Shyamalan e a iminência

Por Bernardo Oliveira

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I. (tomorrow is the question)

Os alienígenas em Twin Peaks — The Return estão bolados: demonstram preocupação extrema com o destino aparentemente inevitável da Terra. Com o advento dos testes nucleares, isto é, através de sua própria atividade, o “tipo Homem” atravessou um perigoso limiar, tornando concreta a possibilidade de sua própria extinção. Na antessala onde ocorre o bizarro parlamento, projetam-se imagens do acontecimento que pode determinar a destruição do planetinha vagabundo e da corja desalmada que o habita. As imagens incidem sobre uma tela instalada no hall, cuja aparência lembra a de uma sala de cinema, mas sem as poltronas. Seres antropomórficos assistem ao espetáculo da destruição como quem vê a realidade cósmica através da tela de cinema. Como no processo aterrador do Apocalipse bíblico, o Cinema também encontra sua potência em tramas de afetos e afecções, em articulações fantasmáticas entre imagem, som e palavra. A nós, espectadores terrenos e mortais, resta embarcar em um dos mais intensos fluxos audiovisuais da cinematografia recente. Invenção e escatologia se imbricam no imaginário apocalíptico criado por David Lynch.

Apocalipse, do verbo grego clássico apokálupsis (ἀποκάλυψις) — que é a junção do prefixo de negativo ápó (ἀπό) com o verbo kalúptô (καλύπτω, esconder), dando forma ao sentido de algo que se descobre, se revela, se torna público. O sentido mais literal do termo não se relacionaria somente à destruição, mas à ideia de algo que se descobre ao fim de um processo. Apocalipse, isto é, uma “revelação”. Em termos literários, o Apocalipse canônico teria, como uma de suas características, a proliferação de acontecimentos terríveis, carregados em imagens absurdas, que embaralham as dimensões da linguagem e das sensações. Redigido pelo profeta  João de Patmos, o Apocalipse descreve um cortejo de criaturas extravagantes revirando o Planeta de alto a baixo. Um espetáculo carnavalesco, trágica representação do acerto de contas divino com a humanidade vacilona. Bodes degolados com sete olhos e sete chifres, sete anjos que nos lançam sete pragas, “miríades de miríades e milhares e milhares” de anciãos, taças douradas, incensos, raios de fogo e lava, choros e gemidos suplicantes, mares de vidro e fogo. A colheita maldita separa os puros e os impuros, os sagrados e os degradados, “morte, miséria e fome”. Imagens de um filme-catástrofe que tira proveito do esgotamento para fazer transbordar um sentimento delirante de vingança divina.

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A catástrofe apocalíptica teria por função varrer do mapa o mundo tal como o conhecemos, expondo a todos — a todos, mesmo! — o conteúdo derradeiro do processo, isto é, o valor e o poder verdadeiros. O poder revelador da catástrofe é, portanto, um poder que evoca o sentimento generalizado de pavor diante da finitude humana, pavor que é produzido pela sensação de que o fim do mundo, tal como o conhecemos, é inescapável. O fim do mundo corresponde ao desmascaramento de todas as ilusões de sobrevivência, particularmente da raça humana. E, no intervalo entre a destruição e a revelação, pode-se flagrar a oscilação apocalíptica, as múltiplas forças da dúvida e do movimento, que incidem sobre os viventes e que rebatem o pavor, redistribuindo as cartas.

Shyamalan tematiza diretamente o fim do mundo em Fim dos Tempos e Sinais, operando também a tensão revelatória em praticamente todos os seus filmes. O conteúdo derradeiro, porém, nunca é exposto ou resolvido em sua totalidade, ficando espaço-tempo e personagens à mercê de uma realidade descontinuada. O Apocalipse shyamalânico não se concretiza, mas funciona como pressuposto para a manipulação das atmosferas que envolvem seus personagens. Seu ponto de vista se vê oscilando entre a descoberta e a destruição, sempre sob a perspectiva da Iminência — “pois o tempo está próximo…” (Apocalipse, 1). O foco não reside no fim, na destruição de toda a ordem, tampouco na revelação da nova ordem, mas nas variações particulares provocadas pela situação de suspensão. O conteúdo revelado — místico, misterioso ou escatológico — corresponde à suspensão da ordem universal, natural ou restrita, sem que sejam substituídas imediatamente por outras ordens. Se há um registro apocalíptico na obra de Shyamalan, não se trata nem de um apocalipse derradeiro ou terminal, nem do anúncio de uma verdade; mas desse espaço de suspensão entre a destruição e a renovação.

Lemos no escrito canônico do Apocalipse, que integra o Novo Testamento, algo que nos remete diretamente à potência revelatória que o Cinema manifesta em Twin Peaks. Após uma primeira anunciação divina, o profeta assiste a uma cena inusitada: “eis que se mostrou uma porta aberta no céu; e a voz […] falando comigo, dizendo: ‘Sobe até aqui e eu te mostrarei as coisas que é preciso que aconteçam depois dessas’.” O céu se abre como a tela de cinema alienígena e, através dela, recebemos, a um só tempo, um comando decisivo, um testemunho do devir e uma convocação para a ação. Na situação revelatória, deserdados pelo destino dos ingênuos, somos forçados a traçar uma linha de fuga e agir a todo custo.

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Assistimos aos nossos próprios traumas se dissolverem ante ao espetáculo da destruição. O horizonte de expectativas é borrado pela dúvida: o que virá? Como em praticamente todos os seus filmes, trata-se também de um elogio e de uma operação sobre a hesitação: duvidar daquilo que se vê e crê; paulatinamente tomar consciência da enrascada em que nos metemos. A dúvida — que fazer? — empurra a trama adiante e mantém o processo irresoluto entre a realidade deste e a de outros mundos possíveis. Em meio à iminência, ocorre também a intermitência da catástrofe, os fragmentos do conflito que se espalham e se depositam pelo seu entorno. O terror, como subproduto da dúvida, advém de uma realidade envolta nas consequências imprevistas da suspensão revelatória: o mito comunitário e opressor descortinado em A Vila; a trama invisível que incide sobre os humanos em Fim dos Tempos (melhor seria tomarmos pelo seu título original: “O Acontecimento”…); a ameaça alienígena como escravização do humano em Sinais; a esperança de reconduzir a “Dama da Água” de volta ao seu mundo. Manter a dúvida é fundamental. Assim, o autor não dissolve, mas torna fluido o limite entre a luz e a escuridão. Seu cinema é apocalíptico, porque se autodetermina no limiar entre finito e infinito, ciência e subjetividade, magia e realidade, mantendo em aberto o espaço da iminência. Entre a iminência e o interdito, há mais do que uma diferença de grau, mas a emergência de uma nova ordem, que permanecerá desconhecida. Shyamalan não pretende iluminar a escuridão, mas posicionar seus personagens em uma fronteira cinzenta, de modo que eles testemunhem e reajam à catástrofe inevitável.

II. (broken shadows)

“Cresci hindu”, afirma Shyamalan em uma entrevista. Naturalizado norte-americano aos 18 anos, substituiu o Nelliyattu pelo Night e abreviou Manoj.: M. Night Shyamalan. Nasceu em Mahé, pequena cidade em Pondicherry, Distrito Nacional da Índia, migrando para a Pensilvânia com seis anos de idade e naturalizando-se norte-americano durante a Faculdade. Ainda jovem, realizou dezenas de filmes em Super-8, sob a influência de Steven Spielberg, o cineasta judeu responsável por um dos filmes mais ofensivos de que se tem notícia contra a religião Hindu: Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984). Isso não impediu Shyamalan de tomar Spielberg como referência, mas, também, de forma inequívoca, de subverter a máquina spielberguiana, sabotando-a por dentro. Digo isso, pois, não tendo a competência para uma análise breve da diferença entre Protestantismo e Hinduísmo, assim como das relações de aproximação entre Judaísmo e Protestantismo, gostaria apenas de observar que o Protestantismo opera por redução, ao máximo, dos caminhos que conduzem à divindade, tendo as restrições prescritas pelas “Cinco Solas”, critérios de estreitamento simbólico. Só há um caminho e a disputa é o termo exclusivo. Sobre esse aspecto, o Hinduísmo é duplamente contrário ao Protestantismo e ao Judaísmo: não há apenas um só caminho a percorrer ou uma divindade a adorar, tampouco uma divisão tão rígida entre a imanência e a transcendência.

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O preconceito norte-americano é o subproduto direto da ganância nacional: a ética protestante preside o espírito do Capitalismo. A ética da competição, a educação para o sucesso e para o fracasso, o peso de ser um loser… Mas é também uma resposta formulada pelo medo do futuro. Shyamalan nos oferece uma cartografia ambígua do medo norte-americano, cultivado inclusive por uma cinematografia milionária. Em seus filmes industriais, as ameaças surgem sob a forma de alienígenas, do fim do mundo, da morte e do além-morte, dos mutantes, dos superpoderes e da tecnologia que não dominamos. Os imigrantes são sempre representados como subalternos ou ameaça. Shyamalan reverte o esquema: a ameaça serve como meio de exposição dos preconceitos — e não seria a sociedade representada em A Vila, eventualmente terraplanista e antivacina, a mais forte caracterização do olhar crítico que Shyamalan lança sobre a sociedade norte-americana?

Inverte-se a lógica triunfalista do drama hollywoodiano e desdobram-se possibilidades intensivas, outros tipos de relação com o clichê e o gênero, ambos expositivos e marcados por um estilo preciso no enquadramento e nos movimentos de câmera: de um lado, “o universo em desencanto cósmico”; de outro, “a natureza em suspensão mística”.

Quando o Universo se encontra em desencanto cósmico, o processo de desmoronamento definitivo ou provisório é o grande tema. Como em A Vila, Fragmentado, Sinais, Fim dos Tempos, Olhos Abertos, o presente é deformado por forças do passado, atualizadas por acontecimentos misteriosos e traumas insuperáveis. Marcado por seu sofrimento particular, os personagens se veem na necessidade de suspender provisoriamente o trauma e superar a personalidade, por força da necessidade urgente de ação e mudança. Em Fragmentado, a besta perdoa somente os cindidos, os quebrados, os que sofrem e superam. O sofrimento é o que sublima as potências próprias de Crumb e Elijah. O indivíduo é impelido à desfragmentação, perde sua individualidade e busca reconstruir-se a partir das forças atemporais do Cosmos. Em A Vila, por exemplo, abre-se a caixa do passado no exato momento em que a menina, através de um esforço descomunal, atravessa a fronteira em direção ao “fora”, independente da catástrofe que este “fora” determinará na vida daquela comunidade. Em Sinais, o inesperado ocorre justamente em uma fazenda isolada do mundo, onde o luto e o desencanto plantaram raízes e se instalaram definitivamente. O acontecimento misterioso, que impele os humanos a cometerem suicídio inconsciente, obriga o professor do high school a usar seus conhecimentos científicos para salvar a si e aos seus. A revelação reside na instalação de uma simultaneidade, onde presente e passado incidem misteriosamente, um sobre o outro, se iluminam mutuamente e exigem mudança e superação.

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A Natureza em suspensão mística corresponde à suspensão do tempo-espaço convencional, abrindo a realidade para o além e o aquém do humano; e, em alguns casos, para as volatilidades das formas orgânicas e inorgânicas. Futuro, presente e passado coincidem, tornam-se simultâneos, ainda que assimétricos, em seus graus de manifestação intensiva. Os poderes especiais dos personagens, seus mundos específicos, suas características divergentes, tudo conduz ao alargamento do horizonte de atividades: a trilogia dos heróis opera diretamente essa desnaturalização da potência, em força cega interiorizada. O mesmo ocorre também com o menino-médium em Sexto Sentido, o menino desafiado por uma natureza alienígena em Depois da Terra, o surgimento de uma ninfa intraterrena em A Dama da Água, os poderes de outro menino extraordinário em O Último Mestre do Ar (aliás, remeto a presença forte das crianças às “Três Metamorfoses” de Zaratustra: de camelo a leão e, por fim, à criança, ou seja, a inocência do devir, o Amor Fati…) Em Sexto Sentido, a intuição mediúnica tem o poder de reparar o passado, pois, conversando com os mortos, o menino remedia e atualiza suas dores. A força e a fraqueza de Elijah Price e David Dunn nunca se colocam como absolutas; parecem obedecer a graus de atualização por interdependência, fornecendo a base dialética para a ampliação da individualidade — para cada herói, um duplo: a mãe, a amiga e o filho. A revelação reside na descoberta do transindividual, expondo tanto a condição provisória do humano, como também as potências ocultas e os poderes impróprios.

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Vale notar que muitos dos filmes reúnem os dois registros. Sinais, por exemplo: universo em desencanto cósmico, oscilando brutalmente entre o trauma e a dúvida; mas também a Natureza em suspensão mística, revelando seres extraterrenos e, com eles, um desdobramento da impotência humana diante do que virá, não importa se o caos ou o destino. Fim dos Tempos também comporta a volatilização da Natureza e a superação do humano. Em A Vila, esse limiar entre humano e inumano é motivo de oscilação; assim como em Corpo Fechado e Fragmentado — em Vidro, essa dúvida torna-se o epicentro da questão, servindo como base ao extraordinário diálogo entre a psiquiatra e os heróis. A Visita constituiria o caso divergente, pois não sendo nem cósmico, nem místico, mantém-se no domínio da hesitação privada.

III. (skies of america)

Não há personagem nos filmes de Shyamalan capaz de provocar o mesmo grau de desencantamento do que o planejado pela psiquiatra Ellie Staple e seu poder científico, institucional e policial. Olhar penetrante como uma dose de Pentobarbital, enquadra os pacientes enquanto distúrbios clínicos, reações naturais — e não sobrenaturais — aos traumas que atravessaram. A psiquiatra não esconde um afeto perverso por seus casos, comunicando-se com eles através de seu rosto calmo e voz segura. Dra. Staple representa a responsabilidade fria do Capital, o poder policial da Ciência, mais voltado para a estabilização do status quo — representado por um restaurante metido a besta — do que por sua transformação. Usando métodos semelhantes aos da terapia familiar e, eventualmente, aos da tortura, Dra. Staple encara suas preciosas anomalias com firmeza de propósito e autocontrole. Como toda psiquiatra, ela cobra dos casos a prova do desencanto, a confissão voluntária e o voto pela normalidade. Dra. Staples representa a força do establishment, a força da violência normalizadora, incomparável à violência perpetrada pelo vigilante, pelo gênio do mal e pelo assassino fragmentado.

A resposta dos heróis fortalece a aliança anômala e, sustentando a dúvida, permanece tão ambígua quando evidente. Apesar do projeto de normalização, sempre persiste um master plan, nem que seja um plano suicida. Apesar da realidade vigente que constrange os superpoderes, apesar de se autodestruírem, apesar de vulneráveis às armas policiais, o trio insiste: “nós existimos”. A interrupção da proliferação anômala pode ser compreendida tanto como uma vitória parcial do poder despótico, como um lamento diante da morte da diversidade. O que suscita o pavor não são os superpoderes, mas a descrença radical nas potências pré-individuais, potências de renovação do presente. Em suma, a descrença no presente enquanto portador de élan vital, devido ao baixo grau de diversidade humana, vegetal e animal — como adverte Pascal Picq em seu livro A Diversidade em Perigo, chamando a atenção para “os desenraizados pelos avanços da civilização são cada vez mais numerosos”.

(from left) Samuel L. Jackson as Elijah Price/Mr. Glass, James McAvoy as Kevin Wendell Crumb/The Horde, Bruce Willis as David Dunn/The Overseer, and Sarah Paulson as Dr. Ellie Staple in "Glass," written and directed by M. Night Shyamalan.

Escrevendo sobre o conteúdo apocalíptico e o Milenialismo do cinema norte-americano na virada do século, Kirsten Moana Thompson mostra que a atmosfera apocalíptica é engendrada por ansiedades, provocadas pela instabilidade da opressão presente:

“Repetidamente, quando o desastre ocorreu, o pensamento escatológico entendeu a ruptura política, social ou física como presságios do começo do fim do mundo; a enorme devastação causada pela praga bubônica nos Séculos XIV e XV e a ameaça de invasão islâmica no Século XVI, provocaram o retorno dessas ansiedades”.

Thompson complementa o que escreve Eva Horn em The Future As Catastrophe:

“O valor político das profecias bíblicas, portanto, estava diretamente nas imagens da queda dos impérios, da destruição dos emblemas do poder terrestre e da punição dos poderosos. Essa destruição é uma promessa de que o poder mundano terminará e que o mundo atual estará sujeito a um final”.

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A força motriz desse acontecimento é o presente indefensável. Assim como as narrativas proféticas, que acorrem a um diagnóstico implacável do presente, Shyamalan problematiza seu próprio tempo através de uma crítica velada, às vezes imperceptível, a conceitos e valores caros ao léxico político da Modernidade — nação, território, fronteiras, defesa, soberania. Convém, então, dizer com todas as letras: os filmes de Shyamalan operam a partir do fluxo de imagens extraídos da décadence americana, a decadência dos Estados Unidos da América. Hackeando os mecanismos redutores de representação da alteridade do Cinema norte-americano, seus filmes parecem sugerir que a hegemonia dos Estados Unidos se encontra em processo de dissolução.

Como consequência, seu cinema também capta a decadência de um certo modelo épico, racista e autossuficiente. Edward Walker não corresponde, necessariamente, a sua aparência superficial, o pai dedicado e líder responsável. Antes, eu o percebo como um alt-right bizarro que dispõe abusivamente dos destinos da comunidade. Da mesma forma, estamos acostumados a encarar o vigilante no cinema como um herói inequívoco, tal como personificado por David Dunn. Mas podemos considerar igualmente que a descrença do justiceiro na política e no Direito é tão nociva quanto os abusos conduzidos pela instabilidade do “fragmentado” e o genocídio que a hiperinteligência do Sr. Vidro pode provocar.  São narrativas que nos situam justamente no limiar entre o mundo competitivo vendido pelo American Way of Life — AKA Capetalismo — e a abertura que ele propicia para reações catastróficas, geradas pela fé-cega no “mercado”, no indivíduo e no fim da política.

Referências:

BÍBLIA: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HORN, Eva. The Future as Catastrophe. Imagining disaster in the modern age. Translated by Valentine Pakis. New York: Columbia University Press, 2018.

PICQ, Pascal. A diversidade em perigo : de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro : Valentina, 2016.

THOMPSON, Kirsten M. Apocalyptic Dread: American Film at the Turn of the Millennium. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2007.

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Entrevista: Affonso Uchôa

Por João Pedro Faro

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Affonso Uchôa

O cineasta mineiro Affonso Uchôa teve seu nome nos créditos de três produções selecionadas na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O média metragem Sete Anos em Maio (2019), em que assina como diretor e roteirista, e os longas Sequizágua (2020, Maurício Rezende) e Mascarados (2020, Henrique e Marcela Borela) como roteirista e montador, respectivamente. A entrevista foi feita após a exibição de Sete Anos em Maio. A breve conversa trouxe à tona perspectivas do atual cenário de um cinema nacional em que os filmes citados anteriormente se encaixam e se modelam, seus limites e suas expansões.

O Sete Anos em Maio, assim como outros filmes que você participa e que estão na Mostra, lidam de alguma forma com o gênero da ficção documental. Quais são os limites que você percebe, em concepção, desse tipo de cinema no Brasil?

Ainda está para a gente entender melhor, no cinema brasileiro, essas nuances entre ficção e documental, existem muitas formas de assimilar isso. Como exemplos, o Sequizágua e o Sete Anos em Maio carregam muita diferença entre as relações e as formas desse trânsito. É importante dar uma certa contextualização também desse gênero como um caminho do cinema contemporâneo. O que mais me interessa nisso, o que me estimula e o que, de certa forma, justificou meu cinema a trabalhar com isso nos meus filmes é uma potência de escrita e de criação cinematográfica.

De ficção, então?

Sim, também. Porque o trabalho com a realidade é uma energização desse fator ficcional, é uma percepção dessa realidade. Não no sentido tradicional de pesquisa e estudo de campo, não há instrumentalidade. O que acontece no cinema contemporâneo, dos anos 2000 pra cá, é que a relação entre quem filma e quem é filmado, a presença física na imagem em si, faz com que a presença da realidade na imagem seja mais ativa. Faz com que a realidade funcione menos um depositório de imagens, mas que seja parte da dialética do processo fílmico e das suas formas. É o trabalho com essa presença que difere o Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Vitalina Varela) do Apichatpong (Tio Boonmee, Mal dos Trópicos), como exemplos. Mas de alguma maneira ainda há algo que une dois cineastas como esses, um “estado do tempo” que perpassa o cinema contemporâneo como um novo estatuto da realidade. O estado que energiza e alimenta o ficcional. Nos meus trabalhos, prefiro pensar que a fatura final é sempre ficcional mesmo que o ponto de partida seja, superficialmente, documental. O que interessa é pensar como o cinema vai operar no contato com a realidade.Sobre os limites disso atualmente, como todo trabalho estético, a gente vive um esgotamento dessas formas. No sentido de que o cinema e a realidade demandam outras coisas que não apenas essa dicotomia conhecida. Nossa resposta, como cineasta e autores, deve ser pensar no que deve existir de novo. A ficção documental, especialmente a brasileira, está partindo de uma espécie de “academicismo do não-academicismo”. Um protótipo. O ato de jogar-se na realidade parte de inseguranças, e quando a insegurança parece muito disfarçada, como é o caso desses protótipos, o meio começa a ficar meio problemático. Há uma gama muito gigantesca de criação de imagens no cinema. Quando isso começa a ficar muito hegemônico, nós começamos a sentir falta de outras formulações.

Até por essa quantidade de imagens que temos hoje, o caminho para esse cinema, que parte de uma realidade mais direta para procurar a ficção, está próximo de uma encenação que poderíamos chamar de mais “clássica”? Como o próprio Pedro Costa, que nega o documental e se espelha em concepções por vezes clássicas de encenação. Existe um ciclo escondido nisso?

Não sei se é tão geral assim. Acho que existem formas muito diferentes de pensar nisso. O cinema do Teddy Williams (O Auge do Humano), por exemplo, já aponta outro tipo de fluxo de imagem e de encadeamento com o tempo. O que está no clássico é a forma do cinema de encontrar-se com o mundo. Não é nada surpreendente ver o Costa tendo esse tipo de posicionamento. O cinema clássico é uma escola, uma antecâmara do imaginário cinematográfico que acaba retornando em qualquer filme. Mas não diria que é algo geral quando se trata desse certo “ciclo”. Existem trabalhos indo nessa direção, mas acho que o cinema hoje é muito espalhado, muito multifacetado. E ainda existe esse cinema clássico, o clássico de ficção, ele sobrevive em poder e força enquanto arte que resiste ao tempo.

Pensando no Sete Anos em Maio, um filme de poucos planos, que conta uma história através de relato direto por boa parte de sua duração, até uma cena final que é totalmente encenada, existe um interesse da narrativa feita pelo mínimo que caminha para uma encenação mais tradicional? Isso tudo feito com o recursos igualmente mínimos?

O que penso, que dá para fazer conexão com um pensamento mais amplo, é que a economia de meios em linguagem e produção tem dois lados, o econômico e o artístico. O balanço disso é inerente ao cinema, que é uma arte industrial feita de muitos instrumentos e de muita equiparação. No caso do Sete Anos em Maio, é um filme pequeno e barato que só foi feito dessa forma porque o que é dito pelo filme pode ser feito de forma precisa, econômica.

Sete Anos em Maio
Sete Anos em Maio

Isso também parte de uma noção contemporânea imediatista? No sentido de que é feito a partir do possível, da realidade sendo o que está próximo do que pode ser realizado e que tem uma necessidade de que elas sejam realizadas

No nível do anseio, sim. O anseio de que aquelas imagens existam e sejam vistas. Não sei se imediato, mas urgente. E isso também tem a ver com esquema de produção. É possível fazer um filme como Sete Anos sem um circo de parafernálias cinematográficas. Para que aconteça, para que seja concretizado, você não precisa de um arsenal tão completo, não precisa de toda uma indústria. Acho que são duas recusas que acontecem aí, a recusa ao tradicional do cinema industrial, contra o regime de produção, e a recusa a relação com as próprias necessidades tradicionais do cinema, e a favor de um certo artesanato.

E dá para enxergar esses recursos mais diretos como uma herança dada ao ambiente que você filma? No caso, a uma periferia que está em tela, essa experiência com o artesanato, existe uma possibilidade aí?

Eu não lido com expectativas. Também não lido com a ideia de que a minha produção possa gerar outras coisas. O que fica, para mim, é que existe potencial e desejo para a instrumentalização cinematográfica, enquanto trabalho,das pessoas da periferia para que elas se equipassem para a própria produção fílmica. E saber que essas pessoas iriam para caminhos muito diferentes sem sua produção, como qualquer grupo de pessoas, vai existir a diferença. A realização parte de uma questão material mesmo, de possibilidade. Acho que meus filmes abrem algumas janelas, mostra que é fazer cinema é real, de alguma forma. Mas ainda é pouco. Para abrir como possibilidade real de uma periferia fazer seus filmes, outros filmes, o trabalho deve ser governamental. E o capital não vai trazer isso, não é um mercado que vai atrás dessa produção. São necessidades mais fortes, necessidades de atuação do poder público. O que vejo a partir de quem trabalha nos filmes é um orgulho da própria participação, eles são vistos em um lugar e podem se perceber como atores ou roteiristas, e estão presentes nisso. Eu percebo esse orgulho pelo trabalho feito e um orgulho por trabalhar. Até porque meus filmes são trabalhos em que eles não vão apenas realizar tarefas, vão vivenciar o processo fílmico e criar dentro daquilo. Sem querer tirar qualquer ilusão de que isso torne eles absolutamente ativos, não é assim, existe uma diferença de base entre meu trabalho e o deles porque continuo sendo o diretor dos filmes. Mas é possível uma criação, uma intervenção. E há gosto nesse lugar e nesse trabalho. É a minha percepção.

Não assistir a esse tipo de trabalho de quem é filmado em periferias, dentro do cinema nacional, foi o que, também, impulsionava você a querer assistir algo que ainda não existia?

Acho que os filmes que eu fiz partem de meu próprio anseio em ver uma periferia diferente. Não queria ver aqueles corpos moldados aos modelos de ficção preconcebidos, um molde conforme feito por mãos instrumentais. O trabalho poderia estar sendo tecnicamente competente, mas sem vida, um desperdícios de riquezas. Ver esse tipo de coisa, para mim, era um achatamento de experiências. Não vejo porque alguém iria querer fazer filmes que corroborassem com as opiniões que já existiam sobre determinado lugar, como o ambiente periférico. Faltava jornada por lugares ainda desconhecidos pelo cinema, uma jornada em descobrir outras potencialidades. E meus filmes respondiam, para mim, a essa falta.

E o que ainda falta ver no cinema brasileiro que, hoje, você ainda não assiste? O que você gostaria de ver?

Eu sinto que o cinema brasileiro, atualmente, está num caminho de adequação ao mercado de arte internacional. A nossa tradição era de um experimentalismo radical, e acho que sinto falta de ver esse radicalismo. Nossa história é de cineastas que experimentaram suas linguagens até o final e, hoje, não vejo os filmes que estamos fazendo muito ligados a isso. Acho que dá para romper esse deslumbre com a inserção internacional, um cinema menos hegemônico que não queira estar estreando em Cannes. Cannes já está moldada, eles sabem o que querem e o que representam, sabem o tipo de cinema que querem. Vejo muitos cineastas fazendo uns filmes que mais parecem uma tentativa de receber carimbo para festivais como esse, para a aceitação desses meios. Falta diversidade nisso. Esse cinema, de projeção, tem que ser menos majoritário. Falta o múltiplo, que venha da origem marginal e experimental do nosso cinema, e que é o nosso cinema moderno que nos deu tanta coisa.

Estaria o cinema brasileiro condenado a discutir para sempre “o problema do cinema brasileiro”?

Sim, porque o cinema brasileiro é um problema por si só. Assim como qualquer manifestação cultural no Brasil, queé um país feito para recusar o seu próprio cinema e sua própria arte em geral. A manifestação cultural é tratada como se fosse um desvio de conduta, então continuar fazendo cinema é encarado como um problema. Ainda por cima, o que é feito é colocado de lado, e isso também é um problema. E o cinema brasileiro que é feito é feito apesar disso, mesmo sendo tratado como um problema e gerando seus próprios problemas. É uma não-subserviência. Nossa questão é perceber como a insubmissão ao poder vigente pode ser mais espalhado, algo maior, que alcance mais espaços.

Então ser um problema seria também o nosso mote principal? Nosso ponto de partida?

Acho que sim… Talvez não um ponto de partida, mas uma força. A força do cinema brasileiro é ser um problema para o país, é ser algo que o Brasil não quer. E o poder está aí para dizer que o cinema brasileiro não existe, não aconteceu, não cumpriu um papel. Ou que aconteceu, mas foi uma perda de tempo. Essa subserviência a um Brasil atrasado, extrativista, arcaico, que está na cara de quem comanda o país, é a resistência do país que rejeita seu próprio cinema. Então a força do cinema brasileiro é desagradar qualquer poder, é ser um problema.

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No coração do mundo: Contagem é o motherfucking Texas!

Por Kênia Freitas

“O trabalho é a essência do homem porra nenhuma” (Pichação) – Mais do que um resumo, esta frase é uma possível porta de entrada para No Coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019). O filme se constrói a partir de duas espacialidades de natureza diferentes: a concretude da vizinhança do Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG; e o desejo por um novo lugar de plenitude da existência, o sonhado Coração do Mundo. Entre um e outro, os atravessadores das relações tornam-se o trabalho e o dinheiro.

E o trabalho aqui é entendido mais próximo de sua origem no latim, na palavra  “Tripallium”: um instrumento de tortura para fazer os escravos e pobres produzirem. As múltiplas dimensões do trabalho no filme passam pela sobrevivência, pela busca de emancipação (principalmente a feminina), por uma possibilidade de afirmação de si. Mas o trabalho das personagens constitui sobretudo um sistema brutalizante do cotidiano: das micro agressões (a dona da loja que ainda desconfia de Miro [Robert Frank], o seu empregado como vendedor há sete anos), até as macros (a passageira que fisicamente agride Ana [Kelly Crifer] por não possuir o troco para a passagem de ônibus). Em suas flexíveis e porosas reconfigurações no século XXI, as linhas são tênues e os corres são muitos – é salão e Uber ao mesmo tempo, inventando tempo ainda para o marido e os esquemas de encontrar o amante.“Meu nome é trabalho, meu sobrenome é dinheiro”, é como explica Rose (Bárbara Colen) a impossibilidade cotidiana de suas atividades. É também, ao mesmo tempo, vender foto na escola e planejar um assalto.

Nesse sentido, os corres direta ou indiretamente ligados ao crime (pequenos golpes, o empréstimo de uma arma, etc.) não estão desconectados dos trabalhos lícitos formais e informais. Mas, mesmo na porosidade, as fronteiras existem e parte do dilema do filme é nos confrontar com os pontos de não retorno. Na lógica do poder operante do neoliberalismo, sustentada na criação de máquinas de moer gente e os seus desejos, quem sobrevive (e às vezes até vive) são aquelas e aqueles com mais maleabilidade para driblar as engrenagens dentro das regras dos jogos aos quais se propõem ou se submetem – seja no capitalismo ou no crime. O que a vacilação de Beto (Renato Novaes) logo no início do filme deixa evidente é que não basta atirar, mas é necessário saber o momento certo e, sobretudo, acertar a boa. Lição que voltará para assombrar o trio Ana, Marquinhos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô) em seu plano de assalto cheio de pontas soltas – não há perdão.

Na estrutura capitalista de exploração sem limites das forças vitais, dos desejos e das formas de vida, a violência dos pequenos e grandes golpes e dos assassinatos é assim, também, parte das fronteiras indefinidas do trabalho – mostrando uma faceta do seu potencial de extração e exploração máxima e direta. “Contagem é o motherfucking Texas!”, como anuncia a música do Mc Papo que abre o filme. A cena inicial já começa por trazer os entrecruzamentos desta porosidade de relações, conjugando no mesmo acontecimento e espacialidade: o trabalho de entrega de mensagens românticas presenciais de uma pequena empresa, a declaração de amor de Ana para Marquinhos em seu aniversário, e uma execução, na qual Beto usando a arma emprestada por Marquinhos mata a pessoa errada.

Marquinhos e Ana no ponto de não retorno

Fica evidente também as intersecções das relações de gênero com o trabalho. O filme opera quase sempre por contrastes pedagógicos na apresentação dessa dinâmica: a inércia de Marquinhos, tentando se virar com pequenos esquemas (como ajudando Selma no negócio das fotos para as escolas), em oposição à sua mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que com persistência vende diariamente os seus produtos caseiros batendo de porta em porta e à irmã Fernanda (Malu Ramos), com 17 anos e já contribuindo nas contas da casa. Um contraste semelhante é mostrado entre os amantes Rose e Miro: enquanto ela articula-se para somar mais uma renda como motorista de Uber, ele permanece no mesmo emprego há sete anos. Em ambos os casos, para Fernanda e Rose, a autonomia financeira desdobra-se em uma emancipação sexual: Rose com segurança comanda Miro durante a cena de sexo, Fernanda tem a permissão e a cumplicidade da mãe para dormir na casa do namorado.

As amigas Rose e Selma falam da vida e tratam de negócios.

Em seus vários arranjos familiares, o filme ressalta a falência das figuras masculinas como referência de autoridade ou de compasso moral – e uma intrínseca relação entre esse deslocamento e as novas fontes de renda e trabalho das mulheres. Se ao final do filme, Brenda (Mc Carol), que está a caminho do novo trabalho arranjado pela a avó, dá a letra para Marquinhos, o seu amigo das antigas – “não dá mais pra ficar nessa vagabundagem” -, é o olhar de decepção para o filho de Dona Fia (enquanto empurra o seu carrinho cheio de garrafa pet) que termina por condená-lo.

As relações que compõem o trio Ana, Marquinhos e Selma no assalto do desfecho do filme se configuram de formas mais complexas. Selma é construída no filme também na linha mulher-emancipada-e-autoconsciente, como Fernanda e Rose, mas já em outra fase da vida. É ela que enuncia o desejo de partir para o Coração do mundo – o lugar em que se quer pisar, o lugar do desejo e da vida plena. Esta explicação para Marquinhos, desse desejo pulsante por recomeço, é o que constrói discursivamente o desfecho da narrativa. No entanto, há um evidente descompasso entre o desenvolvimento da personagem na trama e a sua importância enunciativa. Com as outras personagens centrais há um processo de mostrar as relações cotidianas familiares e amorosas em ato, mas de Selma nos aproximamos apenas por seu longo relato para Marquinhos (o mesmo que enuncia o Coração do mundo) e por algumas fotos vistas no celular. Por brilhante que seja a atuação de Grace Passô, a estratégia do filme acaba por criar mais uma desconfiança do que uma adesão ao conflito da trama. Selma, nesse sentido, funciona quase como um dispositivo narrativo para catalisar a ação do casal.

Selma explica o que é o Coração do Mundo, enquanto arruma o cenário para as fotos de escola.

Já entre o casal Ana e Marquinhos há um acordo implícito que se quebra quando ele a convida para participar da fita (por exigência de Selma). O não dito entre eles é falado pela primeira vez, e as fronteiras não delimitadas dos corres de Marquinhos ganham nome e demarcação. Não mais a porosidade entre pequenos delitos e trabalho precarizado, o novo arranjo com a concordância de Ana gera uma ruptura. É acertar a boa ou nada: “Agora não tem mais volta”, como Selma avisa minutos antes do assalto.

O desastre após a fita e a melancolia de Marquinhos e Ana seguindo com a sua rotina depois de cruzarem um ponto de não retorno acabam com qualquer expectativa de resolução da trama pela catarse ou pela fuga. Um pouco traído pelas promessas de um ritmo inicial vibrante do filme, ao espectador cabe lidar com o fato de que Contagem é o Texas, não Hollywood. E que, em se estabelecendo a trama sobre uma dinâmica de mundo estruturada em um sistema econômico, social e racial que é uma máquina de moer as forças vitais e os desejos, não há negociação possível com um final feliz – não importa o quanto a construção da narrativa tenha nos prometido outra coisa.

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Imagem-trabalho

Por Diogo Serafim

Ao compararmos a iconografia do cinema à da  pintura cristã, percebemos que lá o trabalhador  é visto como aquela mesma criatura rara, santa. O cinema mostra o trabalhador de  outras formas também, mas capta  principalmente o elemento referente ao trabalhador presente em outras formas de vida. Quando os filmes americanos falam de poder econômico ou dependência, eles costumam retratar isso usando o exemplo de bandidos, sejam pequenos ou grandes, preferindo essa   dinâmica ao cenário de trabalhadores e empregadores. Devido ao fato da máfia controlar alguns sindicatos dos EUA, a transição do filme trabalhista para o filme  gangster pode ser tranqüila. Concorrência, formações de trust, perda de independência,  destino de funcionários menores e exploração – todos são relegados ao submundo. O filme americano transferiu a luta pelo pão e o pagamento da fábrica para as salas de entrada  dos bancos. Embora os ocidentais freqüentemente lidem também com batalhas sociais, como as que ocorrem entre fazendeiros, elas raramente são travadas em pastagens ou campos, mas com mais freqüência nas ruas da  vila ou no saloon.

Harun Farocki

 

HOLY MOTORS

O trabalho na física está relacionado com o deslocamento de um corpo devido à atuação de uma força, consistindo assim em uma transferência de energia. Quando Farocki analisa a força que puxa os operários para longe da fábrica ao fim do turno diário, o diretor está se referindo a uma força concreta que faz com que aquele movimento acelerado resulte na saída uniformizada e coletiva dos operários de diversas fábricas no mundo no processo de se individualizarem. Uma força que aparentemente age contra um bloco de indivíduos se demonstra na realidade uma congregação de forças que agem em cada operário de acordo com as vidas próprias que cada um possui, vidas estas perdidas durante o turno de trabalho em uma lógica de alienação comunitária.

Aqui Farocki retoma como ensaio uma ideia que Kaurismaki já tinha trabalhado em Sombras no Paraíso (1986) como relato, a ideia de uma vida que é própria a um proletário mas que floresce apenas ao fim do turno diário. Usualmente vemos a saída da fábrica mais como uma extensão do trabalho em outra modulação do que propriamente uma fuga temporária, e devemos ao menos acreditar na possibilidade de um novo tipo de lógica laboral nessa inversão de rotina. Já que a ideia de comunidade não pode sobreviver fora do ambiente do trabalho, Farocki vê a saída dos operários como possível catalisador de uma articulação reformista. Mais que isso, vê o cinema como a possibilidade de propor a faísca necessária para que essa articulação ocorra.

HOLY MOTORS

Mas como poderia o cinema, atividade intelectual, proporcionar uma mudança efetiva? Como se pode transformar a abstração da imagem e reduzi-la a uma práxis materialista? Farocki afirma que há de ser possível encontrar um substituto para a medição manual com o uso de fotografias. É perigoso estar fisicamente em algum lugar para mensurá-lo precisamente, tirar uma foto é um procedimento mais seguro. A primeira imagem de Auschwitz foi tirada a 7000 metros de altitude, mas sequer percebemos do que ela tratava efetivamente naquele momento. A questão que deve ser posta, sabendo que o olho pode manter uma distância segura do objeto e mesmo assim observá-lo, é saber se o olhar pode substituir a presença. O registro de uma imagem pode ser orientado como poesia, controle ou examinação, mas jamais como presença. A presença deve, então, ser intelectualizada.

Recentemente a imagem de uma criança morta em uma praia na Turquia foi catalisadora para uma nova política imigratória em toda a Europa. Uma imagem foi capaz de alterar o curso político de um continente inteiro por meses, feito que semanas de diplomacia não foram capazes de concretizar. Assim, felizmente, a intelectualização de uma imagem é espontânea. Sua dialetização não forçosamente, e é por isso que temos a combinação de imagens, o cinema, incumbido com tal tarefa.

O movimento repetitivo das ondas indo em direção à terra é o que provoca a ignição da reflexão. Na fábrica que inicia o filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), os pensamentos provenientes desse processo repetitivo, constante, culminam na reflexão. Uma piscina de ondas provocadas por um braço mecânico, um barco à deriva que na realidade tem um movimento programado. Tudo é controlado, tudo é utilitário. A produção em massa é uma produção de guerra. Assim, o estado fundamental econômico nosso é um estado de guerra.

O trabalho de Farocki está muito próximo do marxismo clássico. Guardando a imagem da fábrica como o ponto de inflexão entre o mundo privado e o público, propondo a alienação do espaço controlado de trabalho e a liberação do fim do turno diário, guarda também boa parte dos elementos exigidos pelo autor para o exercício dialético de natureza materialista. Sabendo que as dinâmicas de produção mudaram drasticamente mais de um século seguindo a escrita de O Capital de Marx, como encontrar paralelos entre a descrição proposta pelo autor da sociedade com a política do trabalho no mundo atual, mantendo o olhar crítico e a emergência para reforma social proposta pelo autor? A solução parece repousar próxima do traço de paralelos entre o mundo da segunda metade do século XIX com o mundo devastado pela guerra na primeira metade do século XX e da vigilância tecnológica da segunda metade do século XX. Sua obra consiste na busca por uma imagem que defina o processo de barbarização coletiva que continua para muito além da alienação proletária, para além do genocídio programado nazista, para além do controle estatal e empresarial. A fé de que a dialetização do registro possa ser uma chave emancipatória para o mundo.

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Editorial: O cinema e as formas do trabalho

Por Camila Vieira

Lumiere_saida de operarios

Como invenção da experiência moderna, o cinema desperta o olhar para o trabalho como atividade da vida cotidiana e, desde seu advento, intensifica a percepção da existência do dinamismo laboral para o desenvolvimento de uma região. Em 1895, os irmãos Lumière filmam a saída dos operários da fábrica da família em Lyon, na França. O registro em breves 45 segundos é marcado pela singularidade histórica de uma época: a passagem de mulheres e homens da classe operária, da clausura da fábrica para a rua, em pleno boom da industrialização nas grandes cidades europeias.

A proposta da nova edição da Multiplot é pensar a presença do trabalho ao longo da história do cinema, seja nos registros documentais, nas narrativas ficcionais ou mesmo nas configurações do experimental. O conjunto de textos apresentados nesta edição não pretende compor uma genealogia do trabalho no cinema, mas pensar filmes em que as formas do trabalho tornam-se relevantes para a construção de poéticas cinematográficas, que podem ser diversas de acordo com a criação de cada realizador.

O cinema pode ampliar a sensação de brutalidade e esgotamento da força de trabalho – Mudar de vida (1966), de Paulo Rocha; e Stromboli (1950), de Roberto Rosselini – e criticar a intensificação do poder laboral na exploração dos desejos e das formas de vida – No coração do mundo (2019), de  Gabriel Martins e Maurílio Martins. Ou explicitar o trabalho como instrumento de perpetuação das heranças do colonialismo e das marcas da escravidão, como em A negra de… (1966), de Ousmane Sembene.

Há filmes capazes de engendrar formas fílmicas que implodem a perpetuação do trabalho mecânico doméstico – Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman – e outros que exaltam a eficiência laboral e a industrialização no crescimento da malha urbana – Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov. Uma comunidade de camponeses no pós-guerra italiano e a reflexão sobre o trabalho produtivo e os usos da terra mobilizam Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a realizar Operários, Camponeses (2001). O desequilíbrio entre patrões e empregados no ambiente da fábrica é o ponto de partida para Oito horas não fazem um dia (1972-1973), de Rainer Werner Fassbinder.

Se a história do cinema nos oferece um apanhado de imagens diversas de trabalhadores, será preciso então fazer um movimento de retorno ao filme dos Lumière, como faz o ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Não é um retorno que se paralisa no passado, mas compreende o presente a partir dos gestos que perpetuam a organização do mundo do trabalho. A máquina da alienação proletária também movimenta a força dos operários para longe da fábrica ao fim do turno diário.

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Oito Horas não fazem um dia

Por Bernardo Moraes Chacur

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Oito Horas não fazem um dia, série em cinco episódios transmitida entre 1972 e 1973, foi o primeiro trabalho de Rainer Werner Fassbinder para a TV alemã. Conforme anunciado pelos créditos iniciais, o programa era uma Familienserie, gênero popular na Alemanha Ocidental de então. Oito Horas, no entanto, fugia do padrão desse tipo de narrativa ao apresentar uma família operária no lugar tradicionalmente reservado ao “típico” lar de classe média. Mas apesar dessa escolha de personagens e temas, o seriado também rejeitou as convenções do cinema politicamente engajado, contrabandeando discussões políticas entre doses de otimismo e entretenimento. Como resultado, Fassbinder atraiu críticas de ambos os lados do espectro ideológico e a série foi cancelada antes da filmagem dos três últimos três capítulos, apesar do sucesso de audiência.

A trama gira em torno de dois membros da família Epp, Jochen (Gottfried John) e a Avó (Luise Ulrich). O primeiro é um jovem que trabalha em uma fábrica, onde é pressionado por metas crescentes de produtividade. A segunda é uma viúva obrigada a morar com a família por falta de recursos. Jochen se apaixona por Marion (Hanna Schygulla), que lhe ajudará a canalizar de forma produtiva o seu descontentamento com o trabalho. A Avó conhece outro viúvo (Werner Finck), com quem decide buscar independência e um novo lugar para viver. A partir dessas duas linhas de ação somos apresentados a outros membros da família, amigos e, especialmente, colegas de trabalho.

As dificuldades enfrentadas por esses personagens são vencidas de forma coletiva. No contexto da fábrica, contudo, cada vitória obtida por Jochen e seus colegas revela imediatamente um novo desafio, demonstrando a eficiência e ubiquidade daqueles mecanismos de exploração. A partir dessa estrutura, Fassbinder combina esperança e pragmatismo: as vitórias são possíveis, mas o brutal desequilíbrio de forças entre patrões e empregados está sempre presente.

Fassbinder dialogou com a Velha Hollywood ao longo de sua carreira e há momentos em Oito Horas calcados nas screwball comedies. Mas a ligação entre o seriado e o cinema americano dos anos 30-50 ultrapassa o nível superficial. Assim como nos roteiros clássicos, as questões econômicas e sociais são enquadradas em dramas pessoais e entretecidos na narrativa. Os problemas enfrentados pelos personagens são solucionáveis e as comunidades são retratadas como essencialmente boas, apesar das tensões internas. O desenrolar do enredo reforça valores positivos, por mais que os valores defendidos por Fassbinder destoem do tradicional ideário norte-americano. O resultado diverge tanto das preocupações anti-ilusionistas de Brecht quanto do frequente pessimismo do Realismo Social, para citar duas vertentes da arte de esquerda – embora valha mencionar que nos três episódios não filmados, a série daria uma guinada mais trágica e explicitamente política.

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Oito Horas foi filmado cerca de um século depois da publicação do Capital. Algumas situações e diálogos parecem alusões diretas a conceitos marxistas: trabalhares alienados do próprio trabalho; o controle exercido pelos detentores dos meios de produção. Alguns incidentes parecem extraídos do início da Segunda Revolução Industrial e os personagens parecem viver em um mundo no qual o Manifesto Comunista jamais foi publicado. Não há sindicatos a vista. Esses anacronismos podem parecer uma estratégia didática, mas vale lembrar das tentativas de apagamento e estigmatização sofridas pelos discursos anticapitalistas naquele país ao longo do século XX. Líderes trabalhistas alemães foram executados pelo nazismo e, no exílio, por Stalin. O Partido Comunista da Alemanha Ocidental foi banido em 1956 e refundado somente em 1968. Ideias de esquerda eram associadas ao Outro ameaçador, que espreitava do outro lado do Muro ou praticava atentados sob a forma do Grupo Baader-Meinhoff.

A transmissão do seriado coincidiu com os últimos anos da chamada Era de Ouro do Capitalismo (1945-73). O período foi marcado pela ausência de crises financeiras sérias, baixo desemprego e melhora sensível na distribuição de renda – pelo menos no Hemisfério Norte e para a população branca desses países. No intervalo, foram utilizadas políticas execradas pelos defensores da economia de mercado, como intervenção estatal na economia e restrições ao movimento de capitais.[1] O medo de alastramento do comunismo influía na concessão de benefícios e direitos. Em um contexto como esse, a insubordinação de Jochen e seus companheiros de fábrica parecia especialmente plausível.

A partir de 1973, uma série de crises estremeceram a economia global. A assistência social, a regulação econômica e os direitos trabalhistas foram reiteradamente apontados como origem de todos os males. Adotando o caminho oposto, as políticas das décadas seguintes permitiram um incremento cada vez mais acelerado da concentração de riqueza. Essas mudanças foram acompanhadas por um extraordinário esforço de propaganda. Em Oito Horas não fazem um dia os conformistas e conservadores não defendiam o status quo por acreditar que aquela sociedade era justa, mas por considerá-la imutável. Nos dias de hoje, as mesmas pessoas provavelmente falariam em empreendedorismo e estado mínimo para justificar que o capitalismo tardio é o melhor (e único) mundo possível.

Considerando a trajetória das últimas décadas, não é surpreendente o desespero e até derrotismo de tantas obras hoje classificadas como críticas sociais. Em contrapartida, o otimismo de Oito Horas poderia parecer ingênuo e contraproducente. Um dos grandes momentos da série é a festa de casamento de Jochen e Marion, uma longa sequência que reúne a maioria dos personagens, cada vez mais bêbados. Em outros filmes, seria fácil imaginar cenas parecidas redundando em conflitos. Ao invés disso, somente o cunhado conservador e um operário xenofóbico terminam isolados, enquanto entre os demais vence novamente a união e solidariedade. Por que Fassbinder, geralmente tão cáustico, teria adotado aqui esse tom positivo? Talvez por calcular que sem uma opção consciente pela esperança nenhuma mudança pode ser imaginada, postura essencial em um cenário cada vez mais adverso.

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[1] Boa parte dessa síntese foi retirada do seguinte artigo: https://www.newyorker.com/magazine/2018/05/14/is-capitalism-a-threat-to-democracy

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“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

imagem de abertura

Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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Duas cenas de pesca: Paulo Rocha e Roberto Rossellini

Por João Pedro Faro

Uma cena

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Primeiro, vemos os contornos das costas de um pescador ao remar, registrado pela câmera que está dentro de um barco Furadouro em Mudar de Vida (1966). Agregando seu esforço individual ao esforço conjunto que movimenta o barco, o pescador é parte de um grupo de trabalhadores que une o máximo da capacidade física de cada um para um mesmo objetivo. O embate entre homem e natureza é colocado como princípio laboral, e a vitória desse enfrentamento tende a ser para os pescadores, que continuam constantemente brutos em sua movimentação. Após um plano geral que mostra o Furadouro quebrando ondas embalado por uma canção lusitana entoada pelos pescadores, voltamos para dentro do barco, acompanhando o pesar que recai sobre o rosto do protagonista Adelino (Geraldo Del Rey). Ele acaba de retornar à pesca, após um período afastado da vila que cresceu e dos companheiros de trabalho. Não há em seus movimentos a mesma organicidade característica aos que estão em sua volta. Cada remada o aproxima do esgotamento. Antes, cada descida dos remos parecia ditar uma montagem mais dinâmica à cena. Ao continuarmos com Adelino, os cortes diminuem e o esforço necessário aos movimentos aumentam. Não há corte que dê descanso ao personagem. Suas expressões são vacilantes e culminam em desmaio. Adelino larga os remos e cai dentre os membros do Furadouro, que continuam a jogar as redes na água e a remar contra as ondas como se dotados de uma força inesgotável. Não vemos mais o rosto de Adelino, apenas seu corpo desistente.

Essa sequência da pesca em Mudar de Vida marca alguns pontos essenciais a todo o filme. Sendo o segundo longa do realizador português Paulo Rocha, que tinha alcançado um espaço de relevância após Os Verdes Anos (1963), as recepções ao filme pareciam tomadas por uma certa “atmosfera neorrealista”, como disse o cineasta. Entorno do que o filme registra sobre o trabalho de pesca e a dificuldade de retorno a um espaço fadado às ruínas, ainda mais tendo uso de não-atores e uma proximidade com a ambígua rotulação de “documental” percebia-se mais o que estaria espelhado no cinema de Rocha e menos no que o próprio tentava buscar: “As pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era a admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho coletivo, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa (…) visivelmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder a vista”.

Portanto, quando o personagem Adelino não consegue voltar a trabalhar no Furadouro, quando se vê incapaz de continuar no barco e na pesca por não suportar o esforço necessário, ocorre a grande dissociação do protagonista com o espaço que, anteriormente, tinha como pilar. Nesse momento, Adelino se perde de si mesmo, a identidade está acabada. Não é na dureza do trabalho que reside qualquer ideal do filme contra as condições laborais de uma classe, e sim com a forma a qual Rocha coloca a personalidade do indivíduo, sua moral e seus princípios como intrínsecos à cultura de trabalho imposta em sua vida. Adelino não consegue trabalhar com os pescadores de sua vila natal como antes trabalhava, portanto se torna indigno de sua própria origem. Está aí a perda da identidade intrínseca ao processo de trabalho contra a natureza. O destino, tanto do espaço que nasceu quanto de si mesmo, é ser destruído pelas ondas que avançam do mar, que um dia já foi capaz de suportar.

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Outra cena

Vistos de longe, um grupo de pescadores lança redes ao mar e cantam em italiano. Seus rostos são indiscerníveis, o único rosto que vemos aproximado é o da protagonista Karin (Ingrid Bergman), recém-casada com um pescador e morando à beira de um vulcão na cidade de Stromboli, que dá nome ao filme de 1950, do cineasta Roberto Rossellini. A adaptação àquela vila costeira não está sendo nada fácil, e ver o trabalho da pesca pode ser uma possibilidade de se acostumar com o novo ambiente que veio morar. Ela observa os homens trabalhando com certa curiosidade. Até que, em um plano aproximadíssimo das águas, um cardume de atuns submerge, cortando a tela. O som torna-se mais caótico, nos movimentos violentos dos peixes que tentam fugir das mãos dos pescadores. Voltamos ao rosto de Karin, aterrorizada. As águas estão revoltas, os homens seguram os atuns e os puxam para si. Metem arpões em uns enquanto outros tentam escapar. O trabalho torna-se fúria. O registro não se interessa por seus corpos em si, apenas por seus membros, sua força braçal que agarra os atuns. Antes afastada, a câmera se aproxima apenas em detalhes de toda a pesca, intercalados violentamente pela montagem, que aumentam a dureza do embate entre os peixes e os pescadores. A força do trabalho daqueles homens assusta Karin de um jeito traumático, que só tira sua expressão de horror para o silêncio da cena seguinte. Seu marido, grande causador de suas dores pelo abuso já marcado no recente matrimônio, pergunta: “Gostou da pesca?”. Karin só responde, seca: “Não”.

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Quando Rossellini filmava Stromboli, seu nono longa-metragem e primeiro trabalho com Bergman, os percalços do pós-guerra já encontrava implicações diferentes do que havia feito em Alemanha, Ano Zero (1948). A locação de Stromboli tem um potencial tão apocalíptico quanto seu filme anterior que fechava a Trilogia da Guerra, porém a ameaça sai do âmbito puramente humano da guerra para manifestar-se em uma natureza à beira de explodir. Essa manifestação quase sobrenatural do natural, retomada na sequência final do vulcão, é marcada pela cena da pesca. Nela, os habitantes locais, através do trabalho rotineiro, dominam a natureza com as mãos. Para o olhar estrangeiro de Karin, amplificado pelo abuso doméstico, a identificação daquele espaço como um de normalização do brutal, onde uma cena daquelas que presenciou com tanto horror é algo diário, afasta ainda mais qualquer possibilidade de que ela consiga se estabelecer naquela vila. Torna-se sobre como o trabalho não consegue se dissociar da imagem total de uma determinada sociedade e, consequentemente, da identidade dos seus membros. No caso da vila costeira italiana, o contato com o destrutivo é totalmente insensibilizado.

As duas cenas

HOLY MOTORS

Tanto a cena da pesca em Mudar de Vida quanto em Stromboli apresentam um desencontro difícil entre a identidade de um personagem que não consegue se estabelecer diante da identidade de um espaço que não pertence. O drama para Adelino, em Mudar de Vida, é perder o contato com as próprias origens. Para Karin, em Stromboli, é a solidão e o abandono ao perceber que não consegue se adaptar a um novo lugar que habita. Em ambas as sequências, e para ambos os cineastas, cabe ao trabalho (no caso, a um mesmo trabalho) estabelecer distâncias, ritos e pessoas.

Por mais que o gesto de encontro do trabalho dos pescadores com o mar seja retratado em Rocha e em Rossellini com toda a violência necessária aos homens, eles surgem como traço de um gesto inevitável aos que vivem às margens. Os pescadores de Stromboli e os pescadores do norte de Portugal são bases inevitáveis de cada um desses lugares, e, sendo cada um dos filmes sobre as próprias locações, base do que circunda cada um dos filmes. As classes dos trabalhadores braçais se encontram em um estado em que seus ritos laborais já apresentam certa antiguidade, traços próprios, personalidade inconfundível com o lugar que nasceram, cresceram e trabalham. O gesto do trabalho e seus traços pessoais aos coletivos de cada lugar, intrínsecos a quem são essas pessoas, são consequentemente parte do que ambos os filmes buscam encontrar em suas jornadas trágicas da solidão da figura forasteira. Cabe aos outros, sejam esses outros os protagonistas desencontrados, sejam os cineastas, a saber como se aproximar desses gestos através do que podem.

 

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Justine Triet, uma cineasta no século XXI

Por Lucas Saturnino

I.

Dado que “Sur place” (2006) e “Victoria” (2016) compartilham um ponto de partida dramatúrgico em comum, pode-se dizer que Justine Triet passou da videoarte à comédia romântica de modo absolutamente coerente. A francesa Justine Triet nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1978. Formou-se em artes plásticas na Escola de Belas Artes de Paris. Seus primeiros trabalhos em vídeo (como “Sur place”) circularam majoritariamente em museus. Em uma década, suas narrativas audiovisuais foram do Centre Pompidou ao Varilux (que exibiu “Victoria” no Brasil) movidas por um mesmo motor: a precarização do trabalho e a mútua erosão das esferas pública e privada na sociedade francesa.

“Sur place” se baseia em filmagens de uma manifestação anti-CPE (“Contrat Première Embauche” = “Contrato do Primeiro Emprego”) em Paris, março de 2006. No início daquele ano, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin havia apresentado um projeto de lei para instituir um novo tipo de contrato laboral, o CPE, cujo objetivo seria combater os altos índices de desemprego na juventude – entre 20% e 25%, número que se mantém até hoje. O CPE seria destinado a menores de 26 anos e tornaria a demissão mais fácil, permitindo ao empregador demitir seu funcionário sem a necessidade de apresentar quaisquer justificativas durante um “período-teste” de 2 anos – duração máxima do contrato.

Argumentava-se que, aos olhos dos empregadores, seria mais fácil contratar caso também fosse mais fácil demitir. Todavia, protestos de larga escala irromperam por todo o país, capitaneados por jovens, estudantes secundaristas e universitários. A enorme oposição ao CPE – 68 universidades públicas foram ocupadas, estima-se que até 3 milhões de pessoas possam ter saído às ruas, em meio a paralisações e ameaças de greve geral – sagrou-se vitoriosa quando o governo recuou, abandonando a proposta menos de um mês após o presidente Jacques Chirac assiná-la.

“Sur place” prenuncia duas décadas politicamente tumultuadas na França. Com efeito, os protestos estudantis de 2006 inauguraram uma nova era de insurreição social no país, junto à revolta que havia eclodido nas periferias francesas em 2005, após o assassinato de dois jovens de origem imigrante em decorrência de uma ação policial – e, no filme de Triet, veem-se muitos negros.

Contudo, nenhum contexto nos é dado: cabe ao espectador projetar nas imagens as razões que ele deseja para a revolta; assistir “Sur place” é uma experiência similar à de ter vivido a década de 2010, acompanhado o surgimento de grandes protestos por todo o planeta e as subsequentes tentativas de decifrar seus significados ou mesmo se apropriar da dor, revolta ou catarse dos outros (ou deslegitimar tudo isso) – da Primavera Árabe ao Chile e Hong Kong, de junho de 2013 no Brasil aos coletes amarelos na própria França.

Triet enquadra a Praça – espaço-símbolo de tantas dentre essas manifestações – e o guião é prontamente reconhecível: o protesto se encaminha ao fim e os participantes se agrupam – ou são agrupados (pelas câmeras da cineasta, mas também pelas da mídia em cena) – em um canto, e a tensão aumenta à medida que se instala a estranha calmaria que precederá a previsível tempestade a ser incitada pela ação da polícia.

“Sur place” contrapõe o niilismo dos jovens manifestantes, dispostos a encarar a repressão, ao niilismo dos patrões, confortavelmente fora de quadro, propensos a bancar a violência que explodirá no espaço diegético. O confronto entre manifestantes e policiais é o choque entre um movimento caótico e outro mecanizado – os policiais, afinal, já foram absorvidos pelo mercado de trabalho. A ambiguidade/transitoriedade das narrativas que buscamos impingir discursivamente nas imagens é reforçada pela presença de policiais à paisana, os quais parecem ser manifestantes constantemente virando a casaca.

O vídeo “Sur place” pertence à Colecção Berardo, além de integrar a coleção new media do Centre Pompidou, em Paris. A Colecção Berardo leva o nome de José “Joe” Berardo, empresário madeirense que fez fortuna explorando ouro na África do Sul, e conta com obras de artistas como Picasso, Bacon, Miró, Duchamp, Warhol, Basquiat e etc.

Em 2006, um comodato (empréstimo gratuito a prazo) de 862 obras entre Berardo e o Estado português deu origem a um museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022. Como “Sur place” não está entre as 862 obras inicialmente inventariadas pelo Estado, é de se supor que sua aquisição tenha ocorrido entre 2007 e 2008, quando novas peças foram compradas.

O acordo previa a ampliação anual da coleção: o Ministério da Cultura e Berardo contribuiriam com 500 mil euros cada e formar-se-ia a Coleção Estado-Berardo, a qual poderia ser vendida ou adquirida por uma das partes ao fim do comodato. Compraram-se 214 obras antes de Berardo e do Estado português desistirem da iniciativa em 2008. E, assim, “Sur place” foi parar num museu em Lisboa.

Em 2019, Berardo tornou-se pivô de um escândalo em Portugal: ele deve cerca de 980 milhões de euros a bancos portugueses (inclusive públicos), que desejam aceder à coleção para cobrar a dívida. Convocado a prestar esclarecimentos no parlamento, riu-se ao ser confrontado pelos deputados sobre as suas dívidas. Segundo Pedro Lapa, antigo diretor artístico do Museu Berardo, a Coleção Estado-Berardo teria sido formada de maneira “pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional” e as 214 peças (“Sur place” inclusa) adquiridas em conjunto por Berardo e pelo Estado teriam um futuro incerto.

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II.

Triet filmou duas eleições presidenciais francesas seguidas: 2007 e 2012. Em ambas, dirigiu-se à Rue Solférino, em Paris, onde fica a sede do Partido Socialista francês. Em 2007, realizou um documentário de média-metragem, “Solférino” (2009), que registrava a decepção (compartilhada por ela) dos presentes com a derrota de Ségolène Royal frente à Nicolas Sarkozy. Cinco anos depois, retornou ao local para incorporar a ocasião na ficção. Em “La bataille de Solférino” (2013), seu primeiro longa, Laetitia Dosch encarna uma jornalista cobrindo o dia eleitoral enquanto o ex-marido briga com ela para poder ver as filhas dos dois – em suma, ela falha em manter a vida pessoal afastada da profissional.

Ao fim do dia, após serem conhecidos os resultados, tumultos (igualmente descontextualizados) emergem nas ruas e se pressente o enfrentamento com a polícia –momento em que a tensão racial é evidente. A personagem de Dosch funciona como uma extensão das pequenas massas de fotógrafos e jornalistas que víamos cobrindo os protestos em “Sur place”. Ao ex-marido, ela se jacta de ser uma formadora de opinião, alguém a quem o público recorre para construir um ponto de vista.

No entanto, a própria estrutura do filme realça a futilidade de se emitir julgamentos com base em recortes arbitrários e seletivos. Quem se atreve a ser categórico a respeito dos personagens? Por um lado, os ex-cônjuges comportam-se de maneira que corrobora as acusações de um em relação ao outro – a mãe a praticar alienação parental e o pai a ser violento. Por outro, presenciamos uma situação-limite e não sabemos de mais nada sobre os dois – ambos são narradores não-confiáveis; falta-nos, justamente, informação.

No instante da vitória de Hollande, a reação da jornalista à História desenrolando-se à sua volta é de indiferença e, sobretudo, desorientação. Ela se encolhe na massa; e o documentário sufoca a ficção. Triet achava que Sarkozy iria ganhar, de modo que o estado de penúria da personagem seria compartilhado pela multidão. Faltou combinar com os russos, já dizia Garrincha. Mexer com o real pode ser assim imprevisível. Dosch teria até sido confundida com uma verdadeira repórter, sendo cobrada pelo seu posicionamento.

Na obra de Triet, a deterioração das esferas pública e privada é um processo que se intensifica conjuntamente. As relações entre pais e filhos se encontram judicializadas: é o Estado quem define quem estará com quem e quando, organizando os elementos em cena. A luta do pai em “La bataille de Solférino” é para poder permanecer no espaço diegético – e ele o faz exibindo uma decisão judicial.

As protagonistas de “La bataille de Solférino” (uma repórter) e “Victoria” (uma advogada) têm muito comum: o emprego das duas pressupõe uma dose de performatividade pública (manter uma imagem: a maquiagem e o figurino mudam drasticamente quando elas não estão trabalhando) e ambas lidam diretamente com o aparelho estatal. Elas representam canais de comunicação entre o povo e o Estado; nenhuma, porém, está dando conta.

A repórter passa o filme segurando o choro, à sombra da “festa da democracia”, e tentando manter o autocontrole em frente às câmeras, o qual inexiste, na vida privada da formadora de opinião pública, a partir do momento em que ela sai do ar. A advogada também trabalha performando – diante dos representantes do Estado (e os julgamentos são razoavelmente ridículos; representação sintonizada com a crise de confiança na aptidão da democracia).

No início de “Victoria”, a personagem-título surge discursando diante de uma câmera: trata-se de uma mensagem de felicitações a um amigo que está se casando. Ela erra e repete várias vezes. “Mais natural”, diz quem está a filmá-la. “Seja mais natural”. Fora do trabalho, Victoria se mostra extremamente desconfortável em performar. Perdeu o jeito.

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III.

“La bataille de Solférino” é uma ficção imersa no real. “Victoria” também; embora não tenha um “pano de fundo documental”, à exemplo das eleições no filme anterior. Assim como em “Sur place”, o estado das relações trabalhistas na França impulsiona a ação dramática no filme – uma comédia romântica cujo romance só ocorre devido ao desemprego. Em outras palavras, a ficção resulta da teatralização de tensões político-econômicas e sociais. À título de comparação, um movimento semelhante ao realizado em “Les Neiges du Kilimandjaro” (2011) e “La Villa” (2017), dois filmes de Robert Guédiguian que, por sua vez, versam sobre os efeitos da desindustrialização no sul da França.

“Victoria” aborda as relações de Victoria – uma advogada, mãe de duas filhas pequenas – com três homens diferentes: seu ex-marido, um amigo que ela aceita defender em um processo de assédio e um antigo cliente que passou a trabalhar de babá para ela.

No casamento de um conhecido em comum, Victoria reencontra Samuel (Vincent Lacoste), um ex-traficante a quem havia defendido. Ele parou de traficar (ou seja, deixou o mercado informal) e precisa de um emprego; então, tenta convencê-la a aceita-lo como seu assistente pessoal: afinal, ela precisa de uma babá e ele está disposto a tudo; assim, os dois podem unir o útil ao agradável – ou o burnout ao desemprego.

Samuel explica-a que poderia ser útil como uma espécie de faz-tudo, um “homem nas sombras” (a subalternização implica em invisibilidade, à exemplo do que diz o guarda-costas encarregado de proteger Victoria durante o julgamento: “Eu sei como manter certa distância”) capaz de resolver os problemas dela, além de estar disponível a qualquer horário, pois até dormirá – por necessidade dele – no trabalho (i.e., a casa dela).

Ele propõe-na um teste: passará uma semana dormindo no sofá dela e trabalhará de graça em troca de uma oportunidade. Sua saída para se reinserir mercado de trabalho é a sujeição absoluta – direitos trabalhistas inexistem e mesmo o salário, em meio a estágios não-renumerados e jobs por visibilidade, torna-se um luxo, quase um favor do patrão.

A influente youtuber Nathalia Arcuri (dona do que afirma ser o maior canal sobre finanças no YouTube do mundo, e apresentadora do programa “Me Poup!” na Band) recomenda uma conduta semelhante ao desempregado: oferecer-se para trabalhar de graça durante 4 horas por dia em um período de 2 semanas, com a finalidade de poder demonstrar o seu valor e se fazer “presente e insubstituível”.

Samuel se desvaloriza para mostrar que ele – um jovem sem experiência profissional – tem consciência de que, segundo a lógica do contratante, não vale nada até se provar meritocraticamente. Tal figura do jovem psicologicamente e economicamente à deriva entre o desemprego e o subemprego é uma constante no cinema francês contemporâneo e encontrou sua expressão mais marcante em “Jeune femme”, de Léonor Serraille.

Note-se que a vitória de Hollande não serviu para muita coisa, o que ajuda a explicar o colapso da centro-esquerda em países como a França e a Alemanha. “Nada mudou”, declarou Triet um ano após a estreia de “La bataille de Solférino”, atentando para a ironia dos cartazes excessivamente esperançosos com o candidato socialista, os quais logo adquiriram um aspecto de comicidade e cinismo. Diferentemente de quando Miterrand foi eleito nos anos 1980, ela alega que a maioria dos apoiadores de Hollande tinha consciência de que nada mudaria e de que a grande vitória era a derrota de Sarkozy.

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IV.

Se considerarmos que o papel mais famoso do Melvil Poupaud é em “Conte d’été” e que neste filme ele bem poderia estar interpretando a mesma pessoa 20 anos depois, “Victoria” é um filme no qual a protagonista tenta salvar um personagem do Rohmer de uma acusação de assédio sob o argumento de que “Sim, ele é um babaca, um grande merdinha, todos sabemos, mas, afinal e a rigor, isso não é crime”.

O personagem de Poupaud não tem mulher nem filhos. Então, a estratégia para que o júri veja-o como um “cidadão de bem” é focar no trabalho, encenando-o como alguém respeitável mediante suas responsabilidades profissionais – a essência do homem. “As pessoas não veem homens bonitos como assassinos. E pessoas bonitas ganham mais que pessoas feias”, explicam-no – imagem é autoridade é dinheiro é sexo é imagem.

Outra linha narrativa trata da apropriação que o ex-marido de Victoria (um aspirante a escritor) faz da história de sua vida – ele pode, é o homem, o autor, cheio de status e hubris –, criando uma personagem inspirada nela, a qual, informam-nos, ganhou o direito de explorar inclusive no cinema. Ora, mas já estamos vendo um filme!

A história de Victoria, tal qual contada por Triet, inclui o fato de que um homem tentou tomar sua biografia de assalto – e conseguiu. A cineasta se reapropria dessa apropriação; porém, sem omitir as difamações do ex-marido, sejam verdadeiras ou não, muitas das quais até podem ser – Victoria admite ter transado com juízes, por exemplo. Pois Triet afirma não desejar que suas personagens femininas sejam meramente vítimas.

Triet sabe que o modo mais justo de se amar alguém é amando-o de maneira que abarque também os seus defeitos – quanto mais em uma economia regida pela performatividade social. A imperfeição da personagem humaniza-a e engrandece-a; suas falhas não são rebeldia ou pose, mas vulnerabilidade e desorientação: ela, uma advogada bem-sucedida, porém esgotada psicologicamente, é a personificação da sociedade do cansaço e do quão insuficiente e insatisfatório é mesmo o “sucesso” burguês no capitalismo tardio.

Simbólico que o personagem de Lacoste seja um traficante – ocupação-chave da vida contemporânea – e que seja o traficante a virar o apoio psicológico dela. Só cheirando ela se põe de pé para a última missão. A vida à base de fármacos – medicinais ou recreativos.

Igualmente emblemático que Victoria tenha comprado um celular inquebrável, que pode ser arremessado no chão ou contra a parede porque foi “feito para militares” (vide Les combattants, de Thomas Cailley, em que a personagem de Adèle Haenel busca se militarizar para sobreviver ao apocalipse vindouro). O celular toca a todo momento com questões de trabalho – até quando ela está transando. Ele põe-na acessível o tempo todo, pulverizando a noção de expediente e tornando-a refém de sua disponibilidade.

Victoria não para de pensar em trabalho nem mesmo durante o sexo. Os homens que ela conhece na internet chegam à sua casa nos horários combinados, mas sua mente ainda não está no mesmo lugar que o corpo. Ela não consegue se fazer presente e estar ali para o outro. A relação dela com o tempo das coisas é esquizofrênica: no trabalho, está pensando no terapeuta; no terapeuta, em sexo; no sexo, em trabalho.

Após ser suspensa da advocacia por alguns meses, uma montagem sua “aproveitando o tempo” com as filhas mostra-nos o quão desconectada ela está de tudo: sem trabalhar, fica vazia, não consegue recanalizar as energias, não sabe tirar prazer de mais nada, sua vida entra numa pausa. O trabalho colonizou o modo dela estar no mundo: “Eu preciso do meu trabalho, não posso viver assim, preciso me reconectar com as pessoas”, ela diz – a vida profissional substituiu outras formas de sociabilidade.

O cenário doméstico possui um aspecto caótico: o quadro preenchido ao máximo, não há espaço, brinquedos e coisas estão por toda a parte. As crianças representam o real (em ambos os longas, interpretadas uma pela filha dela e a outra pela de sua melhor amiga), uma vez que, explica Triet, eram crianças tão pequenas que os atores é que tinham de se adaptar a elas e não o contrário. As crianças – o real – embaralhavam o set, dando origem a uma tensão crua e genuína e gerando a necessidade dos atores efetivamente virarem babás das pequenas (cf: “Poto and Cabengo”, de Jean-Pierre Gorin).

As babás nos filmes de Triet são sempre homens, invertendo a divisão sexual do trabalho clássica, que delega as tarefas domésticas às mulheres, enquanto os maridos passam o dia fora de casa no emprego. Victoria, divorciada, cria as filhas sozinha, mas não tem tempo para elas por causa do trabalho, o qual, porém, paga as despesas de criá-las. O dinheiro que ela ganha trabalhando permite-a contratar ajuda para suprir sua ausência enquanto ela trabalha para ganhar o dinheiro que suprirá sua ausência.

E o pai? Nada. É uma figura infantil, que ademais não paga pensão alimentícia há 7 meses. Já Victoria é uma mulher que triunfou no mercado de trabalho. E do que chama-a o ex-marido? “Mulher fálica”, de “sexualidade cerebral” – como se o trabalho a tivesse masculinizado. Ela afirma que seu ex-marido nasceu em uma família burguesa e não possui preocupações financeiras, tendo tempo para bancar o moralista. Por outro lado, ela não teria tido escolha exceto cometer muitos erros. Questão de classe. No capitalismo neoliberal, ascender socialmente requer certa dose de amoralidade.

Da vidente ao psicólogo, sua conduta é errante mesmo na busca por ajuda. Ela não sabe o que quer e abre-se a tudo. O flerte com o esoterismo revela uma dupla desconfiança: a ajuda não virá nem dos homens nem dos deuses; então, ela procura o oculto, um que a informe de um futuro já escrito, sobre o qual ela nada poderá fazer – os infortúnios serão obra do destino, não é culpa dela, e, bem ou mal, isso é uma espécie de conforto.

Victoria não teve tempo – essa commodity – para se perceber apaixonada e descobrir que existe outra vida além da profissional. E o que se pode oferecer à pessoa amada no capitalismo tardio? Ela declara o seu amor oferecendo ajuda para capacitá-lo profissionalmente – e apresentá-lo a todos os advogados de Paris, pois, como alertam os gurus das finanças, networking é o mais importante….

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A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

HOLY MOTORS

Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

HOLY MOTORS

A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

HOLY MOTORS

Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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A fábula do autor-animal: Alex Cox e a trilogia do ridículo

Por Pedro Tavares

“Nós nos achamos no direito de rodar, de vez em quando não filmes de alto custo,

e sim filmes que produzem filmes

Dziga Vertov

Seguindo o conceito de senso comum antropomórfico da básica literatura infantil que em sua função elementar carrega a moral como norte, fica a lição do autor-animal: faça você mesmo. Para compreender melhor a ideia do autor-animal, é preciso voltar algumas páginas de sua história, ou melhor, anos.

O jovem realizador britânico Alex Cox que fizera até então o curta-metragem Edge City (Sleep is for Sissies) (1980) como trabalho de conclusão de curso na Univeristy of California em Los Angeles estava prestes a “ser” um diretor, com estrutura, planejamento e ideia de projeção. Repo Man tinha um acordo com a Universal de produção e distribuição. Após o processo caótico de filmagem, vale a elipse para a insatisfação número um de Alex Cox sobre o descaso de produção e distribuição do filme, que passou cerca de 130 semanas em cartaz num pequeno cinema no oeste dos EUA e rendeu louros para a produtora/distribuidora. O mesmo descaso se repetiu no decorrer do contrato para três filmes que fora concluído com Sid & Nancy (1986) e Walker (1987).

Neste momento, o lado animal toma conta do autor. Já dotado de insatisfação o mercado – incluem-se críticos, festivais, produtores e associados -, por notar o desinteresse geral pelos filmes no Festival de Cannes à época da première de Sid & Nancy, quando o secretário de cultura francês ganhou mais aplausos que o próprio filme em sua estreia, Cox mudou sobre a indústria que se espelharia nos resultados lúdicos e espirituosos na trilogia do ridículo que veremos mais pra frente.

Com o tempo, Alex Cox tornou-se persona non grata em Hollywood, principalmente por usar a gordura da dinheirama prevista para Walker para fazer um spaghetti western chamado Straight to Hell (1987), enquanto a Universal resolvia burocracias políticas para que as filmagens de Walker prosseguissem.

Walker narra a história de William Walker, um mercenário que se autoproclamou presidente da Nicarágua em 1856 com intuito de dominar o país pela ditadura. Durante as filmagens, Alex Cox se envolveu com as questões da Frente Sandinista de Libertação nacional que pôs fim à ditadura estabelecida em 1936. Outro imbróglio foi o envolvimento de Alex Cox com questões éticas e políticas da Nicarágua durante a filmagem, no qual a produtora não concordava e pedia um ponto de vista mais condizente com o mercado americano. Não demorou para que o autor-animal fosse banido de quase todos os grandes festivais por expor os interesses maiores que os próprios organizadores destes eventos.

Imobilizado pelos grandes canais de divulgação, Alex Cox se encontrou nas produções independentes, com investidores mexicanos, japoneses, um fã holandês e, claro, fazendo o trabalho sujo: escreveu roteiros encomendados, incluindo o de Medo e Delírio em Las Vegas (1998), dirigiu séries e filmes para TV, como O Vencedor (1996), com o intuito de produzir e finalizar seus projetos. Desta longa temporada, saíram filmes notáveis como El Patrullero (1991), Death and the Compass (1992) e Three Businessman (1998). Vale citar o trabalho de apresentador e curador da série Moviedrome da BBC, onde introduziu filmes de Nicholas Ray, Sergio Leone, David Cronenberg, John Carpenter, Edgard Ulmer, entre tantos outros nas noites de domingo em TV aberta.

A trilogia do ridículo

A trilogia é indireta: seus meios são mais importantes que a própria narrativa. Tampouco se trata de uma aventura estética generalizada, mas um discurso da necessidade. A retórica da inspiração cria a fábula da consciência: não da moral, mas da noção de seus limites, de certo heroísmo que envolve a prática, de um retorno no raciocínio quase infantil do cinema em realizar sonhos. Este retorno também segue o pensamento que Joris Ivens já grifava em “Documentário: subjetividade e montagem”:

(…) Odiávamos aquilo que chamávamos de “grande indústria”. Não gostávamos de trabalhar para o grande capital; o que mais queríamos era fazer trabalhos independentes. Queríamos se capazes de fazer nossos filmes conscientemente, porque acreditávamos ser essa a mídia artística do educador. Nossos patrocinadores são muito especiais (…).

Composta pelos filmes Seachers 2.0 (2007), Repo Chick (2009) e Bill, The Galatic Hero (2014), a trilogia do ridículo parte do equilíbrio entre mente e matéria. São filmes que não desmoronam por necessidade de condições melhores e que levam a impossibilidade para o campo.

Searchers 2.0 foi co-produzido por Roger Corman e foi filmado em mini-DV, pouco antes da grande proliferação dos aparelhos de telefone celular. Como o nome entrega, a grande referência de Searchers 2.0 é o faroeste, apesar de boa parte do filme se passar na estrada e ter abordagem saudosa e cômica, principalmente por criticar a Motion Pictures of American Association (MPAA), o militarismo, os processos de filmagem da grande indústria, etc. É o caso de reduzir seu escopo para a ambivalência de voz e imagem, que desemboca num confronto final típico dos faroestes que exime a necessidade de balas e se torna um belo quiz sobre filmes do gênero. Este é um dos polos de duplicidade da chamada trilogia do ridículo: tratar temas espinhosos sob a manta fantástica justificada pelos limites – financeiros, principalmente. Neste caso, o caso de amor de Alex Cox pelos faroestes torna-se um suporte ainda maior para a ideia do autorismo, uma vertente muito forte em sua carreira que vai de filmes como Straight to Hell e Tombstone Rashomon (2017) a livros como 10.000 Ways to Die (2011).

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O duelo final com perguntas sobre faroeste em Seachers 2.0

O mesmo se repete em Repo Chick (2009), que assim como Searchers 2.0, estreou no Festival de Veneza – o único dos “grandes festivais” que ainda abriga os trabalhos de Alex Cox – e foi todo filmado em chroma key. Não se trata de uma sequência de Repo Man – esta sequência saiu em forma de HQ em 2008 –, mas uma nova operação em dois níveis, talvez a mais arriscada da trilogia. Pela possibilidade da variedade de materiais e universos que o chroma key oferece, toda artificialidade de Repo Chick é explícita, como se o CGI estivesse em primeiro plano sempre na ação em um filme de gênero. As palavras de Ivens valem a memória mais uma vez como o resumo geral entre a estética e sua real função:

Uma abordagem estética pura leva a arte a um beco sem saída. Para mim, um filme é muito mais importante quando está conectado a um movimento social, quando tem a ver com a vida. Não demorou muito até sentimentos que nós, como artistas, tínhamos que tomar partido na vida social, na vida econômica de nosso país; que toparíamos com uma parede lisa caso permanecêssemos no lado abstrato do esteticismo”.

Repo Chick se aproxima muito da função que os filmes de Joe Dante carregam até hoje, em especial Pequenos Guerreiros (1998). O lado plástico segue em paralelo às pequenas revoluções que o filme entrega em micro e macrocosmos (o segundo nível), com a diferença que Cox não tem amarras com um nicho de público. Da autorreferência – o desafio de recriar a cena da santa ceia de Straight to Hell, por exemplo – à variedade de preceitos usados pelo diretor no filme e à noção de maleabilidade ao “filme-monumento” que Repo Chick teoricamente deveria ser. A julgar, um filme de efeitos deveria esvaziar seus personagens. Neste caso, o filme nasce vazio e ronda seus personagens de efeitos, num caminho tortuoso e quase oposto à cartilha para fortificar trama e personagens.

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Das filmagens de Repo Chick: o chroma key abre janelas para um novo mundo.

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Personagens que arrebatam a artificialidade em Repo Chick.

Estes dois níveis usados em Seachers 2.0 e Repo Chick concluem a trilogia com Bill, The Galactic Hero. O filme foi produzido entre 2013 e 2014, já nos tempos de redes sociais e aplicativos que facilitaram muito a produção e filmagem. A começar pela pré-produção, que possibilitou o envolvimento dos fãs na campanha de crowdfunding. A equipe foi composta por alunos da turma de cinema da Universidade do Colorado, onde Alex Cox leciona.

Baseado na HQ homônima de Harry Harrison, o filme carrega o humor tradicional da obra original, porém, ironicamente, expõe de vez a melancolia nostálgica em seus meios – toda trilogia é intercedida ao comentário sobre o fazer e ver filmes, do supracitado faroeste aos filmes policiais e ficções científicas, numa espécie de reconstrução do imaginário adolescente masculino. Bill, The Galatic Hero é o que enfatiza estes meios da estética B, mais controlada que os outros dois filmes, mas não menos funcional à mise en scène. Por mais que sua função seja de, novamente, gritar o fazer pela necessidade, o filme não apaga seu caráter de reconstituição.

A pensar que este compêndio fílmico passa pela mini-DV e pelo chroma key e principalmente pela opção de completar a artificialidade de métodos, Bill The Galatic Hero se entregar ao impossível – os efeitos especiais são trocados pela animação, que abrem e encerram o filme – é uma manobra irônica, uma espécie de “quebra de regra” de seu próprio criador.

A trilogia do ridículo, um nome de tom não menos sarcástico que os filmes, pautam, em sua anarquia, a possibilidade de criação da ambivalência da imagem: em tom pop e bom humor, Cox dá sua contribuição ao estudo do encontro real com a imagem que passa por Huberman e Farocki.

O mesmo deserto do faroeste é palco de um sci-fi B; o chroma key de uma aventura pulp serve como pano de fundo para um novo gênero. E o envolvimento requerido é o mesmo. O norte primitivo, da fábula, da passividade e compreensão de um mundo possível graças à posição de baixa guarda em relação ao filme – o que geralmente cria diversas críticas negativas aos filmes, em especial a Repo Chick -, possibilita uma nova aventura. Ler a ambivalência na trilogia é um processo de convencimento, o sentir virá pela recognição.

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Astronautas no deserto – ou em novo planeta – em Bill, The Galactic Hero

A duplicidade do processo não é novidade para Alex Cox que torna a percepção elástica de unidade em sua filmografia na reimaginação, em personagens que vão e voltam, em métodos e principalmente na subversão de todos estes elementos. E é isso que faz a obra do autoproclamado “film anarchist” um processo muito agradável de se acompanhar. Faça você mesmo.

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O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte

Por Diogo Serafim

Se ha llenado de luces
Mi corazón de seda,
De campanas perdidas,
De lirios y de abejas,
Y yo me iré muy lejos,
Más allá de esas sierras,
Más allá de los mares
Cerca de las estrellas,
Para pedirle a Cristo
Señor que me devuelva
Mi alma antigua de niño,
Madura de leyendas,
Con el gorro de plumas
Y el sable de madera.¹

Federico García Lorca, Balada de la Placeta

                Não há filme mais belo na história do cinema que a adaptação de Maurice Tourneur do teatro de Maeterlinck. Avez-vous ici l’herbe qui chante ou l’oiseau qui est bleu?² Eu não tenho conhecimento da grama que canta, mas creio que seja suficiente que encontremos o pássaro azul para a minha filha doente. Sabendo ser perigoso crer e não crer, o filme de Tourneur exige de nós um retorno, mesmo que inconsciente, para uma condição primordial da experiência, essencialmente um salto de fé, olhar no rosto misterioso dos abismos e perceber ali a natureza mítica de tudo que é.

                Como é da natureza de todas as fabulações que iniciam com uma súplica de “quem dera assim fosse!”, a fábula termina por se tratar de um veículo que trabalha mais em uma instância delirante de onirismo velado que propriamente em um plano associativo da realidade. Assim, o filme de Tourneur é um filme infantil no sentido lato do termo, mais filme dos sonhos que filme de realidades sociais, mais experiência visual que palestra motivacional, mais deleite espiritual que laboração mental. É a materialização da nossa constituição fundamental, nosso ímpeto basilar rumo à felicidade, nossas inquietações mais inocentes, nossos sinos roucos e nossos pássaros aleijados que não permitimos sair à luz do dia ou sequer florescer internamente quando afastados de nossos solilóquios noturnos.

pássaro azul

                O filme de Tourneur apresenta claramente um apuramento visual que funciona em duas instâncias. Primeiramente em um nível puramente estético, composições que trabalham a priori em uma lógica vertical, mas que possui tantos picos nessa organização que aparenta ser homogeneamente horizontalizada no seu virtuosismo, forte uso de silhuetas, sombras e véus, adornos e artifícios excessivos, tudo que há de mais impactante e grandioso visualmente, mas que encontra nos seus mais simples e singelos gestos toda a sua potência. Em segundo plano, o filme possui um cuidadoso uso de frases perfeitamente incrustadas na matéria poética do filme, não só pelo seu lirismo espontâneo, mas também pela forma como elas parecem brotar com uma simplicidade e uma claridade poucas vezes encontrada no cinema. É um filme de uma tonalidade fabular essencialmente anti-esopiana, longe de chegar em uma conclusão moral reveladora, Tourneur trabalha com uma abordagem dialeticamente anterior que aparenta tentar florescer por si própria, uma certa resignação retórica que parece encontrar na sua passividade, no seu onirismo anunciado, toda a beleza da vida.

                Há no filme um anacronismo dialético que faz da natureza epistemológica humana não uma instância que necessariamente acumula em uma lógica construtiva, mas uma que se confunde, que se perde nesse sistema; pretensa epistemologia que alcança o estado final no empírico imediato, o fim da dialética platônica está na sua gênese, a essência de todas as coisas materiais é de faculdade inata. A alma dos elementos é de natureza conflitante, e esse mundo heraclitiano é retrato desse conflito constante, desse embate perene entre todas as entidades impulsivas por essência.

pássaro azul

                Encontramos o pássaro azul. Est-ce qu’il est assez bleu?³ Não sei dizer, mas o compartilho com quem precisa mais que eu – talvez aí repouse a felicidade, no compartilhamento da experiência, passando o nosso pássaro azul para o vizinho doente. Enquanto indagamos se é aquilo mesmo o que buscamos, a nossa conquista material foge do nosso alcance, seja por desleixo, por soberba, ou até mesmo pela erosão dos anos. O filme termina com uma perda mas também com um último grito de esperança – mas será que isso basta? Pasolini em uma de suas entrevistas certa vez desabafou: “e o que eu quero com a esperança? De que ela me serve?”. Ela pode servir como força motriz das nossas vidas e desejos, mas também como desilusão e condescendência inerte. Não se pode viver apenas de sonhos.

pássaro azul

                Ainda que Sócrates e Fedro suplicassem aos deuses por auxílio na busca pela beleza interior e ainda que eles fossem capazes de harmonizar o exterior com essa beleza espiritual, nós ainda precisamos de pães e bolos para nos mantermos em pé. Imaginá-los às vezes não basta – enquanto os anos passam e vou envelhecendo, meu corpo decadente me recorda inclemente o fardo daquele meu espelho, aquele espelho que continua sendo o mesmo ponto de inflexão lacaniano entre a minha consciência e o Outro. E mesmo que a reminiscência me ludibrie com os resquícios do que um dia foi sentido, imbuído da satisfação delirante dos sonhos daquilo que não o foi, meu corpo ainda anseia por aquele átimo fugaz, lacônico e sintético na sua transcendência, no qual a fabulação se reconcilia com o físico. Nossa memória é porosa para o esquecimento, inerte na sua dinâmica. Nosso corpo é desmoronamento, dinâmico na sua inércia. Se há o senso de realidade, e ninguém duvida da sua justificada existência, o que me resta é o de possibilidade, e a ardência pungente que acompanha cada instância de contentamento, cada quimera claudique que me provoca um sorriso segmentário, cada pássaro azul que me faz cantar e me lembra de quando dançamos sob a luz daquelas estrelas com as quais sonhávamos. Estamos sempre no aguardo mudo para nascer de novo.

By a departing light
We see acuter, quite,
Than by a wick that stays.
There’s something in the flight
That clarifies the sight
And decks the rays.4

Emily Dickinson, By a Departing Light

  1. Meu coração de seda
    Está cheio de luzes,
    Com sinos perdidos,
    Com lírios e abelhas.
    Irei bem longe,
    Mais longe que aquelas colinas,
    Mais longe que os mares,
    Para perto das estrelas,
    Para pedir ao Cristo nosso Senhor
    Que me devolva a alma que tinha
    Antigamente, quando era criança,
    Amadurecida com lendas,
    Com um boné emplumado
    E uma espada de madeira.
  1. Você tem aqui a grama que canta ou o pássaro da cor azul?
  2. Seria ele suficientemente azul?
  3. À uma luz evanescente
    Vemos mais agudamente
    Que à da candeia que fica.
    Algo há na fuga silente
    Que aclara a vista da gente
    E aos raios afia.

 

 

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Fabulações críticas em curta-metragens negros brasileiros

Por Kênia Freitas

No livro Afro-Fabulations The Queer Drama of Black Life, Tavia Nyong’o questiona se “uma poética da afro-fabulação poderia suplementar, ou mesmo suplantar, a política da representação?”. Tais estratégias de afro-fabulação para Nyong’o seriam formas de tirar o pesa que as artes negra e queer carregam a partir das lógicas identitárias e representacionais, apontando, no lugar, para formas expressivas mais fugitivas e performáticas. Essa estratégia expressiva passa também pela proposta de fabulação crítica da historiadora Saidiya Hartman.

Partindo de um processo leitura crítica dos arquivos históricos do Atlântico Negro, Hartman diante da incontornável e insuportável violência destes arquivos, assume a impossibilidade da representação (que apenas poderia reproduzir e/ou atualizar o processo violento). A historiadora manifesta assim, como alternativa, a necessidade da encenação na pesquisa e interpretação dos arquivos. O que Hartman incorpora ao processo de veridicção histórica é o elemento imaginativo, o subjuntivo do passado, o “e se” – não em um sentido falsificante (ou seja, oposto ao verdadeiro), mas fabulatório (que não pode e não quer ser verificado).

Mais do que uma resposta, a pergunta de Nyong’o e a abordagem historiográfica de Hartman nos abrem outras relações críticas possíveis com a produção negra contemporânea. E será a partir delas que nos aproximaremos de três trabalhos de artistas negras contemporâneas. Os curtas discutidos neste texto possuem modos de produção e realização bastante diversos entre si, mas cada um à sua maneira, parte de uma relação direta do fazer cinematográfico com os campos da performance e das artes visuais. E os três curtas também afastam-se de estratégias representacionais mais comuns da experiência negra no cinema.

Elekô (Mulheres de Pedra, 2015): corpos especulativos

Na primeira cena do filme coletivo Elekô, cinco mulheres negras movem-se em conjunto e lentamente. Duas luzes de uma construção parecem guiar os gestos das mulheres e ao fundo ouve-se o barulho do mar, metais que tilintam e um canto em lamento. A aproximação da câmera nos revela as lágrimas que escorrem. Esse corpo corpo-conjunto, embora situado nas ruínas das obras em andamento do centro do Rio de Janeiro, é transportado por sons, as vestimentas das mulheres e os seus movimentos para o meio do oceano. Assim, em poucas sequências estamos entre o Rio de Janeiro contemporâneo dos grande eventos (e consequente processos de higienização e remoção das populações pobres e pretas) e a travessia de escravizados no Atlântico Negro. Se concretamente o cenário do Rio contemporâneo se impõe na imagem, a performance desse corpo-conjunto negro fabula um outro tempo e espaço no presente a partir da fusão entre memória e história. O porto que recebia os escravizados no passado projeta-se sobre a região portuária do presente.

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elekô

Em outro momento, duas mulheres negras de torso nu fazem uma performance com um punhado de terra. As mãos com terra erguem-se em direção ao céu, enquanto alguns grãos escorregam. A terra é espalhada nos braços e barrigas, criando uma nova camada de marrom nos corpos. Nesta sequência, se os tambores parecem compor harmoniosamente um ritual sagrado, a leitura da declaração oficial da abolição da escravatura no Brasil coloca novamente em operação uma politemporalidade. Uma temporalidade múltipla que não anula os seus elementos (passado colonial escravocrata e presente da expressão artística negra), mas os sobrepõem.

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Seguindo a lógica dessas duas sequências mais delineadas discursivamente, as outras performances musicais, sonoras e corporais que se somam no filme compõem uma sobreposição de narrativas femininas negras que se articulam no presente, mas apontam para experiências coletivas de passado e de futuro. Os menos de sete minutos da obra manipulam uma experiência sensorial de intensidades e fragmentos de vivências negras femininas múltiplas.

Se um jogo de coletividade se anuncia na performatividade do corpo-conjunto, os closes e a montagem em paralelo de narrativas múltiplas dispersam ou complicam essa promessa. Assim, no filme, enquanto uma mulher escreve subindo a ladeira, outra anda pelas ruas enchendo sacos de plástico do fôlego de desconhecidas. As duas podem co-habitar a mesma obra, mas seguem existindo em temporalidades próprias, específicas. O filme não parte de um princípio de performances com início, meio e fim, mas por um atravessamento destes momentos. Assim, as narrativas negras que fabulam o/no filme atuam menos no sentido de fechar a obra, mas de abri-la para entradas e experiências espectatorial diversas.

O filme encerra-se em uma roda musical e de dança de celebração das mulheres negras. Dança que se faz a partir de um canto tradicional alegre que pede licença para cantar. A construção dessa celebração nos remete ao que Tavia Nyong’o chamou de criação de um corpo especulativo feito das contra-narrativas que desarranjam as linhas temporais históricas. Os corpos negros especulados na escravização (comprados, vendidos, estuprados, abortados, torturados…) tornaram-se corpos especulativos. Se uma grande maioria das expressividades negras diaspóricas pós-escravização fez-se a partir da necessidade de reconstrução histórica e do realismo, a especulação como expressividade negra coloca-se como uma contraposição constante.

Em Elekô, é possível se estar no Rio de Janeiro e na travessia do Atlântico, na abolição e no presente histórico, em uma roda de gira de ontem e de amanhã. As mulheres negras historicamente especuladas, especulam no cinema os seus corpos (e as relações e sentidos que estes podem e desejam criar). Nesse processo fabular, o filme não apaga os processos históricos ao que remete, mas soma-os a sua criação performativa.

 

Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Michelle Mattiuzzi, 2016): politemporalidade negra

Em Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, Grada Kilomba discute a máscara do silenciamento. O instrumento colonial de tortura era utilizado para tapar a boca dos escravizados, impedindo-os de comer e, sobretudo, Kilomba defende, impedindo-os de  falar. A análise da máscara leva Kilomba ao levantamento de conjecturas no passado “O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2016 – tradução de Jessica Oliveira de Jesus). O que o falar e ouvir movimentam são relações de poder. E também, como Kilomba esmiúça, o que se operava com o uso da máscara como forma de controle e tortura era o processo psicanalítico de recusa e repressão dos sujeitos brancos. Diante da sua agência violenta no processo colonizador e escravização, os sujeitos brancos não poderiam correr o risco de ouvir.

Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, Michelle Mattiuzzi nos convoca em seu filme-performance a nos questionar as reminiscência subjetivas e literais da máscara no presente. Na performance do curta, utilizando uma versão da máscara de silenciamento (amarrada por fitas vermelhas e pregadas por alfinetes grandes que perfuram o rosto) e um vestido branco, a artista caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em direção à estátua de Zumbi dos Palmares. Visualmente a extrema brancura do vestido e o tom vivo do vermelho ganham intensidade em contato com o tom de pele escuro de Michelle Mattiuzzi. A composição elaborada impecavelmente contrasta com o caos habitual das ruas e dos passantes. Os olhares dos transeuntes fitam a máscara, a artista, suas vestimentas e muitas vezes a câmera que a acompanha a uma curta distância.

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Concluindo a caminhada, a artista pára diante do monumento, alinhando-se à mesma direção de olhar de Zumbi para a avenida. Sem pressa, ela desfaz os nós da fita vermelha e começa a retirar os alfinetes que furam a sua pele. Mais uma vez o vermelho, agora do sangue escorrendo sobre o rosto de Mattiuzzi aparece como elemento de destaque. Sob a máscara, descobrimos ainda mais uma camada de dor: alfinetes que prendem diretamente os extremos da boca da artista.

Neste momento do filme, o desfazer performativo mescla-se com o seu preparar. Sequencialmente, os alfinetes estão sendo retirados e vemos o sangue; colocados e vemos às lágrimas e, novamente, retirados. As temporalidades históricas também mesclam-se: ao fundo o busto de Zumbi dos Palmares, em primeiro plano os punhos cerrados de Mattiuzzi. A ação (performance e filme) opera a ideia de politemporalidade negra. Aqui não apenas sobrepondo o passado no presente, mas complexificando a duração fabular da performance. A linearidade não interessa: colocar e retirar os alfinetes são atos não consequentes, mas cíclicos. A politemporalidade, como um entendimento do tempo mais denso e expandido, assim se contrapõe com uma ideia do tempo universal, neutro e transparente (Nyong’o, 2018).

Neste sentido, é importante pensarmos o vermelho do título. O vermelho aparece não apenas nas fitas que seguram a máscara e caem sobre a cabeça de Mattiuzzi, mas também na transição entre os blocos (no lugar de um fade out preto tradicional). O vermelho assim torna visível a montagem do filme, em um movimento semelhante ao que Ana Pi desenvolverá depois com o azul em NOIRBLUE – Deslocamentos de uma dança (2018). Mais do que apenas uma mudança cromática do preto para o vermelho (ou o azul), o efeito desnaturaliza convenções de (in)visibilidade na linguagem cinematográfica. Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II a cor vermelha como elemento de transição assume um lugar de base, fundamento, da materialidade da obra e do seu processo. E o sangue da artista (o último tom de vermelho a ser mostrado no filme) desloca essa materialidade da obra audiovisual para os corpos negros. Assim, o que a afro-fabulação performativa de Michelle Mattiuzzi coloca em evidência é o sangue como elemento fundante das experiências negras no passado e no presente,

Pontes sobre abismos (Aline Motta, 2017): Reformulando o arquivo familiar

Atos de reformulação (redress), argumenta Hartman, baseiam-se em afetos de dor e fome, em necessidade e desejo. A história crítica (ou o que ela mais tarde chama de “fabulação crítica”) é definida (…) como “atos memoriais a serviço da reformulação”. A reformulação, eu reivindico, é uma teoria e prática psicanalítica e sociogênica negra para lidar com os fantasmas incorporados da cripta. (Nyong’o, 2018)

Em sua origem, Ponte sobre abismos foi uma instalação em multicanais e uma exposição fotográfica. Mas a obra de Aline Motta também foi montada como um filme de telatripartida – e é a essa realização da obra que nos ateremos a seguir.

A sequência final do curta-metragem concentra-se em uma narrativa sobre a origem do leopardo, na mitologia de África. O conto diz que em tempos remotos o leopardo (mostrado como uma animação, um bicho branco sobre um fundo preto) fez amizade com o fogo. Passado um tempo da amizade, a mulher leopardo manifesta o seu desejo de também quer conhecer o fogo e pede que ele convide o amigo para ir a sua casa. O fogo faz a visita. Ao ver sua casa em chamas, a mulher leopardo pergunta: “Este é o seu amigo?”. E foi assim que os leopardos ganharam as suas manchas, o conto conclui.

Este conto que localiza a origem de uma característica marcante do leopardo (as manchas) em uma experiência afetiva traumática e fundante. A origem do leopardo encerra (sem concluir) o percurso do filme (que passa pelas áreas rurais do Rio de Janeiro, Portugal e Serra Leoa) em busca das origens e arquivos familiares da artista. A busca é motivada pela revelação feita por sua avó de nunca haver conhecido o próprio pai. O bisavô da artista era o filho adolescente e branco dos patrões da sua bisavó negra. Na concepção de Nyong’o de afro-fabulação há uma aposta performativa e expressiva de se “viver com a ambivalência” (com a morte, o trauma, as feridas que constituem a experiência negra contemporânea pós-escravização e colonização). Essa ambivalência nos parece se mostrar na obra pelo resgate e reapagamento da figura ausente/presente do bisavô e pela reformulação e afirmação das figuras da avó e bisavó.

Assim, se na breve narrativa familiar e nos arquivos existentes (como a certidão de nascimento assinada pelo tio materno da criança na ausência de um pai) subentende-se o assédio, estupro, abuso e abandono daquela jovem mulher negra e da sua filha, o processo da obra empenham-se na reformulação de suas imagens e dos seus arquivos. Por fotos plotadas em tecidos, papéis e estruturas diversas, as duas mulheres negras, Doralice e sua mãe Mariana Francisca, circulam em águas de continentes diversos (América, Europa e África). As suas imagens e de seus documentos ampliados reivindicam a sua existência. A fluidez das fotos e documentos tremulando na água e no ar, dão novamente uma ideia de movimento vivo ao arquivo e à memória familiar.

Enzo, o bisavô “desconhecido” também é retomado por uma foto ampliada e pela recuperação de suas aparições nas colunas sociais e de esporte dos jornais da época. Como a narração em voz over anuncia,  a descoberta dos rastros dele existentes no jornal marcam o nascimento de uma nova família. Como as manchas do leopardo, ausência (de relação concreta) e presença (pela herança genética) são marcas constitutivas inapagáveis. Mas ao contrário das figuras femininas, o bisavô reencontrado sobretudo nos arquivos de jornais tem o seu registro riscado pela edição do filme. A sua reformulação no arquivo familiar não é pela permanência de uma imagem perdida ou pouco vista, mas pelo apagamento deliberado do arquivo oficial.

Assim, no curta, a busca da bisneta em arquivos históricos por traços de sua presença não se move para um reencontro ou uma resolução (compensação ou reparação). Os seus vestígios são mostrados para serem logo em seguida apagados, riscados. Há portanto no processo performativo da obra mais a ideia de reformulação, do que de compensação ou reparação. Nyong´o definirá esse processo de reformulação como o de “uma articulação da perda” sempre imensurável. Assim, encontrar os resquícios de Enzo no jornal não reestabelece ou cria laços afetivos, mas cria uma agência possível na arte fabular da bisneta sobre ele. Um processo também de fabulação crítica do arquivo familiar que redimensiona (para maior ou menor) a importância dos sujeitos históricos, invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras.

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Fantasmagorias do Presente

Por Bernardo Oliveira

1

No império da opinião, a fabulação toma, por vezes, a forma de uma performance: é na base de stories, posts, podcasts e videocasts que a doxa circula na atualidade. Ainda assim, o ato de fabular parece corresponder inevitavelmente à arte de (re)contar velhas histórias e, como consequência, cristalizar representações correntes. Ordenando-as sobre o diagrama de uma temporalidade contínua, obtém-se a conservação do dinamismo cronológico, garantindo à fabulação o poder de fixar mitos do passado, reforçando tradições precárias em evidente descompasso com fendas abertas pela carga de desorientação acumulada no presente. Tal procedimento acaba por declivar para uma espécie angustiante e abstrata de “futuro”: o futuro moral, com toda sua carga de egoísmo, consequência e expiação, uma perspectiva de futuro que herdamos de forma muito variada da religião, da guerra, da ciência, do capitalismo… Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?

quintal

2

Esta “segunda pele” sobrepôs-se à fabulação comum, que, atualizada pela vida bioconectada, revelou uma legião manipulável de espectros opinativos. O “era uma vez” da fabulação comum se alastrou como incêndio na rede, abrindo precedente para uma versão reduzida da comédia humana, reproduzida por engrenagens semelhantes as que fabricam o boato, a fofoca, a autodepreciação e, como não poderia deixar de ser, a notícia jornalística. Desde que os presidentes dos Estados Nacionais resolveram se comunicar com a população por frases bombásticas disseminadas em rede, o caráter estrategicamente auto-depreciativo da fabulação cínica — a mais tenebrosa contração do populismo — adquiriu colorações ainda mais torpes. Os recentes capítulos da novela política brasileira indicam que permanecemos estranhamente desatrelados tanto das evidências trágicas do passado quanto das promessas de um futuro cada vez mais oscilante e imprevisível. A internet como a contraditória auditora de uma falsa universalidade, aniquilou a “metanarrativa” e expôs, muitas vezes sob a forma da certeza moral, o histriônico fracasso da aldeia global. Em comum desacordo com o coro trágico da opinião terraplanista, eclodiram, aqui e ali, os vaticínios calamitosos, as teorias do fim do mundo: o Antropoceno, o esgotamento, o “acabamento”… Em meio à desorientação multifária produzida através das redes, a fabulação teria ainda o poder de criar um presente desembaraçado de todo fatalismo? 

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O cinema, contudo, parece manter a confiança na fabulação, pelo menos como um meio para abrir os caminhos a outras experiências do presente. A chamada “estética do fluxo” visava identificar experiências calcadas na captação de um escoamento aleatório em oposição a uma ordenação narrativa organizada cronologicamente. Como um ativador eficaz , o cinema provoca uma outra sorte de desorientação, distinta daquela que percebemos hoje na alagmática da informação. Uma desorientação ativa e programada apta a cavar desequilíbrios em meio a um aqui-e-agora excessivamente texturizado pelo tempo cronológico. Não apenas desconstruindo a memória que se atualiza de forma errática na proliferação, por exemplo, do linchamento virtual, mas também refabulando as memórias de um futuro que foi cancelado e se alastra como uma legião de malin génies extraviados. Há, como contraexemplo, uma memória muscular que, sendo póstuma e simultânea ao gesto, desdobra a centralidade do presente em outros possíveis — como quando tocamos automaticamente os acordes e sequências harmônicas em um instrumento musical. Neste caso, a memória faz um duplo movimento, fabulador e transindividual: emana dos corpos, incide sobre os corpos, ativando e atualizando uma pluralidade de fiapos soltos, vivências incompletas cuja continuidade deixamos a cargo da imaginação. O cinema atualiza resquícios que fazem parte de um campo de possíveis, de forças que desfiam-se e proliferam no instante, esculturas temporais revestidas por uma superfície porosa através dos quais penetram os fluidos da imaginação. Uma saraivada de tempo: temporada.

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Penumbra. Um casal acordando, o plano frontal enquadra a cama. Com a garganta ainda ressecada, uma voz sussurra “bom dia”. Outra responde, inicia-se um diálogo, trocam-se amenidades, alguém observa uma insônia… Passaram a noite juntos, mas o diálogo permite entrever um acréscimo de cuidado no tom, na escolha das palavras. Um casal cujo encontro se deu muito recentemente, pois há um grau moderado de intimidade. Posso abrir a janela? Pode. Ele está na casa dela. Ele se move e abre a janela. A luz invade, ele vai de encontro à luz, observa um galpão. Uma transportadora, que, segundo ela, costumava fechar às 22h, mas agora “vai direto”. Ele olha o prédio em frente: uma construção inacabada, enquanto ela emenda a pergunta: “posso te mostrar uma coisa? Fecha a porta do banheiro e a cortina, bem fechada.” Ele fecha e, ao olhar para cima, repara que o reflexo invertido da rua, graças ao efeito de câmera escura. Ele conta como descobriu essa técnica, na TV Minas ainda no final dos anos 90. Um feitiço técnico, um dispositivo egresso do campo de mutações constituintes do cinema, libera toda uma fantasmagoria do atual: reminiscências desprovidas de solenidade, contadas na beira da cama, misturam-se a evidências quase imperceptíveis sobre a situação da cidade, da política, do trabalho… Em simétrica oposição à “estética do terror” de Friedrich Kittler, que consistia em projetar “uma imagem fantasmagórica de nosso presente como futuro”, André Novais instala um regime de fabulação difusa, extraindo uma espectralidade dilatada que adere a tudo aquilo que a câmera torna atual.

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Mas ainda não se pode entregar tudo de bandeja à uma lógica do acontecimento sem que nos lembremos do devir, do escoamento inexorável, como “instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singular.” O quanto estamos presentes e distantes quando fabulamos uma atualidade? É assim que o presente do acontecimento presenciado e experimentado pelos indivíduos em suas relações transindividuais, resguarda também uma “espiritualidade vivida”, uma dimensão que não diz respeito somente às formas abstratas e míticas da espiritualidade religiosa: “Se não houvesse essa adesão luminosa ao presente, essa manifestação que dá ao instante um valor absoluto, que o consome em si mesmo, sensações, percepções e ações, não haveria significação da espiritualidade”. Vislumbramos em um segundo a eclosão parcial do acontecimento. O espectro do passado sobrevém sob a forma de uma tensão presente que, por sua vez, se expressa como acúmulo de experiências e demais ressonâncias no plano psico-coletivo. Retemos de seu impacto psíquico e sensorial toda uma carga espectral de sensações, possibilidades, mistérios, hesitações…  As forças não se esgotam nesse presente indeterminado, ao contrário, oscilam para todos os lados, absorvem todos os sentidos em bloco. 

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Imagem-enigma: vemos uma esquina, posto de gasolina, carros e ônibus passam. Periferia, a noite cai. Outra imagem, desta vez uma imagem sonora, mas totalmente fora do quando: dois amigos conversam amenidades. A imagem-enigma prossegue, a imagem sonora também. Amenidades. Uma pergunta: “o que você está fazendo?” A resposta, “nada”, lacônica. “Cara, isso é uma câmera, bicho!? O que você está filmando ai? Pra quê isso?” Então, tomamos conhecimento de que se trata de uma filmagem caseira, aparentemente descolada do diálogo que ocorre fora do plano. Alguns registros desarticulados: o plano da esquina, o diálogo e a realidade psicológica de quem filma. Ocorre então um acoplamento que transforma a imagem-enigma, um registro caseiro, em dispositivo dramático, reunindo todas as pontas outrora fragmentadas. Isto ocorre não por captura de uma imagem previamente determinada (mise-en-scène), mas por conexão entre registros de ordem diferentes. A câmera se transforma numa máquina de produzir convergências: os fios soltos e desencapados do espaço-tempo cinematográfico são ativados por um acoplamento entre quadro e extra-quadro. A cena ocorre no plano e fora do plano, o fora habitando o plano e vice-versa. Um provendo ao outro todo o seu movimento, motivo, relação e contexto. Cinema como criação de um dispositivo tecno-dramático, tanto pela decomposição de elementos de narrativa (sincronia, unidade do plano), como por isolamento das linhas (o plano-enigma, a faixa sonora e, enfim, pela “narrativa” e seu teor dramático). O cinema, máquina de esculpir o tempo, engata outra voltagem. 

fantasmas andré novais

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No curta Quintal, por exemplo, o que há de aparentemente gratuito ao longo de toda narrativa, não é gratuito, mas latente. Os eventos paranormais e inusitados não parecem constituir uma espécie de suspensão provisória no corpo moribundo da rotina. Pelo contrário, é a rotina que bóia como mosca no leite cósmico do delírio. Idosos marombeiros, pornógrafos estudiosos, místicos e viajantes interdimensionais que se escondem, ocultos, em modos postiços e vidas emprestadas. Em Ela volta na quinta temos a emergência de uma imagem híbrida: modulações da imagem-fluxo, da imagem-torrente como em Sem essa Aranha ou Symbiopsychotaxiplasm, filmes que já mesclavam as cintilações inauditas e obscuras do espaço-tempo cinematográfico, incluindo aquilo que ficava de fora da economia global do plano. Gestos imperceptíveis que correspondem aos movimentos  dos corpos e objetos, estendo-se em uma temporalidade oscilante, variando entre o controle da encenação e o deixa-estar da atuação. O improviso como método, ou, como afirma o próprio diretor: “essa coisa de deixar a cena andar com um plano mais estático, talvez mais aberto, sem tanta interferência…” A familiaridade subjacente à relação entre os personagens transborda uma qualidade coloquial que distensiona cada momento. O prosaico, no entanto, se move de maneira cifrada, a meio caminho de uma narrativa em fluxo, de uma representação que se alimenta das relações familiais (a conexão imediata entre os amigos, a família, o trabalho) e de uma terceira qualidade que irrompe, sempre liberada por algum elemento cinematográfico técnico-gerativo, remetendo-nos simultaneamente à pluralidade do acontecimento e ao que podemos chamar de “origem” do cinema.

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O cinema de André Novais Oliveira encena um tipo de fabulação que se relaciona com essa “adesão luminosa ao presente”, que não atende nem à manutenção antiquária do passado, nem às promessas vazias de um futuro promissor, fincando seu ambiente naquilo que o filósofo Alfred N.Whitehead chamava “o presente insistente”: o presente em relação ao qual atualizamos, com as ferramentas da fabulação, todo um conjunto de experiências que se desdobram na atualidade. Fabular, porém, é também abrir a imaginação como que por infusão, como a erva desprende seu princípio sob efeito da água escaldante. A totalidade está interditada, apenas alguns elementos parecem eclodir, pequenos acontecimentos, microgestos, percepções incompletas… É no entorno desta liquidez apreendida de soslaio que André Novais Oliveira constrói a estrutura narrativa de suas fábulas. É neste grau de percepção da realidade, através do qual vislumbramos, num átimo, a fantasmagórica tessitura de expressões do instante presente, que seu filmes parecem extrair toda uma lógica do acontecimento.

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O CINEMA E O MÍSTICO (Editorial)

Por Arthur Tuoto

MISTICO-DESENHO

O cinema é esotérico por natureza. Da câmara escura ao cinematógrafo, do espelhamento da realidade a sua restituição fotoquímica, existe um movimento que implica em uma crença. Mais do que um mero progresso natural, o aperfeiçoamento do cinema em um regime narrativo demanda, propriamente, uma fé. Uma ilusão que transcende a materialidade da imagem e opera como uma realidade autônoma. Uma diegese que ao mesmo tempo em que respeita regras próprias, conserva um contrato mágico com seu interlocutor. O pacto ficcional é um dogma imperativo.

Para além da perspectiva extraordinária que qualquer experiência narrativa exija (afinal, é preciso acreditar), a presente edição da Multiplot! busca explorar o místico tanto como uma temática como um método. De um cinema de personagens mágicos (o herói, a feiticeira, o viajante espacial) a uma concepção narrativa metafísica onde a dialética de causa e efeito é subvertida ou mesmo abolida. De uma realidade meramente ambígua à construção de outros mundos. O sobrenatural, o fabular, o mito. Não apenas como motes reveladores de uma composição universal e ancestral, de uma ordem esclarecedora das coisas, mas disparadores de um enigma, uma desordem, uma corrupção que não busca reiterar a tradição, mas renová-la, quiçá destruí-la.

Serge Daney, sobre o modelo ilusionista clássico hollywoodiano, afirma que a psicologia era tratada como “explicação última”. O papel do cinema moderno foi, justamente, recusar esse denominador: o místico (Rossellini), o patológico (Bergman). Quebra-se uma lógica explicativa e impõe-se uma assimilação abrangente. Muitas vezes absolutamente material (o próprio neorealismo italiano), mas reveladora de uma substância hermética. Uma essência que repousa sobre nossos pés. No fim das contas é da terra, em sua bruta e elementar fisicalidade, que brotam os mistérios mais poderosos.

Não é do caráter do místico explicar. Pelo contrário, é o momento de abandonar qualquer refúgio e se entregar a uma disposição outra. Se a nossa edição passada celebrava a morte do cinema em benefício do seu constante renascimento, aqui continuamos nos situando entre estes novos regimes narrativos e imagéticos. Nunca propondo uma interpretação final, mas abrindo portas e janelas que viabilizem uma constante mutação. Universos sensíveis que jamais são um fim em si mesmo, mas que anunciam, a cada nova proposta, uma reorganização própria.

Não é também a aleatoriedade que nos interessa. Ainda que o caos – “único monstro digno de adoração” – permaneça como singular guia confiável, é na “incessante improvisação do universo” que buscamos esclarecer nossas questões. O segredo nunca está nas respostas, mas na experiência que essas obras proporcionam. O sentido permanece na jornada, na ilusão de uma transcendência, já que o caminho continua inevitavelmente aberto. Nunca chegamos a lugar algum e nem vamos chegar.

Para nos abrigar da realidade (essa sim, sobrenatural), o cinema. O místico aliena na mesma medida que revela. Não se comunica, mas se irradia. Imantados por essa paixão e por esse revolta – a fé e a descrença sempre essencial à cinefilia – continuamos atentos a qualquer movimento.

 

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