O Godard pós-maoísta e experimentos em vídeo: Por um programa pedagógico de excelência

Por Luiz Soares Junior

Pessoa em cima de cavalo

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“Sabemos que Maio de 68 confirmou para Godard uma suspeição que já possuía: que a sala de cinema era, em todos os sentidos da palavra, um mau lugar ( mauvais lieu), ao mesmo tempo imoral e inadequado. Lugar da histeria fácil, da imunda pegação do olho, do voyerismo e da magia.”

Serge Daney, Aprender, reter ( Pedagogia godardiana)

“O verdadeiro tesouro de um Estado é a Verdade no espírito do príncipe”

Bossuet

“Vida, obra: é a mesma démarche, busca total: é o mesmo movimento que inspira viver e mostrar a vida, a mesma aventura.”

Jean-Luc Godard e a infância da arte, Michel Delahaye

  1. O introito para uma Nova Cena: Número Dois e Comment ça va, dois seminais filmes introdutórios

Em Paixão ( 1982), a operária de fábrica feita por Isabelle Huppert e inspirada em Simone Weill, a mística leiga socialista que ontem nos dera a Irene de Europa 51 (Rossellini), se pergunta diante de seu amante porque nunca mostram o amor e o trabalho no cinema; esta talvez seja a cena mater ou originária do franco suíço Jean Luc Godard, sinônimo de cinema tardio ou modernista, aquele que soube destilar a quintessência de um cinema, em todos os seus feitios e Manieri, voltados à possibilidade(s) da representação, cujo quid privilegiado é o “trabalho” infinitamente mediado, em suas articulações e tentáculos, da Linguagem; o amor e o trabalho a que Huppert se refere como ausentes da Cena/campo do cinema clássico – uma vez que em Paixão é a iconografia pictórica dos filmes de Jerzy sobre quadros en abîme que nos permitem ter acesso aos embates de sexo e de cash do fora de campo da produção artística e capitalista que suporta Paixão e o cinema em si como artesanato poiético esquizofrênico, em série industrial e em sua unicidade epifânica de Abertura de mundo- são a produção pulsional e fiduciária que amparam a obra cinematográfica, seus andaimes materialistas: e como, sendo um imenso cineasta como Godard, escapar do materialismo, esta arte tardia que nos ensina a ver a obra segundo os parâmetros da produção (somática e espiritual, financeira e sublime: do trabalho e do Espírito, do trabalho necessário à fundação do Espírito), do que a escora em seu fundamento e arrière fonds, da História e das histórias dos agentes sub-reptícios (crew, diretor, produtor, a geração à qual esta se destina e que vai desdobrá-la hermeneuticamente, lê-la segundo o seu diapasão epocal) e evidentes (o cast) a partir das quais uma obra é instilada maieuticamente no espírito do  espectador, e  acaba por fecundar a sua subjetividade segundo os cânones da alteridade do artista; Godard tardio pedadogo…não seria esta uma injunção redundante, dado que os grandes usufrutos da língua moderna enunciada pelo mestre não consistiram desde sempre em ensinar a não exata ou apenas ver o mundo aí, janela de Alberti baziniana ou cache hors cadre, mas sobretudo e de forma eminente a relê-lo, a decalca-lo segundo a Biblioteca de Babel dos codex expatriados de uma língua urdida pela genealogia da escritura fílmica? Nós, seus discípulos e alunos, aprendemos novamente a ser bovaristas a posteriori e contemporâneos de Borges, a designar a experiência hebdomadária e novelesca segundo os cânones ruminantes e romanescos do Livro.

Desde Acossado, desde os seus textos sobre Tempo para amar e tempo para morrer, Homem do Oeste, Hot Blood e Bergmanorama, não seria Godard este paradigmático pedagogo, aquele que vai ensinar, em todo o mundo e sob o vórtex de dessemelhantes, embora sempre de ruptura, histórias do cinema (Fassbinder nascituro, Skolimowski, Glauber Rocha, o cinema liberto da cortina de ferro, o cinema trabalhista inglês, o cinema guerrilheiro latino-americano, montagem dialeta extemporânea à la Kluge e contemplação dialeta sub espécies/intempestiva segundo Straub-Huillet, o viajante balada-existencial de Wenders, e  é claro o uso saturado e especular do vídeo esquizo em The blakout de Abel Ferrara e paranoico futurista em O príncipe das trevas de Carpenter), a como ser modernista, a como acolher numa arte da imagem os dons deste esperanto universalista de uma língua cifrada (daí a  necessidade da pedagogia: ela é dada em potência pela montagem, mas esta potência precisa ser atualizada pelo manejo demiúrgico do artista dialeta, ser ativada pelo significante em sua ronda imanentista) que desde então será absolutamente nossa: nosso destino, nosso Verbo feito tool de conhecimento; com Acossado, segundo Lourcelles, perdemos a inocência “e a magia natural do cinema”, e segundo Melanie Klein todo território usurpado pelo conhecimento é um paraíso perdido “(…) o cinema, como que ferido, ficou mais triste, menos criativo, mais consciente de si mesmo” (Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes); Lourcelles, eminente crítico com o senão de ter reduzido toda a história do cinema ao apogeu de seu período clássico (1910-1950)- e, de portanto, estabelecer como cânon de seu interesse principal as virtudes da transparência, do cadre frontal e central, do raccord teleologicamente orientado, do campo e  contracampo causalmente dialogais, da história bene trovata e raccontata-, enfim: cada filme se constitui em uma figuração da reconciliação; com a  acuidade de um grande hermeneuta do espírito clássico, Lourcellevê Godard com a  justeza daquele inimigo que, segundo nos ensinou o Freud do narcisismo das pequenas diferenças, deve ser eliminado porque revela muito de nós mesmos, porque mesmo que com esmero e  erudição, como sempre foi o caso de Godard, é o nosso révelateur em negativo: o cinema clássico foi majoritariamente inocente (há exceções, que só confirmam a posteriori a regra) porque eludiu, recalcou ou sublimou, por exemplo, os materiais de produção e ereção da obra propriamente dita, como a economia e a sexualidade em jogo no ato de amar e trabalhar, ainda segundo a operária de Passion; Lourcelles viu em Acossado advir à Cena principal tudo aquilo que os clássicos haviam deixado na beirada do plano, hors cadre tópico e hors champ estrutural: os faux raccords (deses)estruturantes de Acossado são apenas a figura mais escandalosa para aquele que, como na letra evangélica, sempre temeu a exceção da virtù clássica como o Diabo temeu a cruz; Lourcelles admitiu os barrocos, como Welles e Blake Edwards , mas jamais um tardio como Godard, justamente porque o metro clássico reativo que vê o pantagruélico espírito barroco como exceção a ser suprassumida já foi ultrapassado pelo cineasta tardio, que vê tudo segundo os fins últimos da arrematada irreconciliação; Godard jamais pôde ser cotejado com os clássicos porque mesmo fazendo filme seus contemporâneos a eles sempre esteve muito à frente, interessado menos no objeto a ser descrito pelas formas do filme do que no disegno da própria forma ou estrutura que se debruçava sobre o objeto; a Godard nunca interessou o raccord diretivo ou a história bene raccontata, como a Risi ou Freda, porque mesmo em um filme a princípio neo-clássico como O desprezo ( que, sob um ponto de vista genealógico e diacrônico, deve antes ser visto como contemporâneo de Paixão ou Sauve qui peut (la vie) do que de Les carabiniers ou Experiment in terror) o classicismo para ele sempre foi aquele privilegiado objeto de mise en scène e cadre a ser eficientemente manejado espacialmente pela câmera bisturi e temporalmente pelo faux raccord da infinita repetição entrópica das andanças de Piccoli: jamais existiu como um meio neutralmente aquoso para, transparente, permanecer invisível e deixar ver apenas o conto a ser contado; para Godard, nunca houve exatamente transparência senão enlutada , em O desprezo  quando da cena reveladora do acidente fatal de Camille e do produtor: a Mulher, ou o Eterno Feminino a que a eleva seu trágico desprezo para com o marido, cúmplice do produtor na operação de aviltamento da esposa (objeto de cena animado dentre outros a ser contabilizado no cômputo geral de objetos ‘valor de exposição’ do filme). Em Sauve qui peut (la vie) e Paixão, filmes tardios mas romanescos do período pós-maoísta, no início dos 80, uma espécie de índex mnemônico da transparência impossível (um plano do céu límpido-lazúli, lavado de luz, nos créditos em Sauve qui peut e segundo o pv de uma personagem protagonista em Paixão) volta para conflagrar a obsessão do classicismo como uma Origem a que só podemos voltar outros, diferidos pelo trabalho sistemático de seus arquétipos-significantes. Voltaremos ao neo-classicismo tardio ou diferido de O Desprezo (oxímoros sempre falarão melhor do que eu) e ao tardio romanesco dos filmes supracitados depois, mas a questão ad hoc deste texto se coloca: para um diretor que nasceu e permaneceu votado à pedagogia como Godard que mais-valia trouxe para um cinema mais de leitura ou elucubração que de percepção gozoza e ultra-ficção o interregno maoísta?  Que tools, que parênteses e notas de rodapé trouxe para a pedagogia brincante École des hautes études dos anos 60 esta cartilha guerrilheira voluntarista (para distingui-lo do Leninismo, estatal e com colaboração secundária dos camponeses ou operários) do final dos 60, onde o dispositivo e  o simulacro são reivindicados para, sob a base materialista do estudo sistemático do contracampo e de ativação maiêutica do fora de campo com o propósito do estabelecimento da Verdade dialética (a biifronte, biface de Janus que tanto fascinou os surrealistas em seus collages fantasmagóricos), o mundo representado se torna também aquele que pode ser, senão precisamente transformado pela luta operária, pelo menos virado de cabeça para baixo, trabalhado ad libitum por significantes flutuantes pois submetidos a um devir saturado de negatividade; se na Origem tudo era apenas registrado epifanicamente (Lumiére) ou artesanalmente recriado numa Cena teatral (Méliés), a historicidade inerente à técnica News on the march do cinematográfico solicita a criação de devires, ferramentas, mecanismos, artes da arte que possam dar conta de todo este tempo decorrido desde a Origem (precisamente: um artista tardio, que dialoga com a  tradição e a traduz/tradire para os seus contemporâneos e coetâneos de zeitgeist). Sim, trata-se de, como um guerrilheiro poiético, investigar as bases- o corpo do dinheiro, da técnica, o corpo soma, o corpus operário-, pois a infra-estrutura agora é o vértice principal da pirâmide: o que podem nos falar as aventuras da economia, da política, do trabalho, do sexo? Neste período de avant-garde monista discípula de Engels, Godard abandona em sua maior parte a fabulação superestrutural para se concentrar em sua produção infra-estrutural. Aqui, vou me centrar primeiramente em dois filmes exponenciais para o desenvolvimento da pedagogia terrorista do período maoísta e da experimentação em vídeo que se lhe seguiu, filmes que se intercalam e intervalam segundo o diapasão crítico que conheceu seu ápice nos meados dos 70, condições necessárias mas não suficientes para a reviravolta esta sim decisiva, em termos de hermenêutica e depuração formal, das duas primeiras obras-primas dos anos 80.

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Nuvens no céu

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1.a) Comment ça va: Os intervalos do sentido

Em uma conversa entre Godard e Serge Daney, um insight se afirma de forma virulenta contra o marasmo enlutado do leitmotif da “morte do cinema”: “O cinema clássico filmou as coisas; o cinema moderno, o que existe entre as coisas”. Este espaço-tempo intersticial, que nos apresenta as coisas do mundo antes de tudo como relação, preside de forma paradigmática a todos os filmes de Godard, estruturando-os como aventuras cognitivas e fenomenológicas da Diferença. E Comment ça va talvez seja o seu filme pedagógico mais acessível, talvez por nos apresentar as divisas de seu combate sob a forma de petardos panfletários, enunciados de forma categórica pela personagem feminina, que junto ao personagem do comunista dirige um filme em vídeo sobre as condições de trabalho na França do final dos anos 70. Mas se em Godard o que importa é menos a manifestação das coisas do que sua interpolação dialética, temos, além das discussões sobre representação e Poder que os co-diretores empreendem, também o diário do cotidiano de um casal, além de dezenas de fotos e um crescendo ruidoso, que informa e transborda o filme: a Revolução dos cravos. É sempre assim em Godard, e Comment ça va talvez o ilustre mais exemplarmente que qualquer outro filme desta fase: os consórcios entre os corpos e as paisagens (naturais e culturais) ressoam e amplificam um fora de campo inominável, político, histórico: nada do que nos aparece se dá de forma impune; nada é inocente. Tudo é o efeito de uma camara obscura da significação, que imanta o espaço intermediário entre as coisas com seus virtuais prolongamentos hermenêuticos; tudo deve vir a significar, mas a Iluminação pelo sentido apenas pode se dar no entrechoque do collage: nada preexiste às coisas em si ( não há mais, como no idealismo do classicismo, a crença em
coisas em si), e sim advém no devir de sua provocação recíproca: imagens e sons, diegeses, histórias e Histórias.

Homem tocando piano

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“O cinema que nos interessa é o cinema da escritura, e a escritura pressupõe necessariamente um espaçamento entre as linhas: o fora de campo” (Daney). Não há outra dívida para os modernos senão esta, e o cinema de Godard sempre se empenhou em resgatá-la: é preciso não apenas mostrar, mas desvelar significações e analogias, emprestar à matéria imagética uma espessura cognitiva que a imagem, a princípio inocente, parece recusar; a montagem é esta operação violadora, cuja função consiste em forçar a imagem a pensar, e este processo necessariamente implica a coabitação desta com outras imagens e sons, geralmente em décalage em relação ao que nos é mostrado. A montagem é o instrumento privilegiado do fora de campo (aqui chamado de Olhar), já que se incumbe de fraturar o plano presente, submetê-lo ao império do descontínuo, e assim infiltrar a atualidade do que se mostra com a virtualidade da hipótese: a montagem impõe à imagem a injunção de abandonar o Éden da fascinação e aportar no Purgatório da linguagem, a abandonar o hic et nunc epifânico do campo em nome da ambiguidade enunciatória do fora de campo; em Comment ça va, o personagem do Comunista, acostumado a ver o mundo sob o prisma “infra-estrutural” dos modos de produção, vai sendo conduzido a interpretá-lo em termos superestruturais de significação e espólio cultural, e o vídeo documentário sobre as condições de produção de um jornal francês acaba necessariamente por anexar à sua démarche a Revolução dos cravos portuguesa , mas também o romanceiro da relação de um filho com a memória de seu pai, reciclada através de sua mais nova relação amorosa; as imagens que não vemos da Revolução cravos (acessível apenas através de duas fotografias, que adquirem um devircinematográfico ao dialogarem entre si, através do campo e contracampo e do fondu), das greves e comitês, assim como do pai desaparecido, presente unicamente através de cartas, são os motivos orquestrais do filme: tudo aquilo que vemos é informado por um contexto vertiginoso, que ultrapassa fronteiras geográficas, de língua e de classe (ultrapassa não: suprassume-as). O fora de campo é uma experiência de generosidade hermenêutica, pois oentr’acte amoroso como o encontro ideológico encontram seu lugar como cúmplices em uma estratégia terrorista de dessacralização da imagem vista pelo significante lido; se Comment ça va é um filme estrutural de dialogismo, jamais poderia ser considerado um território de reconciliação; o que Godard busca é justamente chamar a atenção para o processo, nunca estacioná-lo em um termo: a construção do olhar, a imantação significativa do campo pelo fora de campo, a discussão de papéis (o Homem e a Mulher, o Patrão e o Empregado, o Diretor e o espectador). Se as coisas constituem um ponto de partida inalienável (Godard é um grande cineasta, assim parte sempre de uma base materialista: a máquina de escrever, o copo de absinto em primeiro plano, a máquina de impressão) , é apenas se as considerarmos como trampolins, necessárias mas não suficientes, para a edificação do sentido.

1.b) Número dois: O software do corpo

Para o Godard experimentalista do vídeo, este é uma figura da negação hegeliana, agora devidamente encarnada em uma matéria antitética, pois contrapõe-se ao idealismo platinado de definição da película 35mm: a perda desta definição nec plus ultra equivale à Queda do Éden do Bom, do Belo e do Justo (tríade platônica luminosa, mas também exclusiva, exclusora: do corpo, do dinheiro, do trabalho) de que o classicismo reconciliado um dia foi o habitat; quando monta Número dois, Godard tem por objetivo/objeto a desconstrução da sexualidade segundo a economia restrita do corpo do casal e da conversation piece do grupo família: para a enunciação terrorista do pedagogo dialeta, porém, o corpo não é mais um organismo ( velha concepção metafísica: sistema, com seus cânones e exceções a excluir), e sim adquire a configuração-bild de uma fábrica atual ou de uma paisagem (número 2: imagem virtual); ao colocar como princípio o Era uma vez desta fábula sobre o trabalho e o sexo, ambos são visados sob um mesmo arquétipo gerador, gerenciador, pois o corpo é agora antes de tudo, segundo a atualidade do campo enunciativo, fábrica; eles se trocam e se engendram mutuamente segundo a moeda de troca fiduciária da produção (de imagens); em Número deux, tudo é binário, porque para engendrar o sentido é necessário pelo menos um par, para o fucking hell literal e selon l’esprit da Significação é preciso pelo menos dois: o beijo de Erland Jospephson em Liv Ulmann  (na TV acima) em Gritos e sussurros e o meeting revolucionário (na TV abaixo), modulados, trabalhados, vindicados pelo patron Jean-Luc, pois o cinema é , como a TV (decadência da baixa definição, função crítica do vídeo decaído da tríade platônica: um corpus binário) uma fábrica de vertiginosa produção em série; como, porém, extrair desta série indiferenciada de imagens que se cristalizam em um corpus binário (acima, abaixo; na frente, atrás, como um corpo humano submetido à coreografia pas de deux do sexo), como ativar neste registro indiferenciado e interminável, neste vórtex de imagens que desfilam na tela-plateau a ideia de um software, de uma coisa pensante, à semelhança do Descartes acossado pelo demônio da dúvida? Cinema binário, Número 1 e número 2! Godard intitula de número dois talvez o seu filme mais sistemático e de metódico divertissement sobre o corpus binário que governa nossa vida e representações, jouissance e mediações: infra-estrutura e superestrutura, entre trabalho e obra; e lembram-se de Daney?: “O cinema moderno acontece entre as coisas”; é no interstício, no intervalo, como intervalo, que as coisas se imantam e colidem, e um dia talvez venham a significar, na cabeça do espectador; se Comment ça va investigava o trabalho e  a técnica tendo como fora de campo as cartas afetivas entre um pai, um filho e a aurora para a política dos 70 da Revolução dos cravos, Número dois permanece devedor do fora de campo (a fábrica de sonhos do cinema, a televisão agora como tool crítico, pelo uso de sua baixa definição), mas o grande paradigma desta investigação sobre significantes flutuantes e significados fixados (pela tradição, pela cultura capitalista, pelo valor de exposição no caso do cinema e da televisão, e eis o que é preciso desconstruir) é a indagação inaugural, que ao cabo nos reencontra: a fábrica geradora de imagens também pode conter uma virtual paisagem? O contracampo é o rodapé do campo, aquilo que a posteriori permite a sua ressignificação. A pedagogia maiêutica, de campo a contracampo (contados os dois quadrados televisivos que ocupam a mesma tela, na penumbra do estúdio de montagem) é aquela cartilha que permite ao cineasta-pedagogo deflagar a essência- aquilo que faz do corpo o que o corpo é, seja este uma paisagem, uma fábrica ou o corpo bípede do homo faber-e  ativar sua possível história, o disegno de seu devir, aquilo que um Heidegger cioso da virada da política-pólis para a poiésis da obra de arte (ambas obras, ambos corpos imantados por devires e demarcados por um eidos) chamou de Gesicht; nesta virada mediada pela negatividade decrépita do vídeo, Godard empreende também um trabalho de arqueologia genealógica, e como uma criança que segmenta primeiro a palavra em suas porções indecomponíveis para só depois visá-la sob a Gestalt de sua totalidade, começa pela parte, pela partilha, pela unidade irredutivelmente primeira do quadrado que divide a tela, magnetizando-a de dialogismo à la cópula hadware/software; aqui, o sexo e o dinheiro revelam seu quid e contam sua história, conjugando-se segundo as categorias desta arte tardia cuja grandeur culture da técnica em sua enésima potência é a pré-condição de sua maioridade conceitual; melhor, mais eficiente e coerentemente do que ninguém (genialidade do contracampo clássico, reeditado aqui a serviço da diatribe dialética), Godard o soube fazer.

Reflexo de homem em frente a televisão

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Todo corpo em Número dois é uma via aberta possível para a designação de qualquer palavra; você é bom ou mal papel?, pergunta o avô para Nicolas , e queima um pedaço de papel para achar a sua essência inaugural, sua matéria imaterial, ou quid…O corpo da fábrica, o corpo da paisagem se resolvem definitivamente por intercessão daquilo “que é dito”, mas ao contrário dos capitalistas e dos pensadores da metafísica da subjetividade jamais esgotamos o tesouro do dictum: ele permanece sangrando, jorrando gotas vultosas de sentido; o cinema clássico, como a  cartilha clássica significante/significado, porém, nunca admitiram esta incondicional abertura da coisa, sua historicidade radical, e assim a aprisionaram na torre do significante único, ideal e imune às estripulias da alteridade aí, no mundo; mas a fórmula continua a mesma, embora aberta e porosa às intempéries da História: ao serem ditos, enunciados, designados, eles, os corpos, se tornam paisagem, fábrica; Saussure e Melanie Klein- aquele que se interroga sobre os significantes, aquela que designa o mau objeto- comparecem aqui para questionar o corpo do significado, a sua base infra-estrutural; e um parênteses: lembram-se que Hollywood sempre foi designada, pelo menos segundo os capitalistas judeus escapados em uma segunda leva do nazismo (sim, um fora de campo ) que  a levaram a prosperar como usine à rêves, como fábrica de sonhos? Em Número dois, Godard cava e cava ainda mais, e se questiona como uma criança que habita ainda o introito da enunciação, o limiar de sua existência: o que é um corpo? E o que é uma paisagem (ou La nuit, segundo a recodificação eletrônica que as letras sofrem no filme)? A fábrica de sonhos de que sonhos foi feita, então? Qual o seu quid, a sua matéria, a sua história? Não há respostas definitivas ou significante terminal na jornada aberta aos idioletos da cultura de Godard, pois talvez precisemos esperar até meados dos 80 para a urna funerária Summa Histórias do cinema; aqui, ainda sumariamente modernistas, ficamos com os estilhaços binários. Só há questões, em sua potência infinitista, jamais atual: Em um recorte de vídeo que ocupa o centro da tela e reivindica a intensidades ressoantes do fora de campo (memória, imaginário: sim, uma fábrica de sonhos), uma mãe de roupão convida a meditativa filha que come a dançar, e se encaminha bailando para o fundo do plano; é isso: Número dois pretende inventariar a história do significante-cinematográfico, daquilo que ocupa um plano, e  para isto ele precisa indagar da Origem, do gesto originário: a mãe que dança, a filha que come; mais-valia e infra-estrutura, trabalho e divertissement: o cinema foi uma arte binária, e o vídeo é aquele complemento sectário de má-consciência pensante (voltemos a Descartes: uma coisa pensante e seu usufruto de fantasmagorias, de gênios perversos, de tristeza e de exceção), de culpa metódica, de diferença irredutível que vai fazê-lo funcionar segundo a materialidade negativa do pensamento, que nunca foi natural: o pensamento, para que possa advir, deve ser objeto de uma fricção inesgotável, de uma torção e uma gestão por excelência anti-natura dos elementos naturais ‘de base’ fotográfica do cinema.

Tela preta com letras brancas

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Como no sexo, por exemplo, objeto privilegiado para o questionamento ad libitum do pedagogo terrorista: o sexo não pára de falar; o sexo humano é uma enxurrada de significantes que tentam emular trechos e posições e gestos de corpos que jamais vão acabar de se dizer e foder mutuamente; foder é falar, como trabalhar e nascer e morrer, e neste sentido Número deux é um filme de ação tão válido quanto Rio Bravo ou Rio Lobo de Hawks, porque é um filme da absoluta vitória da enunciação (e quais foram os grandes filmes de ação senão aqueles em que o corpo fala, incondicionalmente?): há um revelador diálogo entre a mulher e o homem do casal prototípico usado aqui; ela, masturbando-o suavemente, diz: “Quando vc vai trabalhar, eu olho para a sua bunda, coisa que vc nunca pode olhar diretamente; e quando vc volta do trabalho, eu olho o seu pau”: é isso: falar todos falamos, como órgãos e paisagens, mas para falar corretamente, para dizer a verdade justa no sentido do Juste une idée do Godard do período intermediário, é necessário adotar uma posição adequada e um modus operandi de falar: para que o Homem finalmente veja sua bunda e goze com a visão da mulher, são necessários justos Método e  posição: a jouissance, o supra-gozo da significação é sempre questão de uma base de situação/libação/enunciação finita, de uma conjugação consoante, de uma posição no espaço do plano e segundo o tempo da montagem, pois a pedagogia pressupõe que haverá sempre uma má linguagem e uma boa, usufrutos da valoração como são as coisas significantes: então, é preciso ensinar, designar, enunciar adequadamente; Número dois , um filme em película sobre um filme eletrônico, é dos maiores filmes pedagógicos de Godard porque nos permite, com os meios das coisas-corpos e seus traços e posições, chegar à lição de sentido que sem as coisas jamais seriam.

2.a) Sauve qui peut (la vie): O capital do Renascimento

Texto, Carta

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No início deste texto, me referi à empreinte mnemônica do céu azul lazúli, oficioso plano roubado à gesta de epifania clássica da divindade grega, que o Godard de Paixão e o Oliveira de Não, ou a glória de mandar chegaram a filmar, presente tanto em Sauve qui peut (la vie) quanto em Paixão; no primeiro filme, ao céu lavado de luz superpõem-se os créditos: é como se Godard filmasse o Renascimento de seu próprio cinema, sob os auspícios e augúrios da luz neo-clássica, daquela mesma que  viu nascer L’arroseur arrosé e Viagem à lua (sob o céu de cartolina pintada), o primeiro registrado e montado diante do próprio evento hic et nunc e o segundo cozido e costurado às expensas do teatro do estúdio; para reencontrar uma nova Origem, ponto de partida a que todo dialeta pedagogo sabe que precisa retornar começando- uma repetição eivada da diferença de toda esta história que passou desde a aparição do primeiro fenômeno, agora mediado/meditado/modulado pelo devir de sua própria história, como o Hegel da fenomenologia cansou de nos ensinar-,  é preciso reencenar a Origem: seu décor, sua luz, seu contracampo, sua iconicidade e seu fora de campo; é preciso tirar o próprio mito do mito, este salvífico (a aparição dos deuses) e originário (Lumière) do céu tamisado de nuvens; o esteta modernista acolhe no seio de sua própria eclosão (lembremo-nos de que se trata de um recomeço de carreira, retomada de certos cânones narrativos de estúdio que em Godard jamais vão coincidir com uma práxis acadêmica, é claro, mas em todo caso temos uma tentativa de reinserção/reconciliação com codex já estabelecidos, com situações e compassos já dados numa certa histoire du couple do cinema francês contemporâneo, de Sautet a Pialat) a Origem que viu os clássicos nascer e morrer, pois se em Sauve qui peut é o registro ontológico ,fotogramático do céu que se manifesta fenomenalmente, amealhando o capital visual de uma certa infância ex-nihil do cinema, em Paixão será o céu rugoso de tinta e enquadrado excêntrico de Poussin, Goya, Velásquez, filmados pela mesma câmera que filmara o horizonte lumieriano: cinema ontologia, cinema féerie, repartidos entre dois filmes, Sauve qui peut e Paixão, que se complementam exemplarmente como a história do cinema se refratou e consumou a partir de duas eminentes origens; em Sauve qui peut Godard é vidente, ontólogo, fenomênico, documental, mas também já anuncia as manipulações da imagem cinética de que os cavalos cinematografados de Muybridge nos deram o paradigma cinético das Origens com seu uso sistemático da câmera lenta, demonstrando-nos e mostrando-nos ( verbo este que também se difrata em seu cinema ora votado à especulação dialeta rigorosa, ora à aparição do fenômeno em seu esplendor irisado de luz) que o quid de uma técnica, se aprofundada com sistema e arché consequentes, também pode nos revelar (o révelateur que está na base da produção fantasmática da imagem cinematográfica) o sentido de sua História, de sua destinação epocal; Godard vai começar semi-documental (ou documental pós-maoísta), com estes planos anamorfoseados pelo slow motion de Nathalie Baye correndo de bicicleta pelas estradas frondosas de árvores, mas não estaca aí, porque o seu cinema binário (intelectivo e epifânico) dos 80 precisa tudo raccordar segundo o faux raccord da dialética tardia, que conhece agora segundo o metro de stacatti de tempos mais lentos, digressivos; materialismo oblige, ele vai nos dar mais uma lição de economia somática, ao nos apresentar à personagem de Isabelle Huppert, jovem prostituta que cruza o caminho do combalido casal burguês do cineasta e da host de tv; o corpo aqui , pelo menos segundo o paradigma com que são filmadas as ententes sexuais de Isabelle Huppert, se negocia segundo o modus operandi das prostitutas ninfetas dos anos 60 (a prostituição é um leitmotif chave da obra de Godard, para falar do corpo fascinatório de nitrato do star de cinema que também é um corpo de puta sob holofotes obscenos, como o final inspirado no Retrato oval de Poe de Vivre sa vie vai cruelmente ilustrar), mas o modus vivendi existencial do Tempo e hermenêutico da ironia godardiana são elementos chaves para esta sua late versão: os corpos que se traficam e experienciam vivências de revelação diante da Natureza, os corpos que trocam ideias ou silêncios ou digladiam sobre a mesa, todos possuem tempos próprios, todos se medem segundo o fá concertante de um Godard que achou uma maneira irreconciliada de aliciar para seus ensaios laboratoriais sobre os devires da matéria no capitalismo tardio os ágios ascéticos da Graça baziniana; o filme contemplativo Sauve qui peut (la vie) é também um estudo pós-maoísta, e  portanto diferido pelos social jokes da ironia de Godard, sobre o corpo em exposição do capitalismo tardio, como esta amiga de Huppert que nos mostra os seios para amealhar capital de mais-valia diante da jovem aprendiz de putaria vai nos ensinar; “Todos se julgam mutuamente, e  o cinema julga a todos”: pensava ainda segundo uma escala reativa o Godard de O desprezo, que eu considero de acordo com paradigmas genealógicos e diacrônicos contemporâneo de Sauve qui peut (la vie); por que o cinema julga a todos? Porque a câmera vê e ouve de forma eminente aquilo que a finitude nega à persona individual, e estabelece uma arena recíproca de julgamentos parciais arregimentados pelo Julgamento totalizante da montagem, Logos concêntrico feito dos excentrismos de cada visão parcial; Sauve qui peut (la vie) é talvez o filme do late Godard em que mais limpidamente este entrecruzamento reciprocamente revelador de julgamentos nos aparece, em parte pela sua dimensão de base lumieriana (pós-refratada pelo uso da câmera lenta, e portanto relida, é bom repetir), em parte por ser aquele filme onde podemos observar com clareza rutilante de sol os efeitos do aprendizado que o monismo materialista do Godard maoísta e experimentador do vídeo terá sobre uma obra de cinema mais convencional, romanesca. 

Homem olhando para o celular

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Se pudermos pensar em síntese a posteriori obras tão singulares, devemos pensar que Sauve qui peut trabalha uma síntese diacrônica de Comment ça va, cujo objeto de desconstrução são o trabalho e a ideologia de gauche, e a sexualidade de Número dois, entendida aqui também como trabalho mas, digamos, no sentido do “imediato indeterminado” hegeliano- a prostituição, o trabalho não-mediado do corpo como eixo de uma cadeia de produção de jouissance; espelham-se e especulam entre si o casal ‘de proxenetas’ da Cultura feito por Dutronc e Bayle e a garota um tanto desiludida demais para estar viva feita por Isabelle Huppert, cuja voz off soma-se à de Nathalie Baye como consciência desencantada do filme; Godard, materialista discípulo de Engels e, para as filmagens da Natureza, de Lucrécio,  filma o trabalho de Bayle e o de Isabelle como se fossem uma coisa só, prolongamento coerente do sexo no braço e mão que suscitam a stylo da escritura, como se de uma ponta da cadeia de trabalho (o sexo) à outra (a escritura, a representação) só existissem gradações e modulações, não necessariamente uma diferença de natureza, acrescentando-se o adendo de que talvez sintomatologicamente (ideologismos) a única profissão que é maculada de interdito em Sauve qui peut, que não pode sob nenhum pretexto ser mostrada in loco é a de cineasta de Paul Godard, mas volto a isso: a prostituição é em Godard a metáfora mais literal possível ( e, portanto, de estrato materialista, estritamente cinematográfica: um A é a enunciação de um A, não a figuração metafórica de um A) para falar de uma arte tardia, técnica e economicamente tardia, que entretém para com o capitalismo uma relação de sórdida dependência (Isabelle, masoquista que consente às regras do jogo perigoso para poder dar seu mate quando a hora chegar: Os caras só querem nos humilhar), relação de implicação epocal esta que nenhum supra-idealismo neo-clássico vai conseguir jamais sopesar, nuançar, amenizar; correlata à tese in extremis mas justa de Virílio de que o cinema foi o aliado iconográfico da guerra total nazi-fascista, Godard pensa que a prostituição é o vade mecum necessário, revelador do capital, e  portanto ela deve comparecer no cinema como tool iniciático da sua Verdade; se o artista é tardio, desconstrucionista portanto, desiludido um tanto, sistematicamente dialeta, ele tem de aceitar como partis pris de base de sua função que esta serve ao capital como a putinha ao cafetão octagenário; esta é, aliás, a  condição sine qua non de sua situação radicalmente epocal (sim, do fato de ter chegado cedo demais, de co-pertencer ao seu zeist como essência de seu sein): aqui como no maneirismo de Fassbinder, arte também too late, é necessário pagar a  dívida infra estrutural que uma arte tão cara e refinada em matéria de técnicas deve ter para com o produtor ou cafetão sofisticado, persona non grata mas indispensável cúmplice que assombra como o fora de campo para-vidente ao campo ultra-evidente toda a obra de Godard;  é claro que esta dura constatação é amortizada pelo a posteriori dos cimos de sublime das obras de Godard e Fassbinder, e a boca que efetiva o boquete na Cena iniciática de um ménage à trois,  a um terço do final do filme, no escritório de um investidor de boca pintada de rouge entre Londres e Paris ( de fato, Godard faz aqui uma indireta homenagem ao casting sexista do início do Saló de Pasolini, ao filmar uma pirâmide sadeana), é também aquela que recita Duras, o Sartre do Imaginário e Blanchot; aliás, não lhes parece estranho que a obra sobre a qual recai o interdito judaico de “Não farás imagem de teu Deus” (Êxodus, 20:3-6; Isaías, 40:18-20) seja justamente a do cineasta, que aqui nunca nos é mostrado au travail, prostituindo-se portanto? Jacques Dutronc, misantropo e de charuto onipresente, é a persona fálica do franc tireur Jean-Luc em cena, e não podemos deixar de nos lembrar do tio amalucado de Carmen e do professor Pluggy de King Lear para nos dar conta que Godard sempre cultivou em Cena um tipo de personagem nada agradável, projeção de si mesmo que arregimentara os adjetivos não exatamente auto-lisonjeiros do artista enquanto jovem cão; ao morrer atropelado aqui, Paul Godard também terá direito à decomposição semi-metafísica do movimento que vai imantar de aura momentos chaves do filme, mas ao contrário de Acossado, seu primeiro longa onde o herói também morre numa avenida urbana, Godard não poderá ter os olhos cerrados definitivamente como Michel, no contracampo para o rosto constrangido de Patricia: sua morte é simulada, inventada, encenada, mais uma palhaçada clin d’oeil  (“Não estou morrendo, já que não vi as imagens da minha vida montadas diante de mim”), com o Suicidio! da Gioconda tocado por uma orquestra intempestiva de músicos clássicos; a dignidade do The end da morte própria lhe é negada, e é pela fresta, dobra reversível entre a finitude da montagem e os subespécies da Natureza contemplada, desta morte não definitiva, desta reconciliação impossível mas mesmo assim solicitada aos deuses da arte que vai passar toda a obra do último Godard dos 80 e 90, impregnado de uma suave esperança de redenção, da relocação urbana do mito da virgindade Mariana em Je vous salue Marie ao capitalista ressuscitado de Nouvelle vague; de todo modo, o que mais me chama a atenção em Sauve qui peut é que, à exceção dos outros filmes, todos aqui trabalham segundo o parâmetro infra estrutural somático (a puta) ou superestrutural blasé (a roteirista), e  a dimensão propriamente crítica desta hierarquia está em que não existe no filme uma hierarquia precisamente: o braço, a boca, o pau e a cabeça pertencem a um mesmo continuum laboral, sendo Godard aqui coerente com seu trabalho maoísta de desconstrução: não há significantes nem significados mais ou menos nobres, há valores que os fixam no quadro negro de determinada cultura; tudo começa no cu, e embora nem sempre termine por lá permanece dependente, situado, devedor desta energética radicalmente finita, mortal, situada/sitiada do corpo (somático, econômico, político, etc)

Em uma sequência de sala de aula perto do início do filme, Sauve qui peut enuncia conjuntamente a divisa durasiana (…que le monde aille à sa perte) e o credo terminal do final de Cuidado com a puta sagrada de Fassbinder (“Não terei paz até que ele esteja completamente destroçado”) segundo uma profissão de fé mais positiva, mas em sua essência, desvelada pela neutralidade desolada da fala de Dutronc, ainda mais niilista; num contracampo dialógico para com o campo de Bande à part, onde no quadro negro a giz se lê a divisa Clássicos=modernos (1964), no mesmo  quadro negro a giz agora se lê: “Cinema e vídeo-Cain e Abel”; Paul Godard, num plano frontal e central de concêntrico classicista que tem como plano de fundo a supracitada escritura, enuncia a divisa Godardiana cujo eixo organiza o sentido de todo o cinema tardio de Godard, cinema do horror vacui, da superabundância dos significantes, do Filho exilado na clareira da Linguagem, do ave rerum corpus nostálgico da Presença clássica desaparecida, do montador Vertoviano que releu Engels e foi contemporâneo de Kluge, do terror diante da página em branco: “Se eu falo, é porque não tenho a força; se tivesse a força, eu me calaria”; quem, trabalhando com o Espírito, nunca se sentiu tentado a se identificar com a sentença de pregnante melancolia do cineasta? A força aqui é uma figuração energética da monumentalidade clássica, ao mesmo tempo inatingível e irredutível; se Godard não pode atingir a unidade, a totalidade, a teleologia causal, o contracampo dialogal- enfim, a reconciliação clássica-, ele é condenado a preencher laudas e laudas, como planos e planos, de significantes que gritam, o horror vacui tardio; para incorrer numa analogia menos despropositada do que parece, Gianni Vattimo, filósofo italiano e discípulo de Heidegger, inventou de uma genealogia muito idiossincrática a expressão pensiero debole (pensamento fraco); é o pensamento contra-metafísico, anti-sistema e anti-summa, o pensamento que se sabe mortal, finito, epocal, destinado à caduquice do amanhã; pensamento fortemente vinculado também à terra, ao corpo, à Natureza, a tudo aquilo que sofre a ação dos devires do ser, na contramão da eternidade da essência, daquilo que dura eternamente, fortaleza conceitual inexpugnável; não foi sempre este o sistema anti-sistema das construções Godardianas? A sua sistematicidade é eivada de aleatório e casual, como de intempestivo e concatenação desordenada, embora ao cabo tudo encontre a luz e a ordem da significação, como dizia Hanna Schygulla numa entrevista: “Ele me mandava olhar para aqui, para lá; eu nunca entendia o porque. Só ao final, vendo o filme é que eu podia perceber que os olhares eram sabiamente dirigidos”; o risco corrido deliberadamente por Godard de nos dar não uma obra acabada, mas um rascunho, um conjunto de rascunhos mal alinhavados faz seminalmente parte de sua aposta modernista, e  sua grandeza consiste justamente na assunção deste risco; a cada contracampo, os perigos da afasia, do dito arbitrário, da besteira mesmo; mas Godard sempre jogou este jogo com a maestria de quem se sabe jamais mestre, e sim antes de tudo um discípulo eleata dialeta- um tanto como aqueles que acompanhavam atentos os mestres Sócrates e Jesus para depois, depois de sua morte, rascunhar ao bel prazer dos que chegaram por último seus evangelhos apócrifos, onde a verdadeira ave rerum Verdade se ocultou, resguardada do anátema da exegese legalista canônica-, um cadinho dinâmico onde se acumulam dialogalmente os dictums de uma rica tradição, com qual ele (como Heidegger na filosofia, como Proust e Flaubert na literatura, estes enciclopedistas gigantescos) estabelece um acidentado (a medida justa de sua riqueza: a aposta radical) contato; conter a força seria calar diante dos sub species aeternitates dos castelos idealistas, fechados às intempéries dos ventos e das marés da finitude; no cinema, estes castelos foram majoritários filmes clássicos, com as características assinaladas aqui a propósito de Lourcelles: frontalidade e centralidade, raccords teleologicamente orientados, etc; é claro que, por exemplo, o cinema clássico americano sempre riu de si mesmo, e  seus filmes de ação são, como os de Sacha Guitry, senhores de uma considerável caixa toráxica que a mise en scène converte em significantes vivos, encarnados no genial casting de seus protagonistas e coadjuvantes natos para a cena, mas para propósitos de esquematização genealógica podemos classificá-los assim; ao mutismo  estarrecido diante da grandeza da Obra metafísica clássica, Godard crítico de cinema e cineasta crítico (a problematização do negativo) preferiu ir semeando buracos, crivos e notas de rodapé no corpo plenipotente da tradição, filtrando e minando simultaneamente a herança clássica de acordo com o seu credo temporão; ora, qual afinal o papel da decomposição do movimento operada pela câmera lenta em Sauve qui peut (la vie)? 

Pessoas em gramado e montanha ao fundo

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Herança do trabalho do vídeo (Paul Godard é um diretor de filmes em vídeo), a regressão ao irredutível quid cinético da imagem cinematografada tem o propósito de sublinhar trabalhando a temporalidade inerente ao ser do movimento: o movimento, simulado agora pelo andante sostenuto da decomposição cinética, dá a ver que é urdido de tempo, que no tempo se fez e ao tempo é destinado; enervado intensivamente pela montagem, revela e recorta para a jouissance do espectador atento às escamaramuças dos significantes’ naturais’ seu eminente fantasma, o artifício ontológico temporal de que é feito; Godard dialeta fantasia um filme novelesco filosófico no qual, ao invés dos personagens e situações de ação concatenada, quem realmente protagoniza a Cena é um pouco de tempo em estado puro, como dizia Bergala, capturado pelo metrônomo da câmera a serviço da metralhadora da montagem; um certo inconsciente do plano de cinema é aqui investigado, mas este reside menos no contracampo, que foi na majoritária obra de Godard sempre o andaime paratáxico para-sintático do campo, do que nesta enervação do movimento agenciado pela câmera, que desde o Vertov construtivista materialista ao Eisenstein construtivista melopatético das escadarias em êxtase foram as inspirações arquetípicas de sua invenção criadora. Ao capital monetário da roda da fortuna dos produtores, Godard contrapõe o capital de seu Renascimento, um tanto de tempo em estado puro mobilizando e aliciando para a sua invisível mas onipresente ronda fiduciária a joia, plástica e meditativa, de um filme de ourives que é também uma obra maturada de pedagogia libertina; em Godard, jamais haverá a palavra nem o phisique de rôle terminal, definitivo, pois vasta, múltipla, Outra é a sua enunciação de terrorista conotativo.

Texto

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Mulher de óculos com a boca aberta

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Paixão.

2) b. Uma luxuosa iconicidade

“Quem diz romantismo diz arte moderna- ou seja, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração ao infinito, expressa por todos os meios contidos pela arte”

Charles Baudelaire, citado por Hubert Damisch em Fenêtre jaune cádmium, ou les dessous de la peinture

Pessoas em pé em frente a água

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Paixão começa com o céu translúcido de luz e nos abandona no meio da estrada, a caminho da Polônia do sindicato Solidariedade, home bittersweet home: o verdadeiro itinerário é a obra daquilo sem o qual a Pintura e o Teatro, de que o cinema herdou a Bild , o cadre e os andaimes, seria nada: o espaçamento de que falava Daney, ou o fora de campo da cabeça do espectador;  é o filme mais icônico que conheço, no sentido transcendental kantiano: aquele filme segundo o qual entendemos e exercitamos o sentido da iconicidade, o seu irredutível quid; de Panofsky a Elie Faure e Arasse e Winckelmann e Ruskin estivemos todos lá: o filme dos filmes, ou a radical aposta genealógica; de seu in extremis tardio, para entender a história da iconicidade no cinema Godard precisa retroceder, retomar fôlego e posicionar-se straight, assim segurando as pontas da história da pintura para continuar a ser escrita/projetada: foi preciso esperar pela Summa alegorista das summas Histoire(s) du cinema para que a história do herdeiro dilapidado fosse contada, mas em Passion é o conto da vicariância do Poder, da substituição das cabeças reais, da Revolução que mesmo que tenha degenerado em ditadura tirou a soberania das mãos do sagrado corpo vitalício; o corpo do Rei, sobre o qual Kantorowicz escreveu páginas tão memoráveis, é este suntuoso, untuoso dos vestidos da princesa de Vélasquez, do exército traidor de Goya, dos girassóis tumefactos de cor em Van Gogh ou dos corpos em decomposição da Realeza abolida mas perpetuada no sangue corrupto dos mortais, em Francis Bacon; obra-prima que soube arregimentar os dons mais conspícuos da tríade moderna da representação que teve como objeto supremo a imagem: Pintura, Teatro, cinema; na genealogia nietzschiana, o arquétipo salvífico eminente (a ser desconstruído, é claro, ou destronado) é o sacerdote; dele advém todas as demais figuras salvadoras ou portadoras de ‘cura’: o médico, o professor, o bobo da corte e seu ersatz no artista e no filósofo de Estado, o psicanalista, o professor…mas Godard já está do lado de lá, da vita activa, afirmativa suprema de uma realeza que, segundo palavra recente sua, não deve nada a ng senão à nobreza de sua própria arte, que existe para libertar e não para aprisionar, cercear, impor interpretações restritivas; creio que com Passion ele fez jus a este intento revolucionário sem precisar abdicar da herança nobiliárquica dos séculos que nos contemplam contemplá-los; os revolucionários em geral são uma pobre, minguada gente, sem cultura nem gosto, possuída apenas por seus ímpetos, mesmo que a serviço de causas justas, de inversão e transgressão de valores e tronos; Godard não: este modernista, este artista incondicionalmente tardio provou de tudo e de tudo de melhor deu mostras de seu gosto, talento, refinamento, e assim exercitou-se (apesar de ser um temporão, e portanto a princípio restrito à preeminência da linguagem supra-diegética  e hors champ sobre a diegese ficcional, fabulística) como documentarista, romanesco, novelista, memorialista e, na página em branco como na tela, crítico…Passion é um dos cimos de sua obra, e portanto da história do cinema moderno e modernista (para não confundir); não basta descrevê-lo, narrá-lo, artes comezinhas; trata-se aqui do usufruto da própria vida.

Uma imagem contendo pessoa, vestuário, homem, mulher

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“Você pode me dizer porque, nos filmes que eu vejo no cinema ou na televisão, nunca se mostra o trabalho? (…) então, devo concluir que no trabalho é como no amor, que eles também não mostram; não exatamente na mesma velocidade, mas tratam-se dos mesmos gestos. No trabalho e no amor”. E em off, um assistente ao telefone mais adiante, quando de Hanna diante do monitor de vídeo mimetizando a si mesma: “Os mesmos gestos. No trabalho e no amor”. O gesto em Passion, devidamente iconizado em suas série(s) de representações encarnadas, seus tableaux vivants esterilizados pelas bordas da tela-cadre, é a passagem ao ato de que falava Jacques-Alain Miller, mas também o arbeit freudiano, elaboração do afeto que solicita um infinito, fantasmático trabalho; o gesto é um índex encarnado de afetividade, de Cultura, de Alteridade, e em Brecht ele assinalou a si mesmo para dar conta de todo contexto de sua eclosão; o Godard de Passion é, en abîme do Godard de Prénom Carmem e Sauve qui peut ( la vie), um cineasta tardio que filma os sub species de mármore e ouro fulvo da era clássica (paradigma) da pintura moderna ( cronologia): o que espera ele das damas desnudas de Ingres, das infantas de Velásquez e dos monstros do sonho de Goya? Talvez injetar-se, como um drogado psicótico no pico de heroína, um tanto de inspiração imorredoura, daquela velha e boa cepa que do Febo de Platão ao texto de Foucault sobre As meninas sempre espreitaram da borda hors champ do Godard bibliófilo e cinéfilo, artes estas sem transição possível; Passion é , como dito no início deste texto, dentre todos estes citados o filme kantiano do late Godard, porque busca ilustrar com exemplos ofuscantes de clarividentes o que faz da coisa aquilo que a coisa é: ens trancendums; a pintura é aquele horizonte de fundo de que o cinema partiu para não voltar, pois nasceu arte animada e excêntrica, no travelling terrorista de front do trem dos Lumière; na Pintura, em sua estaticidade e diafaneidade de disegno, tudo ainda era possível de se eternizar; com o cinema, a arte abdicou desta arte e encarnou em suas hemiplégicas mãos e esgares terríficos do expressionismo nascituro a pallida morte futura, agora presente embora descontínua por efeito da montagem, com que Virgílio saudou o Purgatório de Dante.

Jerzy busca beber desta fonte idólatra como ontem os maneiristas se serviram e  seviciaram da obra do Pai para uma anamorfose perversa que lhes daria uma sobrevida extemporânea: a impossível jouissance, de que os travellings estertóricos de Fassbinder, a câmera encarnada de mimetismo psicopata de Dario Argento, os split screens de lateralidade pós-hitchcockiana de De Palma nos deram as amostras mais fecundas nos 70, comparece em Passion de uma maneira dúplice, esquizofrênica, porque sob o Panorama móbil dos bustos e monumentos do travelling lateral que enobrece a visão com a vidência cúmplice das vertigens de uma arte fascinatória , leniente (Jerzy filmando, encobrindo a contemporaneidade sob a lógica centrífuga do tableaux vivant, da escultura tridimensional animada) comparece ‘para corromper e sublimar’ a filmagem de Godard, por exemplo neste zoom out desvelador com que a equipe de filmagem nos é flagrada pela câmera inconfidente de supetão; Passion não é um filme maneirista, porque o seu objeto de estudo não implica a apropriação da carne do filme pela anamorfose: estamos diante de um filme que filma um filme sobre o neo-classicismo, mas jamais confundiremos todas as dimensões, como o psicótico-tipo das aventuras tardias dos 70 confundiria; o fora de campo em Godard permanece um conceito e uma experiência chaves, e é ele que nos liberta do peso venenoso invocativo da alucinação maneirista, que impede que naufraguemos em suas tormentas especulares: os adendos, as notas de rodapé, as ementas de que a voz off e o contracampo dialeta em Paixão nos dão o fôlego diacrônico e genealógico ( mantidos os estrados estritamente separados, irredutíveis) são típicos do late Godard, verdadeira Biblioteca de Babel convertida em carne fílmica; em Passion, para nos desvencilharmos definitivamente da hipótese dos resquícios maneiristas, o fantasma, embora seja presentificado nos dilemas dos protagonistas, nunca vence, pois ele é eclipsado pelo conjunto das mediações deliberadamente postas em Cena, em jogo, na obra-patchwork: o ‘fantasma’ de Godard é sempre superestrutural, e  aqui particularmente contextualizado historicamente pela relevância em Cena e fora de campo da Polônia natal de Jerzy, a  terra do sindicato Solidariedade, ‘para onde’ o filme se arremata em brecha de intempestiva abertura, cognata à abertura política trazida pelo sindicato à Cortina de ferro polonesa (sob esta perspectiva, Passion daria uma excelente sessão dupla com Classe operária, de Jerzy Skolimowski); é o professor, o dialeta, o bibliófilo quem engendram a marcha avante do percurso, libertando-nos dos perigos mefíticos mas tentacularmente sedutores da fantasmagoria psicótica, cultuada/masturbada pelos cineastas literalmente maneiristas.

A primeira sentença citada acima (da consanguinidade entre o trabalho e  o amor, oclusos ambos em sua obscenidade ontológica, do campo do cinema clássico) pertence à operária virgem Isabelle, que percorre o espaço concêntrico da fábrica em greve; a segunda, ao assistente de Jerzy, cineasta, que filma uma Paixão moderna ( para os metafísicos, como os pintores de Passion: 1600, 1650) com os restos dos traços, numinosos ou ensombrecidos, de uma vasta, geológica história (istoria; una istoria!, suplica o produtor italiano de Le Mépris aqui revisitado, Ponti, gesticulando em fá maior) iconográfica, de Goya a Velásquez e de Velásquez a Delacroix e Ingres; Passion é um filme do gesto feito ícone, e  portanto ele transpõe a crença baziniana na Graça/graça do corpo que se abre no gesto à história das Formas; a postergada e agora assumida reconciliação irreconciliada (primazia do patchwork dialeta) de Godard com a contemplação baziniana tem em Passion a dimensão cultural/cultual de introito nobilíssimo; Nouvelle Vague vai nos servir a contemplatio da Natureza enquanto tal, e consequente urdidura do gesto de consagração (as mãos em unção salvífica) no mito do Cristo/capitalista ressuscitado; em Passion, ficamos com o encantamento do eikon ritual, o andante cerimonial da visita guiada, a empreinte de fausseté de veneração litúrgica, a Beleza saturada de luz e hierática da pose do Quattrocento, que o cinema revisita para reintegrar auraticamente, para se dar uma nova chance, o direito a uma nova Eternidade; tudo o mais se reveza e intercala nesta balança , entre ideal e materialista, da História e do mito, ou da História mitificada, vitrificada pela unção do ícone; para dizer um tanto mais, digamos que em Godard, cineasta das matérias, a História do mito é tomada como objeto de investigação hermenêutica, é transfixada na tela-cache como algo a ser desvendado na diafaneidade de sua própria aparição: os quadros se animam sob o influxo dos travellings, como ontem a última ceia sob a inspiração da palavra joanina: “Em minha memória”; mas tudo é embalsamamento do Gesto ritual, que começa no humano e se monumentaliza no cadre de uma arte das grandes escalas, das dimensões ciclópicas, dos tempi dilatados pelo usufruto do silêncio; os gestos ebúrneos e impregnados de introspecção mediúnica de Isabelle, Hanna e Jerzy (metteur en scène amoroso, entre-deux histriônico de uma inocente deidade clássica, feita para o 35 mm do Febo platônico, e de uma madura semideusa neo-clássica, feita para a rugosidade do vídeo) estão, como nos lembra o Daney do “entre as coisas”, recortados contra o horizonte moderno do interstício; cineasta modernista e moderno por excelência, Godard filma a temporalidade Aion desta carícia aracnídea sobre um dorso de mulher de Ingres: ele filma o percurso, não o princípio ou o arremate; o gesto godardiano é inteiriçado entre dois tempos, e se move na direção de sua própria  germinação; entre seus gestos instantâneos ou casuais vigem os gestos imemoriais dos bustos clássicos; e o classicismo o que foi senão uma arte da luz, que soube retirar da casualidade e intempestividade do minuto humano um fulgor e uma perenidade de metal precioso?

Pessoa com a mão no rosto

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Peguemos uma cena como esta em que Jerzy acaricia virtualmente as mãos de Hanna, que está sendo reproduzida numa pequena tela de vídeo diante de si; ambos, todos nos falam de trabalho e de amor, e  do gesto encarnado (Jerzy acaricia as mãos de uma Hanna reticente, hesitante em se ver representada, e portanto castrada do devir da vida, como tantos de nós diante do vídeo: ela canta com dificuldade Mozart), gesto que efetiva a ponte entre ambas as dimensões, afinal segundo Isabelle nem tão distantes assim: “(…) talvez a velocidade seja diferente, mas a essência do gesto é a mesma”; ao trabalhar e amar, ambos investimos todo o nosso ser; trabalhar e amar possuem também devires intensivos, como são atos de absoluta intransitividade, de gestão de um Absoluto diante do qual soerguemos as mãos em unção de Graça profana; mas a Origem de tudo continua a ter como fundamento a pistis paulina, aquela em que o Derrida de um colóquio em Capri, vila profana, viu “elaborar-se, antes da ligação que habitualmente atribuímos à ação religiosa, uma horizontal separação do ser e do homem; antes de ligar, a  religião é o índex de uma separação primeva”; e não é esta separação que a carícia nas mãos de Hanna visa abolir, como o travelling untuoso no dorso da musa de Ingres e aquela superposição/rima, perto do final, entre os rostos recortados um contra o outro de Isabelle, a virgem ( Jerzy a chama de um caminho fechado) e Jerzy? A arte, como o trabalho e a religião, nascem à sombra da separação , mas se elaboram afetiva e plasticamente como a tentativa-erro ( precisamente: uma experiência e um experimento, a experiência histórica de um experimento, como em todo o destino de fases, transições e rupturas traçado pela história do Godard crítico e cineasta) de uma reconciliação entre o ente e o ser de que o separaram; Passion começa a contar esta história na carreira de Godard, cineasta irreconciliado por excelência que finalmente acha a via régia de um dialogismo há muito pressentido como essencial com a  paternidade baziniana do cinema moderno: sim, filmar o “entre as coisas”; em Passion, vale a divisa jansenista de Jacques, o fatalista, que Bresson filmou em 45 em As damas do Bois de Boulogne: “Não há amor, mas apenas as provas do amor”; sem o gesto, índex mnemônico da reconciliação almejada- sem o gesto, correlato e eminente, de amar e  trabalhar ( de amar o trabalho, como la mort au travail, no dictum enigmático de Cocteau), como oferecer provas deste amor invisível à Presença de que o cinema foi a presentificação materialista em nosso século enlutado? Passion é a história de amor retomado entre Godard e a realidade, aqui ainda sob a ‘istoria’ da res extensa da História das Formas em uma procissão andante sostenuto em direção à Eternidade, de que Jerzy/Godard solapa, no zoom out em que se revela a situação da filmagem ( cast, crew, hors champ tópico da filmagem propriamente dita) a continuidade maviosa dos primeiros tempos para nos restituir a descontinuidade da montagem cinematográfica como a  grande ferida narcísica do neo-classicismo presentificado em Passion: um cineasta irreconciliado efetiva aqui uma reconciliação possível, à época do Sindicato Solidariedade (outra experiência, desta vez histórica e política, de reconciliação sob a condição da Justiça histórica , de assumir os expurgos como o preço a pagar pela virada do degelo) com o Real, e o gesto, índex de uma iconicidade luxuosa, de uma mais-valia grandiloquente em matéria de trabalho do plano de cinema, é sua ponte excelsa; mas antes de tudo trata-se da reconciliação com estes casos de amor insofismáveis e indomáveis, presentes tanto na escritura de Bazin quanto na de Rossellini, deste amor à realidade que foi o óbolo a pagar para reparar a separação primeira, de que todo o primeiro Godard constitui a demonstração consequente e contundente; Passion é a mais fascinante prova de amor dada ao mundo por aquele artista que todos sempre pressentiram viver a separação do mundo ( a mediação) como seu habitat essencial; na história do cinema, é um filme monumento sobre monumentos irrecuperavelmente fúnebres e uma prova de amor filial digno da misteriosa Origem que foi seu objeto primeiro e último.

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