Com a caneta suspensa para uma curta meditação, as palavras que me ocorrem ao espírito evocam a luz e o calor, com as quais habitualmente se costuma falar do amor: deslumbramento, raios, braseiro, luzes, fascinação, queimadura.
Jean Genet, Diário de um Ladrão
“Está frio aqui.” — É a primeira fala de Carol White (Julianne Moore), em Mal do Século (Safe, 1995), de Todd Haynes. A frase é dita ao marido, Greg (Xander Berkeley), à noite, ao chegarem em casa. Segue-se uma cena de sexo, a única do filme: enquadrada em plongée, vemos rubor na nuca de Greg, enquanto o rosto pálido de Carol denota desconforto. Seu corpo não sente desejo ou prazer, mas é gentil, expressa-se sempre com suavidade. Na manhã seguinte, ele lhe pergunta sobre sua sinusite, enquanto ela poda flores no jardim de sua mansão, no subúrbio da Califórnia. Em seguida, Carol recebe decoradores. Cumprindo essas tarefas de dona de casa, ela é enquadrada em planos abertos, que a evidenciam pequena e distante no ambiente de frialdade em que vive. Após aula de ginástica, onde a professora pede sorrisos às alunas durante os exercícios, suas colegas conversam sobre livro que aponta passos para se viver melhor, manejar o estresse e ter controle emocional. Há referência à necessidade de exercícios físicos e boa dieta. Observam, com espanto, que o corpo de Carol não transpira. É um pequeno sinal de que seu corpo fatigado está em descompasso com o ambiente. Em visita a sua melhor amiga, em luto pela morte do irmão — subentende-se que em decorrência da AIDS —, ela só aceita beber um copo de leite. Estamos no final dos anos 80 e muitos viram a deterioração física pela qual passará Carol a partir dessa sequência de cenas iniciais como uma metáfora dessa epidemia.
Todd Haynes, um dos nomes mais importantes do cinema independente americano, era, nesse momento, fortemente associado ao cinema queer. Seu primeiro longa-metragem — Veneno (Poison, 1991) —, premiado em Sundance, foi um dos filmes que levou a crítica B. Ruby Rich a cunhar a expressão New Queer Cinema, imortalizada como título de seu artigo, publicado na Sight and Sound 2.5 (1992). A crise da AIDS, ao levar muitos cineastas a repensar a representação dos corpos e do comportamento sexual queer nos Estados Unidos de Reagan, se tornou um importante catalisador desse movimento. Veneno foi inspirado na obra de Jean Genet e contém citações de: Nossa Senhora da Flores (1943), O Milagre da Rosa (1946) e Diário de um Ladrão (1949). Entrelaça três histórias, apresentadas em épocas distintas, cada uma com uma estética própria. A mais próxima a Genet — a que contém o lirismo das rosas —, apresenta corpos homossexuais másculos, belos, violentos e confinados em uma prisão, similares aos retratados pelo dramaturgo em seu único filme, Canção de Amor (Un Chant d’Amour, 1950), assim como aos de Querelle — Um Pacto com o Diabo (Querelle, 1982), obra de Rainer Werner Fassbinder, adaptada do romance Querelle de Brest, publicado em 1947, por Genet. O editor James Lyons, importante parceiro criativo de Haynes, atua nesse segmento. Lyons foi uma das vítimas da disseminação da AIDS: conviveu por muitos anos com a doença, trabalhando com ativismo.
Sua memória é honrada em Last Address (2010), de Ira Sachs, cineasta que também tem o seu nome vinculado ao New Queer Cinema. Uma segunda história de Veneno mostra um salto libertário, tipicamente genetiano, de um menino, vítima de vários abusos, que mata o próprio pai e sai voando pela janela. A terceira parte mostra a trágica sina de um cientista com pretensões de tratar a neurastenia e melhorar a raça humana. Ele isola e desvenda os mistérios do fluido da libido, mas o bebe por engano. A partir de então, sua pele se transforma e ele passa a transmitir sua nova condição, que se releva mortal, por aproximação sexual. A mídia, sensacionalista, o rotula de assassino leproso. Podemos ver aqui alusão e crítica à representação da AIDS pelos meios de comunicação, assim como à culpabilização de um comportamento. A reação conservadora ao pesquisador tachado de criminoso parece ser justificada pela epígrafe do filme: “The whole world is dying of panicky fright” (“o mundo inteiro está morrendo de pavor”), mas não se pode esquecer e deixar de retratar o medo e a dor dos contaminados, perseguidos pela sociedade. É interessante observar que no primeiro filme hollywoodiano sobre a AIDS, Filadélfia (Philadelphia, 1993), de Jonathan Demme, o personagem acometido pela doença (interpretado por Tom Hanks) move processo contra a empresa que o demite, alegando que as lesões de sarcoma de Kaposi (câncer comum em doentes aidéticos) presentes em seu rosto foram o motivo de seu desligamento. Em ambos os filmes, há um sinal da doença no próprio rosto, a doença “está na cara”, estigmatizando, tornando o doente ainda mais vulnerável ao preconceito e às injustiças da sociedade.
Mal do Século, que tem roteiro original de Haynes, não retrata diretamente a comunidade queer. O mal que acomete Carol, ao contrário da AIDS, não mina o seu sistema de defesa, deixando-a vulnerável. É exatamente o contrário. A síndrome que desenvolve faz com que ela se torne hiperreativa, cada vez mais sensível ao seu ambiente, principalmente aos químicos nele presentes, até que não consiga mais o habitar. Dos sintomas inespecíficos iniciais — dores de cabeça, desânimo, cansaço, inapetência, transtorno do sono —, ela evolui para um desconforto respiratório progressivo. À direção de seu carro, um acesso de tosse inicia, de forma insidiosa, quando ela se vê envolta por caminhões, e se intensifica ao entrar em um estacionamento onde precisa percorrer trajeto vertiginoso para baixo (uma metáfora da sua deterioração). Ao conseguir uma vaga, sai do carro ofegante, com a respiração pesada, arquejante. Procura um médico, que não vê nada muito alterado em seu quadro. Ao tentar uma mudança em seu aspecto — um novo corte e a aplicação de um permanente no cabelo (o que é feito com produtos químicos) —, ela tem um sangramento. Há dilaceramento, ruptura dos limites entre seus meios interno e externo. Sua pele pálida e fria passa a sofrer inúmeras erupções. Sua intolerância alimentar aumenta, passa a apresentar vômitos. Seu corpo, cada vez mais fraco e emagrecido, pouco se equilibra, e ela se sente confusa e desorientada em sua própria casa, junto à sua família.
Nessa derrocada, Carol procura novamente médicos tradicionais. Um alergista comprova que seus sintomas são desencadeados pela multiplicidade de produtos químicos com os quais tem contato em seu ambiente. Considerações sobre a dieta são feitas. Suplementações de oxigênio se tornam necessárias. Afasta-se das amigas, deixa de cumprir eficazmente a sua rotina. Em seu mal estar, é bombardeada pela publicidade e pela mídia com notícias sobre ambientalismo, tratamentos e concepções alternativas do corpo. Após uma internação em decorrência de uma crise convulsiva precipitada pelo contato com produtos para dedetização, ela se vê incapaz de se adequar às transformações do ambiente e da sociedade em que está inserida e decide partir para um centro terapêutico alternativo, dirigido por uma espécie de guia, afastado da cidade, situado em um deserto. Aqui está o principal comentário político de Haynes nesse filme.
Em entrevista a Larry Gross, publicada na Filmmaker Magazine, ele disse ter realizado Mal do Século em resposta aos terapeutas New Age que propalam serem os doentes os causadores de suas próprias enfermidades, os responsáveis por seus próprios sofrimentos. Ele fala do seu espanto ao se deparar, nos anos 80, com gays contaminados pelo HIV à procura de gurus que literalmente os culpavam por sua própria doença e diziam que eles poderiam se sentir melhor simplesmente desenvolvendo o amor-próprio. Ao se instalar no centro terapêutico, Carol é recebida em uma cerimônia de boas-vindas, onde uma política de moralidade e policiamento do desejo é expressada. Sua vida e relações pregressas ficam em suspenso. Mesmo com as práticas e os grupos de ajuda, suas solidão e alienação só aumentam. Confinada, ao final, em uma habitação semelhante a um iglu, ela repete, com o semblante sofrido, em frente ao espelho: “Eu te amo. Eu te amo muito.” Em vão.
Em Velvet Goldmine (1998), seu terceiro longa-metragem, Todd Haynes voltará a direcionar a sua atenção aos corpos queer, que se mostrarão ágeis, purpurinados, transgressores. A vulnerabilidade, o sofrimento e as lutas das minorias serão destacados em filmes subsequentes, como em Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) e Carol (2015), denunciando o racismo, a intolerância e o preconceito da sociedade americana, em diferentes épocas. Mas os corpos de seus protagonistas serão mais firmes, nunca mais chegarão aos limites da vida como em Veneno e Mal do Século.
Criada em 2008 no formato de blog, a Multiplot! tinha a intenção de preencher lacunas no acervo crítico online em língua portuguesa. De 2008 a 2011, diversos dossiês de diretores foram publicados, cobrindo a filmografia completa de nomes como Werner Herzog, Anthony Mann, Max Ophüls, entre outros. Elevado a site em 2011, a equipe de críticos passou por mudanças e o site ganhou novo foco: coberturas de festivais, críticas de filmes em cartaz e de acervos e entrevistas com realizadores e assim seguiu por cinco anos e teve contribuição de redatores como Tiago Macedo Corrêa, Vladimir Lazo, Kênia Freitas, Fernando Mendonça, entre outros. Em 2016 o desejo dos redatores Pedro Tavares e Arthur Tuoto saiu do papel com ajuda do ex-editor Daniel Dalpizzolo. De lá pra cá a Multiplot se tornou uma revista e lançou cinco números. Hoje a revista é editada por Camila Vieira e Pedro Tavares e teve contribuições de nomes como Nadin Mai, Scott Barley, Adrian Martin, entre outros.
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Os dois dialogantes não haviam percebido a solidão que os rodeava. As salas de aula tinham ficado vazias, pelos corredores o silêncio se estendia como uma serpente. Sentado num banco, numa solidão que se tornava inoportuna por seu realce, Foción observava os gestos, as modulações da voz no desenvolvimento, a intensidade do olhar que viajava com as palavras. Ouvia como um espectador ocupado apenas com a reconstrução de uma imagem interior?
José Lezama Lima, Paradiso
Não há como abrir-se para um filme como Jauja (2014) fora do escopo da heurística do reconhecimento, a matéria fílmica sendo absorvida e amalgamada em minhas memórias, um processo de anamnese sensível, perdendo-se entre a realidade e a mitologia, o cinema como potência desestabilizadora não apenas metalinguística, mas também psicossomática, um fluxo de imagens que aos poucos me apodera fisiologicamente, uma matéria que resiste para além da morte, em um campo idealista que se estrutura por um viés materialista até atingir seu potencial transcendental. Há poucas palavras melhores para definir o cinema de Lisandro Alonso além desta: transcendental, a transposição de fronteiras, seja do retrato à fábula, do estático ao dinâmico, da matéria ao espírito, da imagem à vida.
O que associa a odisseia do engenheiro em busca de sua filha nos sertões da Patagônia no século XIX à derradeira sequência da jovem dinamarquesa retomando certos elementos anteriormente apontados no filme? Como esse conflito temporal por sua vez se associa ao subtexto colonialista do massacre indígena na Patagônia? No filme Carta Para Serra (2011), como o lenhador Misael se encontra com os outros personagens e como esse encontro metatemporal dialoga com sua metalinguagem constituinte? A mitologia do cinema de Alonso é oblíqua, rigorosa em sua execução, mas sempre nos escapa, permitindo lacunas, interstícios hermenêuticos que se encontram em constante expansão.
Ao ser indagado acerca da origem do título de seu filme Liverpool (2008), Alonso afirma que foi devido a uma mulher que ele viu pedindo dinheiro durante o concerto de uma banda cover dos Beatles chamada Sounds of Liverpool. Nas palavras do diretor, as imagens dessas duas coisas vieram juntas e se recusavam a ir embora. Ele fez assim uma associação entre Liverpool como uma cidade portuária e cidades portuárias na Argentina, chegando finalmente em Ushuaia, que possui um histórico com imigrantes ingleses. Conclui o comentário afirmando categoricamente que o cinema é sobre essas associações ilusórias. Seriam apenas associações no processo de confecção ou estas associações poderiam de alguma forma exercer uma influência definitiva na matéria? A transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens por um terceiro permite a apreensão de um intruso na torrente emocional e pessoal embutida em uma matéria particular?
É assim estabelecida uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem, esta existe simplesmente como representação do que retrata (seja na sua ontologia ou no seu valor narrativo) ou possui na sua constituição alguma propriedade que lhe confere esse potencial ascético, o deslumbre que ela provoca pode ser originado de uma simples abstração ou este vem de uma impressão da imagem no meu espírito? Essa dúvida pode até soar excessivamente metafísica, mas ela se mostra pertinente devido a uma característica facilmente percebida no cinema de Alonso: o deslumbre que este provoca não é proveniente pura e simplesmente de uma proeza estética (por mais que seus planos sejam cuidadosamente construídos e desenvolvidos) nem de um processo de identificação propriamente, tendo que o seu cinema se estrutura em uma lógica de distanciamento, existindo por si próprio, alheio a mim, em um regime epistemológico absoluto que parece ter um funcionamento fora da minha consciência. Se esse deslumbre não tem uma ontologia própria definida pelos predicamentos essenciais da nossa apreensão empírica na nossa constituição neurológica, como pode este apresentar-se de forma tão potente para mim? Como se dá essa transcendência de espectro senão pelas faculdades fisiológicas que os limites de minha mente estabelecem?
O cinema de Alonso se estabelece aí, nesse ponto de inflexão analítico, onde o que compreendo do que está sendo mostrado é subvertido em prol da sensibilização que essa matéria provoca. Se a ascese não é originada por meios convencionais, não aparentando ser sequer consequência daquele fluxo de imagens, ela deve surgir de algum outro lugar: de mim mesmo. A matéria do cinema em perpétuo devir, pois ela se altera conforme minha própria psicologia se transforma, partindo de uma ontologia muito particular que fundamenta a imagem como uma confluência do meu espírito com o espírito de quem a decupou além do evento que está efetivamente sendo mostrado. Daí surge a natureza conflitante do cinema, entre o real e o psicológico, este segundo partindo de duas origens distintas. Entre o racional e o empírico, uma estrutura aberta como um sintoma de rasgadura, onde algo me provoca arrebatamento não apenas pelo que me é apreendido de forma mais ou menos definida, mas também por aquilo que me escapa.
Filmes como Os Mortos (2004) e Liverpool (2008) partem de uma ambiência narrativa simples – a história de um homem fazendo uma jornada de volta para casa – para se estabelecerem como espetaculares romagens espirituais. Através do aspecto contemplativo das imagens, o cinema de Alonso se traduz como puro movimento, seja da câmera ou dos elementos efetivamente apresentados em cena. Dado o caráter conflitante das imagens de Alonso (entre o perfeitamente retratista e o arrebatamento fabulista), traduz-se uma aporia entre o incontestável e o transcendental. No ínterim da matéria, um sintoma fleumático de desestabilização, quando tudo que me é inicialmente tomado como banal ou puramente contemplativo se traduz como instável, fabular, despertando infinitas associações possíveis.
Se A Liberdade (2001) aparenta enganosamente partir de um viés documental, emulando a lógica baziniana de salvar o ser pela aparência através de um retrato fiel do seu cotidiano, a famosa cena final é aqui contestar o que há de objetivo na imagem. O que é realidade e o que é fabulação? O que me é proposto como garantia, o que pode ser definido como alicerce da imagem?
A Liberdade (2001) talvez seja o filme de Alonso em que essa investigação acerca da ontologia da imagem mais fortemente se associa com uma ontologia natural. O filme não aparenta intentar nenhuma mediação mais objetiva com relação às suas possibilidades temáticas, tudo é subordinado à fenomenologia. As possibilidades vão se acumulando, contradizem-se e se complementam, em um eterno percurso de elevação espiritual que vai se assimilando e se recontextualizando conforme progride.
O argumento para Jauja (2014) partiu da morte de uma amiga do diretor nas Filipinas. Alonso afirma que a provável maneira que ele encontrará para lidar com a perda de alguém querido é reimaginar esse alguém no tempo e espaço ao seu redor, preservando de alguma forma a sua existência. Partir da matéria para o infinito, com a fé de que o gesto persiste para além da sua fisicalidade.
O nome do cineasta catalão Albert Serra é citado já nos primeiros postulados sobre slow cinema. Matthew Flanagan, em 2008, ao apontar as bases estéticas desse cinema (categorizado, em 2003, por Michel Ciment), alude aos longos planos utilizados por Serra na estruturação da narrativa de seus segundo e terceiro longas-metragens — Honra de Cavalaria (2006) e O Canto dos Pássaros (2008) — como exemplos de um dos principais traços de uma corrente de cinema caracterizada pela contemplação da passagem do tempo, enredo enxuto e composição formal rigorosa. A longa caminhada pelo deserto dos três reis magos em busca do Messias recém-nascido em O Canto dos Pássaros é referida como típica, assim como a redução da grandiosa e aventuresca obra de Cervantes a uma pequena variação abarcante de um trecho da vida de Quixote, quando, envelhecido, contempla os ideais da cavalaria e a perspectiva de seu próprio fim em Honra de Cavalaria. Parte da galeria de personagens históricos, literários ou míticos presentes no cinema de Serra, como Dom Quixote, Sancho Pança, os reis magos e Casanova, está em franca e lenta trajetória rumo à morte. Figuras tidas por eternas, como o Drácula e Jesus, cruzam alguns de seus caminhos. Em sua última e melhor obra, A Morte de Luís XIV (2016), que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes e recebeu o prêmio Jean Vigo no mesmo ano, é o agonizante fim da figura real o foco de sua atenção.
Em seu célebre ensaio Ontologia da Imagem Fotográfica, André Bazin expõe bases e referências de sua complexa concepção de realismo (tantas vezes citada e revitalizada nos textos sobre slow cinema): a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo; a busca da expressão dramática no instante (não apenas a expressão das formas) e a constatação de que a imagem das coisas é também a de sua duração (o que o cinema torna possível) são algumas delas. Ressalto que o termo “real” será usado neste texto sobre a obra de Serra em referência ao rei e à realidade/verdade que se busca retratar com realismo (na maior parte das vezes, sem a intenção de gerar ambiguidade). No referido ensaio, Bazin escreve que “Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun.” Ao contrário dos faraós, soberanos também identificados com o sol, o rei francês não manifesta o desejo de conservar sua aparência na própria carne. Amante das artes e criador da sua própria imagem de poder, cerca-se em sua corte de renomados artistas, como Charles Lebrun, que, além de retratar o rei em seu apogeu, é responsável, junto ao paisagista André Le Nôtre e os arquitetos Louis Le Vau e Jules Hardouin-Mansart, pela criação de um de seus maiores símbolos de seu poder: o Palácio de Versalhes. O compositor Jean-Baptiste Lully, o dramaturgo Molière e o escritor Louis de Rouvroy — o duque de Saint-Simon — também frequentam a corte. É a partir das extensas Memórias de Saint-Simon, registradas com obstinação no intuito de fixar a realidade de um tempo no papel, que Serra e o produtor Thierry Lounas adaptam o roteiro de A Morte de Luís XIV, debruçando-se na análise dos seus últimos dias, vividos em 1715, quando o rei contava com 77 anos.
Seus anos de juventude, dedicados à construção da própria imagem, são muito bem retratados no cinema em O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), filme de Rossellini, neorrealista preferido de Bazin. Ciente de que aparência e poder estão intimamente ligados, o rei constrói cenários faustosos e os decora com pompa. Com intenção de manter a nobreza controlada, cerca-se, em Versalhes, de cortesãos de quem exige lealdade, etiqueta, maquiagem e bons figurinos. Protagonista absoluto, submete seus atores secundários e figurantes a um roteiro exaustivo e rigorosamente decupado, onde cenas de suas aparições públicas são intercaladas pela exaltação de sua rotina em incansáveis cerimônias palacianas. Mise-en-scène real filmada por Rossellini.
Em A Morte de Luís XIV, o cenário, fotografado com elegância por Jonathan Ricquebourg, já está rigorosamente composto. O quarto real do Palácio de Versalhes é reconstituído e iluminado com velas, o que confere sobriedade ao ambiente recoberto de ouro e sumptuosidade, onde se sobressaem quadros e um busto de um rei jovem (sabe-se que Luís XIV teve um busto esculpido em mármore por Bernini pelo qual nutria grande apreço) e o ruído de um relógio, assinalando a inexorabilidade do tempo. Em seus filmes anteriores, Serra havia trabalhado com atores não-profissionais para dar a ilusão de realidade e também por uma escolha moral, com a intenção de se manter afastado do sistema capitalista de produção fílmica (resolução típica dos realizadores do slow cinema). Aqui, em seu primeiro filme falado em francês, cria um espaço tão cheio de detalhes e realismo que favorece ainda mais a assombrosa interpretação de Jean-Pierre Léaud (admirado por Serra por sua pureza e incorruptibilidade) de um rei em agonia após extenso reinado. O ator, que estreou no cinema como um menino em Os Incompreendidos (1959), filme de Truffaut dedicado à memória de Bazin, impressiona na caracterização da velhice — nos tremores e trejeitos de um rosto enrugado, com grandes bolsas sob os olhos e emoldurado por uma espantosa peruca grisalha, nos típicos ruídos feitos com a boca, na rabugice e teimosia em manter o rigor na etiqueta e no cerimonial (o que é observado até o final) — e, principalmente, na manifestação do sofrimento decorrente da progressão de uma gangrena na sua perna esquerda. A expressão da dor, a gemência, a ofegância, os gritos e súplicas em voz débil e trêmula são gigantescos. Tanto o sublime quanto o grotesco são caros a Serra. O sorriso do rei é visto apenas um vez, ao brincar com seus cães logo após um passeio pelos jardins do palácio na sua única aparição em cenário natural durante todo o filme. Sutis sinais de contentamento também surgem ao escutar os oboés e tambores em comemoração ao dia de São Luís, quando uma imagem da paisagem francesa é mostrada através de uma janela. No mais, não se sai do quarto, da intimidade real. Serra não tem intenção de fazer comentários políticos ou sociais. A moral cortesã apenas transparece sutilmente em momentos em que o rei recebe assessores pretendendo angariar fundos de forma suspeita ao propor edificações ou quando ele pergunta detalhes íntimos das cortesãs ao seu médico, que acaba comentando sobre a nudez e o comportamento de suas pacientes.
.Os médicos são as principais figuras em torno do rei, assim como Blouin (Marc Susini), seu fiel valet de chambre. Luís XIV confia na ciência. O cargo de Primeiro Médico do Rei, ocupado por Fagon (Patrick d’Assumçao) é de grande prestígio na corte. Maréchal (Bernard Belin) é o cirurgião que o acompanha. Valem-se de unguentos, faixas, massagens, considerações sobre a dieta na tentativa de tratar a doença do rei. Frente à inocuidade de tais medidas, Blouin sugere a intervenção dos médicos da Universidade de Paris. Fagon rechaça a ideia, argumentando que, segundo Molière, os médicos são mais perigosos quando em grupo. Molière foi um crítico feroz da classe médica, satirizada em sua célebre peça O Doente Imaginário (1673), dedicada pelo dramaturgo a Luís XIV. Serra não se apropria do escracho ou mesmo da crítica, mas de uma fina ironia e observação, que torna por humanizar os médicos em seu erro. Não há má intenção, Fagon e Marechal permanecem o tempo inteiro junto ao rei e são solidários ao seu sofrimento, mas hesitam no diagnóstico e na tomada da conduta que poderia se mostrar resolutiva: a cirurgia na perna gangrenada do rei. Os médicos de auditório — os da Universidade de Paris na definição de Fagon — examinam, enfim, o rei, assim como um charlatão de Marselha. A sangria proposta pelos primeiros e o elixir preparado pelo segundo também não surtem nenhum efeito. A putrefação, a febre, a dor e a náusea desfiguram o rei.
Presença constante no aposento real é também a da envelhecida Madame de Maintenon (Irène Silvagni), a esposa secreta de Luís XIV, cujo nome ele pronuncia ao final de um plano longo, estático, esteticamente perfeito, onde sua imagem quase inanimada nos comove ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor de Mozart. Ao pressentir a proximidade de sua morte, chama também seu pequeno herdeiro, o futuro Luís XV, para lhe aconselhar a evitar construções, guerras e a se aproximar da religião. Há tempo e espaço para arrependimentos. Le Tellier (Jacques Henric), padre jesuíta, confessor de Luís XIV, é igualmente uma personalidade estimada: é à sua ordem que Luís XIV deseja que seu coração — único órgão a ser mumificado — seja entregue. Após sua morte, o corpo de Luís XIV é cortado e examinado em partes que não correspondem a sua figura. Na necrópsia do rei, a imagem que se sobressai é a do pesar de Fagon.
Apesar de ter uma gênese conceitual apontada no pensamento de Bazin e no cinema europeu moderno surgido no pós-guerra, o slow cinema não é uma simples continuidade do neorrealismo. O uso da tecnologia digital torna o método de fazer filmes distante do purismo. Serra acumula centenas de horas de filmagens, usando várias câmeras digitais. É apenas durante a edição que a forma de seu filme começa a surgir, transformando-se no processo. Particular de Serra é também a inspiração na literatura, de onde capta a essência de um evento vital, de uma narrativa. Registros históricos, memórias e imagens eternizaram a vida e a morte de Luís XIV. O quadro que o imortalizou no campo pictórico foi realizado por Hyacinthe Rigaud e mostra sua imagem envelhecida, porém altiva. O filme de Serra, com seus longos planos contemplativos dos últimos e penosos dias de um rei interpretado de forma tão genuína por Léaud, nos dá a melhor representação da figura real vulnerável, mortal, tomada de humanidade.
Tsai Ming-liang conheceu Lee Kang-sheng, seu principal colaborador, em um arcade de jogos eletrônicos (cenário principal de seu primeiro longa-metragem para cinema, Rebeldes do Deus Neon, 1992) no final dos anos 80, quando o último trabalhava na manutenção das máquinas. Nas vésperas do início de uma grande parceria, que iria render mais de 10 longas metragens e alguns curtas ao longo de mais de 20 anos, Lee não era ator e Tsai mal havia começado sua carreira.
A gramática cinematográfica de Tsai Ming-liang é quase compartilhada com muitos cineastas que ascenderam nos anos 90 e início dos anos 2000 e que ficaram conhecidos como integrantes de um slow cinema. Uma tendência contemporânea feita por diretores com afinidades pelo plano longo, por uma montagem que à primeira vista era desprovida de artifícios, por não atores e pela escassez de trilha sonora não diegética. Realizadores que priorizam um novo tempo com a imagem em movimento, tais como Lisandro Alonso, Apichatpong Weerasethakul, Kelly Reichardt, Naomi Kawase, Béla Tarr, Pedro Costa e James Benning, são alguns dos principais personagens desse cenário cinematográfico. No geral, são filmes que se utilizam das ferramentas apresentadas para desenvolver um cinema que diminua um senso de narrativa clássica. O slow cinema* prioriza outro tipo de ritmo com as imagens, um que não chegue às conclusões explícitas e que nos coloque a vagar pelo plano em um contato mais próximo e corporal com aquelas imagens, como se estivéssemos lá, experimentando o tempo ao lado dos personagens.
Tais cineastas compartilham desse interesse, mas de maneira alguma seria possível reduzi-los à dimensão de suas ferramentas cinematográficas. Não nos cabe diluí-los a uma investigação desvinculada dos efeitos que essas escolhas adquirem no projeto individual de cada cineasta. No caso do cinema de Tsai Ming-liang, o esgarçamento do plano longo, o ritmo mais contemplativo e quieto é direcionado ou, até mesmo, construído em função da corporeidade de Lee Kang-sheng. O não-ator fez urgir a necessidade da invenção de uma linguagem.
O próprio Tsai Ming-liang chegou a admitir a importância do ator para a composição de seus filmes, afirmando um desejo em não desviar seu olhar do rosto de Lee**. O impacto de um encontro reverberaria por toda a filmografia. A recorrente falta de expressão no rosto do ator conduz o espectador para um caminho não óbvio pelo cinema de Tsai Ming-liang.
No cinema, já existiram casos de uma parceria diretor/ator com um mesmo personagem ao longo de vários filmes, entretanto, o caso de Tsai com Lee se destaca tanto pelo número de filmes em que o ator/personagem aparece, como pela abordagem de pouquíssimos diálogos por parte do protagonista – em que as situações muitas vezes são apresentadas com ele imóvel em cena ou fazendo gestos corporais, à primeira vista, sem sentido aparente. Filmar o ator se tornou a marca do diretor; Lee é sinônimo para o cinema de Tsai.
O estilo de um cineasta foi adequado ao corpo de um ator. Tal corpo se tornou a marca de uma cinematografia por mais de vinte anos, portanto a experiência de olhar se torna um caso exemplar na história da sétima arte. Do jovem Lee Kang sendo um jovem adulto carregado de fúria juvenil em Rebeldes, passando para o adulto cada vez mais melancólico de Viva o Amor (1994), ao morador de prédio solitário de O Rio (1997) que se torna ator pornô em O Sabor da Melancia (2005) e que termina (?) como pai e morador de rua no angustiante Cães Errantes. Dessa maneira, o cinema de Tsai registra uma verdadeira experiência de vida de um rosto (e corpo) masculino inserido em um contexto urbano.
Em geral, os personagens de Tsai estão fora de ritmo com a paisagem urbana, sempre se colocam em uma espécie de não sintonia com a vida na cidade. Muitas vezes, são marginalizados ou possuem empregos banais que os fazem sentir o peso do isolamento que o capitalismo contemporâneo é capaz de proporcionar. Personagens que sempre parecem à beira de entrarem em colapso. A desestruturação familiar é um tema recorrente, bem como a insatisfação sexual e as condições precárias dos menos abastados. Tsai explora tais temáticas a partir do corpo, em direção aos gestos. Há algo que escapa de um sentido unilateral. Existe sempre uma transbordação do quadro, uma potência que é própria do gesto.
Mas há dois tipos de gestos no cinema do autor. Um que só se revelou inteiramente em Cães Errantes, um gesto de sua imagem enquanto ato. O outro é relativo à Lee, ao seu corpo no cinema, gestos expressos enquanto potências que extrapolam as dimensões do quadro. Tratemos do primeiro, por ora.
Indo de Rebeldes até No No Sleep, Tsai buscou um afrouxamento de sua narrativa em pouco mais de vinte anos, a criação de um ritmo que buscasse dentro de suas cenas sua própria vida, iniciando em si e colocando em si um ponto final ao cortar para uma nova cena. Em meio a elipses temporais ou cortes que interrompem a cena para outro contexto de personagens ou cenários, Tsai buscou criar imagens que se erguem por si, interessando bem mais ao realizador o presente de tais momentos e não sua união em prol de subtextos narrativos.
Em Cães Errantes, é possível ver esse processo em estágio bem avançado e sendo totalmente abarcado em sua duração fílmica. Sua estrutura é simples: Pai (interpretado por Lee), filhos, e ocasionalmente uma figura feminina (a mãe?), fazem diversas atividades pela Taipei moderna. Em situação de extrema miséria, o pai trabalha embaixo da ponte, enquanto os filhos exploram a praia, o supermercado. São cenas de um único plano e que não são difíceis de serem descritas: o pai se alimenta, as crianças e o pai escovam os dentes, o pai trabalha como anunciante de imóveis. Enquanto gesto fílmico, levando em consideração a imagem enquanto ato, Cães é semelhante aos primeiros filmes dos irmãos Lumière. Tenhamos em mente A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Trem a Ciotat (1895) que existem unicamente em um plano, potencializando a experiência da imagem em movimento pela força embutida nele e não por um truque de montagem. O interesse desses filmes é o registro de uma ação com a menor quantidade de artifícios possíveis. Portanto, o acontecimento existe, é capturado, e o filme cessa de existir ao seu término. Existe a excitação pelo dispositivo cinematográfico como mídia capaz de captar diversos gestos em movimento, em reproduzir banalidades como pessoas saindo de uma fábrica, trens chegando em estações, etc. A imagem enquanto gesto em Tsai caminha para uma direção cujo enfoque varia de cena em cena. O gesto de seu cinema desenvolveu-se rumo aos pequenos acontecimentos, às energias próprias dos gestos corporais embutidos, o que leva ao interesse por outro tipo de gesto.
Ao redimensionar seu cinema ao corpo de Lee Kang, Tsai conferiu aos gestos do corpo do ator, bem como os de outros autores, o motivo condutor de seu cinema. Partindo do esgarçamento temporal enquanto ferramenta que potencializa as emoções gestual, Tsai Ming-liang fez com que a quietude de seus filmes fosse experimentada sob a presença corporal de seu protagonista.
Em Rebeldes, Lee Kang não tem mais que algumas linhas de fala ao longo de mais de 100 minutos. Sua presença como adolescente frustrado, minado por não ter o que deseja (algo que nunca assume uma condução explícita), o corpo dos outros, em especial o de Ah Tze (Chao-jung Chen) – ser que se porta à margem do universo de Lee, de suas frustrações sexuais e sociais. Em um gesto conflituoso de fascínio e repulsa/inveja por Ah Tze, Lee destrói sua moto e picha “AIDS” na sua lateral. O que se segue são imagens de um corpo em ebulição (em contrapartida ao seu caráter reservado ao longo da narrativa), queimando em sua própria alegria secreta de apreciar seu rival descobrindo o estrago causado por um sujeito que lhe é oculto.
Libertar-se por meio dos gestos íntimos e expressivos na imagem. Nesse momento, tais gestos não são exclusivos do personagem; são indícios de um arcabouço mais amplo, de um imaginário relativo a uma sensibilidade própria de adolescentes revoltados e entediados. O gesto cravado no corpo, quase livre de roupas, no intuito de se colocar para além de uma realidade que exige a dominação desse corpo e que só o liberta no momento dessas pequenas “vitórias”, por mais ambíguas que elas sejam, pois o corpo não pode ser inteiramente reduzido à significação clara e exata. Tal gesto não surge no intuito de “cena chave” que joga a narrativa rumo a novas direções. A aparição do gesto se dá mais em um contexto que retira o corpo da dimensão em que ele é frequentemente inserido, nesse caso, uma rotina entediante, e o joga em uma realidade nova: a alegria efêmera. Tal momento inicia e termina em si, com a mesma estrutura estilística, sendo uma espécie de suspiro do próprio filme. O cinema de Tsai Ming-liang é carregado de momentos como esse.
Corta-se para o corpo do mesmo ator em O Rio (1997), dessa vez, se debatendo em desconforto e angústia na forma de uma dor no pescoço que vai chegando a proporções cada vez mais alarmantes. Recorre-se à ajuda espiritual (seria obra de um espírito invasor?), bem como a médicos convencionais em uma tentativa em vão. Mas o filme não é apenas preocupado com Lee, sua história corre em paralelo com as narrativas do pai – personagem que busca conforto em flertes com outros homens em saunas – e da mãe – que se relaciona em seus momentos livres com um diretor de vídeos pornôs. Três histórias que mal se cruzam, que existem como núcleos isolados de uma família instável.
Em determinado momento, Lee vaga pelo hotel com sua habitual dor de pescoço, com a cabeça em espasmos nervosos, até encontrar uma sauna. Ele caminha pelos corredores escuros com homens saindo e entrando, quase como uma realidade paralela ou um deslocamento desnorteado, até que ele entra em uma das salas e se senta. De olhos fechados, ele é tocado por uma mão. Em um primeiro momento, com dor e receoso do contato, ele hesita. Com os minutos se passando, vai se desenvolvendo uma relação sexual quando a mão começa a acariciar o peito de Lee e a masturbá-lo. Revela-se que é o pai de Lee no final da cena, fato que ambos desconhecem até então. A dor vai se transformando em prazer e, no final, tem-se a imagem de uma Pietà secularizada do pai segurando seu filho. O gesto novamente escapa a Tsai Ming-liang, vai em direção a uma cultura visual mais ampla que o filme. Entretanto, se opera outro gesto nesse momento: a imagem funde duas narrativas distintas do filme, a dor do personagem e o desejo do pai por corpos masculinos. O filme entrelaça tais dimensões de mundo, separadas à princípio, mas que se imbricam em uma nova realidade imagética. O plano longo, que antes estava à serviço específico de um dos três personagens, agora brinca com eles em suas particularidades em prol da criação de um novo sistema sensível entre esses corpos.
Algo semelhante ocorre em Viva o Amor (1994), onde em meio a encontros e desencontros em um apartamento à venda, três estranhos se esbarram em um triângulo amoroso nunca inteiramente concretizado, apesar de dois deles fazerem sexo constante nesse espaço neutro. Desenvolvem-se momentos ora irônicos, ora íntimos entre eles, que decidem ocupar tal casa como refúgio de suas vidas. Apesar do filme nunca inteiramente definir do que eles fogem. Entre rotinas marcadas por empregos banais (a personagem feminina anuncia imóveis) e fugas para o apartamento vazio, os personagens pouco revelam no contraste do espaço público com o privado. Como imagem, o filme coloca a disparidade dessa duplicidade quando sua protagonista caminha por várias minutos em um parque durante o amanhecer da cidade – onde pessoas começam a sair para as ruas, carros começam a surgir nas avenidas –, em determinado momento a câmera solta-se da personagem e filma a cidade acordando, para segundos depois voltar à protagonista. Ela se senta em um banco e começar a chorar diante de tal paisagem. Durante vários minutos, ela chora, soluça, fuma um cigarro e volta a chorar.
O gesto da imagem aqui, consiste em unir duas formas de cinema que até então estavam separadas. Ao diluir-se, ao permitir que o íntimo seja despertado pelo espaço público por vários minutos, Tsai Ming-liang desmonta sua realidade e a reconstrói em uma nova forma de vida. Seu gesto liberta-se de um registro simples e desinteressado para uma potência emocional – aquilo posto para fora do eu – que transborda do gesto de chorar.
Um cinema do gesto que chega ao seu ápice na sequência final de seu derradeiro longa metragem, Cães Errantes: observam-se dois personagens por cerca de 14 minutos sem cortes. Cena de pouca movimentação e com gestos escassos. A mulher olha para fora do quadro e Lee se posiciona atrás dela durante todo o tempo de duração do plano. Ele busca tocá-la, desejando um contato físico com o corpo dela, se sentindo visivelmente nervoso em como proceder e vai andando lentamente em direção a ela – que mantém sua visão para fora do quadro. Em mais de dez minutos, a cena não se torna mais do que é: um homem buscando se aproximar de uma mulher.
O leitmotiv de um cinema é redimensionado em sua simplicidade: o desejo pelo toque, o gesto receoso ou atrofiado de um personagem que nunca foi, sempre esteve à margem de seus sentimentos. Um momento entre pintura e cinema, entre estabilidade e movimento. A persistência de uma imagem com pouca movimentação em um único plano tende a suspender o tempo inserido nela, ocasionando uma imagem carregada de estranhamento em seus movimentos. A experiência estética da imagem em movimento infecciona-se pelo ato de estar diante de uma pintura. Curiosamente, a figura da mulher está encarando uma pintura paisagista na parede. A experiência cinematográfica de Tsai é posicionada no gesto da mulher em observar passivamente a paisagem bucólica, em ser afetado por ela a ponto de chorar, em paralelo à busca incessante de seu protagonista pelo toque. Nesse momento, o gesto da imagem se confunde com o gesto simbólico de uma cinematografia-protagonista, reconfigurando um encontro que não poderia resultar em outra coisa que não um fim. O confronto de duas realidades em resultados, sempre, não claros. Ao final, só resta a imagem na tela de concreto, ambígua, persistente, à mercê do tempo. Fim do cinema.
Ver FLANAGAN, Matthew. Towards an Aesthetic of Slow in Contemporany Cinema. 2008. Disponível em http://bit.ly/2BKiufQ
“Meus filmes são sobre pessoas que não tem um porto seguro.”
Kelly Reichardt
Das principais bases narrativas do cinema de gênero, de trabalhar com estruturas consagradas e arquétipos de personagens para criar mundos cujas ideias se renovam justamente no rearranjo de elementos conhecidos, é o controle de ritmo. Estabelecer em montagem o exercício de ritmo na qual um filme transcorre é das características do terror, da ficção-científica, do faroeste, do suspense. A suspensão da tensão até a catarse.
E quando essa velocidade não propõe uma progressão de eventos, e sim acumulados? O que acontece quando o tempo da ação de gênero não é o que interessa, mas as reações psicológicas dos personagens nela inseridos? O cinema de Kelly Reichardt busca algumas dessas questões à medida que controla o tempo com precisão para alterar as dinâmicas de poder e especialmente relações nos personagens que cronica. O movimento, a ação, como matérias-primas e alteradores de mundo dos personagens de Reichardt como em qualquer filme de ação, de terror, ficção-científica – mas a forma, e principalmente o tempo, em que as ações transcorrem se pautam mais pelo acúmulo de situações e pela reflexão através da mediação entre sujeitos e menos pela urgência de objetivos. Se cineastas como John Woo e John Carpenter estruturam seus contos a partir da urgência da informação, da gravidade das situações, Reichardt estrutura através das trocas pessoais, das conversas ao pé de ouvido. A montagem privilegia silêncios, porque o movimento é raro e, por isso, tão importante. Mas como nos pares mais tradicionais do gênero, é o deslocamento espacial que faz o status quo ser alterado.
Ao longo de sua filmografia, Reichardt usa da estrutura do trânsito, do road movie, desde sua estreia em River of Grass (1994) – e de certa forma todos os filmes da norte-americana são filmes de estrada, sediando suas ações em fronteiras e lugares a pertencer e esquecer. Entre Wendy e Lucy (2008) e Certas Mulheres (2016), seu filme mais recente, a diretora enveredou-se pelos seus discursos mais frontais na aproximação com uma tradição de gênero no cinema: o faroeste de travessia em O Atalho (2010) e o thriller político em Movimentos Noturnos (2013).
O contexto histórico de O Atalho já é dado pela cartela inicial, bordada como as roupas das mulheres do comboio que acompanhamos. O Oregon de 1843 ainda é um ambiente hostil, deserto, e já conhecemos o comboio com eles perdidos ao tomar o atalho de Stephen Meek do título original. O espaço já fala por si nos quadros 1.33 de Reichardt, mas a diretora aposta na bela fusão que mescla a água do rio com o deserto para antecipar a escassez do recurso durante a narrativa – e também para demonstrar a dimensão fantasma que opera o mito do cowboy desbravador, do pioneiro, aqui uma miragem fervendo à distância. O processo de andar, a sobrevivência, retornar ao rumo com promessa de desbravamentos torna-se o objetivo primário.
É como se os filmes de Reichardt fossem localizados nas elipses do gênero, no procedimento até a ação. O ambiente árido tende à repetição cujos labirintos trazem uma lisergia que atravessa o filme e, para desafiar as percepções desses ambientes similares, acompanhamos a câmera registrar as poucas particularidades de cada espaço através da escala, da altura de quando existe uma montanha ao redor. Vemos escalas diferentes, os homens menores no quadro vasto de terra, pequenos diante de seus objetivos que em discurso abrangem tanto essa conquista – a impotência. Não é um libelo de conflito humano vs. natureza, como as descidas ao inferno de Herzog em Aguirre (1972) e Friedkin em Comboio do Medo (1977). Reichardt é atenta às dinâmicas pessoais que desabrocham de uma jornada para o nada que evoca mais um cansaço, um esgotamento do tempo, do corpo, do que necessariamente uma febre.
Portanto a escala de espaço é fundamental para intuir o comando do comboio. Temos os homens que criaram essa grandiosidade pra si através do discurso oral (como Meek) ou através da retórica civilizatória (como Gatlesby). As mulheres sempre estão à distância, ouvindo as conversas decisivas em baixa voz, nunca tendo acesso ao poder de decisão, passando a água de mão em mão enquanto os pioneiros discutem seus rumos. O valor revisionista do faroeste de travessia da diretora e do roteirista Jon Raymond aqui é também na destruição do mito do cowboy pioneiro e especialmente nas mortes utópicas de desbravamento. Emily, a personagem de Michelle Williams, começa como uma das mulheres cujo papel resume-se a costurar e dar apoio aos maridos e demonstra um senso de coletividade mais forte que de qualquer homem ali.
Isso logo causa a dúvida em Meek, com seus contos de glória, o homem dos mitos, dotado de histórias e alteradores de realidades passadas, mas que não se prova na ação. Com a chegada do elemento mais forte do extracampo misterioso do filme, o indígena vivido por Rod Roundeaux, Emily encontra um semelhante a quem respeita para conduzir. Não por acaso, quando o personagem faz um de seus rituais religiosos, a dúvida é colocada no mito do indígena por Meek, o homem que perpetua os mitos de cowboy. A aproximação que Reichardt faz é do relato como algo religioso, que dá forma à curiosidade, mas que traz respeito e confiança apenas quando aliado à capacidade de agir em coletivo.
O indígena, surgindo como o verdadeiro íntimo da terra, quem sabe das rotas, é quem gera a empatia de Emily não apenas pela disposição para a ação como também pela empatia de ambos serem vítimas da incomunicabilidade com os homens brancos – ele pelo idioma, ela pela distância espacial das conversas de decisão. Como em Wendy e Lucy, a protagonista testa seus limites no trânsito, na impossibilidade utópica – antes pela crise financeira, agora pela inexistência da conquista de assentamento. Emily representa assim esse arquétipo do faroeste, do protagonista cuja disposição à ação lhe traz destaque diante de um grupo, para Reichardt desconcertá-lo ao colocar a mulher no comando. É sobretudo uma mudança no registro do tempo – como Emily vê o mundo, paciente, tomando cuidado, de olho nos arredores e sem desejos de resoluções no cano quente do revólver.
As estruturas de poder são questionadas de forma mais direta quando surge a travessia das diligências, o mais próximo de sequência de confronto e ação que Reichardt concebe, objetivo palpável de superação de um obstáculo. É quando surge a primeira câmera na mão de todo filme, como se a diretora e o fotógrafo Christopher Blauvelt sinalizassem a urgência sentida nessa cena em detrimento da jornada lisérgica do tédio da sobrevivência dos personagens abandonados pelos mitos de Meek à própria sorte e competência diante das adversidades.
Se a passagem de bastão da condução da diligência é o que importa a Reichardt, não a interessa uma solução concreta e, portanto, a busca não termina com o desfecho prometido, mas com a esperança de sobrevivência. Uma árvore que sinaliza a presença de água, longe do oásis prometido por Meek, suficiente em manter a dúvida do destino por perto. É quando o mito baixa a guarda para quem age, para Emily, que a partir daí dá as ordens para seguir ou não a jornada – um poder adquirido pela sobrevivência, pelas desventuras, não pela conquista, mas pela capacidade de diálogo com a terra, com o outro. Quando percebe que a liderança do comboio está em boas mãos, o indígena parte para sua jornada pessoal, entendendo que a empatia pode ser agradecida apenas com uma troca de olhares, de pessoas cujo laço emocional fora forjado na morte de utopias construídas pela tradição oral dos pioneiros, mais interessada em perpetuar opressões masculinas brancas que em transmitir a cultura adquirida pelos corpos e mentes que por ali passaram antes de nós.
Já em Movimentos Noturnos, a aproximação com o thriller político é mais convencional, mas não por isso menos potente: a estrutura do roteiro foca na apresentação de três personagens com o objetivo claro de explodir uma represa como ato de ecoterrorismo. Os diálogos do roteiro de Reichardt com seu parceiro habitual Jon Raymond focam tanto no cotidiano quanto na exposição, com informações diretas entre os personagens para permitir a câmera enfatizar o conflito não-dito: a paranoia do personagem vivido por Jesse Eisenberg.
A primeira hora se concentra nos detalhes do atentado com foco procedural. Dena é a mais jovem, Josh o líder introspectivo, e Harmon o mais experiente. As dinâmicas de relação entre os personagens são mostradas especialmente por olhares, uma vez que o texto é quase devoto apenas de trocas sobre o planejamento do atentado. Enquanto Josh maquina os planos e não faz questão de interações sociais mais explícitas, Dena lida com a provação da mulher no mundo – e na cena da compra de fertilizantes precisa se provar diante dos homens mais velhos para executar o plano.
O ambiente americano de espaços vazios, como em Old Joy e Wendy e Lucy, traz a fantasmagoria presente nas cidades registradas pela diretora, mas aqui no registro de suspense – o que era calmo e de certa forma pacífica nesses dois filmes vira uma tensão, instaurando-se como penumbra no escopo solar do filme. O respeito de Josh por Dena medido pela forma que ela se preocupa com detalhes, um sinal de paranoia que ditará a segunda metade.
O tempo da sequência da explosão é o mais próximo de um ideal consagrado de suspense, investindo em conflitos baseados nos erros não-previstos, na capacidade de improvisação dos personagens e em uma atenção aos rostos apreensivos enquanto a situação de risco é instalada. A diretora organiza essa sequência com rigor, privilegiando o ponto de vista do barco dos personagens e insistindo nele para estabelecer uma tensão que deriva justamente da distância espacial entre conflitos. Interessante ver a diretora e o fotógrafo Blauvelt se enveredarem pelo terreno do mais franco suspense e sair bem dele, quando sua carreira experimentava com a observação dos dramas cotidianos.
É após a explosão, ademais, que Reichardt sinaliza timidamente que está interessada mais nas consequências do ato: o plano fixo dos três personagens andando no carro, durando por mais de um minuto, para focar no alívio de cada um após o objetivo cumprido. A dinâmica de planos mais ágil em relação a Old Joy, Wendy e Lucy e mesmo O Atalho é o que dita as sequências que culminam nesse clímax. É quando Reichardt puxa o tapete do espectador ao encerrar o conflito em uma hora de filme que sua câmera revela as intenções apenas através do tempo: inicia a segunda metade apenas com um travelling lento, por cerca de um minuto e meio, contemplando os objetos da casa de Josh – que não tínhamos visto até então.
A concentração no estudo psicológico de Josh torna difusa aquela concisão da montagem até o atentado, porque a visão de mundo agora é paranoica, misteriosa, como a do personagem que agora acompanhamos. Não existe a visão de mundo compartilhada do início, o registro agora é do cotidiano que sucumbe à paranoia, da ansiedade de não encontrar o outro, de mitos se instalando como propostas narrativas pela pura falta de comunicação.
A opção pelo díptico revela muito desse tempo dilatado proposto ao gênero por Reichardt. O gênero é responsável pelos mecanismos narrativos na primeira metade e o tempo dilatado da diretora pelas reações da segunda. Se existem dúvidas entre a potência da conciliação do chamado slow cinema, com suas elipses e ritmo cênico difusos e a agilidade do cinema de gênero, Reichardt as encara com a propriedade de quem entende que ambas as vertentes teóricas dependem essencialmente do rigor formal, do controle do tempo narrativo – e quem as domina consegue transitar entre dispositivos narrativos com personalidade e desafios recompensadores.
O cinema contemplativo em máxima. Extremismo estético, filosófico e existencial. Béla Tarr bebe da tradição tarkovskiana, uma das grandes precursoras do slow cinema, mas seu trabalho aprofunda essa tradição ao bifurcar novos caminhos para lançar e discutir questionamentos sobre a condição humana e, aproveita esse momento, para polir sua estética cinematográfica. Mais tarde, impulsionou outros cineastas a utilizar várias facetas do cinema enquanto estética da contemplação, a exemplo do cinema de Gus Van Sant e Jim Jarmusch.
O diretor teve uma carreira curta e concisa. Sua obra pode ser “dividida” (entre aspas, porque não se trata de uma cisão profunda) em dois momentos: o começo de sua filmografia (onde há uma preocupação maior com o realismo e a análise sobre as condições sociais e políticas da Hungria, com filmes que se assemelham à proposta da new wave húngara) e, mais tarde, quando seus filmes se entregam completamente ao slow cinema: takes longos, minimalistas, mais alertas em relação ao niilismo e às questões existenciais, individuais. Tarr alcança o ápice de sua carreira. Danação (ou também Condenação, no Brasil) é o filme que desponta essa segunda fase e, por ser o primeiro de um novo momento para o diretor, vem muito potencializado de pessimismo e de uma estética dramaticamente carregada, quase em uma forma mais crua.
Danação não é um filme onde o plot é fundamental. No geral, a narrativa em si dos filmes de Tarr está muitas vezes pautada no cotidiano mais banal. A grandiosidade mora exatamente na poesia visual que o filme pode alcançar. Ele se pauta na construção de imagens, sons e curtos diálogos que buscam remontar e trazer à tona emoções e sentimentos, que parecem residir na camada mais profunda do subterrâneo humano, do desespero em suspensão. O plot está ali apenas como chave inicial para levar o espectador a uma experiência niilista, sensorial, do cinema que potencializa a observação e usa o silêncio como elemento narrativo. Os poucos momentos de diálogo são sempre muito reveladores, no sentido de serem os únicos momentos onde há uma verbalização de tudo aquilo que se acompanha pelo silêncio insistente.
O primeiro plano já mostra suas intenções – cinco minutos a observar um teleférico que diminui a um zoom out e vemos o personagem principal, Karrer, contemplando uma paisagem húngara sórdida, fria e desoladora. Na espera de algo acontecer (estamos sempre à espera de algo acontecer), há a possibilidade do sentir seguido de reflexão.
A ausência de diálogo engendra-se em cada frame e a música tradicional está quase sempre presente, embalando uma nação de iludidos. No Titanik Bar, reduto de concentração da trama, canta a amante: “Acabou. Está tudo acabado. É o fim e não há mais volta. Não ficará bem. Não mais. Nunca mais. Talvez nunca mais. Tudo tornou-se um pesadelo. Tudo. Talvez, quem ainda virá? De onde virá? Se é que vem. Ou não virá. Ninguém mais? Talvez nunca mais. É pegar ou largar, só com isso se pode contar. O que fazer? Não há mais palavras. Já não se pode mais partir. Já acabou há muito tempo. Seria bom se todos esperassem. Bom saber que logo partirei[…]”
Os planos são longos, interminavelmente lentos. Essa estagnação, a chuva perene, o vagar sem rumo do personagem entre a “natureza-morta”, são elementos que estão ali para contestar o próprio tempo. Eles evidenciam que nos planos de Tarr não existe a possibilidade do novo e muito menos do progresso individual. A condenação da espécie humana está dada como algo impalpável, mas presente, irreversível e intrínseca.
A câmera na mão é sorrateira, segue os personagens em seu íntimo, aproximando-se do estilo documental. Há um formalismo no uso do preto e branco contrastado, fotografia esta que é recorrente em seus filmes, deixando clara a proposta de uma dureza mórbida do transcorrer da vida.
O movimento dos personagens é fundamental nos filmes de Béla Tarr – a constante perambulação e o ir e vir incessante. Contudo, esses elementos não representam mobilidade. O ato de andar está sujeito ao imóvel, é como andar em círculos num quarto fechado. Esse deslocar não leva a um objetivo, muito menos a algum lugar.
Ainda assim é visível a pretensão dos personagens em avançar, buscar uma realidade material diferente daquela. A migração ou o sonho de uma carreira artística são desejos rapidamente embotados pela forma trágica como Béla Tarr molda esse universo. Há um pessimismo que praticamente beira o apocalíptico e se realiza na forma como ele trata da condição humana e sua progressiva danação, passando assim, para uma análise mais frontal de possível identificação universal.
A tônica que Tarr demonstra em tela nada mais é que a vontade de desvelar o que está debaixo da ponta do iceberg. É tentar tornar visível, através do slow cinema, o que parece ser invisível e de impossível representação, pois tange uma camada humana muito íntima. Ele faz do espectador um canalizador do sensível, acompanhando por muito tempo, em suspenso, o desdobramento das relações humanas. Porém, nada há em oferecer ou concluir senão o vazio e o irremediável.
É o esforço patético da vida. No ato final, Karrer fica de quatro e late contra um cão, revelando todo o lado primitivo que carrega os homens. Como um covarde, está cercado pela desesperança. Movimento desesperado para tentar se diferenciar da ambiência das pessoas daquele lugar, retomando ao homem anômalo nesse possível escape do poder, da imaginação coletiva, do entendimento social.
Danação é o primeiro passo revelador de como se moldou o slow cinema nos subsequentes trabalhos do diretor, características que se firmam ainda mais em trabalhos posteriores como Sátántangó, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim, entre outros.
“Que importa pois que o desespero ignore seu estado, se nem por isso deixa de se desesperar? Se o desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro: Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia do espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos desde que a existência vacila, o desespero que espiava, surge.” — Søren Kierkegaard
Planos estáticos, ações lentas que priorizam um minimalismo narrativo, o silêncio e a hipervalorização da subjetividade são algumas das caraterísticas que mais se mostram presentes ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Esses elementos são instrumentalizados para fazer uma constante denúncia de uma degradação mental. As personagens de Akerman se destroem e voltam à vida para se destruírem novamente, em um exercício sádico pela busca da libertação mental.
Em suas produções, Chantal Akerman fazia uso de planos fixos que valorizavam o minimalismo das ações dentro do enquadramento. É também aplicada uma subjetividade latente muito peculiar, evidenciando os ideais mecanicistas e repetitivos do neoliberalismo, expondo os efeitos do patriarcado inerente a esse neoliberalismo e deixando evidente alguns efeitos mais subjetivos desse mecanismo: os transtornos mentais.
Na obra mais aclamada de Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles (1975), é narrada a rotina de Jeanne Dielman, uma mulher invisível e invisibilizada por sua própria rotina, configuração familiar e profissão. Jeanne realiza diariamente as mesmas ações e sua solidão também fica explícita em toda narrativa, no nível da estrutura e do sentido por meio de um elemento em especial: o silêncio. A relação de Jeanne com o filho, os cômodos de sua casa, e até mesmo a profissão sexual que ela exerce são envoltas pelo silêncio. Esse elemento é amplamente trabalhado ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Através do silêncio é possível amplificar subjetividades que talvez ficariam deturpadas pelo diálogo. Além disso, o silêncio é elemento que delineia tensões, que associadas à rotina quase mecânica da personagem potencializa a angústia para quem assiste. David Bordwell define esse modo estilístico dizendo que “o cinema de arte é menos preocupado com a ação do que com a reação; é um cinema de efeitos psicológicos em busca de suas causas” (Bordwell, 1979, p. 58).
É interessante como Akerman brinca com a temporalidade por meio de planos longamente hiperrealísticos, fazendo com que a deterioração mental — que reflete na deterioração da rotina — fique cada vez mais aparente. A ruptura mental de Jeanne não é algo que acontece repentinamente, é apenas um efeito de uma série de violências silenciosas as quais a personagem é submetida ao longo do filme. Akerman trabalha detalhadamente todos os movimentos da personagem e a rotina de Jeanne passa a se deteriorar diante dos nossos olhos.
Um ponto interessante é que dentro de um cinema do tédio, até mesmo o ato de fúria se torna previsível. Akerman não pretende surpreender com o plot, mas observar reações e causar uma tensão claustrofóbica no espectador. Talvez Jeanne Dielman seja o filme de Akerman que mais evidência e instrumentaliza os maneirismos do slow cinema para criar uma narrativa disfuncional propositalmente sistemática.
Em L’homme a là Valise (1983), Chantal Akerman também faz um estudo da rotina, dessa vez, alterada por um elemento estranho, um visitante. A construção narrativa trabalha com um subjetivismo tão intenso que é possível serem feitas diversas interpretações acerca do que realmente significa a figura masculina que persegue Akerman em seu próprio apartamento.
É possível observar em L’homme a là Valise alguns fatos que acontecem em cena: um visitante chega com uma mala no apartamento da personagem interpretada por Akerman, e rapidamente passa a se tornar um elemento indesejado, ceifando a privacidade com sua capacidade de invasão dos espaços privados da personagem. A partir disso, é possível trabalhar com diferentes perspectivas quando se analisa o filme, uma delas é a do bloqueio criativo representado pelo elemento do visitante que se instaura e age como um bloqueador de rotina, impedindo que a personagem possa realizar suas tarefas do dia-a-dia, como por exemplo, escrever. Também é possível interpretar esse visitante como um elemento patriarcal que persegue e sufoca a personagem onde quer que ela vá. No entanto, será analisado aqui uma perspectiva ainda mais subjetiva, que une um pouco das interpretações anteriores. O visitante com a mala pode ser visto como uma alusão clara à depressão e demais transtornos psicológicos. Primeiramente, a personagem está em um estado de isolamento extremo, visto que todo o filme se passa dentro desse apartamento onde não há visitas e quase nenhum contato com o mundo externo, com exceção de uma TV velha e um telefone. Em todas as cena, o visitante quebra esse isolamento, mas não completamente. Esse visitante age como um elemento de supressão dos sentidos mais básicos e fundamentais do ser humano. A presença dele torna a personagem de Akerman incapaz de comer, tomar banho, cozinhar, trabalhar, se comunicar, e posteriormente, sair do quarto sem precisar traçar planos para não o encontrar em algum cômodo. Esse elemento se instaura como parasita psíquico que aleija e deixa a personagem gradativamente vulnerável.
No terceiro ato, é possível perceber que a incapacidade da personagem resulta em um quarto bagunçado, com todas as roupas no chão, uma tv velha em cima da cama e um estado de inércia espiritual muito profundo. O cinema de Akerman é um cinema de gradação de efeitos e de um estudo de subjetividades quase que autobiográfico. Chantal Akerman cruza muitas vezes a linha do existencialismo e culmina em um niilismo psíquico, como efeito natural da deterioração mental na vida de seus personagens, e porque não, em sua própria vida.
A angústia existencial é um denominador comum nas principais obras de Akerman. Há um apreço pela utilização do silêncio e de planos estáticos para emergir uma não-dramaticidade que só leva ao expurgo psicológico. A diretora trabalha com “a estaticidade do olhar estendido da câmera configura um espaço e tempo em que a tensão lentamente, inevitavelmente, se constrói, chegando a um ponto de crise psicológica” (FLANAGAN, 2012, p. 82).
Akerman se utiliza dos maneirismos do slow cinema para exercer uma fenomenologia existencial sob as estéticas do gênero. O elemento de angústia no cinema de Akerman pode ser entendido como ponto de desenvolvimento da própria mise-en-scène, onde são compostos, em sua maioria, cenários de dramatização sóbrios, com elementos de cena que sinalizam uma falsa organização que precede o caos. Essa angústia se dá a partir de pontos aparentemente distintos, mas que fazem uma interseção em comum: a angústia sexual, a angústia da morte e a angústia existencial. Falando primeiramente da angústia existencial, é possível observar como essa se dá frente ao sentimento de completo vazio e esse sentimento aflora frente a divagações e conflitos que os próprios personagens sofrem diante da tela. Desilusões amorosas, incomunicabilidade, depressão, ódio e exaustão mental. Nesses personagens, é possível ver a evolução desse sentimento de nada, Heidegger classifica isso como “a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada como aspecto naturalmente humano percorre em toda a estrutura fílmica como algo praticamente determinista, um sentimento inevitável diante desses conflitos e da própria existência.
Akerman consegue conciliar elementos como angústia e vazio no drama Je, Tu, Il, Elle (1979), onde diante de um rompimento com sua namorada, uma mulher entra em uma espiral depressiva. A angústia sexual presente se manifesta a partir da repetição compulsiva da personagem que come açúcar de um saco de papel, sua tentativa de escape através da escrita e eventualmente através de outras relações sexuais. Parece que, em todo o momento, há uma preocupação muito grande em esconder a dor real da personagem e todas suas potencialidades, pois a angústia que acontece internamente é muito mais devastadora do que se mostra aparentemente.
A angústia leva a personagem a encontrar um caminhoneiro, e com ele, ela tem uma relação sexual. Nas cenas com o caminhoneiro, há um empenho aparente da personagem em tentar estabelecer um contato mais profundo com o caminhoneiro, demonstrando que, diante do rompimento, existe a necessidade urgente de continuar o contato sentimental e sexual com alguém. As cenas são escuras, com enquadramentos que quase tiram a personagem de Akerman do plano. É como se fosse um momento vergonhoso de busca por uma válvula de escape. Isso fica claro quando o reencontro com a namorada acontece e, novamente, o elemento da expurgação aparece em uma das mais belas cenas de sexo do cinema. É um alívio em meio à angústia latente que existe na maior parte do filme. E da mesma forma que o reencontro é purificador, o abandono toma a mesma proporção de devastação total e isolamento.
O curta Saute Ma Ville (1968) sintetiza muito bem como a decomposição da mente se dá no cinema de Akerman. Em seus pouco mais de 12 minutos, o curta mostra uma rotina à beira do caos através de uma observação intensa da personagem que, ao voltar para casa, arquiteta o próprio suicídio. A observação intensa da personagem para si mesma, seja através do espelho ou sentada no chão da cozinha, engraxando os sapatos, mostra um misto de auto crueldade e piedade muito grandes. De forma implícita, ela se questiona se deve mesmo levar seu plano adiante, ao mesmo tempo em que percebe que continuar com a própria vida não vale a pena. Akerman nos mostra uma mulher-bomba, dentro de tantas outras mulheres-bombas presentes em seus filmes. Quando a mente falha, todo o sistema falha e a libertação desse sistema deve acontecer da forma mais efetiva e definitiva possível.
O cinema de Chantal Akerman é marcado por uma repetição dos padrões que denunciam o fim da mente. A psique tem sede de obliteração e esta se dá através da morte e do sexo. A morte de si mesmo ou do elemento que a aprisiona. O silêncio é o som mais poderoso de fúria.
NOTAS:
BORDWELL, David. To the Distant Observer. Berkeley; Los Angeles: California UP, 1979. Print.
FLANAGAN, Matthew Slow Cinema: Temporality and Style in Contemporary Art and Experimental Film. 2012
HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996
Algo do passado sempre permanece, mesmo que seja como uma presença assombrosa ou um devaneio sintomático.
(LaCapra, 2001: 49)
Introdução
Começando com seu filme de cinco horas de duração Batang West Side (2001), que iniciou uma mudança de estúdio para uma forma mais independente de cinema de arte, e seguido por uma série de trabalhos longos que duram até dez horas – notavelmente Evolução de Uma Família Filipina, que se aproxima em quase 600 minutos – Lav Diaz tornou-se um dos mais prolíficos diretores do Slow Cinema nas últimas duas décadas. Embora seus filmes compartilhem várias características com os gostos de Béla Tarr (Hungria), Albert Serra (Espanha), ou mesmo Tsai Ming-liang (Taiwan), Diaz se estabeleceu como um nicho em uma forma de cinema que se tornou mais e mais mais visível desde os anos 2010. O diretor, que se referiu repetidamente a si mesmo como malaio em vez de filipino, volta repetidas vezes para a história traumática (e o presente traumatizante) de seu país, as Filipinas, e combina-o com uma abordagem muito particular à lentidão cinematográfica. Desse modo, Diaz criou uma forma de cinema pós-trauma, que difere amplamente do Cinema de Trauma padrão na medida em que olha para aspectos sub-representados da natureza do pós-trauma.
Em seu livro On Slowness (2014), Lutz Koepnick argumenta que a lentidão na arte visual pode funcionar como “um poderoso meio de lembrar e refazer resíduos traumáticos e reanimar histórias dolorosas aparentemente congeladas no passado” (46), e o trabalho de Diaz responde a isso. em seus filmes. Em contraste com o que hoje é conhecido como a forma padrão do Trauma Cinema, que considera e subsequentemente descreve o trauma como um evento espetacular, o trauma nos filmes de Diaz é representado como uma condição. O cinema pós-trauma do diretor é caracterizado por vários elementos, todos os quais dão uma olhada particular na natureza da memória em geral e do trauma em particular: primeiro, duração através do uso de long-takes; segundo, um tempo de execução prolongado; terceiro, o foco no rescaldo de eventos traumáticos sem criar um vínculo visual com esses eventos; quarto, a transmissão da violência através do diálogo e do som e, quinto, a ausência inerente de imagens violentas. Especialmente o uso da duração e da ausência exige uma investigação do que Roger Luckhurst chamou de “estética das consequências” e do retorno cíclico do diretor às histórias de pós-trauma e sofrimento, que se concentram nas narrativas psicológicas de personagens traumatizados. Como veremos, Diaz se concentra mais nos processos psicológicos de seus personagens do que em qualquer outro diretor de filmes lentos. Isso é apoiado pela própria estética que ele usa, em primeiro lugar, pelo tamanho particular de seus filmes. A descrição detalhada de medo, angústia e paranóia ao longo de, às vezes, nove horas ou mais é uma estética específica do que chamo de cinema pós-traumatológico de Diaz.
Textos da Memória e o País Colonizado
Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)
Ao dizer isso, Diaz aponta para a longa e traumática história da opressão ocidental, começando com a conquista espanhola em 1521. Quatrocentos anos de repetidas invasões se seguiram, com o país se tornando um hotspot onde as potências ocidentais lutavam suas guerras umas contra as outras. A população local havia sido privada de sua própria cultura, tendo que adotar a cultura – a língua, a religião, a comida e até mesmo os nomes – de seus respectivos colonizadores espanhóis, americanos ou japoneses. Em 1972, quase 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente Ferdinand Marcos declarou a Lei Marcial e impôs uma ditadura no país. Se os opositores políticos não fossem diretamente trancados ou mortos, eles seriam ameaçados pelo uso de táticas terroristas. Desaparecimentos e execuções extrajudiciais, proeminentes até hoje (Human Rights Watch, 2007, 2011), tornaram-se a norma na época. Morte na Terra de Encantos (2009) é um dos filmes de Diaz que trata do tema da oposição e do quanto o estado se esforça para silenciar, por exemplo, artistas que não se conformam com a percepção do país de que tipo de mensagens a arte deve entregar ao povo. Hamin, um escritor-artista e protagonista do filme, foi torturado e forçado a viajar para o exterior por vários anos, e agora é visto por aqueles homens que o torturaram no passado, levando-o mais perto da insanidade e de sua morte inexplicável. Encantos, assim como os outros filmes de Diaz, faz uma ponte cuidadosa entre os eventos passados e as condições presentes, mostrando assim que maus-tratos passados da população se infiltraram na sociedade contemporânea. Há um retorno repetido e cíclico aos eventos traumáticos aparentes nos filmes do diretor, o que torna o espectador consciente de que, de fato, o tempo parou e os mesmos eventos estão acontecendo repetidas vezes.
O (não) fluxo de tempo e o fator de concentração
Uma das principais características do cinema pós-trauma de Diaz é a rejeição do diretor de uma progressão narrativa linear na tela, a fim de se aproximar da natureza da memória. Melancolia (2008), seu filme de oito horas sobre desaparecimentos (forçados) e resistência, por exemplo, é composto de três partes, das quais a anterior antecede temporariamente as duas anteriores. Em Florentina Hubaldo, CTE, (2012), também, Diaz muda entre os eventos passados e presentes, nunca indicando claramente se o que vemos acontece agora ou então. Ao contrário de outros diretores, ele não usa indicadores típicos para um flashback, como dissolução ou mudança de cor para preto e branco. O resultado é desorientador, um forte marcador de pós-trauma, que aterroriza o sobrevivente através da imposição de medo, paranoia, exaustão, alucinações e outros fatores debilitantes. Vale a pena mencionar aqui o trabalho do sociólogo Wolfgang Sofsky, que argumenta que “o terror destrói o fluxo do tempo” (1997: 78). Sofsky fez um caso particular para o uso do terror e sua consequente interrupção de um fluxo de tempo linear nos campos de concentração nazistas, onde uma percepção temporal e espacial específica reinava entre os detentos.
Inseridas num universo de concentração, Melancolia (2008), Morte na Terra de Encantos, e Florentina Hubaldo, CTE, por exemplo, evocam uma experiência particular e uma percepção temporal que tem sido, e ainda é, uma característica dos ambientes prisionais, mas que atingiu o seu pico nos campos de concentração. O não fluxo de tempo dos filmes torna-se, assim, uma representação de um sistema de concentração que esmaga lentamente suas vítimas. Paul Neurath, sobrevivente dos campos de concentração de Buchenwald e Dauchau, explica esse sistema com palavras angustiantes: “O campo de concentração geralmente mata suas vítimas de maneiras menos espetaculares. É comparável não tanto a um assassino feroz que anda furioso, quanto a uma máquina terrível que, aos poucos, mas sem piedade, mói as vítimas em pedaços” (2005, 47-48). Matthew John, em sua análise de Muriel ou le Temps d’un retour, de Alain Resnais, escreve: “O horror do sistema de campo de concentração não reside no extermínio abrupto e imediato da vida humana, mas na lenta e agonizante decadência da vida humana. corpo e mente” (2014: 83). Essas características também são proeminentes na trilogia de Diaz de pós-trauma. Os protagonistas dos filmes lutam contra um colapso mental gradual, e a morte deles vem lentamente como resultado de repetidas infligências de ataques violentos e não violentos durante um longo período de tempo. Há uma tensão entre a pulsão de morte dos personagens, que, eles acreditam, acabaria com o sofrimento deles, e os perpetradores ‘segurando as cordas da vida e da morte de suas vítimas.
Terror, Medo e Tortura Psicológica
A morte está presente em todos os filmes de Diaz, mas, como mencionado acima, ela sempre vem devagar, o que agrava o sofrimento dos personagens a um nível quase insuportável. Há uma coexistência aparente da extremidade e do cotidiano, o que causa rupturas inesperadas e impulsiona o espectador a perceber os eventos traumáticos que acontecem aos personagens, que são ou foram alvo de forças governamentais opressivas, independentemente de ser o colonizador ou o ditador, e eles se transformam em cadáveres vivos como resultado disso. Em uma entrevista, Diaz sustentou que o conceito de “aplica-se tanto ao caráter da psique filipina. … É exatamente a palavra para esse tipo de sofrimento” (Diaz, 2014). O que é notável em filmes como Melancolia, Encantos e Florentina Hubaldo, CTE, é que os protagonistas dos filmes são capturados em uma teia apertada de medo e terror persistente. Essa atmosfera de medo e terror, que Diaz quer que o público sinta, é complementada, se não iniciada, através do uso de espaço fora da tela por Diaz, onde ele posiciona, entre outras chaves narrativas, os perseguidores dos personagens. A violência acontece fora da tela, onde é audível, mas não visível, colocando o espectador em uma posição aterrorizante (aterrorizada?). A ênfase é colocada não em mostrar, mas em uma presença ausente que cria uma atmosfera assombrosa em todos os filmes. Os personagens são confrontados com terror psicológico, guerra mental, bem como tortura mental, que os transforma em cadáveres vivos na tela. Nas palavras de Diaz: “Em algum momento a morte virá. É como uma coisa pré-mediada. … o inferno está chegando, e é sempre assim. É como um campo de concentração. Você é compartimentado; este é o novo grupo, precisamos orientá-loscomo trabalhar nessas coisas, então, no próximo compartimento, não os alimentaremos, e o próximo compartimento é a câmara de gás onde os matamos. Então é parte da compartimentação. Há morte lenta.” (Diaz, 2014)
Ausência e duração
Como podemos deduzir de todos os itens acima, há duas características principais que se destacam nos filmes de Diaz, os quais ele usa para evocar, primeiro, uma sensação de um universo de concentração em que seus personagens estão aprisionados e, segundo, o pós-trauma do qual eles não podem escapar. Ausência – a ausência visual de violência ou de eventos traumáticos no total – e a duração em forma de longa duração e estagnação são uma marca registrada do cinema de Diaz. A interação entre os dois cria uma rede apertada de cenas experienciais que visam tornar o concentrador palpável para o espectador.Essa abordagem específica permite que o diretor traduza o pós-trauma de forma mais adequada na tela do que normalmente é o caso do Cinema de Trauma. Ao contrário dos filmes de trauma popular, Diaz se concentra na estagnação da narrativa de vida de um sobrevivente. Ele representa pós-trauma como uma lenta progressão do sofrimento (e possível cura). A duração muitas vezes esmagadora de seus filmes – em média entre seis e oito horas – enfatiza o aspecto da duração do trauma, em particular o tempo que leva para o trauma pós-greve, e para o sobrevivente chegar a um acordo e lidar com o novo desafio. Ele minimiza a instantaneidade e, assim, estabelece uma abordagem, que o diretor húngaro Béla Tarr também usou em seus filmes. Em sua análise do olhar no cinema de Tarr, escreve Bernhard Hetzenauer, “ao usar longos takes, a progressão narrativa está subordinada a uma descrição detalhada da atmosfera e ao significado dos gestos dos personagens. … É simplesmente sobre uma única ação de um personagem dentro das teias do tempo …” (2013: 86). Em outras palavras, em vez de desafiar um personagem do filme com várias ações diferentes, Tarr – assim como Diaz – enfatiza o impacto de um único evento no personagem, permitindo que o tempo (cinematográfico) revele o impacto psicológico e suas consequências. evento para o indivíduo.Melancolia, Paralisia e a Morte Dirigir Deixe-me ilustrar a abordagem de Diaz para uma representação de pós-trauma através da justaposição de ausência e duração, olhando para a terceira parte de seu filme de oito horas Melancholia, que se concentra nos desaparecidos das Filipinas, os desaparecidos . O filme segue inicialmente Alberta, Rina e Julian, que se envolvem em uma forma de terapia de imersão, a fim de combater sentimentos de dor, perda e tristeza. É uma tentativa de encontrar o fechamento à luz da incerteza arrogante do que aconteceu com seus entes queridos na ilha de Mindoro, na primavera de 1997. Os dois principais pilares do filme são guerra psicológica e paralisia, levando a uma lenta descida à loucura. e incutir uma forte pulsão de morte em um grupo de combatentes da resistência.
A terceira parte do filme, que é um flashback (embora não claramente indicado como tal pelo diretor), posiciona o espectador temporariamente nos anos 90. Está situado inteiramente na floresta, concentrando-se em três combatentes da resistência na ilha de Mindoro, que é cercada pelos militares. Diaz abstém-se de representar visualmente os militares e usa essa ausência visual dos autores para se concentrar na queda psicológica dos combatentes da resistência. Nesta mesma parte do filme, Diaz enfatiza o uso de guerra psicológica e tortura mental, aspectos que são características primordiais do sistema de concentração. Após a morte de sete membros de seu grupo rebelde, os três homens estão isolados no bosque da ilha de Mindoro, que é, segundo um espião local, cercado pelos militares: “Eles disseram que vão garantir que todos vocês morram. Em vez de retratar o impasse entre as duas facções diretamente, Diaz transmite a gravidade da situação através do silêncio opressivo dos personagens. Os homens têm pouco a dizer um ao outro. Exceto por breves instruções uns para os outros sobre onde se esconder ou se mudar, eles estão mentalmente em seu próprio mundo e tentam chegar a um acordo com sua situação desesperadora e a perspectiva de morte certa por conta própria. Há uma sensação de opressão, claustrofobia e incerteza palpável ao longo desta parte do filme.
É esse “luxo” que o lutador agora insano da Melancolia está exigindo, gritando e gritando para que os militares finalmente acabem com seu sofrimento. Isto é, no entanto, negado por um longo período de tempo, o que só aumenta a insanidade do homem e sua pulsão de morte. Quanto mais tempo ele passa neste período de incerteza e quanto mais ele sabe que a morte virá, mas não quando chegará, mais insano ele se torna. Além das breves explosões de frustração do lutador, os três personagens que Diaz segue são silenciosos, no entanto. Eles estão resignados com a situação deles. Eles são vistos andando de um esconderijo para outro. Em outras ocasiões, eles ficam imóveis e aguardam a “morte certa”, como um deles descreve em uma carta para sua esposa. Importante, Diaz posiciona o espectador semelhante aos dos personagens. Assim como os personagens, não vemos o inimigo. Diaz joga com o que Thomas Weber descreve no contexto de Caché de Michael Haneke como uma “estética da incerteza do público” (2014: 42), que confronta o espectador com “o incomensurável, algo fechado para a recepção do espectador” (Ibid., 45), e consequentemente coloca o espectador em uma situação similarmente estressante como os personagens.
É o tema da incerteza, combinado com a estética da duração de Diaz, que visualiza o aspecto do mais claro e concentrador. Os combatentes da resistência estão cercados pelos militares sem poder escapar, prendendo-os em sua localização atual. Eles estão em uma prisão com fronteiras invisíveis, em que se tem certeza de que a morte vai atacar, mas sem saber quando ela vai atacar. Duração como opressão e tortura é fundamental na terceira parte da Melancolia. Tudo o que o espectador pode fazer é sentar e esperar com os resistentes e desesperados combatentes da resistência, uma situação que se torna pesada depois de uma hora para espectadores e personagens, um ‘jogo de poder’ aos olhos de Michel Foucault: “O tempo penetra no corpo e com todos os controles meticulosos do poder ” (1991: 152). Enquanto Foucault fala sobre o tempo em geral, no contexto da guerra psicológica, a longa duração é um exemplo particularmente forte do exercício do poder. O objetivo é criar uma atmosfera aterrorizante e travar o alvo em um estado de paralisia.
Textos da Memória e o País Colonizado
Diaz é um dos poucos diretores do Slow Cinema, que persistentemente retorna ao passado traumático de seu país e usa isso para manter um reflexo da sociedade e da política atuais. Nascido em 1958, Diaz se tornou aficionado por filmes graças ao pai que o levou ao cinema todo final de semana. Do espaguete ocidental ao Kung Fu e ao melodrama filipino, Diaz fora exposto ao mundo do cinema desde muito cedo. Mas apenas como estudante, após uma exibição de Manila de Lino Brocka nas garras da luz (1982); ele se tornou consciente do poder do cinema como uma ferramenta para contar histórias silenciosas (e silenciadas) e trazê-las de volta à consciência pública. O filme, ele aprendeu, pode se tornar um veículo para memórias pessoais e coletivas. Para Diaz, o cinema é “processo de limpeza”, como ele chama. “Precisamos confrontar todas essas coisas”, diz ele, “todos esses traumas, todas essas partes não examinadas da nossa história, nossa luta, para que (nós) possamos avançar. É uma espécie de cura.” (Diaz, 2014)Visualmente, a chuva implacável é uma companhia constante e serve para reforçar a situação traiçoeira dos homens. A vasta paisagem da lama acompanha o colapso dos combatentes da resistência e sua afundar em uma situação cada vez mais desesperadora. A floresta, ou a ilha de Mindoro em geral, tornou-se uma armadilha e exerce pressão sobre os combatentes da resistência até que eles quebrem. Eles são esmagados pelo tempo e pela ansiedade avassaladora da “iminência imprevisível da morte”, como Pollock e Silverman descrevem em seu estudo sobre o comportamento dos prisioneiros no campo (2014: 9). Em vez de perseguir um tiroteio rápido e letal com os homens armados, as forças militares geram um estado persistente e permanente de incerteza para eles, o que leva à paranoia, desesperança e hiper-vigilância. A incerteza sobre quando a morte vai atacar impede que os combatentes desenvolvam o desejo de continuar a vida. Sua pulsão de morte aumenta a cada momento gasto no estado paralítico de nãosabendo. Os próprios detalhes da estética de Diaz para uma representação desse estado podem ser considerados como o que chamei de “tempo da morte”.
Lav Diaz e o tempo da morte
Na verdade, o Slow Cinema tem sido frequentemente falado no contexto de temps mort ou dead time. Depois que uma ação chega ao fim, os quadros permanecem vazios por vários segundos, o que testa a paciência do espectador. Os filmes de Lav Diaz não são diferentes, mas seu uso de longa duração e tempo morto assume outra dimensão. Ele cria algo que eu chamo de tempo da morte. A morte sempre vem devagar em seus filmes. Leva tempo, e não é tanto sobre o tempo morto nos filmes de Diaz, mas sobre a lenta descida à loucura, com a morte sendo um refúgio para os perseguidos. O diretor destaca o uso e os efeitos do terror na sociedade, e seus personagens morrem lentamente, dolorosamente e gradualmente durante um longo período de tempo. Sua morte é geralmente antecipada e conhecida no início do filme, mas quando exatamente a morte ocorrerá nessas oito ou nove horas, o espectador e o personagem não poderão conhecer o personagem, o que coloca ambos em uma situação igualmente incerta, desconfortável e aterrorizante. posição. O tempo de morte de Diaz é uma parte essencial do universo de concentração que ele cria e, junto com suas consequências estéticas, que enfatizam ausência e duração, forma o núcleo de seus filmes experienciais que visam libertar tanto o diretor quanto a sociedade filipina de traumas passados e presentes.
1 Uma análise detalhada do cinema pós-trauma de Diaz pode ser encontrada em minha tese de doutorado intitulada “A estética do
ausência e duração no cinema pós-trauma de Lav Diaz ”, disponível via The British Library.
Referências:
Des Pres T. (1976) The survivor – An anatomy of life in the death camps. New York, Oxford: Oxford University Press.
Diaz, L. (2014) Interviewed by Nadin Mai, Locarno Film Festival, Locarno, 10 August.
Foucault M. (1991 [1977]) Discipline and punish – The birth of the prison. London, New York: Penguin Books.
Hetzenauer B. (2013) Das Innen im Aussen – Béla Tarr, Jacques Lacan und der Blick. Berlin, Köln: Alexander Verlag.
Human Rights Watch. (2007) Sacred silent – Impunity for extrajudicial killings in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2007/philippines0607/ (accessed 15 October 2013)
Human Rights Watch. (2011) “No justice adds to the pain” – Killings, disappearances, and impunity in the Philippines. Available at: http://www.hrw.org/reports/2011/07/18/no-justice-just-adds-pain-0 (accessed 15 October 2013)
John M. (2014) Running the film against the reel – Locating Jean Cayrol’s Lazarean figure in Alain Resnais’s Muriel ou le temps d’un retour. In: Pollock G and Silverman M (eds) Concentrationary memories – Totalitarian terror and cultural resistance. London, New York: I.B. Tauris, pp. 83-99.
Koepnick, L. (2014). On Slowness – Toward an Aesthetic of the Contemporary. New York, Columbia University Press.
LaCapra, D. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore, London, The John Hopkins University Press.
Luckhurst, R. (2008). The Trauma Question. London, New York, Routledge.
Neurath P. (2005) The society of terror – Inside the Dachau and Buchenwald concentration camps. London, Boulder: Paradigm Publishers.
Nadin Main é curadora da Tao Films, distribuidora de filmes online dedicada ao Slow Cinema.
A escuridão sempre foi um pré-requisito para realmente entrarmos no mundo na tela, e sua importância na concessão de ressonância experiencial não pode ser exagerada. No cinema, as luzes se apagam. Nós esperamos em uma sala escura por um mundo de luz se abrir para nós, e enquanto nosso corpo pode permanecer em nosso assento, a essência incorpórea em todos nós caminha em direção à luz exuberante, assombrando-a, como nos assombra. Nossas almas investem, buscam na curiosidade e fome nas imagens e sons. O cinema é uma simbiose de assombrações. Entramos quando nos entra. Entrar no mundo de um filme é algo muito espectral. Realmente se submeter à experiência do cinema é como deixar as ondas do oceano baterem em você e não ter medo de se afogar. Estar nessa escuridão e deixar o filme nos envolver e penetrar é a própria definição de rendição. Para se entregar, para o outro.
A força do cinema também pode ser sua fraqueza. Com tanto poder do cinema vindo de sua singular distinção nas artes como bastardização de duas artes – imagem e som – criando cenários audiovisuais vívidos, muitas vezes não há espaço suficiente para o espectador sonhar, imaginar, questionar. Escuridão, ofuscação – tanto visual quanto metafórica – podem ajudar a criar um ambiente em que a imaginação pode coexistir e se harmonizar com o corpo do filme e criar uma experiência polissêmica absolutamente única para cada indivíduo, cumprindo essa simbiose.
A escuridão é uma textura, um véu, místico, um interior imaterial. É o sertão de onde tudo entra e sai. Todos nós uma vez ou outra sentimos que pelo menos por um momento vemos algo passando além daquele véu, onde olhamos para a escuridão profunda – a verdadeira escuridão – e sentimos nosso nervo óptico levado ao limite, vendo luzes estranhas emanando , dançando, aparentemente sem nada, além do limite de nossa visão, nunca muito certo se é nosso olho ou algo mais que é parte de nós, dentro de nós, ainda desconhecido para nós, permitindo-nos uma testemunha disso. A escuridão permite que o olho da mente abra, para nossa imaginação vagar. Ela recalibra e alimenta nosso relacionamento com nosso corpo, nossos sentidos e a paisagem além de nós. Eu quero criar um mundo que faça o conhecido se sentir desconhecido de novo, permitindo que aquele pulso frágil e profundamente intenso de curiosidade infantil que bate dentro de nós volte a se firmar. A escuridão nos permite entregar-nos a esse mistério, a essa maravilha e a nadar nela, e reivindicar nosso relacionamento profundo e paroxístico conosco e com o que está além de nós mesmos; afogar-se destemidamente é um salto infinito.
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Como cineastas – cineastas genuínos – não devemos ter medo de nos aventurar em direção ao que é considerado o inexprimível, o que não pode ser dito em palavras, mas sim o que surge apenas nos sonhos, criar um cinema além da figuração, além do objeto e, em vez disso, torna a liminaridade entre a luz e a própria escuridão como seu próprio sujeito, movimento e quietude como seu próprio sujeito, paroxismos de experiência como seu próprio sujeito, para expressar e experimentar o peso do que é conhecido e do que é desconhecido para nós. O desconhecido deve ser nossa luz, nossa atração, nosso guia para buscar novas imagens, novos sons, novas idéias e temê-lo; mas devemos nos submeter a esse medo. Você não está fazendo nada que valha a pena se não sentir medo.
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Como aquelas aparições que espreitam, depois dançam conosco, que nos desarmam, nos seduzem até quando viramos nossos pescoços, e olhamos para o caminho que percorremos, e no escuro, além das árvores, eu também quero desarmar, e seduzir através da renderização do visível invisível. Eu quero seduzir através de ofuscação, verdadeira ofuscação, sugerir um além, uma liminaridade suspeitamente encoberta dentro do ‘fuscus’.
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Escuridão é onde todas as coisas estão funcionando. Onde todas as bocas e mãos estão dançando. A escuridão é sempre preponderante. E a escuridão está sempre com fome. Quer sua refeição. E às vezes, devora.
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A ciência provou que somos literalmente feitos de poeira estelar. Nós podemos olhar – em reverência – do céu noturno. Por causa de quão longe a luz tem que viajar, olhar para as estrelas é olhar para o próprio tempo. Essa infinita piscina negra é uma catedral cheia de fantasmas; os fantasmas de estrelas … estrelas que em alguns casos não existem mais – as mesmas estrelas das quais somos feitos agora. É como um fóssil – mas também é um reflexo. Talvez não tenhamos outro propósito senão um dia retornar, passar por aquele espelho e nos unirmos às estrelas que nos nasceram. Para se tornar o todo – novamente.
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Não tenha medo de imagens. Tenha medo das palavras: diálogo. Cinema não é literatura. Literatura é literatura. Cinema não é teatro. Teatro é teatro. Você é um cineasta e seu vocabulário é vasto, infinito – qualquer imagem, qualquer som e qualquer combinação. Palavras evocam imagens. Se a imagem já existe, não há nada a ser evocado. Isso existe. Deixe respirar. Pode respirar sozinho se for forte. Deixe sua força estar em sua vulnerabilidade. Deixe-o revelar sua vulnerabilidade. Se usamos muito as palavras no cinema, estamos apenas usando palavras para ajudar uma imagem fraca ou para conquistar a imagem. Como cineastas, somos conjuradores e não devemos ter interesse em conquistar nada.
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Cinema somos nós, olhando para um espelho trêmulo. É uma vida que dança escondida atrás das árvores, além do horizonte. O cinema não é nossa construção. Cinema somos nós – desconstruídos.
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Nós voamos sobre uma lágrima na imagem, um oceano. Nós ouvimos o vento cantando. Então um nada perene. Um cinema de prisioneiro. O filme nas nossas pálpebras. O projetor está piscando. Uma tela negra de nada sonoro. Nós somos um nada dentro de nada. Nosso escuro interior nada no escuro. Um anel silencioso. Nós flutuamos, contidos nele; a própria câmara de eco do corpo, gritando e ouvindo nada além de nossos próprios uivos silenciosos e devastadores. Cinema é vida, dentro, fora de nós.
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Como Emil Cioran disse: “Escreva livros apenas se você for dizer neles coisas que você jamais ousaria confiar a ninguém”. O mesmo se aplica ao cinema. E gostaria de acrescentar que você põe em seu trabalho aquilo que você jamais ousaria confiar a si mesmo, ou mesmo desejar entender. Não é uma revelação, ou um “derramamento” de lógica, não é senão um dilúvio de sentimento puro e não adulterado; sentindo-se sozinho. E o sentimento puro não pode e não deve ser traduzido em pensamento racional.
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Para mim, a verdadeira essência do cinema não é simplesmente animar. É desanimar. Eu sempre começo um filme quase como se fosse manter um diário. Eu não tenho ideia ou agenda para fazer um filme. Eu simplesmente documentei. Eu filmo o que me atrai, coisas aleatórias, animais, variações na luz, a água, as estrelas; simplesmente o que me atrai em dias diferentes, noites diferentes, em lugares diferentes. Depois de construir um corpo de imagens, começo a ver conexões. Essas imagens podem ser filmadas com meses ou até anos de diferença – e milhas também. Assim como em Hunter (2015), existem sequências em Sleep Has Her House, que são compostas de tomadas filmadas em dois países separados que são então costuradas de forma invisível. Mas essas conexões entre diferentes partes de filmagem acontecem organicamente. Eu nunca forço essas conexões. Eu nunca forço um filme quando ele não vem. Os filmes me encontram – não o contrário. Quando eles ganham vida e começam a se contorcer, eu simplesmente aguento. Todos os meus filmes foram feitos assim. Alguns acontecem mais rápido que outros. Uma vez estabelecidas essas conexões, uma narrativa – através de imagens – começa a germinar.
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Eu acho que a internet tem um papel fundamental a desempenhar para derrubar os muros do elitismo econômico e da censura sociopolítica que impedem que muitas pessoas acessem as artes, a informação e a verdade. Um artista precisa ser pago, mas também o trabalho de um artista precisa estar disponível para todos aqueles que desejam procurá-lo.
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A realidade da sensação vem em primeiro lugar. A lógica vem depois. Nestes momentos da câmera se tornando o corpo, nós, o espectador, assumimos o corpo do protagonista. Nós abrigamos a tela. Nós assombramos o próprio fantasma da imagem, nós gravamos o avatar impregnado na imagem. Continuamos fora de nós mesmos e, com isso, desatamos a imagem. Isso fratura. Nós nos tornamos a própria vibração da realidade da imagem; uma realidade espectral que está em fluxo aglutinado com o nosso.
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Ser real é forjar. Ser real é enganar. O cinema é real porque engana; é forjado. Para se tornar real, devemos nos enganar e, mais uma vez, nos tornar o animal. O animal é o que vemos na tela.
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O que é mais real do que o nosso ser não adulterado? Nossa inatitude? Ao longo da história do cinema, a definição de cinema realista tem sido sobrecarregada por um critério incrivelmente estreito. Os filmes que fizeram a nota são quase sempre sobre circunstância sociopolítica. Independentemente de quão importantes e bem feitos são esses filmes, essas explorações não se preocupam apenas com construções feitas pelo homem, com excessos feitos pelo homem; muitas vezes atormentado por um dilúvio de verossimilhança espúria? Se assim for, pode realmente ser considerada realidade autêntica? A tabulae rasae é incivilizada. Ela caça. Isso fode. Grita. Ele treme… O que é mais autêntico, mais real do que a nossa inatitude?
Viver no Rio de Janeiro traz sentimentos díspares como se espera de toda metrópole, com seus cartões postais, as belezas quase irreais, todo um imaginário artístico criado em volta, mas também o movimento frenético, olhares perdidos, rotinas desesperadas, as desigualdades socais. O contexto social está sempre em pauta diante da criação de memórias de uma cidade como o Rio porque os lugares guardam históricos, e alguns deles são carregados de opressão. O Desmonte do Monte, filme de Sinai Sganzerla, trabalha com essa presença fantasma de memórias opressoras, o horror da falta de registros, e os apagamentos urbanos que a causaram.
A estrutura abraça um didatismo nesse olhar procedural da historia que muito dialoga com Dawson City nesse sentido. Poucas vezes sai dessa escolha narrativa, mas nos momentos de retratar a queda iminente do monte Sganzerla assume uma dinâmica de filme de horror, no retrato de uma paisagem frágil e literalmente fadada ao desaparecimento. O som didático torna-se sugestivo, a trilha eclética larga a ironia e se concentra em momentos de suspensão cuja tensão emana especialmente da voz fantasmagórica de Helena Ignez.
O interesse historiográfico aliado a essa tentativa de articular o sentimento da perda sensorialmente carrega a montagem pelos 85 minutos sem que os dados cansem, ou que o tom solene enfraqueça a potência dos fatos. A recriação dos momentos históricos por relatos pessoais, seja de historias orais e fotografias amadoras a matérias de jornal e obras de arte, relembra que o curso narrativo discurso da Historia dos vencedores arranja esses documentos para gerar uma ideia, e o que Sganzerla faz aqui é esse esforço de organizar a Historia para privilegiar fatos que não tiveram acesso a ela – algo antropológico, por assim dizer.
As mazelas sociais do Brasil expostas em tela reforçam o discurso de minorias cuja Historia lhes foi negada, do apagamento indígena aos poderes que se renovam através de relações pessoais – o homem cordial, por assim dizer -, e a forma que por vezes o discurso fílmico fica redundante acaba devendo às repetições históricas que aqui sofremos. As limitações de O Desmonte do Monte acabam revelando sobre nossa própria historia corrupta como país, cujos instrumentos de opressão mantém-se dolorosamente similares. O impacto emocional das perdas de minoria soam menos desesperadores que em retratos com recorte mais específico – como a recente obra-prima Martírio, por exemplo – e algumas escolhas estéticas tratam de forma direta demais as associações do filme – como a escolha de For the Love of Money para tocar no momento em que a especulação imobiliária ali se revela – mas essas limitações originam dessa própria disposição de enxergar no monte um exemplo para nossa organização social enquanto país.
Falar sobre um panorama brasileiro tem dessas fragilidades, mas o recorte de Sganzerla é concentrado o suficiente para dar seu soco de revide com potência.
Uma das sessões especiais históricas do CineOP 2018 exibiu a obra máxima de Jean Vigo, O Atalante, numa cópia restaurada pela Cinemateca Francesa, para um cinema cheio como não fora o filme à época de seu lançamento. Por décadas as versões do filme eram variadas, cortadas contra a vontade de Vigo e remontadas após sua morte precoce. Em 1957, 23 anos após seu lançamento, o teórico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes propôs um revisão à obra junto a André Bazin após trabalhar anos na Cinemateca Francesa, e Vigo tinha sua obra à época adorada pela Nouvelle Vague. O esforço de Paulo Emílio culminou na escrita de dois livros, sobre Vigo e Miguel Almereyda, seu pai famoso pelo pensamento anarquista, e o resgate da obra do diretor.
É curioso que tenha sido um brasileiro a redescobrir o filme pois O Atalante esbarra das maneiras mais peculiares nas inquietações do nosso cinema, com suas utopias do mar e associações livres entre campo e cidade. A fuga da França do campo com a promessa farsesca de um ideal de família que Vigo observa com graça para então desvelar a cidade, descobrir seus prazeres e feiúras, no ato de amadurecer que nem sempre caminha junto com quem se ama. O navio atalante da mudança proposto como o dispositivo de transformação palpável da narrativa, fundamental para a demonstração dos prazeres da vida nessa estrutura de estrada aquática.
A disposição de Vigo especialmente para transmitir as formas abstratas entre os sentimentos do casal protagonista liberta a câmera para observação barroca do ambiente, do mar como sonho, do movimento dos barcos enquanto a noiva acompanha o ritmo, das edificações sempre à beira do rio mas raramente no quadro sob uma distância curta. Apenas ao adentrar nas expectativas de conhecer novas terras, desbravar novas historias, que os personagens entram em movimento e então aportam na cidade. A sequência do marinheiro contando das suas aventuras ao redor do mundo traz no seu quarto o retrato físico de uma vida perpassada pela tradição oral, pela confiança no outro, e é esse um dos singelos nortes de O Atalante.
Conforme a jornada de superação tanto do homem em perceber o egoísmo de seu olhar do relacionamento quanto da mulher em se permitir ter prazeres individuais diante da cidade, do conhecimento e curiosidade do que está por aí ao acaso, a câmera recontextualiza a abstração pontual e atenta-se aos retratos de pequenas angústias, do quarto sendo quebrado do marinheiro ao diálogo arrepiante de sombras entre esposa e marido sonhando distantes com o outro. A utopia do encontro se materializa no senso de humor e no olhar atento ao espaço ao redor – das coisas que mais ficaram comigo do filme -, e o rosto de Dita Parlo vira o foco absoluto dessa descoberta de mundo com a mesma empolgação e encantamento da câmera de Vigo, contendo todo o amadurecimento de encontrar em lugares e rostos uma casa.