O encontro pelo erotismo: desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo

Por Camila Vieira

“Digamos, sem esperar mais, que a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um lado, o horror não afastado, ligado ao apego que a vida inspira; por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-os e provoca, uma perturbação soberana”. (Georges Bataille, O Erotismo)

“A ambiguidade e a bipartição caracterizam, de um modo mais típico, o problema do erotismo quando, mais do que qualquer outro, ele parece resistir às definições, flutuando entre o físico e o espiritual”. (Lou Andreas-Salomé, O Erotismo)

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Em uma sequência de The Addiction (1995), de Abel Ferrara, a estudante de filosofia Kathleen Conklin toma consciência de sua própria transformação, dias após o ataque inesperado de uma mulher desconhecida que sugou seu sangue. Neste súbito de lucidez às sombras do vampirismo, a protagonista esclarece que, não importa o que aconteça, é a violência da sua vontade contra a dos outros. O encontro aqui implica uma violação de fundo, que está na base do jogo erótico. Trata-se do desejo incontrolável e perturbador de aniquilação do outro. Se, de acordo com o pensamento de Bataille, o erotismo é uma aprovação da vida até na morte, como compreender no filme de Ferrara, o encontro dos corpos a partir da intensidade da violência que chega ao limite da morte? Mais ainda: junto com The Addiction, a questão segue uma linha de entrecruzamentos com outros dois filmes contemporâneos – em especial, Trouble Every Day (2001), de Claire Denis; e Dans Ma Peau (2002), de Marina de Van –, que, apesar das singularidades perceptíveis de seus desdobramentos, também cotejam encontros em que o desejo escapa ao controle e a relação com o outro envolve a pulsão de morte.

Nos três longas-metragens, os personagens estão envoltos em situações iniciais e temporárias de aparente equilíbrio e ordem com os códigos sociais. Eles se inserem na dinâmica do trabalho (a rotina de estudos na faculdade por Kathleen, em The Addiction; a dedicação aos prazos no mundo dos negócios por Esther, em Dans Ma Peau) ou se submetem a interdições (o cativeiro de Coré não está distante do aprisionamento instaurado pelo casamento de Shane, em Trouble Every Day). Esta normalidade será perturbada por um ponto de ruptura, catalisado pelo contágio com algo externo – o ataque noturno da mulher na calçada em The Addiction, o acidente com os ferros no canteiro de obras em Dans Ma Peau, a experiência científica com humanos em Trouble Every Day. Tais imprevistos violentos no cotidiano irão provocar mudanças no curso dos acontecimentos e liberar forças inesperadas no âmbito do desejo.

A vertigem e a euforia reposicionam o erotismo dos corpos para algo de sinistro, que irá desencadear perturbações e incômodos dentro da normalidade cotidiana. Na noite em que é atacada, Kathleen se sente mal, é acometida por náuseas e suores frios, enquanto seu pescoço jorra sangue. Depois de ter a perna dilacerada, Esther vê fragmentos desfocados dos lugares em que passa (os planos pontos de vista de Dans Ma Peau provocam a sensação de que tudo está girando ao redor dela). Shane é perturbado por imagens oníricas (ou seriam lembranças?) do corpo da sua esposa banhado de sangue. Tais indícios alucinatórios são prévias de transformações no modo como os personagens irão interagir com o mundo. Kathleen começa a abordar os drogados marginalizados nas ruas, para quem ela não dava atenção. Coré seduz caminhoneiros na beira da estrada para atacá-los em terrenos abandonados, enquanto Shane persegue os passos da camareira de um hotel. Esther passa a ter uma percepção mais intensa do seu próprio corpo e se fascina pela superfície de sua pele como uma estranha alteridade radical.

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Por mais que busquem suprimir o abismo profundo que existe entre eles e o mundo, os personagens dos três filmes são seres descontínuos que vislumbram no contato com o outro a possibilidade de atingir uma continuidade desde já perdida. Na tentativa de dar um salto no abismo, eles se deixam conduzir pelo descontrole de seus desejos que os levam a sensações tortuosas. Kathleen vislumbra que existe um terrível precipício entre as pessoas, mas a alegoria do vício no filme de Ferrara está para além do salto. “Há uma diferença entre saltar e ser empurrado. Chega uma hora em que se deve satisfazer as necessidades e você é pego pelo fato de não poder acabar com aquela situação”, diz Kathleen. É preciso manter Coré presa em casa com grades e portas de ferro para que ninguém esteja sob o risco de sua força erótica, mas ainda assim a interdição será transposta por dois garotos que conseguem invadir o território proibido. Esther escuta constantes e duras repreensões do marido, que jamais são suficientes para impedi-la de continuar cortando sua pele.

Na constante procura por um objeto fora do desejo, há um desequilíbrio que põe o sujeito em lugar de incessante questionamento, posto que ele se perde diante do próprio desejo. O movimento do erotismo excede os limites, a ponto de permitir uma esquiva do entendimento e colocar o outro à frente da violência. Pela necessidade física do contato com o outro em sua materialidade – que não acontece geralmente pela chave do prazer sexual –, algo extravasa nesta relação, pondo a vida em risco. Em The Addiction, o descontrole do desejo explica inclusive os massacres que se repetem na História e acumulam cadáveres (imagens dos corpos dizimados nas guerras pontuam o filme). Não há como controlar o que os humanos fazem, porque eles são escravos de suas próprias forças. Se, em alguma medida, Abel Ferrara aponta sua alegoria do vampirismo para um comentário verborrágico sobre o mal da humanidade por meio do vício e do pecado, Claire Denis subverte a conotação moral em Trouble Every Day e, por meio do silêncio e da proximidade dos corpos, acompanha com leve torpor a força canibal de Coré e Shane.

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Diferente dos filmes de Ferrara e Denis, Dans Ma Peau desloca o problema da relação entre o eu e o outro para a implicação do erotismo no limite de uma desordem violenta com o próprio corpo. Esther não é capaz de sentir o dilaceramento de sua pele. A superfície epidérmica é o estranho que desencadeia a curiosidade de Esther, dentro de um jogo erótico que irá dissolver formas constituídas – a centralidade de si como uma mulher de negócios bem sucedida e que precisa cumprir um papel social regular esperado por todos ao seu redor. É emblemática a sequência do filme de Marina de Van em que, em meio a um jantar com executivos, Esther enxerga seu braço deslocado do resto do corpo, funcionando como um membro mecânico que ganha vida própria. O estranhamento com o corpo desperta em Esther a vontade de perscrutar sua pele com objetos de ferro pontiagudos, a ponto de atingir o ápice quando performa (a diretora é também a atriz do filme) o ato de se retalhar, diante de um espelho e registrar em fotografias. Mas aqui o auge da excitação erótica não condena a vida a desaparecer, ao contrário do banquete final de The Addiction que leva ao massacre dos convidados (parecido com a intensidade do clímax de Ms. 45, filme anterior de Ferrara) ou o encontro de Shane com Coré que implica na morte inevitável dela, em Trouble Every Day.

Seja na realização da morte ou na aproximação dela, a vida é colocada em questão nos três filmes, a partir do excesso que se engendra no encontro pelo erotismo. É uma experiência que se dá no real pelo que há de inesperado nele e, desde já, ela é plena de violência, na medida em que assume um potencial de transbordamento dos limites possíveis. Trata-se de uma perturbação ainda sem nome. “Você não é nada”, insiste o mestre vampiro de The Addiction em uma conversa no galpão sombrio com Kathleen. Existe um mistério que cerca o experimento científico pelo qual Coré e Shane foram cobaias, em Trouble Every Day. Não há explicações que consigam dar conta da vontade de Esther em retalhar sua pele, em Dans Ma Peau. A passagem da normalidade ao desejo erótico pressupõe uma desconstrução das causas e uma abertura aos movimentos violentos que desestabilizam.

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Cinema(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider

Por Pedro Tavares

“Você não precisa procurar por novas imagens, imagens jamais vistas, você deve utilizar as já existentes de uma forma que elas se tornem novas.” (Harun Farocki)

Retomar, remontar ou resignificar materiais existentes independente de concessão estão na filmografia de nomes como Esther Schub, Dziga Vertov, Alain Resnais, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Chris Marker e Jonas Mekas que com suas devidas motivações remeteram e provocaram entre ética e a estética.  James Benning fez de seu Easy Rider (2012) a revelação de um sonho perdido sobre seu tradicional arquétipo de observação sem que suas imagens sejam necessariamente novas, ainda que nenhum plano do filme original de 1969 seja projetado. É necessário, portanto, traçar a rota do encontro entre Hopper e Benning através deste imaginário de cinema e política.

Easy Rider (James Benning, 2012)
Easy Rider (James Benning, 2012)

À procura pela América

Pelas estradas americanas, na representação de uma parcela significativa da identidade do país – as highways -, Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) procura a América perdida, o mito e o norte existencial em tempos de Guerra do Vietnã. De maneira geral, Easy Rider rompe com a era de filmes cômicos hollywoodianos e oferece à contracultura seu apogeu cinematográfico fixado pelo pessimismo, pela música, locações e diálogos como o filme definitivo de uma geração.

E nele está um filme basicamente de elipses e insinuações, intencionado a criar um espaço que permite o diálogo com uma época e um estado de espírito em forma de aventura lisérgica em monocórdio, longe da estrutura do cinema clássico americano. O road movie que aspira os westerns – à época tão próximos no tempo de exploração de territórios – parte de uma asfixia generalizada – social, existencial e político como espelho de um mal estar que muitos estavam a lutar. E como pilar de tudo isso está o sonho de recomeço. Coube a Benning, anos mais tarde, identificar caminhos complementares à época da filmagem de Hopper. Em comum, ambos estão em estado de suspensão e cabe as palavras do antropólogo Marc Augé sobre este estado: “(…) O estado de suspensão designa uma forma de esquecimento na medida em que ‘ambiciona recuperar o presente cortando-o provisoriamente do passado e do futuro e, mais exatamente, esquecendo o futuro quando este se identifica com o regresso do passado'”.

Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)
Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)

O encontro

Como parte da geração marcada por Hopper, James Benning é um cineasta/videomaker que transita entre cinema e museus com propriedade. Seus filmes seguem características únicas de caráter observacional. E o encontro sobrenatural de Benning com Hopper pelas estradas dos EUA se dá pelo mesma convenção: um filme sensorial, de sugestões e que recria Easy Rider a partir dos tradicionais longos e estáticos planos, aqui em paralelo em alguns momentos com diálogos do filme original como forma de guia narrativo, sem que o filme original seja remontado por Benning e sim uma releitura ao seu estilo característico de contemplar, criar atmosferas e narrar histórias.

Benning, que outrora tinha refeito Faces de John Cassavetes com os mesmos espectros, em entrevista ao Lola Journal afirma que seu respeito pelo filme de Hopper diminuiu conforme o tempo. Hoje, o diretor considera o filme “Cristão, capitalista e que afirma o manifesto de Malcolm-X que o uso de drogas é anti-revolucionário”. Sua reencarnação é feita pelas paisagens de Hopper, hoje muitas deterioradas ou completamente modificadas pelo tempo ou pelo homem. E Easy Rider, ambos, se resumem à  busca de um espaço, de um local não definido.

A outra América

Restaurar ou constatar o passado? A questão que permeia a versão de James Benning o isenta de uma resposta concreta quando seu trabalho de aproximação e posse é explícita ao exibir, por exemplo, o cemitério da cena mais lisérgica da versão original em estado deplorável, ao trocar Born to be Wild do Steppenwolf por uma canção pop ou exibir a placa de “Não há vagas”, num simples gesto interpretativo, de criar novas camadas e significados, como a construção de um novo córrego para as cenas escoarem após o corte. A visão de Benning, neste ponto, é dicotômica entre passado e futuro.

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O lamento de Benning.

A América filmada por Benning passou por outras guerras, ataques terroristas, novos tipos de drogas sintéticas e fenômenos pop, mas há de se considerar o lampejo de Hopper simbolizado na última sequência do filme original. O encontro se dará a partir desta cena – o encontro de um pensamento, ainda que rápido, de fuga, um lapso pessimista sobre o país dos sonhos. Está feito o diálogo ostensivo entre Hopper e Benning: alusões sobre um sonho – o início e o fim. A morte nos campos da liberdade, do vento no rosto e felicidade plena é escarrado em cada plano da observação de James Benning. “Não há vagas” é o canto nada subjetivo da cultura pop, um lamento à transgressão que outrora cantava selvageria, lisergia e revolução. Em troca estão os sussurros em forma de diálogos originais em volume mais baixo em pompa decrescente, como se o silêncio fosse o ponto final da geração e o ponto inicial de Benning, que entrega suas intenções ao dispositivo, permitindo que os longos planos falem por si. Uma infeliz coreografia social (e artística).

Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio
Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio

O modelo de Dennis Hopper que supõe o processo de integração e desenvolvimento por trás da carcaça de um filme de motoqueiros segue a retórica da heroicização de uma geração. Nele, homens (quase anônimos que seguem mais tipos que a ilusão da construção de personagem) ressoam às questões sociais daquele tempo como forma de análise urgente transpassadas em ações e falas duvidosas. O modelo de Benning, longe de uma comparação, apesar da releitura, é de um protoluto, silencioso, de análise partilhada com o espectador; o diagnóstico suspende a economia vista durante todo filme – ainda que não se chegue a respostas como em boa parte de discussões sobre o cinema, é possível dizer que o trabalho de Benning é um complemento com a permissão que o tempo cedeu, com a clara constatação que a América não foi e nunca será àquela almejada e que o homem que derruba motos também derrubará a economia e o ambiente em que vive.

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Eu Não Sou Seu Negro: encontros e confrontos pelo cinema

Por Kênia Freitas

No documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016) o diretor Raoul Peck aponta como motivação inicial para o projeto um livro jamais terminado pelo escritor negro norte-americano James Baldwin. No livro inacabado “Remember This House”, Baldwin pretendia contar as histórias de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr – todos os três expoentes negros das lutas pelos Direitos Civis americanos, todos os três amigos de Baldwin e todos os três assassinados. Se o livro é a justificativa inicial, o filme de Peck reserva a sua construção a montagem de outras narrativas, narrativas que se sobrepõem em camadas de imagens diversas. A operação do filme torna-se a de fazer essas imagens (do cinema, da televisão, das fotografias e do imaginário) deslizarem umas sobre as outras – encontrando-se e, quase sempre, entrando em confronto.

Em um primeiro movimento diante dessas múltiplas camadas de imagens e gestos de encontros promovidos pelo diretor, podemos destacar o encontro da figura de James Baldwin (falecido em 1987) com o espectador atual do filme de Peck. Esse encontro se dá tanto pelas reminiscências de imagens (nos textos do escritor usados para construção do roteiro e pela utilização recorrente ao longo do filme do material de arquivos de entrevistas de Baldwin), quanto pela atualização dessa presença do escritor e a sua  aproximação com o presente histórico (com a narração de Samuel L. Jackson que assume o discurso em primeira pessoa dos textos de Baldwin na voz over do filme; o contraponto constante das imagens do presente, sobretudo a partir de registros do movimento Black Lives Matter inseridos no filme; e na escolha de finalizar o filme com “The Black de Berry”, interpretada por Kendrick Lamar, de trilha sonora).

Operação de presentificação que se declara já desde a abertura do documentário quando em uma entrevista no Dick Cavett Show em 1968, Baldwin aponta a pergunta de “o  que vai acontecer com esse país? ” como a indagação necessária de ser feita pela sociedade dos EUA naquele momento diante do debate racial. A resposta na narrativa do filme de Peck é colar a pergunta fotografias de protestos do Black Lives Matter e da agressiva repressão policial ao movimento. Nesse gesto de montagem fica declarada a intenção do diretor de, por e com Baldwin, pensar o presente da discussão racial nos EUA.

Nesse sentido, Peck serve-se de forma inventiva das prerrogativas do documentário de montagem, de fazer encontrar imagens de origens e sentidos diversos, colocá-las lado a lado, muitas vezes em confronto. Dessas imagens permanecem os resíduos de suas origens, ao que se soma novos significados tanto pelas palavras de Baldwin, quanto pelo ordenamento de Peck. No processo, reconhecemos os gestos do documentário moderno (cinema verdade, cinema vivido, cinema direto) de promover o encontro no cinema (dentro dos filmes, por suas narrativas e pelas relações entre personagens e cineastas). Assim, é o encontro Peck e Baldwin (e das imagens aos quais estes recorrem) que move a construção e tensões do discurso do filme.

Além dessa relação, também percebemos um mergulho da narrativa no que Serge Daney chamou em “A rampa (Bis)” de um terceiro regime da imagem cinematográfica (depois do clássico e do moderno). Um regime das imagens que deslizam umas sobre as outras, em que atrás de uma imagem só é possível ao espectador descobrir a existência de outras imagens. É nesse jogo em que Peck aposta ao fazer encontrar as suas múltiplas imagens de arquivo em torno de Baldwin. Atrás de cada entrevista de Baldwin, de cada imagem histórica do movimento negro dos anos 1960, há sempre outra imagem. O encontro possível com estas imagens que deslizam depende de um espectador que também não cesse de se deslocar entre elas.

Essa montagem torna possível que o filme promova incessantemente também o deslocamento entre temporalidades diversas: da atualidade do Black Lives Matter, a infância e juventude de Baldwin, a sua atuação como intelectual negro e testemunha no movimento dos Direitos Civis nos EUA. É possível assim no mesmo bloco e construindo uma única linha de raciocínio que o filme passe de uma entrevista de Baldwin falando sobre Malcom X para as imagens em Ferguson, Missouri, em 2014, retornando em seguida a Baldwin. Um movimento semelhante ocorre quando Baldwin fala sobre a sua experiência de crescer um menino negro nos EUA e lidar com morte constantes de meninos e meninas negras da sua geração, e Peck lança imagens dos jovens negros assassinados recentemente pela polícia: Tamir Rice, Darius Simmons, Trayvon Martin, Aiyana Stanley-Jones, Christopher McCray, Cameron Tillman, Amir Brooks.

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Esse gesto de encontro e deslizamento por imagens múltiplas não se dá apenas pela navegação livre das temporalidades distintas. Se o que a montagem constitui nessas aproximações de imagens do movimento dos direitos civis e do Black Lives Matter é o fato de que a exclusão e o racismo contra os negros perpetuam-se quase inalterados pelas décadas que se seguem, a montagem de Peck e as palavras de Baldwin apontam também para outro fator: o de que debater esse racismo não é um problema dos negros americanos, mas de toda a sociedade. E toda a sociedade nesse caso refere-se sobretudo a maioria branca. E nesse ponto, o documentário parte para a materialização desse racismo não apenas pelas imagens dos corpos negros, mas também pelos discursos e imagens dos corpos brancos racistas. Iniciando assim um segundo movimento em que podemos perceber as operações de construção da narrativa do filme pela montagem e encontro de imagens múltiplas.

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Se as fotografias e os registros fotográficos de pessoas brancas manifestando o seu preconceito racial são um dos alicerces para a materialização do racismo, outro pilar da narrativa é a relação que Baldwin e Peck estabelecem com o cinema clássico dos EUA e a sua formação de imaginário nacional. Os filmes integram a relação de Baldwin com os EUA e com o racismo desde a sua infância. Falando sobre a sua própria constituição como espectador de cinema, o escritor aponta a sua incapacidade de se identificar ou reconhecer com os personagens negros desse cinema dos grandes estúdios. Personagens negros caricatos, que não se assemelhavam as mulheres e homens negros que o cercavam e personagens que não podiam assumir o lugar do herói. Os negros estavam, em geral, fora de lugar no cinema. E para Baldwin essa ausência e deslocamento de negras e negros nos filmes, era também uma forma de supressão de realidade para negras e negros fora das telas.

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Peck aposta em seu filme cada vez mais no confronto entre essas imagens da experiência branca americana e as da experiência negra. Uma das sínteses do processo é a entrevista de Baldwin no Dick Cavett Show. Se há uma tensão declarada entre o escritor negro e outro convidado do programa, um professor de filosofia branco de Yale, é na postura desconcertada do próprio Dick Cavett durante todos os trechos da entrevista utilizadas pelo filme, que percebemos quão irreconciliáveis são as experiências. A presença de Baldwin é assertiva e intensa, Cavett permanece envergonhado, desconfortável.

Se nessa escolha de entrevista o confronto das experiências é ainda sutil, o final do filme é marcado pela montagem de planos e contra planos em embate declarados entre as imagens das experiências brancas e negras. Assim, imediatamente após as imagens da juventude branca dos anos 1950 cantando e dançando em “Um Pijama para Dois” (G. Abbott, S. Donen, 1957), Peck joga os espectadores para cenas de um policial branco atirando em manifestantes negros nos dias atuais.

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A operação de confronto na montagem prossegue nessa última parte do filme, que coloca em sequência: as imagens amadoras do espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles, em 1991, e as cenas românticas do casal branco dançando em “Amor na Tarde” (B. Wilder, 1957). E também a junção do close no rosto sonhador de Doris Day em “Volta meu amor”, (D. Mann, 1961) seguido da fotografia de uma mulher negra enforcada.

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Baldwin sumariza os dois níveis de experiência ao invocar a inocência grotesca da própria Doris Day e de Gary Cooper em seus filmes em oposição ao tom e ao rosto de Ray Charles em suas performances musicais. Imagens que Peck coloca lado a lado em seu filme, e que, no entanto, ainda não permanecem estranhas umas às outras.

Mas é essa tentativa de encontro, ou ao menos esse confronto, que Peck não cessará de produzir na montagem do seu documentário. Encontro das reivindicações do passado e do presente dos negros norte-americanos. Encontro dos dois níveis de experiência da sociedade dos EUA, a branca e a negra. Encontro no documentário pelas imagens do cinema, da televisão, dos registros históricos. Encontro de imagens que se contrapõem e deslizam umas sobre as outras. E nesse sentido, o que a montagem de Peck parece querer nos dizer é que atrás de cada imagem do cinema clássico branco dos EUA estão as imagens do massacre aos nativos americanos e a repressão e os assassinatos da população negra.

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A CRENÇA NA MATÉRIA

Por Yuri Deliberalli

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A religiosidade como um ponto de encontro da matéria, da presença física e da espiritualidade é um conceito que abarca estas três perspectivas em três longas-metragens que, dentre as diversas questões que abordam, procuram investigar os limites e abrangência da crença do ser humano em algo sobre-humano, intangível e não pertencente à ordem de seus atos. É essa vontade (e a credibilidade) da crença e do próprio ato de crer que levará os personagens a três formas distintas de encontro que, ao fim e ao cabo, validarão a noção de que a religião tem o condão de ensejar a harmonia e a ruptura das relações.

O modus operandi de Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1962) é todo alicerçado na premissa de um Jesus Cristo neorrealista, cujos atos milagrosos se aproximam da materialidade para alcançar a espiritualidade de seus ouvintes. Em suas pregações iniciais, Pasolini isola Cristo no plano frontal num sinal de que a palavra de Deus, desenvolvida enquanto um discurso radical de esquerda, não chega ao público com a força do fascínio e do encanto que deveria. Isto somente ocorre no momento em que os milagres materiais começam a ser operados por Cristo, porque apenas a consecução do bem material faz sentido para um povo acostumado à miséria.

A ideia de Pasolini é clara: Cristo somente conseguiria fazer a palavra de Deus chegar ao povo se usasse de meios identificáveis de assimilação do contexto espiritual, como, no caso, a transformação material dos bens. A atração do público não era exatamente o conteúdo, mas a demonstração empírica da palavra divina, como se Cristo fosse, na realidade, um mago. Religião enquanto matéria que traduz um significado espiritual e, portanto, vertente de manifestação política apta a causar a perseguição dos poderosos, razão pela qual o povo (e a câmera) se distanciam de Cristo em seus derradeiros momentos.

No mesmo filme, Pasolini articula a ideia de que a religião pode ser um elemento de sedução das massas, ao mesmo tempo em que pode causar a ruptura de todo um estado atual das coisas. É algo que Carl Theodor Dreyer também aponta em A Palavra (1955), ainda que em um grau diferenciado de abordagem. Aqui, a palavra de Deus é tida como um instrumento aristocrático, pertencente apenas à autoridade cristã e não aos membros comuns da comunidade como Johannes, que a prega aos quatro cantos da fazenda Borgen e é imediatamente taxado de insano. Caberá então a Johannes comprovar que não é palavra divina em si o meio de encontro da espiritualidade, mas sim a crença em tais escritos, alimentada pela fé mais pura (a fé de uma criança), que tem a capacidade de operar os verdadeiros milagres.

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Não deixa de ser uma ideia de compreensão particular de manifestação da fé, alheia apenas à autoridade religiosa e presente em cada um dos indivíduos que, à sua maneira própria, manifestam a sua visão particular dos mandamentos religiosos. Johannes não é um padre mas é tão (ou mais) crente do que aqueles que possuem o encargo religioso e é a sua persistência na fé que acaba por trazer a união da família em torno de um objetivo comum.

Em uma família desintegrada pela dor da perda de um membro querido, a palavra é utilizada por Dreyer como um instrumento de reaproximação, seja entre tais membros da família, seja entre desafetos, como o alfaiate. Aliás, é no núcleo narrativo do alfaiate que Dreyer demonstrará que a interpretação pessoal dos escritos religiosos pode ser causa de conflitos pessoais e até mesmo sociais (a proibição do casamento), num sinal profético de que as guerras futuras seriam fundamentadas nesse fator.

E é desse sentimento beligerante proporcionado pela interpretação diversa da palavra divina que Martin Scorsese transita em Silêncio (2016), porque duas religiões não habitam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ou seja, a palavra de Deus é um meio de propulsão da violência contra os padres e japoneses que se aproximam de um olhar diverso sobre a religião dominante (o xintoísmo), razão pela qual a opção de Scorsese em tratar a questão religiosa como uma questão física, de penitência do corpo para preservação ou alteração da espiritualidade, se coaduna com a visão de que a crença é um ato de fé extremo, passível de sobreviver às mais duras investidas contra a materialidade do ser humano.

Curiosamente, o aspecto material é o componente-chave da discussão proposta por Scorsese, afinal, cuspir na imagem do Cristo crucificado e pisar no fumie significa trair a sua religiosidade ou é apenas um mero sinal público, naquelas circunstâncias, de sobrevivência, uma vez que o ataque à iconografia não implica dizer que houve renúncia espiritual à concepção religiosa? Ou, melhor dizendo, a ação pública traduz a verdadeira compreensão da sua própria religiosidade?

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Como será comprovado no ato final, ainda que de um modo um tanto expositivo, é de que o sacrifício pessoal do padre Rodrigues não se confunde com o sacrifício espiritual, porque, embora preso fisicamente a um local, sua fé permaneceu intacta ao longo dos anos de cárcere. Sua religião o confinou ao abandono de tudo e de todos, mas também o fez encontrar o verdadeiro significado de sua aspiração espiritual.

Mais do que tratar do tema em si, os três filmes compartilham dessa busca pela verdadeira faceta da fé dentro de suas respectivas particularidades, sempre envolvendo a dicotomia entre o material e o imaterial como um subtexto narrativo. Em Scorsese isto é mais frontal, ao passo que em Pasolini e Dreyer é uma questão que permeia os respectivos filmes como algo mais conceitual do que concreto. Independentemente do método de abordagem, os três filmes estabelecem a desagregação causada pela religiosidade como um fator de incompreensão (a crucificação em Pasolini, Johannes como um louco em Dreyer e a tortura física em Scorsese) e a sua compreensão como um elemento de unificação (operacionalização do milagre em Pasolini e Dreyer e a autodescoberta da fé interior em Scorsese), reforçando o fato de que a crença na palavra divina, dada a sua condição de intangibilidade, está sujeita aos extremos dessa relação, mas sempre em busca de um ponto de conciliação.

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