A Rainha Nzinga Chegou (Junia Torres e Isabel Gasparino, 2019)

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Entre as minúcias e o atropelo

A Rainha Nzinga Chegou é composto por dicotomias interessantes acerca de seu objetivo e de seus meios de produção. Na mesma medida em que é um filme indubitavelmente etnográfico e com o peso do pensamento de preservação da história e da cultura, o filme tende a criar um jogo de proximidades e distâncias entre atos que é inevitável que o olhar não se desvie para esta extremidade.

Dividido em três atos no qual a passagem do tempo é o alicerce, o filme vai da grande jogada de adormecer a presença da câmera ao oposto, quando a câmera submete atenção. O curioso é que o dispositivo está sempre à mostra no filme. Justificado pelo espaço filmado e pela linguagem, é possível ver a câmera, o operador e o restante da equipe em diversos momentos do filme, a justificar o momento único a ser registrado. Mas o peso da presença da câmera em cena é volátil – e mais interessante quando as diretoras Junia Torres e Isabel Gasparino conseguem nos entorpecer pelas alegorias.

O grande ajuste do filme é na certidão dos rituais, estes de uma força descomunal sem que palavras sejam ditas; neles, anos de história são arrematados, o discurso etnográfico e a força de resistência extrapolam a ideia de performance, que em muitos momentos do filme é colocada, principalmente quando a conversa é o ponto de largura para o discurso e suporte para o filme.

E se A Rainha Nzinga Chegou deixa de ser um filme-atropelo sobre milhares de anos em poucos minutos, sobram as minúcias que estão em cheque sobre suas reais funções: o que não foi dito pela imagem que as palavras deveriam reforçar? Estar entre os dois extremos pode ser uma zona de conforto e tentativa de manter o discurso intacto. Para o momento de extermínio de culturas mínimas, fica a relevância de um ricochete a tempo de consideração sobre o tema.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Tremor Iê (Elena Meirelles, Lívia de Paiva, 2019)

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Acreditar na palavra

Um rápido pensamento durante a sessão de Tremor Iê remete a um comentário feito por Adirley Queirós sobre o seu Era Uma Vez Brasília há um ano atrás durante debate na 21ª Mostra de Tiradentes e a negação da fala no filme: eis aqui o seu complemento perfeito. Tremor Iê, assim como o filme de Adirley e Com os Punhos Cerrados da Alumbramento, é um filme destinado às ruas, mas que nega a performance como o grande catalisador de suas ideias.

Para Elena Meirelles e Lívia de Paiva, a palavra coloca o tão discutido futuro distópico no agora, na certeza do declínio da sociedade, na igualdade como um sonho distante e que atitudes – como um simples batucar – é um ato político. Portanto, o que se vê em Tremor Iê, como a construção de um filme de suspense, é um compêndio de lamentos; fala-se sobre a opressão do Estado e como a saída é inviável, também como passado e futuro estão numa espécie de curso amaldiçoado de repetições.

Quanto a isso, uma só ação é esperada e que dá na melhor sequência do filme, no qual um filme de assalto à banco é correspondente; Tudo que Adirley tomou por uma dormência como sentimento geral, ao filme de Elena e Lívia ainda há um respiro, a certeza de vida entre os muros da opressão. Contra tudo e contra todos, Tremor Iê é um filme do agora e para o agora, e se notarmos neste ciclo infinito de “agoras” que a política constrói (vide 1964 e 2019), será um filme reverberado por muito tempo.

A palavra, neste momento, é a arma notável contra toda truculência do Estado, por mais que pareça utópico; chegar ao mesmo nível é o atestado de fraqueza, é o momento de uma sagacidade que reverbera até o próprio fazer do filme – boa parte do longa se passa em locações-chaves de Fortaleza e que espelham esse diálogo do ciclo entre passado e futuro. E é disso que Tremor Iê é feito: para Elena e Lívia, observar o que está o redor é pretexto para maior, uma jogada-chave para fazer o coração voltar a bater e não de afirmar que o jogo está ganho. Falta muito para chegar lá e em Tremor Iê o batuque seguirá vivo.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Seus Ossos e Seus Olhos (Caetano Gotardo, 2019)

seus ossos e seus olhos

De olhos fechados

A cena que abre Seus Ossos e Seus Olhos é essencial: lá está o diretor, roteirista e protagonista Caetano Gotardo munido de um telefone, com sua emoção aflorada. O telefone e a emoção são dois caminhos indispensáveis em seu formalismo. Ainda sobre o aparelho telefônico, vale dizer que o filme serve como uma bela analogia a uma conversa, sobre a oralidade e como ela é a espinha dorsal para a imaginação e não para uma verdade definitiva.

A definição do que se vê, como uma certeza absoluta, é quebrada pela montagem, na ideia que pela oralidade a verdade é pertencente a uma pessoa, que cria inconscientemente os detalhes do que se ouve, se desconecta de onde pisa para ir a um lugar impalpável. Aqui, primeiro se ouve, se analisa o prazer de ouvir e imaginar para depois absorver a posição de passividade que o espectador geralmente toma ao sentar numa poltrona de cinema.

E para todo esse exercício, que na casca parece simples, mas que carrega uma complexidade corpulenta, a base está na teatralidade, o grande suporte para a filmografia de Caetano Gotardo. É na agudez da mise en scène, nas declamações ou no simples jogo de corpo – e de cena – que se coloca o dia-a-dia como um grande tablado; de um simples tapete às ruas da cidade, os corpos estão a serviço de uma mensagem – construir narrativas.

Seus Ossos e Seus Olhos se resume a este emblema que leva a muitos córregos a se discutir, principalmente sobre a representação e suas variantes, como o teatro e a oralidade ainda são de extrema importância para o cinema em tempos de puro prazer visual. Caetano Gotardo arremata o filme nos closes e nos planos gerais, saídas básicas do cinema narrativo, sem levar sua câmera para os lados, sem tirá-la do tripé, como uma testemunha de um caminho a ser tomado ou um quadro a ser pintado.

Caetano Gotardo mostra que seu modus operandi é revitalizado em comparação a O que se Move (2013), seu último longa-metragem, mas que continua um realizador com olhar único no circuito por onde seus filmes passam. Na mesma medida em que se mostra apaixonado pelo fazer, o ver e o narrar ganham a mesma importância.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Editorial – O Rito de sentar-se à mesa

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Senta-se à mesa.

Ao comentar a análise de Giuseppe Lo Duca sobre erotismo e cinema em L’Érotisme au cinéma, André Bazin conclui que o olhar do autor enxerga a fonte do erotismo cinematográfico nos traços comuns ao espetáculo cinematográfico e ao sonho pela passagem: “O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do filme, o que em parte explica a menor intensidade erótica do cinema em cores, que de algum modo escapa às regras do mundo onírico”.

Abre-se o cardápio.

O texto de Bazin, de 1957, parece incompatível com o ideal dos desejos da carne no cinema contemporâneo. O sonho, hoje, é de cores saturadas, não pela certeza do cinema a cores e variá-lo parece um caminho justificável, mas levado às dúvidas de uma afirmação mambembe no qual o sentido e a sugestão são mais importantes que a imagem. Ela parte de uma afirmação, de uma força insolúvel na qual filmes como Cam e Apesar da Noite carregam – ambos comentados nesta edição.

Faz-se o pedido.

Dois exemplos muito atuais da função da carne na tela: Em Sedução da Carne (2018), Julio Bressane exibe o básico do cinema: luz e sombra. Num simbolismo rasteiro considerando o tema da edição, digamos que seja o feijão com arroz do processo. Mas, ao lado, a carne, literalmente –  industrializada, em estado de putrefação, que nos persegue e nos domina. O reducionismo de Bressane sobre a indústria, a morte, os cineastas, o dispositivo e as funções do corpo como símbolo vão de encontro com a proposta desta edição da Multiplot! Em Climax (2018), Gaspar Noé em sua metodologia perfumada e artificial, coloca o sistema – corpo – e seu funcionamento em constantes tropeços em entidades morais – família, religião, drogas, etc. O corpo, aquele que é vítima infecções, que possibilita o gozo e aceita a morte – resumindo, o de Cronenberg – nunca pareceu tão em voga nos tempos em que o voyeurismo é tão popular.

A sexta edição da Multiplot! no formato de revista parte de uma noção contrária à associação do discurso da carne: o corpo como bacia dos desejos no cinema de Todd Haynes – poderia ser o córrego para a discussão do cinema de Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau e seu lado sensorial, mas o que se discute é o coração. O corpo e a cidade que poderia passar pela noção nefasta de Jia Zhang-Ke ou Brillante Mendoza decorre para Walker, o personagem andarilho de Tsai-Ming Liang, uma visão mais intimista e que está em paralelo à análise de Peeping Tom (1960) de Michael Powell no pesadelo do homem urbano, aquele que acopla suas fantasias ao horror – e a câmera como extensão deste homem, concomitante às teorias de Marshall McLuhan. Este que tem em David Cronenberg o seu grande representante e em Crash (1996) o seu apogeu. O  personagem andarilho de Tsai-Ming Liang  leva ao diretor a questionar as assimetrias da carne, sobre corpos que ocupam o espaço urbano e exercem funções primordiais e que são impedidas de seguir o fluxo natural por questões cruéis, próximas ao canibalismo. O texto sobre Bush Mama é mais evidente sobre como o homem ainda é, no fim das contas, irracional.

Se Crash, um dos grandes filmes de gênero a intuir o corpo a partir de outro extremo, vale lembrar de Stuart Gordon, um grande amante das vísceras e sangue que vai além do fetiche e a carne, além do desejo, consome a vida, à espera da morte como prato principal indesejado. Abel Ferrara e Stan Brakhage, cada um à sua maneira, discutem a congruência do palpável e o sobrenatural. Vale lembrar que Ferrara sempre conta com a arma como extensão. Esta edição traz textos sobre o cyberpunk e a máquina (Tetsuo, 1989), corpos em colisão (Crash), a webcam como arma de prazer e horror (o já citado Cam), a câmera como arma  mortal em Peeping Tom e o sexo e violência surrealista discutido por Adrian Martin, que vai de Franju e Buñuel a Lynch e os filmes de horror.

Sentar-se à mesa, portanto, é uma questão que engloba grandes conflitos filosóficos sobre o que e quando se consome.

Vira-se a página. Agora é degustar.

Bon appetit.

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Festival do Rio: Cobertura – Parte 4

amandaAmanda (idem, Mikhael Hers, 2018)

Como o cotidiano é interpelado e como interpelar o horror. A mudança de tom de Rohmer à ancorar seus personagens na cidade como um martírio é uma escolha esmagadora. Um filme de muitas sutilezas e que merece revisão e fica o eco da última cena do filme, das mais impactantes desde Phoenix.

morto não falaTyrel (idem, Sebástian Silva, 2018)

Espécie de versão mumblecore de Corra! no qual Silva se torna mais econômico que seus últimos filmes e asfixia seus personagens pelas lentes e planos fechados. Tal escolha lentamente transparece o tribunal armado no qual o espectador é testemunha e júri. Um raio-x das dicotomias da América, a terra da liberdade.

morto não falaLonga Jornada Noite Adentro (Long Days Journey Into the Night, Bi Gan, 2018)

Um conto de retomadas como suporte de um desejo estético que notoriamente se esbalda quando o filme necessita dos óculos 3D. A aura onírica, os longos planos-sequência e o reencontro fabuloso fazem mais sentido que a primeira parte que se divide no lamurio do cinema de Wong Kar-Wai e a poluição de Jia Zhang-Ke.

what_you_gonna_do_when_the_worlds_on_fire__che_fare_quando_il_mondo_e_in_fiamme_still_1O que Você Irá Fazer Quando o Mundo Estiver em Chamas? (What You Gonna Do When the World is on Fire?, Roberto Minervini, 2018)

A mudança de abordagem no cinema de Minervini é algo a ser notado, porém neste caso ele está mais próximo da releitura de métodos. Basta citar Game Girls que também está na programação do Festival do Rio para lembrar a frontalidade deste e a a forma rudimentar de Minervini. O filme talvez more nas frestas de George Washington de David Gordon Green e é curioso pois é mais funcional quando registra as relações de afeto ao invés da inclinação política e histórica.

morto não falaMiriam Mente (Miriam Miente, Natalia Cabral e Oriol Estrada, 2018)

Aqui cabe a simples questão da sintetização do assunto em prol de seu impacto. Miriam Mente mastiga o assunto através de uma jovem negra inserida na realidade da classe alta da República Dominicana. O filme se resume a achar meandros que justifiquem a discussão e deixa para atrás o foco principal que é levantado com poucos minutos de filme.

monrovia indiana wisemanA Camareira (La Camarista, Lila Avilés, 2018)

Notoriamente um filme que se priva do passo adiante na análise social e existencial para obedecer cartilhas de um certo cinema letárgico e extremamente atual. Curiosamente um filme que fala tanto sobre a infeliz tarefa de sobreviver pelas forças de um emprego. O filme de Avilés é um conto de repetições, que desenha seus ensejos e não os realiza, tão apático quanto sua protagonista.

vox-lux-natalie-portmanVox Lux (idem, Brady Corbet, 2018)

Música pop e o canto dos demônios, e a farsa da estrela decadente. A austeridade formal do Corbet drena toda a energia desse mundo criado desde o prólogo, desde antes da primeira tragédia acontecer, e por mais que exista impacto, o sentido dele parece avulso, como uma forma de se legitimar pela suposta elegância que a crueldade traz. As relações causais aqui tentam equivaler o culto às celebridades com o culto à violência, misturando de forma irresponsável a gravidade da extensão dos atos de cada uma, comentando suas cenas com a verborragia acadêmica que espera explicitar didaticamente um sentido político e metafórico no que vê – como quando encontra um inacreditável paralelo metafórico no estado emocional dos Estados Unidos pós 11 de setembro com o que a cantora provocava nos fãs. E por mais que haja habilidade de Corbet na hora de passar a claustrofobia do segundo ato parece que na hora de tomar decisões além do mero estilístico ele apele para esse narrador intrusivo e implacável para pontuar os atos bíblicos dessas ações cheias de um mal-estar atribuído a um mal muito específico, sugerido ao nomear os atos como Gênesis e Regênesis.
É o tipo de filme com olhos inquisitivos sobre a música pop por achá-la vazia de conteúdo, e cujo consumo pode apenas ser através da ironia, o que certamente o impede de melhores digressões além da capa do bom gosto. É delirante sobre seu alcance e a importância de sua personagem e suas mensagens, e mesmo assim, talvez pela ilusão de grandeza, através dessa formalidade posuda existe uma energia querendo ser liberada, uma inconsequência temática, por mais vazia e sem conexão ela seja; nesse sentido é meio o Mommy do Brady Corbet. (por Gabriel Papaléo)
asako-netemo-sametemoAsako I & II (idem, Ryūsuke Hamaguchi, 2018)
Autodestruição em duas vias. O que surpreende no filme de Hamaguchi é como ele, dentro de arquétipos, é mutante, numa brincadeira do amor como o grande gênero do cinema – dele escoarão o suspense, o terror, a comédia. Disso Hamaguchi tira grandes momentos, em destaque na segunda metade, quando o martírio é mais agudo e o arrependimento a chave para a morte.
tarde_para_morir_jovenTarde Para Morrer Jovem (Tarde Para Morir Jovem, Dominga Sotomayor, 2018)
O hoax do filme no circuito de festivais me parece óbvio justamente pelo o que costumam ignorar na escolha de filmes – o formalismo como via de comunicação. Sotomayor se inclina ao registro e se interessa mais em aparar arestas que de fato construir conflitos. Está completamente longe da inovação e tampouco do destaque nesta prática. No fim o que resta é um pedido de passividade aos seus tempos e personagens e que dessa vez curiosamente foi bem aceito.
monrovia indiana wisemanMonrovia, Indiana (idem, Frederick Wiseman, 2018)
Wiseman continua um grande investigador. Aqui, o sonho americano é demolido pela estrutura, no ato da observação de um local de paz, tão ermo e belo que aspira intenções tão monstruosas em suas frestas. Wiseman, como sempre, se abstém do comentário, mas é incisivo em seus planos, seus tempos e desta vez, numa espécie de reencontro com a frontalidade de Titicut Follies, vela e enterra seu país com orações e armas.
tarde_para_morir_jovenEleições (idem, Alice Riff, 2018)
Reflexo natural: acompanhar eleições de um grêmio estudantil num colégio estadual em São Paulo como analogia às estratégias políticas das eleições presidenciais. É curioso que o filme ganha contornos muitos semelhantes aos interesses dos eleitores de Haddad e Bolsonaro, porém o que realmente reforça o filme de Alice Riff é sua análise livre do cotidiano desses jovens para além dos muros. Neste nicho involuntário, enfim, temos um filme.
asako-netemo-sametemoAssunto de Família (Shoplifters, Hirokazu Koreeda, 2018)
Curioso ver Koreeda deixar seu lado Ozu num conto propício para tal e readaptar livremente Crazy Family de Sogo Ishii. A partir daí, acrescentar suas características básicas acerca da identificação e afeto é um grande risco que o diretor aceita. É um filme certamente mais livre para dialogar com as emoções, mas é notoriamente problemático para unir os blocos organizados, principalmente no terço final.
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Festival do Rio: Cobertura – Parte #3

morto não falaMorto Não Fala (idem, Dennison Ramalho, 2018)

O suprassumo do horror. Do gore ao terrir, o filme condensa com sucesso todas as formas modernas do gênero sem tocar em sua espinha dorsal. Trama bem desenvolvida e aura de suspense intactos por todo o filme. Arrisco a dizer que desde Garrett e Mojica não via o cinema de gênero tão bem representado.

morto não falaPássaros de Verão (Pajaros de Verano, Ciro Guerra e Cristina Gallego, 2018)

Funcional como um drama familiar e muito interessante como um western do descarrego do sudoeste, o filme opta pela primeira opção como base. Há a intenção dos diretores da ideia de quebra de ciclo no qual os rituais e tradições falam mais alto que a ganancia e que desemboca num filme afetado por diversas frestas históricas logo desligadas pelos diretores.

morto não falaTHF – Aeroporto Central (Central Airport THF, Karim Ainouz, 2018)

Ainouz mais próximo de Côté que Wiseman para observar a vida daqueles que estão entre o refúgio de guerra e o retorno para o caos. Literalmente presos no THF, estes homens têm o cotidiano filmado mais de forma invasiva que observacional, no qual seus contrapontos poéticos parecem desafinados com o que a câmera que intenta engolir seus personagens mostrara até então.

morto não falaImagem e Palavra (Le Livre d’image, Jean-Luc Godard, 2018)

Godard mais interessante quando ressignifica imagens a favor do cinema do que do dispositivo. Para o dispositivo o diretor volta às origens históricas-políticas e desassocia o filme do valor das imagens. Temos aqui uma espécie de livre resumo de  “O que é o cinema?” de Bazin e “O que é um dispositivo?” de Deleuze.

morto não falaGrass (idem, Hong Sang-Soo, 2018)

O filme de suspense de Sang-Soo. Não pelo tema e abordagem, mas pela forma. Grass é o Festim Diabólico das frustrações amorosas, das clássicas injeções de soju na mesa de restaurantes e conflitos de diretores de cinema. O modus operandi muda levemente, mas o ensejo é o mesmo. Sang-Soo continua brilhante.

morto não falaChuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (idem, Renee Nader, João Salaviza, 2018)

A ideia de um filme de contracampos é muito boa pois na medida em que o filme se desenvolve, vemos como os conflitos estão na floresta e no asfalto em forma de ansiedade. Um homem em conflito e a fuga do mesmo o coloca no mesmo patamar daquele que o considera inferior. Renee e João detalham este confronto, às vezes até em redundância, mas o meio é tão poderoso que desmantela suas fragilidades.

morto não falaO Hotel às Margens do Rio (Hotel by the River, Hong Sang-Soo, 2018)

Distâncias e perspectivas para os meandros de sempre. Sang-Soo avisa cada mudança feita em sua estrutura e isso transforma O Hotel às Margens do Rio num filme fascinante. Os conflitos aqui estão às claras, o desejo da desistência e a incerteza do futuro. O que ainda surpreende é como Sang-Soo insinua certo cinismo em todos os seus planos com um simples movimento de câmera.

morto não falaNão me Toque (Touch Me Not, Adina Pintillie, 2018)

O conflito imutável. Duas horas no divã, a quebra da quarta parede, novos personagens e nada disso tira Não me Toque da única perspectiva por uma ousadia torpe e dispensável.

morto não falaTúmulos Sem Nome (Graves Without Name, Rithy Panh, 2018)

Panh ameaça a invenção de A Imagem que Falta em certos momentos de Túmulos Sem Nome, porém logo o coloca na zona de conforto, nos longos depoimentos, nos cortes feitos nas vírgulas,  mais perto do longo lamento que um documento sobre seu assunto.

morto não falaVida Selvagem (Wildlife, Paul Dano, 2018)

A crença no contra-plano. Paul Dano se apoia no básico, no plano fixo e na ideia de um extracampo para narrar a demolição da instituição familiar. Aqui mais pela imposição que pela sugestão o que explicita certa insegurança, ainda que fique a curiosidade pelos novos trabalhos de Dano como diretor.

morto não falaA  Prece (La Priere, Cédric Kahn, 2018)

 Kahn é certeiro sobre a queda e como ela se diluí no conto de ascensão, no topo da narrativa cristã. Um personagem tão frontal, tão sincero e que se esconde somente quando lhe interessa deixa Kahn mais à vontade para dirigir, afinal sua coluna, o protagonista, justificará cada escolha feita, ainda que esses caminhos pareçam mais fáceis, numa ideia de que a poesia pode demolir a dureza da vida.

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Festival do Rio: Cobertura – Parte #1

Mais enxuto porém com seleção de qualidade e bem próxima a da Mostra de São Paulo, o Festival do Rio comemora 20 anos em 2018 com 200 filmes na programação. Dividiremos a cobertura em várias partes, portanto sugerimos visitas diárias ao site para acompanhar todos os comentários sobre os filmes vistos. Eis a primeira!

Por Pedro Tavares

meunomeedanielMeu Nome é Daniel (idem, Daniel Gonçalves, 2018)

Como construção narrativa durante a exumação de imagens de arquivo – fitas VHS da família -, Meu Nome é Daniel é um filme bem interessante enquanto espécie de tributo aos familiares que ajudam Daniel a se desenvolver. Como retrospectiva de uma vida, o filme pouco faz além de calcificar a imagem de Daniel como semelhança à superação.

meunomeedanielSkate Kitchen (idem, Crystal Moselle, 2018)

Continuação do projeto That One Day (2016), Skate Kitchen é uma espécie de versão perfumada de Kids (1995). É delirante acompanhar Nova Iorque tomando o protagonismo enquanto a trama colegial e esmaecida fica em segundo plano. O voyeurismo de Moselle é bem próximo ao de Larry Clark, porém os fundamentos são muito duvidosos.

meunomeedanielSelvagem (Sauvage, Camille Vidal-Naquet, 2018)

A via crucis facultativa de um jovem garoto de programa viciado em drogas é registrado por Vidal-Naquet no desequilíbrio entre o erotismo de Bruce LaBruce e o melodrama que remete a Clube de Compras Dallas (2013). O filme parece um mosaico de intenções e é nítido o desequilíbrio para qualquer tipo de aproximação com a trama.

meunomeedanielA Cama (La Cama, Mónica Lairana, 2018)

Claramente influenciada por Chantal Akerman, Lairana abre mão do formalismo pela narrativa, o que nem sempre é funcional. A força da composição de quadros e da elasticidade do tempo é ótima e quando é trocada nem sempre é regulada já que o formalismo já está decidido desde o primeiro qudro.

meunomeedanielSócrates (idem, Alex Moratto, 2018)

Filme muito consciente de seus limites e com isso segue só uma linha dramatúrgica, filmado inteiramente com câmera na mão e sempre asfixiando o protagonista com intenções claras sobre o espaço filmado como analogia ao drama de um jovem em se reinventar a todo o momento por necessidade. É o caso de escolher a segurança e ser bem sucedido.

meunomeedanielA pé ele não vai longe (Don’t Worry He won’t get far on foot, Gus Van Sant, 2018)

Van Sant se enterra na cartilha da biografia agridoce, quase um pastiche dos feel good movies de Michel Gondry, extremamente protocolar e sem formalismos no que tange ao drama. Aqui é um caso de escolher a segurança e não ser bem sucedido.

meunomeedanielElefante Sentado Quieto (Da xiang xi di er zuo, Hu Bo, 2018)

Jornada de repetição de fórmulas. Um drama geral sobre a China, mas antes disso um filme com uma única forma de dividi-lo em suas 3h50 sobre a aura de tensão e pessimismo que cerca o cotidiano de um país oprimido. Tem grandes momentos, mas por ser um filme tão elástico, eles acabam adormecidos.

meunomeedanielSem Rastros (Leave no Trace, Debra Granik, 2018)

Granik levanta valores sobre a sociedade num conto de exílio. O que se necessita ou o que se deseja, numa espécie de estudo do materialismo histórico. Bem próximo do cinema de Kelly Reichardt, o filme abre mão do debate quando chafurda no conflito entre pai e filha sobre a introspecção e a abertura a um novo mundo.

meunomeedanielExcelentíssimos (idem, Douglas Duarte, 2018)

Leia a crítica completa.

meunomeedanielLos Silencios (idem, Beatriz Seigner, 2018)

Leia a crítica completa.

38578dad2b693f8de460876ffb1ba507Utoya, 22 de Julho (Utoya, 22 july, Erik Poppe, 2018)

Espécie de snuff/slasher no qual as vítimas ganham atenção exclusiva como comentário social, afinal o filme é uma reconstituição do ataque de um integrante do partido de extrema direita a um acampamento do partido dos trabalhadores da Noruega. Poppe opta por um plano-sequência de estética suja que emula uma testemunha da tragédia, mas não consegue criar uma atmosfera de tensão ou confabular com os personagens. Curiosamente o filme emula Paul Greengrass, que também lançou um filme sobre o evento recentemente.

38578dad2b693f8de460876ffb1ba507Vírus Tropical (idem, Santiago Caicedo, 2017)

Coming of age em animação que tenta abraçar tantas informações sobre valores familiares que acaba na superfície de todos eles. Vale ressaltar que o filme explicitamente delimita seu público alvo e talvez esta seja uma inteligente saída para vagar com sensibilidade entre todos os assuntos tratados, mesmo estando na superfície.

38578dad2b693f8de460876ffb1ba507Ilha (idem, Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2018)

Leia a crítica completa.

deslembroDeslembro (idem, Flávia Castro, 2018)

O típico filme de festival sobre exílio político. Agridoce, Deslembro é uma espécie de capítulo de Malhação didático para politizar jovens antenados. Diria que este seria um ensaio proto-moderno sobre a recente história do Brasil direcionado aos jovens feito por Laís Bodanzky.

deslembroInferninho (idem, Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018)

Leia a crítica completa.

deslembroHumberto Mauro (idem, André Di Mauro, 2018)

Tudo é montagem. A declaração de Humberto à fórmula básica de seu cinema (a cachoeira) e como a inspiração serve como catalisador para a experimentação, longe do pragmatismo do cinema comercial. Seria lindo se fosse apenas uma colagem de seus filmes como homenagem máxima, mas a amalgama do filme, ou seja, os depoimentos de Humberto Mauro, são muito bonitos.

o termometro de galileuO Termômetro de Galileu (idem, Teresa Villaverde, 2018)

Banco de memórias numa repetição de fórmulas em prol de um filme íntimo, caseiro e propositalmente é desestabilizado. Como exercício ele se satura no terço final e a honestidade de Villaverde sobre seu objeto é questionada, principalmente por se tratar do peso da memória sobre seu próprio filme.

o termometro de galileuA Rota Selvagem (Lean on Pete, Andrew Haigh, 2017)

Como tudo volta para o lugar. Haigh mais maduro nas decisões estéticas e narrativas e as constrói como um ciclo sobre matar e morrer diariamente. Longe da inovação geral, mas uma decisão muito funcional para sua carreira. Um bom norte à frente.

o termometro de galileuDiamantino (idem, Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, 2018)

Abrantes e Schmidt mantém a fórmula fantástica na tentativa de adaptar ao formalismo clássico e gerar assim um incomodo equivalente a seus assuntos tratados, principalmente a política. Através do herói nacional Cristiano Ronaldo, o filme mensura a gravidade da distopia do avanço solitário com o bom humor que lhes é característico.

o termometro de galileuA Árvore (Drvo, André Gil Mata, 2017)

O prólogo e o epílogo de O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr. A guerra invisível, os sons angustiantes e a sensação de morte iminente. Um dos grandes filmes do ano.

o termometro de galileuA Névoa Verde (The Green Fog, Guy Maddin e Evan Johnson, 2017)

Ressignificação de imagens não é mais novidade desde os tempos de Warburg, mas as alterações vistas aqui são divertidas como forma de thriller a partir de quadros e frames do cinema clássico. É irresistível não se levar pela proposta, mesmo que em alguns momentos o filme seja pego pela redundância das escolhas.

o termometro de galileuObscuro Barroco (idem, Evangelia Kranioti, 2018)

O Rio e suas estranhezas para gringo ver. O carnaval, manifestações públicas e o submundo como um panfleto enfraquecido, mal planejado e que pouco se disfarça de filme.

o termometro de galileuMormaço (idem, Marina Meliande, 2018)

Filme extremamente frontal e até inocente para dialogar com as mudanças estruturais do Rio de Janeiro para as Olimpíadas. Quando aposta no lado fantástico o filme engrena, mesmo que na proximidade à obviedade formal, Mormaço é um filme necessário pela apuração do tema e junção da especulação imobiliária, política e o cinema fantástico.

o termometro de galileuFutebol Infinito (Infinite Football, Corneliu Porumboiu, 2018)

A revolução caseira. Um mundo guardado e que nunca terá atenção. Uma declaração de amor ao futebol enquanto recria o esporte – e que nunca será aceito pela FIFA. Porumboiu é invasivo, sem pudores, mas sempre meticuloso para mostrar seu herói do cotidiano, de sonhos e planos que jamais se concretizarão.

o termometro de galileuAdam (idem, Maria Solrun, 2018)

A impressão é que este filme já foi feito e visto milhões de vezes. Um prato requentado do cinema europeu contemporâneo que sempre passará pelo crivo de festivais. Se há algo de bom aqui é problematizar como este formato está em função da falta de inspiração dos realizadores modernos e sobre como eles são facilmente aceitos até hoje.

o termometro de galileuAzougue Nazaré (idem, Tiago Mello, 2018)

Filme alienado sobre alienações. Impressiona como a formatação do filme é rasa e imparcial, sem sensibilidade, mais interessado na certeza, no panfleto imutável do que na abordagem de discussões sobre religião e o estado.

nois por noisNóis por Nóis (idem, Aly Muritiba e Jandir Santin, 2018)

Entre Cidade dos Homens e Marcados Para Morrer, Nóis por Nóis é televisivo e panfletário na mesma medida. Urgente para debater a truculência policial e como jovens de periferia tem o mesmo fim desenhado por caminhos diferentes. Não fosse sua redundância discursiva pela tendência a surprir necessidades comerciais o filme seria mais interessante.

nois por noisEm Chamas (Beoning, Lee Chang-Dong, 2018)

A vingança do proletariado. Um thriller de tempos dilatados no qual pouco se mostra e que lentamente se constrói como uma real e brutal história de violência. O destaque é como Lee Chang Dong tem controle das frestas da história e como elas perduram por suas 2h20.

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Festival de Brasília: Temporada (André Novais Oliveira, 2018)

Por Pedro Tavares

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Vida e gesto

Há uma característica na busca da neutralidade nos filmes de André Novais Oliveira: o desenho de um fosso imaginário entre o dispositivo e o que se filma. Ainda que este raciocínio esteja sempre atrelado à ideia de teatro, neste caso se faz uma entidade em suspensão na filmografia do realizador. Entre pequenas e grandes distâncias, esta tarefa matemática tende à naturalização do cotidiano filmado – outra base dos trabalhos de André, com intervenções fantásticas nos curtas-metragens e mais lineares nos longas-metragens.

Temporada é uma sequência natural deste pensamento. A rotina obrigatória de Juliana (Grace Passô) servirá como escoamento emocional e a ruminação do drama no fluxo do tempo, algo muito próximo do que foi feito em Ela Volta na Quinta (2015). A reserva se dá na função do corte e na elasticidade das cenas – enquanto Juliana conversa com uma familiar, a opção de levar o filme para outro caminho é nítida: a resposta “não sei o que te dizer” calcifica o que até então fora exibido como uma negação ao desabafo. A André interessa a maturidade de sua protagonista através da sobrevivência passiva, num pensamento geral – o de acordar, trabalhar e sobreviver desta forma, sempre com algo melhor em mente.

Em Temporada esta sobreposição leva um tempo para se apresentar e maturar como uma opção narrativa, ainda que o estado de incerteza seja um delírio interessante. Intuímos a vida como um gesto e o filme como um recorte. O horizonte está à vista da personagem e não do espectador. E como a noção de uma extensão está abortada, a rotina toma proporções curiosas como uma redução; o mesmo exercício de se encontrar um lugar – que está em boa parte dos filmes de André Novais Oliveira – se faz presente mais uma vez. O ambiente é o que faz o raciocínio expressivo, como se a relação com eles fosse a catapulta para a identificação e consideração de um conflito maior – o mercado municipal, o ponto de ônibus, centros comunitários, etc.

Como um filme mais monocórdico que vulcânico, Temporada se aproxima (ou se faz um exercício tributário) aos Gendai-Geki, em especial Ozu, com o raciocínio que se esta realidade é possível a todos, transformá-la em imagens também será. Nunca um exercício de neutralidade completo, portanto, já que até então os filmes de André, de certa maneira, não são simulações e sim de mudanças de formas. Aqui, estamos diante de uma situação muito familiar – como Hollis Frampton afirma: “Nostalgia não é uma emoção sofrida, ela é tolerada”. Este processo de cicatrização que resume o filme em descrição de uma rotina essencialmente proletária – muito se dá e pouco recebe, com a exceção do humanismo que a troca diária permite, com trocas de confidências e suporte emocional -, é potencializado pelo caráter observacional de André, incluindo o já citado fosso entre câmera e personagens, além dos longos planos e do dispositivo fixado, imutável e que raramente cede à tentação de ser ligado diretamente ao fílmico com movimentos e a noção de quebra do real.

De certa maneira Temporada flutua entre o discurso atual de empoderamento e calcificação da possibilidade de uma mulher viver só e gozar da plenitude. Por outro lado abraça um conceito atemporal e universal sob um olhar elementar sobre sua personagem, o que é contrário a grande parte do que se faz hoje no cinema brasileiro contemporâneo –  muito mais uma ficção do espírito que um grito da carne.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018)

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Brasil em plano fixo

Por Pedro Tavares

Em A 15a Pedra, conversa entre Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa filmada por Rita Azevedo Gomes, o diretor de Aniki Bóbó fala a respeito do plano estático como a objetividade do cinema. Para não filmar de todos os ângulos possíveis, a câmera fixa sempre será a melhor opção para amalgamar um sentido concreto à sequência. Esta é uma escolha prevalecente no cinema de Guto Parente após a trinca de longas-metragens em parceria com os irmãos Pretti. Em parceria com Pedro Diógenes, com quem dirigiu o essencial Doce Amianto, Guto Parente reconfigura os signos de Amianto para um desenho mais melancólico do microcosmo explorado em Inferninho.

A ideia do inferninho como um cabaré de quinta categoria espelha nos costumes e trejeitos brasileiros do dia-a-dia e resume a noção de uma sitcom – uma família desjeitosa, uma locação chave, mudanças de rumo a partir da chegada de personagens estrangeiros, etc. Guto e Pedro transfiguram este suporte para um drama de sutilezas que remete a Fassbinder em diversos momentos. Entre o escracho e o arthouse, Inferninho é um compendio para a empatia; através de situações que emulam signos comuns aos brasileiros – a expatriação, extorsão, dívidas, etc. – Guto e Pedro jogam seu filme na bifurcação da comédia ou do drama sempre em ampliação. Há a básica incumbência de contar um conto, mas o exercício se resume à árdua tarefa de trazer o filme para si; em momentos em que o chroma key é a chave para a comunicação (como Brisseau, já lembrado por Guto em A Misteriosa Morte de Pérola) percebe-se as reais intenções de Guto e Pedro. O rir para não chorar, a compreensão de uma melancolia entranhada na novela do dia-a-dia.

Este raciocínio se recebe em pés de antagonismo: Inferninho para e vê um monólogo (é monólogo imposto pela câmera, pois se trata realmente de uma conversa entre dois personagens). Um expurgo carregado de emoção que transparece de vez as contradições do macro e não do micro que está na tela. A tristeza em quem esbanja alegria, a ostentação de quem não tem como pagar as contas e, de forma mais direta, o filme de arte que ninguém entende. Eis o Brasil no plano fixo. O objetivo, como diz Manoel de Oliveira, é amalgamar; se muito exploraram a cultura popular como artificio narrativo, este filme é um contrapeso necessário ao narrar o país.

Nesta sutileza que Fassbinder é invocado, o de Fox and His Friends, no lamento e na declaração de amor concomitantes que Guto e Pedro rebatem na tecla de Doce Amianto, filme muito mais direto sobre sua tristeza. Em Inferninho há na empatia uma porção de esperança e no clamor pela segunda vida, o luto. Da certeza que não haverá outra chance, o escárnio sempre será uma saída viável.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Bixa Travesty (Claudia Priscilla e Kiko Goifman, 2018)

bixa travesty

Entre quatro paredes

Por Pedro Tavares

Linn da Quebrada é uma grande personagem. Sempre disposta à performance para o interno e ao confronto para o externo. Bixa Travesty está sempre na dualidade do espaço que Linn preenche, sempre em microcosmos, com a impressão que Claudia Priscilla e Kiko Goifman se interessam mais pelo mito do que pela sua diluição na rotina. Portanto, o que será visto neste processo é Linn entre quatro paredes, protegida, para erguer esta persona. Nestes pequenos espaços, seja em casa, na casa de shows, no salão de beleza, Linn destila sua frustração com o que há no externo, mas nunca o veremos. Talvez por uma questão didática, pois é sabido o que está fora destas paredes, ou por opção de fundamentar o discurso.

Pela renúncia do encontro entre Linn e o mundo, o filme controla seu norte como uma espécie de registro confessional em diversas formalidades. Há uma brincadeira explícita com essas possibilidades, com Linn sendo apresentadora de um programa de rádio imaginário. Da troca com a mãe e amigos, a protagonista se posta sempre no limite da confissão, com o orgulho devido de quem foi e quem é. Existem motivos para Linn estar rodeada e Claudia e Kiko tem a sensibilidade para chegar até eles. A resposta, como era de se esperar, chega com mais afirmações de quem está além das demarcações impostas pela sociedade.

A paz, contudo, está em pequenos gestos e objetos – que para Linn, a exemplo da luva de Ney Matogrosso dos tempos de Secos & Molhados, tem valor inestimável. São pequenas oferendas que Linn oferece ao filme como um proto-conflito unicamente sobre si, justamente quando a protagonista, segundo a própria, perde os poderes de consolidação. Pois a suposição de um filme que inclina-se sobre o externo pela sugestão intrínseca é falha. Ele é tão incorporado em Linn que ela se torna um monumento que tampa a vista para o que é extrínseco.

Medir seu impacto através do que está lá fora, portanto, é uma tarefa custosa já que há apenas uma via: de afirmação e superação. Notar a relevância de Linn como faísca para uma possível – e necessária – revolução, como catapulta para uma postura geral, é significativo; Bixa Travesty, logo, serviria como prólogo de algo maior, de Linn tomando o mundo para si e o enfrentando com a mesma prática vista no palco. Por enquanto, é um exercício de imaginação.

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Festival de Brasília: Os Sonâmbulos (Tiago Mata Machado, 2018)

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Todos estão dormindo

Por Pedro Tavares

O cinema é um fenômeno idealista. A ideia que os homens fizeram dele já estava armada em seu cérebro, como no céu platônico, e o que impressiona, acima de tudo, é a resistência tenaz à matéria da ideia, mais do que as sugestões da técnica à imaginação do pesquisador.

(André Bazin em O Mito do Cinema Total, 1946)

Algumas informações são importantes para a compreensão mais categórica de Os Sonâmbulos, e a principal dela é que é um filme interpelado pelas mudanças no cenário político brasileiro principalmente entre os anos de 2013 e 2016. Portanto é um filme despudorado quanto às mudanças de abordagem, ainda que nunca se perca o senso de unidade, justamente por ser um filme de impavidez.

É curioso que sua pauta seja exatamente o risco quando ele é verbalizado. Das ações às reações, das analogias visuais e de um mundo performático que reverbera Serge Bard e, claro, Godard. Notória é a capacidade de síntese do filme quando justamente ele se debruça sobre retóricas que necessitam de prolongação para apuração de seus signos. Conforme os conjuntos de códigos são cada vez mais claros na superfície da imagem, o que resta desse governo arriscado? Tiago Mata Machado não responde e tampouco desce a guarda, da síntese ao simples desempenho, Os Sonâmbulos é imutável.

Se há o que podemos chamar de “desvio”, é quando o filme coloca seus andarilhos-militantes em cheque – o rendimento, em duplo sentido, a favor de interesses próprios. É o mais próximo que podemos de chamar de palpável no filme que sempre está em estado de suspensão, como uma espécie de catarse transcendente sobre o mais pragmático dos assuntos. É política o que está nas ruas e dentro dos apartamentos. A chama que queima lá fora pode queimar dentro do quarto. Se o alcance dos efeitos é incalculável, Os Sonâmbulos se apodera da aparência, do ilusionismo que leva à consciência de uma mobilização, mesmo que esta seja parcial. É o caso da inversão dos fins a favor de um discurso, mesmo que seu maior suporte, a realidade, não esteja em congruência e que a reconciliação é dispensável.

Ao abortar a consciência realista como forma avessa de chegar ao humanismo, o que Tiago Mata Machado procura, ao menos nessa primeira visão do filme, é o ajuste intelectual. Antes de ações profundas, é o momento de alinhar juízos e traçar acordos – mais um espaço para a dicotomia do pensamento político – e a reconciliação geral com o senso político, como o motor necessário para passos maiores e atrair para o real toda utopia vista em tela.

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Festival de Brasília: Ilha (Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2018)

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Parabólica

Por Pedro Tavares

O primeiro encontro com Ilha é assustador. Trata-se de uma cena dada ao dispositivo, com metalinguagem arriscada e mise-en-scène frouxa. Quando há o corte para a segunda sequência, já com a câmera fixa e uma distância considerável de seus protagonistas e com sarro da linguagem, é compreensível o risco que o filme tomou para si. E assim será até o seu fim. Ilha é uma parabólica muita arrojada sobre o cinema. E mais especificamente sobre o cinema baiano.

Se Café com Canela (2017), filme anterior de Glenda Nicácio e Ary Rosa partia do controle formal como comentário social, Ilha vai a outro extremo; vai de Glauber Rocha a Roberto Pires, de Edgard Navarro a Sergio Machado e Gardenberg, nomes do cinema baiano que em suas proporções se importaram com o social, a linguagem, mercado e o alcance dos filmes ao público. Como um falso thriller que também pode ser um uma falsa história de amor ou um exercício de como a superfície pode emular ideais tão profundos quando o risco é evidente, é uma operação louvável. Nada de novo se pensarmos nos movimentos que estiveram à margem no cinema brasileiro, em especial nos anos 60 e 70, porém, ainda uma dinâmica de empatia muito acertada.

E se Ilha é essencialmente um filme de riscos, entrega as perspectivas básicas ao espectador. Manipula até mesmo a opinião de quem o vê e como reagirá – estranheza ou completo gosto. Como reflexo geral, pensamentos acerca do mercado cinematográfico, da crítica à distribuição, dos festivais à produção de filmes. Como condensamento de tantas referências e caminhos, Ilha faz do acumulo o seu método de remoção de sensações muito maiores que questões sobre sua arte; Glenda Nicácio e Ary Rosa estão muito conscientes do que podem extrair e sabem até onde podem ir com essas sensações.

Partindo do pressuposto que há o diálogo direto com o cinema dos anos 60 e 70, o cunho social de Ilha é fortíssimo seguindo o preceito básico de reflexo da sociedade; de quem é o favorecido no mercado, sem nunca dar os nomes, mas é pelo contraste que os cita – pela cor, pela postura. Está entre o deboche e um sério discurso social na mesma medida que está entre a afirmação de um filme narrativo ou um pertinente manifesto. É o caso de se rever assim que chegar em cartaz pois é possível que camadas do filme tenham passado em branco com tantas informações e tópicos pertinentes a discutir em pouco mais de 90 minutos.

Ilha é uma experiência revigorante pelo discernimento que tem de seus riscos tão agudos, sem forjar discursos sob a cortina da acessibilidade e que na medida que soma informações (sequências) declara seu amor pelo princípio, que é o de fazer e assistir filmes.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Bloqueio (Victória Álvares e Quentin Delaroche, 2018)

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Por Pedro Tavares

O plano que abre Bloqueio, com a câmera na posição do carona de um carro chegando ao posto que hospeda parte de caminhoneiros em greve instiga a ideia de um documento observacional. Acompanhar uma fração da jornada de trabalhadores em ação extrema e extraordinária já seria o bastante pela urgência do ato e por ser um assunto ainda quente. A relevância do filme aumenta quando Victória Álvares e Quentin Delaroche encontram dicotomias entre filosofia e conduta neste nicho.

Nota-se que a postura dos diretores, refletida na câmera, é mudada radicalmente: ainda que as necessidades básicas para bom funcionamento da profissão sejam pautadas por eles, o que ganha destaque é como a falta de esperança leva muitos desses homens a soluções curiosas. A faixa que pede intervenção militar no meio de duas rodovias é o símbolo máximo – entre dois caminhos, um pedido. Muitos desses profissionais param seus discursos para adorar a Deus com cânticos e orações. Também não escondem o desejo de uma solução oriunda de um regime militar, mesmo com um tratamento frio e protocolar do exército quando os aborda. A filosofia rivaliza com a prática da greve e este é o norte de Bloqueio.

É importante lembrar do contexto histórico que embala o filme: se um caminhoneiro afirma que não há suporte de partidos ou sindicatos, busca a genuinidade do ato. É uma dinâmica anti-capital que coloca suas esperanças em instituições que em geral apoiam aqueles que boicotam as necessidades básicas destes trabalhadores. A incoerência leva a cenas muito curiosas como o debate entre uma professora mais interessada em postar suas razões no Facebook e um caminhoneiro que defende a ditadura. Ambos se interessam em apenas concordar ou discordar e pouco argumentam. A presença de tanques de guerra para selfies também é um momento ímpar do filme entre pedidos de melhorias de condições de trabalho para a classe.

Concomitantes, a luta pela concentração no que realmente importa – a greve – e a irresistível opção de levar costumes à ação mais básica mostram um perfil interessante do brasileiro de maneira geral; independente de onde esteja, a presença do pão e do circo é necessária. Reverbera aqui a história recente do Brasil como uma sombra. Concentrar-se em um só ato é inviável e remete a exemplos esdrúxulos como a dança de um grupo de manifestantes que pedia o impeachment de Dilma Rousseff ou a intrusão político-religiosa nas manifestações de 2013. A entronização de Lula e Bolsonaro (muito claras no filme) como supostas soluções também estão neste cardápio curioso de saídas.

Bloqueio é um invariável panorama social e comportamental iniciado em 2013 e que entre altos e baixos constrói uma consciência política mais aguda nos brasileiros. Segundo os caminhoneiros, é uma ação a parte e que em nada dialoga com qualquer outra manifestação, mas é evidente que suas fissuras exibem intenções que possibilitam a noção de um país dividido e de interesses distintos.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: Excelentíssimos (Douglas Duarte, 2018)

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O Lamento

Por Pedro Tavares

Em abril de 2001, durante a 1ª Conferencial Internacional do Documentário, em conversa com alunos e professores sobre produção de documentários, o diretor, editor e autor Michael Rabiger disse: “(…) Vocês percebem que continuo a usar a palavra ‘dramático’? É por que acredito que todas as histórias – ficcionais ou documentais – envolvem um drama”. A afirmação de Rabiger cabe muito bem como cisão entre Excelentíssimos e seu filme-irmão, O Processo, de Maria Augusta Ramos. O filme de Maria é focado no transcurso enquanto registra um lado da história, aquele que invariavelmente responderá e se defenderá de acusações e que desemboca no impeachment de Dilma Rousseff. Já Excelentíssimos, dirigido por Douglas Duarte, é a construção dramática do mesmo lado observado por Maria Augusta Ramos enquanto constata o teatro da banda oposta.

Como a polarização é inevitável, Excelentíssimos não se priva de ir de uma banda a outra, ainda que seu foco seja na causa e efeito – ou ação e reação. Douglas usa de diversos artifícios formais e é bem sucedido em todos, e seu grande impacto está, como em seu filme-irmão, no caráter observacional. O picadeiro está pronto e os artistas em ação. O registro do que parece inconcebível – de cultos no senado às ameaças de morte e propaganda pessoal com auxílio de selfies são armas de operação política e também atuação do que se julga correto. Estas ações que fogem ao bom gosto reafirmam o que já é sabido: a alteração generalizada de interesses e como a corruptela está estabelecida no planalto e factoides serão eixos importantíssimos para cada jogada política.

Excelentíssimos obedece à cartilha do drama, com a construção da vilania, mesmo que espaçada. A julgar que a figura de Jair Bolsonaro se apresenta pela metade do filme e Aécio Neves é mais um fantasma que sócio daqueles que, segundo o filme, tramaram para a queda de Dilma Rousseff. Na medida em que o encadeamento de fatos é mostrado, o filme se encoraja em ser folclórico, afinal, as ações são mais agudas e os interesses mais explícitos, a exemplo da sessão de votação que sacramentou o afastamento da presidenta, no qual a montagem do filme é muito eficiente em exibir a “festa” da democracia. Com aspas, pois os interesses são políticos e não de justiça conforme afirmações vistas no filme.

A somar com O Processo, temos recortes da mesma cerimonia por vieses distintos e formalismos que se assemelham por boa parte do tempo. São recortes longos e árduos, porém muito necessários para a compreensão do estado em que vivemos. Logicamente ambos passarão por questões de ética a pensar que são filmes que podem, com a presença da câmera, modificar a noção do real até mesmo para aqueles que são filmados – a mudança de comportamento, palavras, etc. No caso de Excelentíssimos, Douglas Duarte tem o respaldo das imagens de arquivo na construção deste mosaico pessimista do Brasil. Sua câmera invade e justifica o porquê. E quando o faz, raramente tira alguma palavra de seus personagens; ela é mais uma ferramenta na divisão filmagem-montagem, no qual Douglas dá funções distintas a elas. Observação e investigação justificam o filme, mas chegam a uma única e aguda conclusão sobre o nosso futuro de trevas.

Visto no 51º Festival de Brasília

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