fundamento primeiro, deixando que uma nova forma de vida (e de morte) se manifeste livremente no plano. Todas as formas fantasmáticas estão presentes e convivem de maneira quase que com total naturalidade, como se tudo pudesse se integrar porque, afinal, são apenas fantasmas, apenas luz sobre a escuridão, apenas cinema, e por isso não precisam representar o realismo da vida, não há mais essa obrigação, aliás, nunca houve. 

O cinema é a morte não no sentido de algo que se perdeu para sempre, mas de uma ausência que se faz presente e que se torna suficiente como aparição, como imagem. Consciente disso, Apichatpong constrói um cinema de fantasmas, de seres místicos, de entrecruzamento e dobras porque sabe que o cinema é o único espaço em que isso pode acontecer plenamente enquanto imagem, já que é, por essência, projeção-fantasma do mundo, de um mundo submetido a estritas leis naturais, mas que se desdobra e se refaz diante da objetiva. Ao romper com a natureza do mundo, o cinema de Joe cria uma nova natureza para os nossos olhos, um campo em que se é livre porque não se tem medo da morte. 

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