Biopolítica e cyberpunk: as máquinas desejantes

Por Zoë Masan

“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e por fora, o doente brilha, reluz, em todos os seus poros, estourados”

– Antonin Artaud

“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”

– Gilles Deleuze

 

Um fetichista por metal, um assalariado e uma prostituta. Os arquétipos base de Tetsuo: The Iron Man (1989), ironicamente, mostram protótipos nos quais os cidadãos das grandes capitais super-industrializadas do final do século XX se estruturam: a obsessão pela máquina, o homem médio executivo e as vontades carnais do sexo. Esses três pilares da narrativos de Tetsuo, encontram um lugar comum para acontecerem: o corpo.

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Enquanto muitas obras de cyberpunk e outros subgêneros da ficção científica são construídas sob uma cidade distópica estruturada por um Estado controlador, Tetsuo: The Iron Man (1989), trabalha o cyberpunk fundado no corpo. Com uma visão pós-estruturalista da significação da tecnologia, máquina, industrialização e tensões corpóreas. O corpo em Tsukamoto ressignifica o próprio cyberpunk, enquanto gênero, e assume o corpo como uma estrutura onde todas as possibilidades estão abertas, até mesmo da carne ser dominada pelo metal.

Cercado por metal, O Fetichista implanta em sua carne um pedaço da pilha de metais que o cercam. O experimento não ocorre como o esperado, e como uma doença, o metal se multiplica e se alastra por sua carne, o dominando gradativamente. Não há estatização da máquina, tampouco uma indústria, apenas o desejo pulsante pela modificação e potencialização das capacidades do corpo humano, um pós-humano micropolítico que abriga poder em suas moléculas de metal. Como uma doença, o metal toma conta do corpo do Fetichista, assim como acontece com o Assalariado, quando esse, atropela o Fetichista. Uma espécie de epidemia maquinaria se alastra transformando deformando corpos, com uma força de poder incontrolável.

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Em Tetsuo (1989) o metal toma uma forma autoconsciente, ele vive, como um parasita que necessita do corpo para suprir suas necessidades de dominação e sobrevivência. O metal produz uma espécie de adestramento, reeduca o corpo para transformá-lo. Não existe máquina antes do corpo, apenas metal. A máquina é a fornicação entre o metal e a carne. O organismo de poder representado pelo metal, exerce a castração das vontades humanas e impõe uma utilidade belicista para esses corpos. Quando o Assalariado está com parte do seu corpo transformado em máquina, e tenta ter relações sexuais com uma prostituta (que também começa a ter seu corpo dominado pelo metal), as vontades humanas (sexuais) entram em conflito com as da máquina (destrutivas), transformando o sexo entre os dois em uma cena tragicômica em que o pênis se torna uma broca de metal, fazendo dessa uma das cenas de sexo mais grotescas e intensas do cinema.

A biopolítica pode ser definida como uma nova dimensão de poder que visa controlar a vida humana no campo biológico dos saberes. Para estabelecer controle sobre homem enquanto espécie é necessário entender, analisar e estudar esse corpo. Em Tetsuo (1989) a biopolítica é exercida através da máquina de uma maneira prática e bem mais crua. O corpo humano é assimilado gradativamente pelo metal que o domina, criando uma tecnologia própria de controle: a epidemia. Fetichista, Assalariado e prostituta se fundem em uma grande maquina constituída de metal e carne com o objetivo desejante da dominação bélica e aniquilação. Esses novos humanos tiveram seus desejos carnais suprimidos e substituídos pela vontade latente da maquina de se alastrar e disciplinar corpos humanos ao redor do mundo e transformar carne em metal. É uma nova fase de evolução da espécie, um novo passo em um mundo regido pela biopolítica do homem, as maquinas instalaram sua própria biopolítica, muito mais poderosa, que coloca em prática um controle em níveis moleculares.

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Quando o experimento inicial do Fetichista acaba o transformando em uma máquina sub-humana, é possível entender o experimento como uma tentativa de subversão e descentralização do domínio maquinário-industrial, bem como, do poder biopolítico exercido pelo Estado (controle de natalidade, políticas de controle populacional, etc.) Mas no universo de Shinya Tsukamoto, o metal vive, e a máquina emana um poder epidêmico por si só. Esse maquinario biológico e desejante, se coloca aberto a qualquer tipo de possibilidade vida. Um desejo pulsante de se expandir e criar. Recusa-se quaisquer interpretações, sejam elas de natural moral ou política. A biopolítica torna a vida humana um ato político por si só, mas a máquina aniquila o controle biológico estatal sobre o corpo, destrói a biopolítica humana e cria uma biopolítica pós-humana, a maquina controla sua própria e nova estrutura, o corpo humano.

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As maquinas desejantes do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, são os organismos que se conectam e formam o corpo humano, que é por sua vez, outra máquina inserida dentro de uma máquina social. Pode-se dizer que “o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito em todos os sentidos e em todas as direções.” Deleuze & Guattari.

A máquina se conecta, mantém fluxo e produz. Como uma super estrutura de uma indústria, a produção não cessa. Tudo o que se cria e se expande é através do desejo. As maquinas desejantes são sistematicamente organizadas para se encaixar na máquina social, através de papéis e funções sociais bem definidas. Em uma interpretação menos psicanalítica possível, o homem-maquina de Tsukamoto, que antes era um Fetichista e um Assalariado, é o resultado mais genuíno possível da libertação da maquina social. É uma maquina desejante anti-social e anti-sociedade, um grande abolicionista dos desejos sociais, um herói que alcançou a revolução em nível celular, rejeitando a carne e abraçando as possibilidades do metal.

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A cidade foi feita para caminhar – o Andarilho de Tsai Ming-Liang

Por Gabriel Papaléo

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Qual a reação possível de indivíduos em um espaço social de metrópole cuja arquitetura e disposição econômica não foram pensadas para a existência deles? Nos filmes do diretor Tsai Ming-Liang, especialmente a partir de Adeus, Dragon Inn (2003), os personagens andam muito por espaços vazios, por ambientes que parecem apocalípticos devido ao abandono, mas sem que percam uma localização evidente de cidade, como dejetos espaciais de um projeto de metrópole que se renova esquecendo dos seus passados. O corpo em manifestação social quase anestesiada seja pelo excesso, pela culpa, pelo peso da memória – isso varia dentro da filmografia do malaio radicado em Taiwan. O ritmo do presente em Hong Kong, Tóquio e Marselha não parece combinar com o ritmo do corpo, e ao passo que o diretor sabe da problemática nesse conflito Tsai também sabe que andar é importante, sempre, porque é um sinal em harmonia com a ideia de que o mundo está em movimento. O convite é a repensar a lentidão, porque a velocidade está na perspectiva, e de cidade em cidade encontramos a exaustão tanto do corpo quanto do ambiente que ele está inserido.

O movimento cênico inicial de Walker e Jornada ao Oeste é um recado visual das origens imateriais do Andarilho vivido por Lee Kang-Sheng, inclusa no zen-budismo no qual a tradição do monge está inscrita: a saída de ambientes similares à cavernas, com cores terrosas, remetendo quase a um primitivismo histórico das moradas humanas, recusando não apenas estímulos visuais contemporâneos como também sonoros, cujo som da cidade abafado em Walker e o silêncio de Jornada ao Oeste se comportam como prenúncios estéticos de um excesso. A saída psicológica e física do lugar cujos costumes e tradições imateriais têm mais signos evidentes no quadro para a metrópole, lugar onde esses costumes e tradições estão enterrados, por vezes até visíveis mas ainda tímidos e em minoria, pela passagem do tempo. E se existe uma certa lamentação pela perda dessa ideia por vezes abstrata da plenitude no que não vemos mas sentimos, nunca está associada a um signo de estagnação, ou de fatalismo na passagem material do tempo. O que interessa ao Andarilho é a resistência do flanar porque não é uma antítese da cidade, mas sim uma ressignificação do espaço. A importância da cidade ser ambiente pensado para pessoas interessadas na mudança dos tempos, no fluxo – estudado pelo zen-budismo – contínuo da vida, no qual o progresso seja uma ideia espiritual ao invés de materialista do capital. O choque da violência entre corpo e cidade, da cidade hostil com o corpo habitante de outro ambiente e outro tempo – não-cronológico, mas relativo.

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E por um conflito de corpos não apenas vemos o Andarilho de Tsai em choque com o urbano, mas os próprios transeuntes que por ele passam. A câmera surge como um dispositivo fílmico de observação escancarado, desvelado diante dos habitantes das cidades filmadas, e interferindo nas suas vidas mesmo apenas colocada num tripé à média distância, raramente privilegiando closes, sempre expondo a distância cênica entre ela e os sujeitos – e entre os sujeitos e a cidade. Na Marselha de Jornada ao Oeste talvez seja a relação mais agressiva dentre os três filmes do Andarilho abordados aqui, talvez por ser a única dessas cidades situadas fora da Ásia; porque para Tsai existe um movimento político no flanar, uma ocupação espacial que outrora, e sob outra via, não seria possível. A estranheza dos pedestres com aquela ação em tela é por conta do movimento extremamente lento do Andarilho e do personagem de Denis Lavant em proporção ao ritmo da cidade, mas também por uma interação entre continentes distintos, entre culturas por vezes em choque, e até por ideais religiosos: o monge budista que enfrenta a cidade esgotando seu corpo pelo oposto do hiperestímulo em uma França majoritariamente ateia.

É nesse diálogo com as narrativas mais fragmentadas que Tsai começou a explorar em seus filmes rodados em digital – culminando na duração maior dos planos que a película dificultava (ou até impossibilitava) – que o Andarilho existe nesses filmes, na alta definição das câmeras expondo o desafio de um corpo ao extremo de suas possibilidades, as pequenas expressões que vazam no rosto quase impávido de Lee Kang-Sheng na sua meditação de tempos suspensos, no tecido que parece se mover numa velocidade diferente do homem que o traja. Parece que a cidade está toda cristalina quando filmada em planos abertos, iluminada e com todos os seus pequenos movimentos em foco, e no meio desse frenesi visual banalizado pelas experiências do cotidiano a figura do Andarilho entra como um dispositivo cênico que nos convida a olhar e experimentar uma nova dimensão do que é visto como banal para quem vive em metrópoles, quadros rigorosos que expõe a escala quase operática da cidade como também explicita o esforço cru de um corpo em movimento deslocado ao meio. Não à toa Tsai expõe esses filmes mundo afora em museus, ambientes cuja natureza é mais volátil, cujas possibilidades visuais são mais diversas que a unidade da tela escura projetando uma única perspectiva – e portanto mais similares ao jogo imagético que as metrópoles que filma propõe.

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A distância corpórea dos homens na sauna em Wu Wu Mian, em ritual de resistência à cidade à suas próprias maneiras, parece guardar um canal metafísico que a urgência dos planos noturnos da Tóquio lotada dos pedestres em Shinjuku e do metrô em movimento brusco a observar uma cidade cujas luzes estão se desfazendo sob nossos olhos em registro digital não chama para si. É como se fosse o chavão da cidade que nunca dorme versus os homens que dormem como enfrentamento a ela, mediada pelo monge em seu tempo próprio, encontrando ambientes que procuram essa mesma dinâmica – talvez a exclusividade de noturnas aqui seja um sinal de que é o horário do dia que mais se pensa o absurdo do fluxo irrestrito da cidade, o momento diária e também ritualístico da ansiedade da privação do sono, da dificuldade de conciliar o ritmo acelerado com a desaceleração proposta pelo corpo ao pedir repouso. É a jornada mais abstrata dos três filmes, por partir de um choque de sentimentos, de exaustão política refletida no ciclo corporal, cuja geopolítica está em segundo plano mas tão relevante e mapeada quanto nos outros.

Em Walker, o Andarilho passa por anúncios múltiplos e coloridos, por mercados ao ar livre, e filmado como silhueta em meio aos habitantes passando por uma ponte provavelmente de algum transporte coletivo, e nunca deixa de estar solitário nos quadros; não parece haver distinção tão grande entre os planos abertos afastados do monge na cidade noturna e vazia para os planos mais ocupados pelo fluxo de pedestres, porque o que o enclausura diante de Hong Kong é uma solidão que não interpreta multidões e vazios sob diferentes óticas, a impessoalidade surgindo equivalente em ambas as dimensões. O momento de maior impacto, quando este é filmado frontalmente em meia distância ocupando uma rua lotada, é reconhecido por transeuntes que param ao seu redor, o filmam, no maior diálogo que uma interação assim pode proporcionar. Se em Hong Kong e Tóquio os obstáculos são íngremes, de proporções diferentes, ambientes fechados e vazios com os mesmos estímulos visuais caóticos, em Marselha os entraves são em planície, mais turísticos, com corpos que parecem mais interessados em uma investigação/contemplação do que está ao redor, mas também aparentemente desconectados para com o outro.

Em Hong Kong o monge termina sua jornada comendo algo após ser negado o seu acesso a um lugar, em Tóquio é através de um sono em uma cápsula que lhe aliena do ambiente – ambos rituais solitários de sobrevivência, mas também de autoconhecimento dada a metafísica tão convidativa desses filmes. Mas em Marselha a jornada termina na cidade literalmente de cabeça para baixo, com o monge e seu seguidor ocidental em meio aos transeuntes, todos dispersos no ritual do flanar, sem apreensão individual, sem conciliação entre o pessoal e o público. A metrópole na França está fadada ao peso do turístico, da cidade-museu, do urbano não funcional ao humano, do ambiente cujas motivações não são de um trânsito de acasos mas a um ritual muito marcado e formulado, assimilado pelo status que o flanar com viés cultural traz.

O esforço corporal deixa de ser do monge para ser de todos os outros corpos anônimos na cidade, impessoais, diante de um ritmo imposto a eles por uma dinâmica de sociedade ao redor do trabalho, quase oposta a ideia do Andarilho a dançar no urbano. No início dos três filmes o extremo e o cansaço podem ser características associadas ao monge protagonista, mas ao final a impressão que fica é que exaustos estão os corpos em movimento desordenado e perdido que testemunhamos com frequência ao redor dele.

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Kinoglaz Peeping Tom: suturas

Por Bernardo Oliveira

Em “Nós: variações do manifesto” (1919), o Conselho dos Três — capitaneado por Dziga Vertov, sua esposa Elizaveta Svilova e seu irmão Philip Kaufman — assevera que o futuro da arte cinematográfica estaria condicionado à aceleração de sua morte. “Nós afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da ‘cinematografia’ é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.” Opondo-se ao campo semântico que circunscrevia nesta época o termo “Cinema”, cuja morte o Conselho previa ainda no curso da década seguinte, Vertov propunha o Kinokismo, cujos preceitos diferiam radicalmente dos princípios norteadores da “arte sem futuro” no contexto norte-americano. Para além de um suporte meramente narrativo, o Kinokismo consistia “na arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior de cada objeto.”

No contexto pós-revolucionário russo, o Conselho propunha uma clara deriva em relação à perspectiva eisensteiniana sobre a arte cinematográfica, a busca pela especificidade do cinema segundo uma sorte de acoplamento técnico. Sua autonomia em relação a outras artes estaria diretamente ligada à substituição do drama e de seu fator “psicológico” inerente, relativo à imprecisão do olho e do corpo humanos, pelo cinematógrafo, o dispositivo maquínico revolucionário capaz de captar os registros invisíveis ao olho humano, transformar a imaginação coletiva e, com isso, a experiência de mundo. Articulado à precisão da câmera e da moviola, o olho humano poderia não só captar e regular os movimentos invisíveis da realidade —  por exemplo, a opressão, a superação — como também abrir caminho para outras formas de percebê-la e, por consequência, transformá-la.

Pela natureza transversal de seu movimento, o otimismo teórico de Vertov extrapolava o pensamento cinematográfico e se imiscuía nos debates políticos e científicos com suas reflexões que, sob certos aspectos, assemelhavam-se àquelas propostas pelo Futurismo e por todo o sentimento triunfalista que a ascenção dos valores tecno-científicos tornou unânime na Europa do final do XIX. Foram fundamentais suas projeções acerca de um “homem do futuro”, imune à morte e às imperfeições do corpo, da percepção, do entendimento: “o ‘psicológico’ impede o homem de ser tão preciso quanto o cronômetro, limita o seu anseio de se assemelhar à máquina.” Vale segui-los adiante em uma espécie de guinada futurista, e, a depender do ponto de vista, eugenista: “Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lento ao homem elétrico perfeito.” A busca pela concretização do “homem perfeito” remete a um consenso de época, de caráter multidisciplinar, relacionado à perceptível tendência para a fixação de modelos ontogenéticos. Servindo de paradigma, tais modelos se constituiriam como uma estratégia eficaz de reprodução da normalidade, garantindo o enraizamento da ideologia tecno-científica que marcou a virada do XIX para o XX.

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A ciência se utilizou das potencialidades do registro cinematográfico, como na produção do neurologista romeno Gheoge Marinescu, enquanto cineastas flertavam com os anseios de depuração, aperfeiçoamento técnico e enaltecimento da própria raça. Não raro percebemos os traços indisfarçáveis das linhas da produção cinematográfica atravessando o campo de batalhas políticas de cunho estatal, ou científicas, inseridas como ferramenta nos gabinetes, centros técnicos e laboratórios de pesquisa. De tal forma que o problema do racismo científico excede as fronteiras da própria ciência, reproduzindo socialmente toda a cornucópia de falseios nos quais se baseiam os modelos de segregação racial. O cinema criou suas ficções com ampla repercussão social e cultural, inclusive valendo-se de assuntos que fortaleciam as razões para a eclosão de movimentos fascistas e racistas nos Estados Unidos e em países europeus. Antes da biopolítica, antes mesmo da necropolítica, pudemos acompanhar, por dentro de suas entranhas, as sendas e veredas por onde se entrecruzaram o registro da imagem, as ciências e o racismo.

O modelo do “homem perfeito” egresso do Futurismo reverbera por todo o discurso Kinok, através de uma apologia do homem que detém o poder de subtrair-se à própria morte. Mas de que perspectiva o Kinokismo nos fala sobre a vida e a morte? A experimentação nos limites da estética como forma de purgar os efeitos libidinais de uma civilização autofágica? O acoplamento da percepção aos objetos técnicos como forma de transformar uma realidade, ampliando-a do ponto de vista da expansão do campo de experiências? Ou a utilização servilista da máquina assassina e opressora, que só concretiza seu poder através da eliminação do outro? Este último caso parece se identificar com Mark, o Peter Pan atormentado de “Peeping Tom”, filme dirigido em 1960 pelo cineasta britânico Michael Powell. Se pode ser considerado também como um “homem com sua câmera”, não me parece aleatório que sua relação com o objeto técnico seja atravessada por algumas demandas de ordem psico-fisiológica. O esquema que o filme de Powell propõe não é tão complexo, mas o resultado extrapola os fatores exclusivamente técnicos ou psíquicos e nos impele a uma análise tecno-fisiológica do que este homem faz com sua câmera.

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Quando criança, seu pai, psicólogo e estudioso do comportamento humano, o atormentava registrando em detalhes todos os momentos de sua vida, focando particularmente nos momentos em que Mark sentia medo. Já adulto, ele não resistirá ao impulso de causar o medo para poder captá-lo com seu objeto técnico, no caso, o cinematógrafo. Enquanto, do ponto de vista do Conselho, o olhar subjetivo é empecilho para uma apropriação potente do dispositivo audiovisual — o olho percebendo a realidade através de uma plasticidade regulável possibilitada pela câmera —, para Mark a câmera se constituirá como um prolongamento psiquíco, um disco rígido externo capaz de reencenar e ajustar provisoriamente os sentimentos negativos que o acometem quando revive os momentos torturantes de sua infância.

O fascínio pela morte tenderia a destacar-se da pulsão de morte, a primeira remetendo ao efeito libidinal associado a um regime afetivo que goza ante a anulação de toda existência (pois nunca concretizamos a morte como uma experiência). Ao passo que a pulsão de morte encena uma contradança com o instinto de vida, lançado-nos em uma existência determinada por aquilo que Espinosa chamava conatus, a potência em perseverar em seu próprio ser. Em decorrência deste entrelaçamento entre vida e morte, eclode um conjunto de relações, de trocas e equivalências libidinais, que oscilam entre a sustentação das contradições do capitalismo e a eclosão de seu mais terrível aspecto pulsional: niilista, assassino, destrutivo — por vezes, auto-destrutivo. Atentando para a diferença de natureza entre fascínio e pulsão, chegamos à conclusão de que o primeiro, como processo isolado, tende à satisfação neurótica, ao passo que o segundo se afigura de forma inescapável a toda existência.

O Kinokismo percebe o mundo através do dispositivo cinematográfico com o objetivo de criar movimento, o que implica em escapar do caráter indireto da representação e fazer com que aquilo que escapa à nossa percepção “se torne visível”: suturas entre a realidade disponível e a força de realização concreta atravessada por uma imaginação ampliada. Substitui, assim, a máquina psicanalítica estruturada sobre a relação consciente/inconsciente pelos efeitos criadores do homem-máquina. Ao passo que Mark, tomado pela tendência à satisfação neurótica, só vê a si mesmo e, por razões diferentes, também se transforma em uma espécie de “homem-máquina”. Mas uma máquina incapaz de criar movimento, máquina feminicida que silencia, oprime, massacra e se alimenta do medo alheio. Em sua aparente vulnerabilidade, Mark encontra força na máquina: introjeta a câmera, torna-se câmera e vice-versa. A câmera também ganha uma consciência, faz-se de armadilha, captura suas presas sempre em situação vulnerável, acolhe a covardia alheia, faz dessa covardia a sua própria: preconceito de câmera. Seu movimento é negativo porque simula a interiorização da violência e concretiza uma realização escabrosamente dialética. A câmera como máquina de matar e, através do feminicídio, uma ferramenta de ajustes e auto-correções psíquicas. Uma máquina assassina que se limita a buscar incessantemente a sutura canalha para uma ferida que permanece irremediavelmente aberta.

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Qual pedaço? – Sexo Surrealista e Violência

Por Adrian Martin

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1. Objetos Misteriosos

Perto do início de Feeling Sexy (1999), único filme até agora feito pela artista australiana Davida Allen, Vicki (Susie Porter) analisa um corte médico, um espécime cerebral em vidro, e indaga: “O que é a imaginação?”. Esta é uma das grandes questões subjacentes e anima o impulso surrealista no cinema. Eu poderia expressar isso de maneira diferente: qual é a parte invisível de um objeto e, ainda mais particularmente, de nossa experiência desse objeto? A vida cotidiana é cheia de objetos que, em sua aparência exterior, trazem pouco do que significam para nós: as memórias que desencadeiam, os incidentes em que estão envolvidos, as emoções que catalisam por meio de uma cadeia de associações internas. Para chegar a essa realidade mais profunda de aparências ocultas, você tem que contar uma história, pintar uma imagem, cunhar uma metáfora – ou fazer um filme.

E nós que estamos fazendo todo esse sentimento – nós também somos objetos misteriosos; Podemos parecer tão inertes ou inanimados quanto os objetos físicos ao nosso redor. O que é nesta massa de sangue e ossos, de órgãos e vísceras, que parte de tudo isso é materialmente nosso? Qual é o verdadeiro pensamento e sentimento, o amor e o sofrimento? Onde está o reino sensual, o reino poético, o reino criativo do ser humano? Qual é a imaginação nesse cérebro miserável e seccionado sob o vidro?

A própria palavra surrealismo, como é bem conhecido, significa um super-realismo, um realismo elevado. Não significa, em primeiro lugar, irrealismo ou anti-realismo – um equívoco comum. O alicerce da arte surrealista é, em muitos casos, extremamente realista. Jean Cocteau refletiu certa vez sobre sua experiência de fazer Orphée (1950): “Quanto mais perto você chega de um mistério, mais importante é ser realista”.

Georges Franju, com espírito semelhante, prefaciava seu curta-metragem La première nuit (1958) – um conto lírico de amor vislumbrado e perdido entre crianças, quando os respectivos trens que eles se encontram e depois passam longe um do outro em um metrô – com essa passagem dos autores originais de Vertigo, Pierre Boileau e Thomas Narcejac: “Um pouco de imaginação para que nossos gestos mais comuns se tornem carregados de um significado inquietante, pois a decoração de nossa vida cotidiana dá origem a um mundo fantástico”.

Franju também refletiu sobre a experiência inerentemente surreal da mudança de casa: de repente, os objetos domésticos se tornam estranhos e hiper-realistas, à medida que ele os remove de seus pontos habituais e os embala; espaços estranhos e zonas da casa – um canto empoeirado, um local esbranquiçado onde uma imagem pendia uma vez – são notados pela primeira vez. É a apreensão de um mundo surreal e estranho sob o mundo dado ou dentro dele.

Franju foi um dos vários artistas modernos que retornaram ao grande amor dos surrealistas: os seriados de crime e fantasia feitos na era silenciosa por Louis Feuillade, longos filmes (ou séries em episódios) nos quais assassinos em trajes de homens-sapos pulam pela verdadeira Paris e cafés com contracenantes involuntários sentados à pouca distância. A homenagem específica de Franju a Feuillade foi seu filme Judex (1963); mais recentemente, Olivier Assayas retornou a outra série de Feuillade, The Vampires (1915-1916), em seu Irma Vep (1996). Alain Resnais nutriu seu próprio projeto nesse sentido, comentando: “As pessoas dizem que há uma tradição de Méliès no cinema e uma tradição de Lumière: eu acredito que há também uma corrente de Feuillade, uma que liga maravilhosamente o lado fantástico de Méliès com a realismo de Lumière, uma corrente que cria mistério e evoca sonhos pelo uso dos elementos mais banais da vida cotidiana (entre os comentaristas de Resnais, Richard Roud chama essa conjunção de fantasia e realismo, estilo Magritte, precisamente de “o método surrealista”).

Comecei este devaneio com aquele espécime cerebral de aparência curiosa em Feeling Sexy porque aponta um conjunto de termos e sensações que são cruciais para o surrealismo. Primeiro, a filosofia deste mundo material nosso em relação a outro mundo – não um mundo em outro lugar, no céu ou no inferno ou sobre o arco-íris, mas aqui mesmo, dentro dos recessos secretos do mundo dado. Segundo, a noção de uma força animada, alguma emoção ou desejo que respira vida nas estátuas de pedra da realidade. Histórias surrealistas são tantas vezes uma forma de rejuvenescimento, reavivamento, um despertar para a vida ou uma reabertura para as maravilhas do mundo cotidiano: da alegre comédia de ficção científica de René Clair da era silenciosa, Paris qui dort (aka The Crazy Ray, 1927) – em que um laser pode congelar e descongelar o mundo em suas trilhas – para as visões políticas dos irmãos Taviani em filmes como A Noite das Estrelas Cadentes (1982) e Kaos (1984), no qual o som da música, viajando magicamente através da terra ou do mar, pode agitar um indivíduo, uma comunidade ou uma nação inteira em música e dança instantâneas e ação revolucionária, num transe febril e possuído.

Vamos considerar agora não um filme surrealista certificado, mas o tipo de filme que os surrealistas de ontem ou de hoje poderiam gostar de assistir: um filme de terror de Hollywood, The Devil-Doll (1936), dirigido por Tod Browning (que fez o inquietante clássico Freaks em 1932), derivado de uma história de Erich von Stroheim. Uma cena inicial demonstra o plano maligno e visionário de um cientista louco do estilo Dr. Frankenstein, que sonha em encolher a população do mundo inteiro (por razões não especificadas em termos racionais). O que eu acho irresistivelmente surrealista neste espetáculo? Em primeiro lugar, a louca obsessão magnífica envolvida: encolher o mundo! E porque não? Eu adoro a forma como essa suposta racionalidade científica passou completamente para a irracionalidade quase mística: isso é ciência como vodu, ou como truques de mágica de circo (e, aqui novamente, vemos aqui o legado dos filmes de truques de Méliès). Então, eu amo os efeitos especiais em dois registros: tiros nos quais uma figura humana foi inserida em uma imagem normal para criar um desequilíbrio de escala; e aqueles em que enormes conjuntos foram construídos para dar a ilusão de um vasto mundo enorme superando as matérias encolhidas. Eu também adoro os in-between shots: momentos em que atores estão segurando bonecas inanimadas ou adereços, ou aplicando pedaços de algodão apenas fora da tela, abaixo da linha do quadro.

Não me entenda mal: não estou dizendo que os efeitos especiais analógicos de 1936, porque eles não são tão simples quanto os efeitos digitais em Star Wars: Episódio 1 – A Ameaça Fantasma (1999), são risíveis. Muito pelo contrário: quando você consegue ver os fragmentos de artifício e ilusão, então o efeito estranho, onírico e poético – o efeito surrealista – pode ser aumentado em dez vezes. Claude Ollier uma vez elogiou os efeitos especiais algo desajeitados e óbvios no King Kong original (1933) ao observar: “Tão verdadeiro é que o mundo dos sonhos é um dos efeitos especiais, com deslocamentos ópticos, quebras sequenciais e descontinuidade geral”. Evocou “um universo visual que percebe perfeitamente o efeito de ‘colagem’ básico de qualquer visão de pesadelo: espaço pontilhado e tempo pontilhado, lacunas, sobreposições e incompatibilidades em ação, zonas de duração imponderável, vazias, nas quais apreensões de irrealidade caem de cabeça”.

Espaço pontilhado e tempo pontilhado – essa frase me lembra uma “inscrição” do surrealista belga Louis Scutenaire, que certa vez pensou: “Meu gosto por Popeye, o marinheiro, nos desenhos de Max Fleischer, deve muito às liberdades que ele toma. Há uma crença muito cinematográfica de que o espaço e o tempo devem ser considerados como crenças humanas estimadas – e, consequentemente, descarrilados e subvertidos. É por isso que os cinéfilos surrealistas têm tal gosto pelas muitas variedades do cinema B; porque podemos encontrar lá (intencionalmente ou não) um tipo de associação livre e hiper-lógica entre peças e pedaços de papelão, uma montagem maluca entre peças de enredo, personagem e ideia.

A boneca-diabo é explicitamente sobre o tema da animação, o sopro da vida. E que vida isso traz! Quem é essa mulher na cena de demonstração, meio humana e meio boneca, esticando os braços e bocejando como se tivesse acabado de acordar de algum sono de beleza voluptuoso e sobrenatural? Sua imagem alongada – como a imagem de seu corpo envolto em lã, energizada pela eletricidade – é uma daquelas visões impressionantes, desconectadas e excessivas que o cinema surrealista adora apresentar, e que o gosto surrealista gosta de descobrir. Imagens (ou melhor, eventos de som da imagem) que saem do filme à mão, sabotam o enredo, prendem a situação e congelam as inter-relações psicológicas dos personagens, para que algo incandescente e verdadeiramente fenomenal surja, fenômenos de absoluto , estranheza e intensidade máximas.

Em todo o cinema, minha descoberta surrealista favorita desse tipo está em um trabalho silencioso do filme de Fritz Lang, Spione (1928). Uma cena começa, não sabemos onde, como ou por que – uma moldura vazia em algum espaço não identificado. Então, um braço se abaixa lentamente em direção à estrutura: o braço de uma mulher, impecavelmente vestido, polido e apresentado, com a mão segurando uma pequena e delicada pistola prateada. O gatilho é suavemente apertado e um tiro voa. Em algum lugar no espaço que ainda não podemos ver, dentro de uma maquinação de enredo que ainda não conseguimos entender, um cara acaba de levar uma bala no coração. Aqui, em um momento delirante e sublime, é uma boa iniciação nos anais do sexo e da violência surrealistas.

2. Um modo surrealista de ver

O desejo, por muitos anos, teve uma má imprensa na teoria do cinema. O olhar e suas perversões associadas: voyeurismo, escopofilia, fetichismo. Esse tipo de visão vilificada é um olhar distante, faminto, vazio, indiferente, irracionalmente brutal. É o olhar dado por perseguidores, slashers e psicopatas por trás das folhas das árvores nos filmes de Sexta-feira 13 (1980) ou Halloween (1978) – onde a câmera gentilmente toma o lugar dos olhos de perigo estranho do assassino invisível, um olhar dirigido a colegas em dormitórios, crianças ao redor da fogueira ou ao nossos videocassetes. Muito antes da série Pânico de Wes Craven (1996-), os filmes de Brian De Palma dos anos 1970 e 1980 já estavam remetendo essas convenções do “olhar faminto” podre – e, pode-se sentir, igualmente enviando as teorias solenes que estavam ansiosas comentando sobre eles.

A visão surrealista é uma maneira diferente de ver. É criativo reinventar o que se vê. Investe-se intensidade e mistério na menor coisa, ou na menor parte de uma coisa: uma boa definição de fetichismo, se você puder separar esse termo das teorias freudianas da ansiedade de castração de um menino. A maioria dos artistas são fetichistas em um sentido positivo – certamente, os artistas surrealistas são. Eles também são perversos em um sentido positivo. Pois o que é perversão, exatamente? É a religação, a re-canalização das peças do mundo, as peças da ordem social, através de um novo e diferente tipo de lógica. Crash (1996) de David Cronenberg, por exemplo, não é um testamento triste, monstruoso, violento, ofensivo e doentio; Não acho isso frio, desumanizador ou misógino, como alguns o fazem. A visão de Cronenberg é perversa em um sentido criativo: imaginar, e imaginar conexões sem precedentes entre pedaços de corpos e pedaços de máquinas, entre estados emocionais e desejos num mundo onde personalidades e interações entre personalidades (“relacionamentos”, costumávamos chamá-los) foram além do choque, do trauma e da alienação em alguma zona límpida e misteriosa.

A maneira surrealista de ver tende a andar de mãos dadas com a criação e a chegada de novos mundos – mundos da tecnologia, mídia, showbiz, glamour e celebridade. O surrealismo gosta de qualquer estrato social que já esteja fora do chão, elevado e exagerado, em uma escada para o céu ou um elevador expresso para o inferno. A visão surrealista muitas vezes é trabalhada nos enredos e situações dos filmes de inspiração surrealista; como determinados personagens privilegiados olham, veem e  nos dirigem e nos orientam nessa mesma direção sonhadora.

Os filmes de Federico Fellini, por exemplo, gostam de adotar um tipo de visão perturbada, uma percepção sensorial intoxicada. Em Toby Dammit, seu episódio de 35 minutos para a antologia de Edgar Allan Poe, Spirits of the Dead (1968), Toby (Terence Stamp), uma estrela de cinema inglesa ultra-decadente, é entrevistado em um programa de TV. Fellini, aqui, enlouqueceu a percepção sensorial de Toby, ao mesmo tempo em que a personificava e incorporava em sua linguagem de imagem e som do próprio filme. O espaço do mundo, de qualquer lugar, local ou cenário, explode em mil fragmentos cintilantes. Mais uma vez, espaço pontilhado e tempo pontilhado. Fellini dirige este set de entrevistas na TV para a descontinuidade máxima: Toby é banhado por uma luminescência branca e sobrenatural, enquanto tudo ao seu redor está girando incessantemente, movendo-se, navegando, rastejando. Cada foto, cada imagem, é como sua própria ilha atomizada. Os rituais arcanos do showbiz moderno – como o anfitrião do programa desaparecendo abaixo da linha de enquadramento da câmera de TV, avançando em suas mãos e joelhos – tornam-se um momento de visão visionário para Toby.

Tudo é artifício e ilusão, todas as costuras aparecendo – assim como a risada enlatada que vemos e desaparece manualmente, duas décadas antes de aparecerem dispositivos semelhantes em O Show de Truman (1998), de Peter Weir. O estilo de camerawork e corte de Fellini se agarra e, em seguida, trunca abruptamente tudo no meio da viagem ou no meio do gesto, em movimento incessante e inquieto, não necessariamente orientado ou motivado pela ação dos personagens. O diálogo pós-sincronizado está lá, como em um filme de Orson Welles, através das imagens sem sempre respeitar os movimentos dos lábios dos atores. Este típico herói Felliniano – uma alma frágil e perdida, flutuando em um mundo de aparências giratórias e sedutoras, que são muitas vezes, na verdade, uma infinidade de imagens de si mesmo – também é propenso a visões internas emprestadas do cinema de terror, como a notável menininha que o assombra no conto. No geral, o que recebemos aqui não é simplesmente conteúdo ou preocupações surrealistas, mas uma textura surreal mais voltada para as superfícies de um mundo moderno e maluco.

Uma cena relacionada, de uma forma ainda mais cômica, vem da minissérie de TV de três partes de Raúl Ruiz, Manoel na Ilha das Maravilhas (1984, com uma curta edição de longa-metragem intitulada The Destinies of Manoel, em 1985). Série feita, de fato, para crianças, que há muito tempo são uma aspiração de artistas surrealistas de todos os tipos (Jacques Brunius lamentou que, já no final da década de 1940, estava “se tornando quase impossível compor um programa para crianças”). A cena oferece uma cerimônia surreal, mais uma vez em um cenário moderno do showbiz: uma transmissão de rádio ao vivo. Como muitas vezes no trabalho de Ruiz, a cena nominal aqui é mais como um universo constantemente encolhendo e se expandindo como o corpo de Alice no País das Maravilhas; está constantemente se ramificando em outros mundos alternativos, transformando-se, metamorfoseando-se. Como Fellini, Ruiz emprega o máximo de voice-over e pós-sincronização para maior liberdade de manipulação do som, de modo que o estranho texto verbal flutua acima ou abaixo da ação. Esta transmissão de rádio, ocorrendo no espaço estranho e indefinível do domínio de uma menina talentosa, é introduzida no filme por uma voz desencarnada que vem através de um rádio doméstico, assim dá um salto instantâneo para outro filme virtual acontecendo longe da trama principal. As transições de cena são frequentemente traiçoeiras, dessa maneira, no trabalho de Ruiz.

Depois, há os jogos visuais que asseguram a expansão infinita do espaço e a fluidez ou maleabilidade de todas as figuras e objetos: as pessoas se tornam sombras nas paredes, uma lente Split Diopter permite justaposição de um primeiro plano extremo e um fundo extremo, com uma linha difusa ou zona no meio da tela; ângulos malucos – como o repórter de rádio visto através das curvas da pista de corrida de carros modelo – abstraem, multiplicam e redefinem as possibilidades espaciais em cada turno. Como em Fellini, tudo aqui está em movimento perpétuo, incluindo uma criança flutuante e levitando (a quem você nunca vê em toda a extensão), além de vários personagens sendo rodados em cadeiras.

Em Manoel na Ilha das Maravilhas, como um todo, o enredo continua se reiniciando, dobrando de volta, oferecendo novas versões de si mesmo. Em particular, a história é uma variação selvagem do que a psicanálise chama de “romance familiar” – a história arquetípica em que uma criança procura por sua identidade na forma de pais biológicos (que, em Ruiz, continuam transformando-se em diferentes mas com pessoas parecidas, como se todas tivessem sido fisgadas por alienígenas), e para qualquer lugar chamar uma casa estável ou sólida ou um ponto de origem. Mas o garotinho Manoel, perdido em um fluxo constante de possíveis famílias e lares, é o eterno órfão surrealista: como as crianças em Moonfleet de Lang (1955) ou A noite do caçador (1955) de Charles Laughton – dois exemplares inebriantes e inclassificáveis de Hollywood, filmes amados por cinéfilos surrealistas – Manoel é transportado de uma estranha casa improvisada para outra, para campos mágicos e cavernas assustadoras, onde a única paisagem que pode dominar ou sintetizar sua jornada é o mar, que é a imagem favorita de Ruiz do inconsciente de fluxo e auto-abandono.

3. Política Surrealista

Dirijo-me a outro diretor contemporâneo mais conhecido, cujos filmes também são frequentemente sobre identidades e famílias em crise e fluxo: David Lynch. Lynch é uma figura chave para uma sensibilidade surrealista contemporânea, simplesmente porque, em primeiro lugar, confia plenamente em sua intuição inconsciente. Ele descreve como as imagens, personagens, eventos, gestos e tramas de seus filmes surgem de um processo controlado de devaneio sonhador, meio adormecido e meditação profunda e suspensa – assim como Ruiz escreveu outra de suas obras, City of Pirates (1983), usando uma técnica que ele descreveu como uma “sesta experimental”, fazendo-se dormir todas as tardes, em algum lugar estranho da casa, segurando um objeto que ele achava que poderia usar no filme, como uma bola saltitante de uma criança ou uma estátua. Como o crítico de influência surrealista Raymond Durgnat uma vez sucintamente colocou em relação a Veludo Azul (1986): “A psicologia não é sobre o que o filme trata: o enredo é apenas um pretexto para um sonho. Ou melhor, um spin-off de um sonho. Tenho certeza de que Lynch sonhou com esse filme primeiro e planejou depois”.

Lynch faz suas narrativas e personagens, seus temas e humores, subservientes a uma lógica onírica que permanece verdadeira e parece correta, mas não pode ser totalmente articulada ou conscientemente expressa pelo artista. Essa é a diferença entre Lynch e alguns outros artistas que lidam com fantasia (como Neil Jordan ou Sally Potter), onde as lógicas dos sonhos parecem muito conscientes: racionais, teorizadas e pré-programadas na maneira como aparecem e modulam na tela.

Lynch é importante, também, pelos argumentos e debates que ele incita. Seu surrealismo é flagrantemente incorreto, na maneira insolente, desobediente, às vezes alegremente nerd e adolescente que a arte surrealista costumava ter. Como os filmes de Cronenberg, que também traçam lógicas inconscientes profundas e misteriosas, Lynch acaba se tornando provocativo na forma como eles usam e abusam das fixações políticas atuais – muitas vezes puritanas em seu fervor ideológico – e agitam os nós neuróticos e tensos no discurso público. Seus filmes muitas vezes me lembram desse famoso slogan surrealista: “Bata na sua mãe enquanto ela ainda é jovem”. Imediatamente, nós pisamos naquele campo minado de crítica política do surrealismo: particularmente o que acusa o surrealismo em geral, e alguém como Lynch, em particular, de ser nada mais do que um foco de fantasias masculinas construídas sobre os corpos irreais e ilimitados das mulheres.

Há alguma verdade nesta queixa. A recorrência de figuras más da mãe e mulheres violadas em trabalhos de Lynch, incluindo Twin Peaks e Lost Highway, é frequente demais para ignorá-las. Figuras femininas frequentemente figuram como projeções psíquicas dos personagens masculinos: sob controle até virar a mesa e começar a existir independentemente dos homens, o que regularmente desencadeia revelações conspiratórias, paranoicas e até mesmo apocalípticas. No mínimo, teríamos que admitir que Lynch produz uma fina poesia e modela um grande cinema a partir desse nexo de projeções de fantasia e pesadelos de castração – e ele investe seus estereótipos de gênero com mistérios e ambiguidades.

Considere esta passagem de duas cenas consecutivas no Veludo Azul. Jeffrey (Kyle MacLachlan), o herói geek do tipo boy-scout, divide as mulheres em sua psique em dois tipos radicalmente opostos: o tipo limpo, loiro, virginal, Sandra Dee (Laura Dern como Sandy) e o misterioso, a voluptuosa, prostituta maternal (Isabella Rossellini como Dorothy) – sendo esta última assustadora como todo o inferno, mas oferecendo uma iniciação no lado deliciosamente escuro da rua. Lynch cria um tipo diferente de estilo e textura para as cenas que envolvem essas mulheres: as cenas de Sandy são todas de nostalgia dos anos 50, malta de malhas, normalidade em tons pastel – mas não é uma normalidade que você possa realmente gostar ou endossar ou acreditar – enquanto as cenas de Dorothy desencadeiam a ideia completa do surrealismo artruso: objetos fetiches como batom vermelho, deformações de tempo e espaço na escuridão, inserções fantasmagóricas e expressionistas de chamas e outros símbolos obscuros (mas carregados).

Admitamos que Blue Velvet é, em alguma medida, uma fantasia masculina que pertence de uma só vez a um personagem fictício, ao diretor e a uma sociedade. À medida que as fantasias masculinas se passam, tornam-se mais intrigantes e cativantes. Mas certamente estamos errados se tomarmos a posição geral de que o surrealismo é inerente e suspeitamente masculino em sua própria natureza e impulso. Em sua história, sim, até certo ponto; mas em sua quintessência, não. Formas surrealistas de imaginação, visão e contação de histórias não se limitam aos homens, e temos muitos filmes, incluindo Daisies de Vera Chytilová (1966), The Pirate’s Fiancée (1969) de Nelly Kaplan e Amelia Lópes O’Neill (1990) de Valeria Sarmiento para provar.

O surrealismo não pode ser investigado, diagnosticado ou atacado de forma muito literal. Se tomarmos uma abordagem literal, se lermos puramente o que pode ser visto à primeira vista, então é fácil cair na intolerância moralista e desaprovadora – encontrar evidências a cada passo de que o surrealismo é repressivo, punitivo, dirigido pela morte, o privilegiado passatempo libertino de um culto social exclusivista, movido apenas pela ansiedade, repressão, homofobia, misoginia e alienação. Mas essa linha de ataque é difícil de sustentar quando o surrealismo se propõe a nos ensinar, em primeiro lugar, que as aparências nunca são meramente aparências. As aparências são na verdade véus, pretextos, metáforas, encarnações fugazes ou aparições de fervura de algum sentimento ou impulso mais profundo e amplo. Outro grande e lúdico slogan surrealista, este emprestado de uma era romântica de arte, literatura e filosofia há muito tempo anterior ao surrealismo: a vida é um sonho. O que significa que este mundo, o mundo em vigília, é a ilusão, a habitação temporária, enquanto o mundo dos sonhos é o reino verdadeiramente real e coletivo que só conseguimos vislumbrar e aproveitar enquanto dormimos, enquanto estamos vivos.

É nesse caminho sombrio e fugaz que devemos explorar as representações e evocações de sexo, violência e transgressão do surrealismo – o conteúdo que muitas vezes é rotulado como doente ou suspeito por seus críticos contemporâneos. O dano causado aos corpos no surrealismo é uma violação menos literal do que a fuga e o abandono figurativo, ao estilo de fantasia. Cronenberg diz isso em filme após filme: “viva a nova carne”, um grito surrealista para a era cibernética. Vamos dar um exemplo literário desse processo complicado. Em uma passagem particularmente delirante de seu romance Camponês de Paris, de 1926, Louis Aragon mergulha em um devaneio sobre a experiência do amor e do desejo como uma experiência de se perder. Quanto a mim, desejo apenas que esses corpos estranhos que me seguram juntos me deixem finalmente, que meus dedos, meus ossos, minhas palavras e sua amálgama me abandonem, que eu me separe no azul magnético do amor!

Há uma parte particular desta passagem potente em Camponês de Paris que há muito me cativa. É quando Aragon se debruça sobre o oceano (as imagens lembram a Cidade dos Piratas de Ruiz) e os cadáveres que se encontram no fundo: Mar, você realmente ama os cadáveres putrescentes de suas vítimas afogadas? você ama a suavidade de seus membros fáceis? Você ama o amor que vem das profundezas insondáveis? Sua pureza incrível e seu cabelo flutuante? Então deixe meu oceano me amar.

Um dos aspectos mais notáveis da prosa de Aragon é sua violência. Uma certa perda é descrita como um assassinato, uma automutilação prolongada, a decadência do corpo. Este é um clássico paradoxo surrealista, pura lógica surrealista: a pureza do amor (que é sobre o que Aragon realmente fala) é retratada como a pureza da morte; e imagens horríveis da morte servem, de fato, como uma imagem da vida, da força da vida. As imagens de Aragon podem parecer, à primeira vista, horríveis, mas, acima de tudo, são rapsódicas. Pois a perda ou morte de si mesmo que ele interpreta não é trágica, mas exatamente o oposto: é estática, uma celebração selvagem.

O surrealismo tem seu próprio programa político bem desenvolvido. Pode parecer um tanto utópico e antiquado hoje em dia, essa política com sua invocação de revolução permanente no plano do cotidiano. A ideia de revolução permanente é em si um paradoxo, às vezes escondendo uma reflexão tardia melancólica. A revolução é permanente, contínua, perpétua – mas nunca chega verdadeiramente. Isso não significa que a revolução não vale a pena experimentar ou lutar; mas há um ponto de interrogação sobre sua eficácia e praticidade no mundo real.

De certo modo, esse é o ponto político do surrealismo: há sempre algo mais, algo melhor, esperança, esforço, sempre um novo prazer a ser encontrado onde você está, sempre uma nova transformação a ser alcançada, algumas novas potencial a ser extraído. No entanto, é interessante que, quando se trata de surrealismo e cinema, grande parte da escrita expressa uma decepção inconfundível. Jean Epstein na década de 1920 elogiou o cinema por suas qualidades mágicas do que ele chamou de fotogênico – quando ampliado, rostos, gestos na tela se torna irreal e sublime – mas ele já pensou: “Eu nunca vi um minuto inteiro” de pura foto-gênese. Durante setenta anos, escritores e críticos surrealistas adotaram o cinema como sendo o ideal do meio de sonho, a porta de entrada para o inconsciente e o fantástico, enquanto também, na próxima sentença, expressam pesar por uma indústria cinematográfica por dinheiro, que quer nos vender apenas sonhos e fantasias formulados e comprometidos, desejos comercializados e mercantilizados. Ainda assim, eles voltam ao cinema procurando por aquele lampejo de êxtase, aquele vislumbre de outro mundo que, ainda que breve e inadvertido, pode ser profundo, devastador, capaz de mudar a vida, realçar a realidade. Talvez toda a nossa relação com a arte e a cultura siga uma lógica tão inquietante de desapontamento perpétuo lutando com uma esperança irreprimível e impossível.

Eu sou lembrado aqui de um ensaio sobre surrealismo escrito pelo famoso filósofo alemão e comentarista social Walter Benjamin. Em uma reflexão de quão fugazes, efêmeras, às vezes quiméricas são as promessas e fantasias do surrealismo, Benjamin evocou uma cena bastante melancólica, mas adorável (e certamente cinematográfica). Breton, especialmente em seu romance Nadja (1928), foi “o primeiro a perceber as energias revolucionárias que aparecem no ‘antiquado’ – nas primeiras construções de ferro, os primeiros edifícios fabris, as primeiras fotos, objetos que começaram a ser extintos, os pianos de cauda, os vestidos de cinco anos atrás, restaurantes da moda quando a moda começou a se desfazer deles”. E continua: “Breton e Nadja são os amantes que convertem tudo o que experimentamos em lúgubres viagens ferroviárias (as ferrovias estão começando a envelhecer), em tardes de domingo esquecidas pelos Deuses nos bairros proletários das grandes cidades, à primeira vista através da janela turva pela chuva. No apartamento, em experiência revolucionária, se não ação. Eles trazem as imensas forças da “atmosfera” escondidas nessas coisas até o ponto de explosão. Que forma você supõe o momento decisivo de uma vida que foi determinada como uma música de rua, passada na boca de todos?”

4. Ficção Surrealista

Precisamos prestar atenção às formas de ficção surrealista, narrativa surrealista, a fim de contrabalançar o que muitas vezes é enfatizado sobre as imagens, sensações e espetáculos singulares dessa tendência. Eu me volto para meu exemplo final, o maior filme do grande surrealista do século XX, Luis Buñuel.

Hoje em dia ouvimos muito sobre a narrativa de histórias como uma força vital, positiva e quase nova. Suntuosos manuais de como escrever um roteiro, modelados principalmente em meia dúzia de mãos, enormes sucessos de Hollywood; pregam a necessidade de heróis fortes, conflitos, estruturas clássicas de três atos – e, acima de tudo, a necessidade do (normalmente masculino) herói para fazer uma jornada definitiva, muitas vezes uma jornada literal, física, baseada em ação, na qual ele ganha algo, ganha alguma coisa e se encontra.

É esclarecedor comparar os filmes de Buñuel ou Cronenberg com esse modelo prescritivo irremediavelmente limitado. Histórias buñuelianas sobre uma gangue de burgueses que olham interminavelmente para uma refeição (The Discrete Charm of the Bourgeoisie, 1972) ou que tentam sair de uma sala (The Exterminating Angel, 1962) não têm o padrão de três atos, conflitos bons contra maus ou triunfantes. São, em vez disso, histórias de repetição enlouquecedora, construídas sobre uma sucessão quase musical de temas e variações. Esses filmes surrealistas têm formas e padrões notáveis, altamente originais e únicas de um trabalho para o outro, mas raramente (ou nunca) o gráfico de Hollywood normal e padronizado.

A ideia de uma jornada, no entanto, pode ser resgatada e reescrita de uma perspectiva surrealista. Os surrealistas há muito amam certos tipos de jornadas míticas e aventuras: a jornada de Alice pelo País das Maravilhas, O Progresso do Peregrino, A Odisseia, As Estações da Cruz. Mais recentemente, o gosto surrealista surgiu em coisas como Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966), no qual se registra viagem pelo interior de um corpo humano; ou as muitas prestações através da mídia do épico Star Trek (1966-), com suas constantes rupturas e deformações do contínuo tempo-espaço, e aquele dispositivo chamado Holodeck que simula mundos alternativos e às vezes os solta em um selvagem, imparável contágio. (A série Star Wars, por outro lado, é muito parecida com um manual triste de como escrever um roteiro).

Os surrealistas amam as viagens porque estas implicam transformação, metamorfose; bem como a experiência de ser movido, transportado, levado para algum lugar dentro do passeio emocional e imaginário criado por um filme. Mesmo os “arcos de caráter” amados de Hollywood podem ser bem aproveitados, uma vez que quanto mais um personagem muda, mais distante ele ou ela pode se afastar de si mesmo e de seu papel social sancionado. Algo desse gosto por mudanças radicais era evidente, por exemplo, na consideração intoxicada de Ado Kyrou pelos papéis constantemente mudados por Marlene Dietrich nos exóticos melodramas de Josef von Sternberg no início da década de 1930: “Nunca consegui enumerar os figurinos de Marlene em Shanghai Express (1932)”.

Belle de jour (1967) oferece um papel magnífico. É preciso uma dona de casa de classe média reprimida (Catherine Deneuve como Séverine), sexualmente alienada e frígida em casa, impulsionada para o meio de um bordel de alta classe. Assim, ela é uma cidadã modelo à noite e uma beleza sem lei durante o dia – já uma inversão intrigante da polaridade dia/noite tipicamente carregada. O estilo caracteristicamente calmo, discreto, sutil e manhoso de Buñuel nunca dramatiza mudanças de caráter dentro de uma determinada cena. A jornada pessoal de Séverine em e entre vários níveis de vida consciente, pré-consciente e inconsciente descreve um itinerário que se imprime em seu ser apenas da maneira mais ilusória, fantasiosa e inverificável.

O que mais importa, para nós, como espectadores, são as súbitas progressões e saltos de uma cena para a outra. Cada cena é concebida e construída como um quadro ou estação (exatamente como aquelas Estações da Cruz, que atraíram a sagacidade blasfema do diretor em A Via Láctea, 1969) – e quando passamos para cada uma delas, há uma colisão hiperlogical, uma elipse. Séverine passou de um nível para outro, um planalto mais estranho, mais complicado e mais perverso – mas, no tempo que passou, aquele personagem teve tempo de se acostumar com esse novo mundo e se aclimatar a ele, porque agora o trata como vida cotidiana normal. Nós, por outro lado, assistindo ao filme, demoramos um pouco mais para entender realmente o que está acontecendo e onde estamos agora; corremos para acompanhar, conceitualmente, essas mudanças sem fôlego. É uma forma ostensivamente excitante de ficção que Cronenberg também usa.

Assim, podemos ver por que as aparências são tão importantes no cinema surrealista: mudanças súbitas em figurino, penteado, maquiagem são tão importantes em Belle de jour, Xangai ou Rivette em Céline e Julie Go Boating (1974) porque marcam esses saltos praticamente inexplicáveis. e metamorfoses. Mudanças na aparência marcam mudanças ainda maiores no caráter, na identidade e na psicologia: as pessoas raramente acabam sendo iniciadas como na ficção surrealista. De fato, eles podem acabar se contemplando literalmente do lado de fora, na forma de um clone duplo ou dopplegänger: como a criança que uma vez foi, e poderia facilmente ser novamente, com outro lançamento no espaço-tempo do universo.

Considere o segundo dia de Séverine no trabalho em Belle de jour. Em primeiro lugar, o elemento de surpresa ou revelação no final desta cena: seu rosto varrido de êxtase erguendo-se dos lençóis, dizendo casualmente a linha mundana: “O que você sabe?” Segundo, os dispositivos poéticos simples, mas muito eficazes. Multiplicado e espalhado pelo filme em muitas variações e ecos: o sino que o homem toca, e as muitas maravilhas misteriosas fora da tela, invisíveis, o invisível dentro do visível, como o que o cliente tem em sua caixa, ou (em outra cena), o que Séverine e um cara estão fazendo debaixo de uma mesa de restaurante com uma garrafa quebrada. Terceiro, e acima de tudo, o sentido de uma jornada, uma progressão que nos leva muito além dos polos extremos da moralidade ou amoralidade, além do bem e do mal, noções passadas de alienação e repressão e em um mundo sem peso do sexo, desejo, boa aparência e comportamento ritual hiper-refinado. Buñuel teria concordado com Ruiz, que certa vez sugeriu que as duas grandes forças que estruturam o universo são a vontade de mistério e a vontade de ministrar – tudo o que é, por um lado, mágico, maravilhoso e surpreendente; e depois, por outro lado, tudo ordenado, racional e burocrático. Mas com esta condição dinâmica: temos que estar conscientes de que o mistério pode facilmente tornar-se ministério, chato, não surpreendente e estereotipado; enquanto o ministério, em seu excesso de racionalidade e rotina, pode se tornar misterioso e completamente louco. Belle de jour nos mostra um mundo bem preparado, posicionado neste desafio entre o mistério e o ministério.

Uma vez, tentando formular a filosofia particular ou visão de mundo do surrealismo, eu ponderei as opções usuais. Por um lado, o surrealismo definitivamente não é religioso ou metafísico. Sempre foi orgulhosa e ferozmente mantida no credo de 1880 de Louis Auguste Blanqui de “nem Deus, nem mestre”. Em algum sentido fundamental, o surrealismo está fundamentado na realidade do mundo. E é de natureza política, frequentemente esquerdista em sua orientação e afiliações. Então, poderíamos chamar o surrealismo de materialismo? Bem, sim, mas isso não parece muito divertido – e muito severo.

O surrealismo é, ao mesmo tempo, sobre o invisível, “outro” mundo, o invisível no interior do visível, carregando o visível. Mas há uma via de mão dupla de comunicação entre os domínios do imaginário e do real que Gilles Deleuze descreveu melhor. “Por quê”, pergunta ele, “podemos distinguir entre sonhos como fantasia e caminhar na rua como reais? Vemos claramente por que o real e o imaginário foram levados a exceder-se, ou mesmo a intercambiar-se um com o outro: um devir não é imaginário, mais do que uma viagem é real. Está se tornando a mais desprezível das trajetórias, ou mesmo uma imobilidade fixa, em uma viagem; e é a trajetória que transforma o imaginário em um devir. Cada um dos dois tipos de mapas, os de trajetórias e dos afetos, refere-se ao outro”. E acrescenta: “E assim como as trajetórias não são mais reais do que os devires são imaginários, há algo único em sua união que pertence apenas à arte”.

Porque o surrealismo é sobre uma força animadora de sentimento, desejo e investimento emocional, também precisamos afirmar que é, também, uma filosofia estática. Não uma espiritualidade religiosa, mas transes e transportes, sonhos e visões, o inconsciente. Se existe um misticismo no surrealismo – e muitos surrealistas têm sido atraídos, teoricamente ou praticamente, para funções que incluem o uso de drogas, o vodu e o ritual mágico – então é um misticismo mundano secular ou terreno. E se há materialismo no surrealismo, certamente tem que ser um materialismo estático. E é por isso que, sempre que me perguntam hoje em dia qual é a fé que possuo, ou em que ideologia acredito, essa é sempre a minha resposta preferida: sou um materialista em êxtase. E essa é a minha maneira de tentar participar, como cinéfilo, da eterna e contínua aventura e experiência do surrealismo no cinema.

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A cor enquadrada nos vãos da imagem – em busca do rosto da morte

Por Diogo Serafim

With Blue – uncertain – stumbling Buzz –
Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –

Emily Dickinson

schiele

Saturno devora o seu filho, atira flechas contra a quimera de Frida, cobre de flores o corpo de Mendieta. O esvanecimento do laranja de Rothko para o vermelho que o contorna, a aura flava que apossa o entorno da cabeça inclinada do Cristo de Velásquez, o abraço da seda preta com a vermelha no lençol branco de Schiele – nada disso trata de uma transição brusca, mas sim de uma dinâmica constantemente equilibrada pela confrontação direta da ideia de morte, ontologicamente limitada, com a sua inevitabilidade espontaneamente sentida. Trata-se de uma cinesia que se dá no tempo, e não na suspensão deste, apreender a cor que sustenta cada predicado constituinte da morte, pesar cada contato interrompido ou arroubo descontinuado que contorna o seu evento e unir todas essas previsões, subjetividades e parâmetros em uma base estrutural, alicerçada na certeza de que o único momento em que a vida não me inclina para a ideia de morte é quando esta já se faz presente no meu corpo. Só penso em viver quando tenho em mim que, inevitavelmente, vou morrer.

A morte e a vida do corpo é sempre transcendida na obra de Brakhage – na luz pasteurizada que sai da janela para incidir no ventre habitado de Jane, com seu corpo submerso em água, em Window Water Baby Moving (1959) para o corpo inerte violado em autópsias de pessoas inominadas em The Act Of Seeing With One’s Own Eyes (1971), a forma deste se altera conforme a necessidade, seja na concepção ou na morte, na deformação ou na desfiguração, na mariposa destrinchada entre os rompantes de cor e abstração de Mothlight (1963) ou no mito ressurgente de Eye Myth (1967). Toda a obsessão parece encontrar em seu filme Dog Star Man (1961-1964) uma resposta definitiva – é um filme-chave, filme-síntese, filme-testamento, filme que apresenta não apenas um leque de técnicas e preferências estéticas do autor mas também de uma ambição deste mais primária enquanto artista, parecendo encontrar uma resposta para até onde o cinema pode chegar enquanto arte, onde os limites não apenas estruturais mas também sensíveis da matéria aparentam ser constantemente expandidos, ressignificados, em uma liberdade muito possibilitadora e particular.

Se Dog Star Man é um filme-filosofia, The Act Of Seeing With One’s Own Eyes é um filme-procedimento, um filme assombrado exatamente pela sua aparente secularidade. Reside na carne exposta – distendido nos músculos, nos órgãos escavados, fendido na gordura lacerada e no sangue asfixiado, furtivo nos interstícios da vida dissipada – um ideal transcendental espontaneamente caracterizado analiticamente, seja por uma valoração ontológica prática ou por uma negação técnica, em um caso deslocando e no outro reforçando uma tese que é alheia ao material em questão, isto é, aberto para uma concepção teológica de uma alma, uma continuidade extra-sensível que não é exposta na tela, ou para um princípio entrópico de esvaziamento de forma e conteúdo, a morte como tal, propriamente destrutiva no seu ato de reorganização material. Mais que um tratado investigativo é um tratado fundamentalmente expositivo, o momento presente de morte e o pragmatismo de um procedimento constituindo uma espécie de aporia vigente, o instante é encapsulado e reproduzido com uma frieza irremediavelmente vinculada ao presente enquanto matéria mas que em última instância nos afeta para além desta, uma aporia de difusão não apenas empática mas também niilista, fundada em um paradoxo multifacetado, o que resta em matéria do que era e do que será do corpo, do que pode constituir ou destituir algo de conteúdo, um trabalho de campo e extracampo fundamentalmente procedimental mas com possíveis desdobramentos metafísicos.

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Brakhage se associa e simultaneamente se distancia do acionismo vienense. Associa-se enquanto existe uma recusa imediata à reflexão e à hermenêutica em prol de uma crueza frontal, escancarada, consignada na tela conforme os cortes desvendam a unidade corporal sendo violada. Associa-se também enquanto transparece uma transcendência espontânea, declarada na inércia do corpo, aceitando resignada a violação lúgubre, uma vulnerabilidade encontrada em algum grau na sinfonia ‘Island’ de Hermann Nitsch, a cacofonia e os ruídos iterativos compondo uma apoplexia sonora que trabalha em uma lógica de esvaziamento do eu, nos submetendo a uma dimensão que se perde em um niilismo holístico ao mesmo tempo que o reconstitui em prol da espiritualidade desvirtuada. Distancia-se do movimento na mesma medida que também se distancia da sinfonia de Nitsch – o filme é intuído por uma lógica que também é de esvaziamento, mas para por aí. Enquanto o indivíduo na sinfonia se permite ser absorvido por uma dimensão que parte da corporalidade para constituir algo muito maior que ele, algo governado por forças misteriosas pouco definidas apesar de manifestas nos seus desdobramentos, o filme não se desmembra para alcançar uma totalidade cósmica particular, mas tem no seu próprio procedimento a sua teleologia constituinte. Logo, foge naturalmente dos desdobramentos políticos do acionismo ou pelo menos os modula de uma forma claramente distinta. Em uma segunda instância, é particular também na pergunta fundamental que aparenta propor: onde reside a alma? Resta, naquela corporalidade fundamentalmente material, claramente desprovida de força vital, algum resquício do espírito?

A busca pelo holismo existencial, por uma possível espiritualidade moldadora investigando a ligação entre a natureza e o indivíduo, é o tema central em um de seus projetos mais ambiciosos: Dog Star Man é um filme maior que o mundo, do tamanho do universo que reside dentro de um homem. O filme tem tudo. Constituído de uma cosmologia de afetos, é uma epopeia sensorial com uma narrativa perdida nas entranhas da sua avalanche de texturas e colagens, rasgaduras estruturais e saltos temporais. Nascer, trabalhar, amar, pôr-se em fuga mas continuar no mesmo lugar, imagens que retornam, imagens que persistem, instantes que resistem. É a versão expandida da sua obra-prima For Marilyn (1992), onde inicialmente toda a angústia e todo o sentido se reduz a uma busca mais fundamental e incisiva, apenas aqui ela sendo abrangida para uma matriz ampla, orgânica, de sentimentos e objetos, lembranças e desejos, ausências e contatos.

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For Marilyn é um dos maiores filmes da história do cinema exatamente por evidenciar uma das maiores obsessões de sua história em matéria esculpida: o ato de buscar o rosto de alguém nos interstícios da imagem, nos espaços vazios que podem ser ocupados por corpos, memórias, vontades e espíritos, no ritmo desencadeado do estímulo – um trabalho de cor, linguagem e, acima de tudo, de paixão.

Entre a brutalidade da carne, o desvelo dos cortes, a aspereza das texturas, a intrusão das imagens, a polidez da iluminação e as teleologias dos procedimentos, resta a pergunta: onde cabe o amor? A resposta não está no que é visto e sim em quem vê. O amor para além do racional, que se precipita, não questiona nem incide, apenas se apodera e se engrandece. Por que só no Outro eu posso finalmente me ver, e eu só vejo o Outro em você. Compreender a vida para além desta, não na dicotomia com a morte e muito menos na teologia de uma possível continuidade da mesma, mas finalmente na aniquilação da pergunta, porque ela se reduz a nada quando toda a sua sustentação se evidencia. É só luz incidindo objetos, é só o sol se inclinando sobre mim, é só a sua cor que vejo quando respiro, é só eu sabendo que te amo e saber que isso basta.

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O Corpo Como Sentido

Por Chico Torres

“Apesar da noite” (Malgré la nuit), de Philippe Grandrieux, pode ser comparado à quadrilha de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, / que não amava ninguém.” Se, por um lado, é essa estrutura narrativa simples que permite que o filme avance em suas duas horas e meia de duração, há em seu desenvolvimento diversos elementos disruptivos e metafóricos que fazem com que o filme cresça e ganhe várias camadas de interpretação. No tocante à sua linguagem, a grande questão de “Apesar da noite” é o modo como se desenvolve a narrativa, praticamente através da hipersensorialidade dos corpos. O corpo é o lugar do encontro, é causa e efeito da ação de todos os personagens que transitam fantasmagoricamente por uma Paris quase invisível.

O tom sensório-experimental e pictórico do filme já está presente em seu início: uma mulher, como que em delírio, dança diante da câmera. Em meio à dança frenética, ela lança os olhos febris para o alto, exibindo uma estranha expressão de êxtase (figura 1). A cena está acelerada e, em contraste ao fundo preto, há uma luz branca e perturbadora que vem de cima e ofusca a estranha dança. Como que parido, Lenz, o protagonista, surge nesse lugar escuro e esfumaçado. O ambiente, ainda que irreconhecível, exala algo como vício e promiscuidade, ao mesmo tempo que possui uma aura pictórica, como se fosse a reprodução de um quadro renascentista que retrata a errante vida moderna. (figura 2).

apesar da noite 4Fig 1.

apesar da noite 5Fig 2.

O diálogo sussurrante entre Lenz e Louis ganha expressividade através do toque entre as mãos (recurso excessivamente utilizado no filme), do beijo e do abraço, da quase obsessiva demonstração de afeto. O elemento sensorial é reforçado pelo enquadramento fechado, o que transmite a sensação da existência de um microcosmo onde residem apenas corpos que se conectam vibracionalmente.

Ainda nesse diálogo entre Lenz e Louis, onde se descobre que Lenz está em busca de uma mulher chamada Madeleine, há uma série de jogos, de charadas. Jogo linguístico através da aliteração dos nomes das próprias personagens que vão surgindo: Lola, Lenz, Louis, Madeleine, Hélène e Lena; jogo literário através da memória proustiana presente indiretamente na fala de Louis; e um jogo através da analogia entre personagens fictícios e históricos, também expressado inicialmente por Louis: Madeleine é prostituta, como foi a Madalena de Cristo. Esses jogos terão seus desdobramentos, alguns aparentemente menos importantes (como o da aliteração, que talvez indique um mesmo propósito ou uma mesma personalidade para todos as personagens); outros mais reveladores, como a figura arquetípica de Maria Madalena presente nas personagens femininas do filme, sobretudo em Hélène.

Ainda que “Apesar da noite” estimule algumas reflexões através de suas diversas e frágeis associações (religião, pecado, memória, arte etc.), é difícil encontrar ali elaborações dialógicas sobre qualquer coisa. Os temas se apresentam sorrateiramente através de imagens que exploram aspectos sensoriais: o toque, o contraste da textura dos corpos que se entrelaçam, as expressões faciais e corporais, e o prazer através do sexo e do uso de drogas. O filme se detém tanto ao corpo que torna-se irrelevante compreender qual o tempo-espaço da narrativa. A presença do amor, do tom melodramático, da obsessão pelo outro, da traição, dos conflitos pessoais, tudo parece existir apenas para que os corpos se satisfaçam em relações que possuem uma profundidade visceral e que não vão mais longe do que isso.

O filme revela, ainda que de maneira fugidia, uma relação entre prazer e sofrimento, questão que mais uma vez remente ao religioso, desenvolvido através do entrelaçamento entre Madeleine/Madalena e Hélène. A priori pensamos que Hélène é a Madeleine procurada por Lenz; e mesmo quando descobrimos que Madeleine se trata de outra personagem (que irá permanecer até o final do filme como um ideal a se buscar, como um objeto de desejo nunca encontrado), só se reforça a sensação de que Hélène carrega, simbolicamente, as tensões mais significativas do filme e que fazem parte da imagem paradoxal que se construiu de Madalena.

Ao longo da história ocidental, a imagem de Maria Madalena ficou ligada a alguns estereótipos. O mais conhecido é de Madalena como prostituta que passa a seguir Jesus depois que este expulsa sete demônios que habitavam seu corpo. Ainda que nenhum dado biográfico concreto ligue Madalena à prostituição, o fato é que sua imagem ficou gravada na memória coletiva e na história da arte sob esse estigma. Parece-me que Hélène se aproxima de Maria Madalena por sua posição ambígua da mulher devota e cuidadora (Hélène é enfermeira, ou seja, cuida do corpo do outro), mas que ao mesmo tempo se perverte e se entrega sem freios ao desejo carnal, vivenciando experiências limítrofes. A construção de Hélène como Madalena não se desenvolve de modo satisfatório, porque o que prevalece é a exploração da sensorialidade e não da reflexão, mas a relação entre ambas é evidente no filme.

Quando Hèléne participa de uma orgia na floresta, cena que se realiza sob uma crua e terrível luz branca, seu encontro com o Homem da Voz Metálica revela-se extremamente violento, ainda que tudo pareça acontecer sob o consentimento de Hélène. Ao ser violentada, ela olha para o alto em êxtase (figura 3), olhar recorrente em pinturas renascentistas ligadas ao universo religioso; inclusive há diversas pinturas que retratam Madalena nessa postura (figura 4). Esse olhar, em síntese, pode ser interpretado como a união complexa entre o sagrado e o profano, entre o desejo carnal e a devoção religiosa, mas nada disso é indicado por Hélène, essas relações se dão apenas por sua expressão corporal e facial.

apesar da noiteFig. 3

a631547e39b3fd188173e11653091867Fig. 4

Se por um lado a fotografia transita entre diversas camadas de uma luz branca que expõe os corpos de modo violento, além das sobreposições que dão ao filme um teor experimental, há também em muitas cenas a presença de um claro-escuro pictórico no qual prevalecem um preto e vermelho aveludados, semelhante à luz de velas. Ainda que esses elementos não estejam distribuídos de modo equacional no filme, interpreto essas camadas como a presença do conflito entre o profano (representado pelo branco frio e cru) e o sagrado (representado pelo claro-escuro, quente e pictórico), que se entrelaçam e coexistem durante o filme.

Em “Apesar da noite” quase tudo é perturbador: Lenz é obcecado por Madeleine; Lena e seu pai são figuras malignas, invejosas e vingativas; Louis é viciado e trai Lenz e Hélène por causa de Lena. Uma quadrilha muito mais maligna do que a de Drummond. Enquanto isso, Hélène, que concentra todos esses embates humanos em si, desafia Deus ao se entregar deploravelmente ao prazer da carne, como se sua religião fosse cumprir o desafio de se deixar levar por aquilo que é mais latente no corpo. Prazer e dor. Em “Apesar da noite” tudo aquilo que pode produzir sentido é absorvido pelas veias, pelos poros, pelo gozo.

 

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Mal do Século

Por Carla Oliveira

Com a caneta suspensa para uma curta meditação, as palavras que me ocorrem ao espírito evocam a luz e o calor, com as quais habitualmente se costuma falar do amor: deslumbramento, raios, braseiro, luzes, fascinação, queimadura.

Jean Genet, Diário de um Ladrão

 

“Está frio aqui.” — É a primeira fala de Carol White (Julianne Moore), em Mal do Século (Safe, 1995), de Todd Haynes. A frase é dita ao marido, Greg (Xander Berkeley), à noite, ao chegarem em casa. Segue-se uma cena de sexo, a única do filme: enquadrada em plongée, vemos rubor na nuca de Greg, enquanto o rosto pálido de Carol denota desconforto. Seu corpo não sente desejo ou prazer, mas é gentil, expressa-se sempre com suavidade. Na manhã seguinte, ele lhe pergunta sobre sua sinusite, enquanto ela poda flores no jardim de sua mansão, no subúrbio da Califórnia. Em seguida, Carol recebe decoradores. Cumprindo essas tarefas de dona de casa, ela é enquadrada em planos abertos, que a evidenciam pequena e distante no ambiente de frialdade em que vive. Após aula de ginástica, onde a professora pede sorrisos às alunas durante os exercícios, suas colegas conversam sobre livro que aponta passos para se viver melhor, manejar o estresse e ter controle emocional. Há referência à necessidade de exercícios físicos e boa dieta. Observam, com espanto, que o corpo de Carol não transpira. É um pequeno sinal de que seu corpo fatigado está em descompasso com o ambiente. Em visita a sua melhor amiga, em luto pela morte do irmão — subentende-se que em decorrência da AIDS  —, ela só aceita beber um copo de leite. Estamos no final dos anos 80 e muitos viram a deterioração física pela qual passará Carol a partir dessa sequência de cenas iniciais como uma metáfora dessa epidemia.

Carol em sua casa em constantes reformas.Carol visita amiga enlutada pela morte do irmão.

 Todd Haynes, um dos nomes mais importantes do cinema independente americano, era, nesse momento, fortemente associado ao cinema queer. Seu primeiro longa-metragem —  Veneno (Poison, 1991) —, premiado em Sundance, foi um dos filmes que levou a crítica B. Ruby Rich a cunhar a expressão New Queer Cinema, imortalizada como título de seu artigo, publicado na Sight and Sound 2.5 (1992). A crise da AIDS, ao levar muitos cineastas a repensar a representação dos corpos e do comportamento sexual queer nos Estados Unidos de Reagan, se tornou um importante catalisador desse movimento. Veneno foi inspirado na obra de Jean Genet e contém citações de: Nossa Senhora da Flores (1943), O Milagre da Rosa (1946) e Diário de um Ladrão (1949). Entrelaça três histórias, apresentadas em épocas distintas, cada uma com uma estética própria. A mais próxima a Genet — a que contém o lirismo das rosas —, apresenta corpos homossexuais másculos, belos, violentos e confinados em uma prisão, similares aos retratados pelo dramaturgo em seu único filme, Canção de Amor (Un Chant d’Amour, 1950), assim como aos de Querelle  — Um Pacto com o Diabo (Querelle, 1982), obra de Rainer Werner Fassbinder, adaptada do romance Querelle de Brest, publicado em 1947, por Genet. O editor James Lyons, importante parceiro criativo de Haynes, atua nesse segmento.  Lyons foi uma das vítimas da disseminação da AIDS: conviveu por muitos anos com a doença, trabalhando com ativismo.

Sua memória é honrada em Last Address (2010), de Ira Sachs, cineasta que também tem o seu nome vinculado ao New Queer Cinema. Uma segunda história de Veneno mostra um salto libertário, tipicamente genetiano, de um menino, vítima de vários abusos, que mata o próprio pai e sai voando pela janela. A terceira parte mostra a trágica sina de um cientista com pretensões de tratar a neurastenia e melhorar a raça humana. Ele isola e desvenda os mistérios do fluido da libido, mas o bebe por engano. A partir de então, sua pele se transforma e ele passa a transmitir sua nova condição, que se releva mortal, por aproximação sexual. A mídia, sensacionalista, o rotula de assassino leproso. Podemos ver aqui alusão e crítica à representação da AIDS pelos meios de comunicação, assim como à culpabilização de um comportamento. A reação conservadora ao pesquisador tachado de criminoso parece ser justificada pela epígrafe do filme: “The whole world is dying of panicky fright” (“o mundo inteiro está morrendo de pavor”), mas não se pode esquecer e deixar de retratar o medo e a dor dos contaminados, perseguidos pela sociedade. É interessante observar que no primeiro filme hollywoodiano sobre a AIDS, Filadélfia (Philadelphia, 1993), de Jonathan Demme, o personagem acometido pela doença (interpretado por Tom Hanks) move processo contra a empresa que o demite, alegando que as lesões de sarcoma de Kaposi (câncer comum em doentes aidéticos) presentes em seu rosto foram o motivo de seu desligamento. Em ambos os filmes, há um sinal da doença no próprio rosto, a doença “está na cara”, estigmatizando, tornando o doente ainda mais vulnerável ao preconceito e às injustiças da sociedade.

O cientista que bebeu o fluido da libido, em Veneno.

Mal do Século, que tem roteiro original de Haynes, não retrata diretamente a comunidade queer. O mal que acomete Carol, ao contrário da AIDS, não mina o seu sistema de defesa, deixando-a vulnerável. É exatamente o contrário. A síndrome que desenvolve faz com que ela se torne hiperreativa, cada vez mais sensível ao seu ambiente, principalmente aos químicos nele presentes, até que não consiga mais o habitar. Dos sintomas inespecíficos iniciais — dores de cabeça, desânimo, cansaço, inapetência, transtorno do sono —, ela evolui para um desconforto respiratório progressivo. À direção de seu carro, um acesso de tosse inicia, de forma insidiosa, quando ela se vê envolta por caminhões, e se intensifica ao entrar em um estacionamento onde precisa percorrer trajeto vertiginoso para baixo (uma metáfora da sua deterioração). Ao conseguir uma vaga, sai do carro ofegante, com a respiração pesada, arquejante. Procura um médico, que não vê nada muito alterado em seu quadro. Ao tentar uma mudança em seu aspecto — um novo corte e a aplicação de um permanente no cabelo (o que é feito com produtos químicos) —, ela tem um sangramento. Há dilaceramento, ruptura dos limites entre seus meios interno e externo. Sua pele pálida e fria passa a sofrer inúmeras erupções. Sua intolerância alimentar aumenta, passa a apresentar vômitos. Seu corpo, cada vez mais fraco e emagrecido, pouco se equilibra, e ela se sente confusa e desorientada em sua própria casa, junto à sua família.

Sangramento nasal no salão de beleza.Desorientação, solidão, comprometimento do casamento.

Nessa derrocada, Carol procura novamente médicos tradicionais. Um alergista comprova que seus sintomas são desencadeados pela multiplicidade de produtos químicos com os quais tem contato em seu ambiente. Considerações sobre a dieta são feitas. Suplementações de oxigênio se tornam necessárias. Afasta-se das amigas, deixa de cumprir eficazmente a sua rotina. Em seu mal estar, é bombardeada pela publicidade e pela mídia com notícias sobre ambientalismo, tratamentos e concepções alternativas do corpo. Após uma internação em decorrência de uma crise convulsiva precipitada pelo contato com produtos para dedetização, ela se vê incapaz de se adequar às transformações do ambiente e da sociedade em que está inserida e decide partir para um centro terapêutico alternativo, dirigido por uma espécie de guia, afastado da cidade, situado em um deserto. Aqui está o principal comentário político de Haynes nesse filme.

Em entrevista a Larry Gross, publicada na Filmmaker Magazine, ele disse ter realizado Mal do Século em resposta aos terapeutas New Age que propalam serem os doentes os causadores de suas próprias enfermidades, os responsáveis por seus próprios sofrimentos. Ele fala do seu espanto ao se deparar, nos anos 80, com gays contaminados pelo HIV à procura de gurus que literalmente os culpavam por sua própria doença e diziam que eles poderiam se sentir melhor simplesmente desenvolvendo o amor-próprio. Ao se instalar no centro terapêutico, Carol é recebida em uma cerimônia de boas-vindas, onde uma política de moralidade e policiamento do desejo é expressada. Sua vida e relações pregressas ficam em suspenso. Mesmo com as práticas e os grupos de ajuda, suas solidão e alienação só aumentam. Confinada, ao final, em uma habitação semelhante a um iglu, ela repete, com o semblante sofrido, em frente ao espelho: “Eu te amo. Eu te amo muito.” Em vão.

Chegada de Carol ao centro terapêutico.

Em Velvet Goldmine (1998), seu terceiro longa-metragem, Todd Haynes voltará a direcionar a sua atenção aos corpos queer, que se mostrarão ágeis, purpurinados, transgressores. A vulnerabilidade, o sofrimento e as lutas das minorias serão destacados em filmes subsequentes, como em Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) e Carol (2015), denunciando o racismo, a intolerância e o preconceito da sociedade americana, em diferentes épocas. Mas os corpos de seus protagonistas serão mais firmes, nunca mais chegarão aos limites da vida como em Veneno e Mal do Século.

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51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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Textos por Pedro Tavares

BIXA TRAVESTY (Claudia Priscilla e Kiko Goifman)

TEMPORADA (André Novais Oliveira)

INFERNINHO (Guto Parente e Pedro Diógenes)

OS SONÂMBULOS (Tiago Mata Machado)

ILHA (Glenda Nicácio e Ary Rosa)

OS JOVENS BAUMANN (Bruna Carvalho Almeida)

BLOQUEIO (Victória Alves e Quentin Delaroche)

CALYPSO (Rodrigo Lima e Lucas Parente)

O PEQUENO MAL (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune)

EXCELENTÍSSIMOS (Douglas Duarte)

LOS SILENCIOS (Beatriz Seigner)

ELEGIA DE UM CRIME (Cristiano Burlan)

DIAS VAZIOS (Robney Bruno Almeida)

LEMBRO MAIS DOS CORVOS (Gustavo Vinagre)

SOL ALEGRIA (Tavinho Teixeira) por Felipe Leal

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SEJA PADRINHO

Criada em 2008 no formato de blog, a Multiplot! tinha a intenção de preencher lacunas no acervo crítico online em língua portuguesa. De 2008 a 2011, diversos dossiês de diretores foram publicados, cobrindo a filmografia completa de nomes como Werner Herzog, Anthony Mann, Max Ophüls, entre outros. Elevado a site em 2011, a equipe de críticos passou por mudanças e o site ganhou novo foco: coberturas de festivais, críticas de filmes em cartaz e de acervos e entrevistas com realizadores e assim seguiu por cinco anos e teve contribuição de redatores como Tiago Macedo Corrêa, Vladimir Lazo, Kênia Freitas, Fernando Mendonça, entre outros.  Em 2016 o desejo dos redatores Pedro Tavares e Arthur Tuoto saiu do papel com ajuda do ex-editor Daniel Dalpizzolo. De lá pra cá a Multiplot se tornou uma revista e lançou cinco números. Hoje a revista é editada por Camila Vieira e Pedro Tavares e teve contribuições de nomes como Nadin Mai, Scott Barley, Adrian Martin, entre outros.

Para manter a revista online, precisamos de padrinhos. Além dos números, a Multiplot! publica coberturas de festivais e entrevistas. Os custos de servidores, divulgação e gastos adicionais de logística são altos e nenhum editor ou redator recebe para tal função. Contamos com a ajuda dos leitores para manter a revista no ar! Como contrapartida, faremos sorteios esporádicos de recompensas como livros de teorias de cinema e ingressos.

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A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO

Por Diogo Serafim

Os dois dialogantes não haviam percebido a solidão que os rodeava. As salas de aula tinham ficado vazias, pelos corredores o silêncio se estendia como uma serpente. Sentado num banco, numa solidão que se tornava inoportuna por seu realce, Foción observava os gestos, as modulações da voz no desenvolvimento, a intensidade do olhar que viajava com as palavras. Ouvia como um espectador ocupado apenas com a reconstrução de uma imagem interior?

José Lezama Lima, Paradiso

 

    Não há como abrir-se para um filme como Jauja (2014) fora do escopo da heurística do reconhecimento, a matéria fílmica sendo absorvida e amalgamada em minhas memórias, um processo de anamnese sensível, perdendo-se entre a realidade e a mitologia, o cinema como potência desestabilizadora não apenas metalinguística, mas também psicossomática, um fluxo de imagens que aos poucos me apodera fisiologicamente, uma matéria que resiste para além da morte, em um campo idealista que se estrutura por um viés materialista até atingir seu potencial transcendental. Há poucas palavras melhores para definir o cinema de Lisandro Alonso além desta: transcendental, a transposição de fronteiras, seja do retrato à fábula, do estático ao dinâmico, da matéria ao espírito, da imagem à vida.

    O que associa a odisseia do engenheiro em busca de sua filha nos sertões da Patagônia no século XIX à derradeira sequência da jovem dinamarquesa retomando certos elementos anteriormente apontados no filme? Como esse conflito temporal por sua vez se associa ao subtexto colonialista do massacre indígena na Patagônia? No filme Carta Para Serra (2011), como o lenhador Misael se encontra com os outros personagens e como esse encontro metatemporal dialoga com sua metalinguagem constituinte? A mitologia do cinema de Alonso é oblíqua, rigorosa em sua execução, mas sempre nos escapa, permitindo lacunas, interstícios hermenêuticos que se encontram em constante expansão.

    Ao ser indagado acerca da origem do título de seu filme Liverpool (2008), Alonso afirma que foi devido a uma mulher que ele viu pedindo dinheiro durante o concerto de uma banda cover dos Beatles chamada Sounds of Liverpool. Nas palavras do diretor, as imagens dessas duas coisas vieram juntas e se recusavam a ir embora. Ele fez assim uma associação entre Liverpool como uma cidade portuária e cidades portuárias na Argentina, chegando finalmente em Ushuaia, que possui um histórico com imigrantes ingleses. Conclui o comentário afirmando categoricamente que o cinema é sobre essas associações ilusórias. Seriam apenas associações no processo de confecção ou estas associações poderiam de alguma forma exercer uma influência definitiva na matéria? A transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens por um terceiro permite a apreensão de um intruso na torrente emocional e pessoal embutida em uma matéria particular?

    É assim estabelecida uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem, esta existe simplesmente como representação do que retrata (seja na sua ontologia ou no seu valor narrativo) ou possui na sua constituição alguma propriedade que lhe confere esse potencial ascético, o deslumbre que ela provoca pode ser originado de uma simples abstração ou este vem de uma impressão da imagem no meu espírito? Essa dúvida pode até soar excessivamente metafísica, mas ela se mostra pertinente devido a uma característica facilmente percebida no cinema de Alonso: o deslumbre que este provoca não é proveniente pura e simplesmente de uma proeza estética (por mais que seus planos sejam cuidadosamente construídos e desenvolvidos) nem de um processo de identificação propriamente, tendo que o seu cinema se estrutura em uma lógica de distanciamento, existindo por si próprio, alheio a mim, em um regime epistemológico absoluto que parece ter um funcionamento fora da minha consciência. Se esse deslumbre não tem uma ontologia própria definida pelos predicamentos essenciais da nossa apreensão empírica na nossa constituição neurológica, como pode este apresentar-se de forma tão potente para mim? Como se dá essa transcendência de espectro senão pelas faculdades fisiológicas que os limites de minha mente estabelecem?

lalibertad

    O cinema de Alonso se estabelece aí, nesse ponto de inflexão analítico, onde o que compreendo do que está sendo mostrado é subvertido em prol da sensibilização que essa matéria provoca. Se a ascese não é originada por meios convencionais, não aparentando ser sequer consequência daquele fluxo de imagens, ela deve surgir de algum outro lugar: de mim mesmo. A matéria do cinema em perpétuo devir, pois ela se altera conforme minha própria psicologia se transforma, partindo de uma ontologia muito particular que fundamenta a imagem como uma confluência do meu espírito com o espírito de quem a decupou além do evento que está efetivamente sendo mostrado. Daí surge a natureza conflitante do cinema, entre o real e o psicológico, este segundo partindo de duas origens distintas. Entre o racional e o empírico, uma estrutura aberta como um sintoma de rasgadura, onde algo me provoca arrebatamento não apenas pelo que me é apreendido de forma mais ou menos definida, mas também por aquilo que me escapa.

liverpool

    Filmes como Os Mortos (2004) e Liverpool (2008) partem de uma ambiência narrativa simples – a história de um homem fazendo uma jornada de volta para casa – para se estabelecerem como espetaculares romagens espirituais. Através do aspecto contemplativo das imagens, o cinema de Alonso se traduz como puro movimento, seja da câmera ou dos elementos efetivamente apresentados em cena. Dado o caráter conflitante das imagens de Alonso (entre o perfeitamente retratista e o arrebatamento fabulista), traduz-se uma aporia entre o incontestável e o transcendental. No ínterim da matéria, um sintoma fleumático de desestabilização, quando tudo que me é inicialmente tomado como banal ou puramente contemplativo se traduz como instável, fabular, despertando infinitas associações possíveis.

Se A Liberdade (2001) aparenta enganosamente partir de um viés documental, emulando a lógica baziniana de salvar o ser pela aparência através de um retrato fiel do seu cotidiano, a famosa cena final é aqui contestar o que há de objetivo na imagem. O que é realidade e o que é fabulação? O que me é proposto como garantia, o que pode ser definido como alicerce da imagem?

A Liberdade (2001) talvez seja o filme de Alonso em que essa investigação acerca da ontologia da imagem mais fortemente se associa com uma ontologia natural. O filme não aparenta intentar nenhuma mediação mais objetiva com relação às suas possibilidades temáticas, tudo é subordinado à fenomenologia. As possibilidades vão se acumulando, contradizem-se e se complementam, em um eterno percurso de elevação espiritual que vai se assimilando e se recontextualizando conforme progride.

O argumento para Jauja (2014) partiu da morte de uma amiga do diretor nas Filipinas. Alonso afirma que a provável maneira que ele encontrará para lidar com a perda de alguém querido é reimaginar esse alguém no tempo e espaço ao seu redor, preservando de alguma forma a sua existência. Partir da matéria para o infinito, com a fé de que o gesto persiste para além da sua fisicalidade.

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ALBERT SERRA E A MORTE REAL

Por Carla Oliveira

O nome do cineasta catalão Albert Serra é citado já nos primeiros postulados sobre slow cinema. Matthew Flanagan, em 2008, ao apontar as bases estéticas desse cinema (categorizado, em 2003, por Michel Ciment), alude aos longos planos utilizados por Serra na estruturação da narrativa de seus segundo e terceiro longas-metragens — Honra de Cavalaria (2006) e O Canto dos Pássaros (2008) — como exemplos de um dos principais traços de uma corrente de cinema caracterizada pela contemplação da passagem do tempo, enredo enxuto e composição formal rigorosa. A longa caminhada pelo deserto dos três reis magos em busca do Messias recém-nascido em O Canto dos Pássaros é referida como típica, assim como a redução da grandiosa e aventuresca obra de Cervantes a uma pequena variação abarcante de um trecho da vida de Quixote, quando, envelhecido, contempla os ideais da cavalaria e a perspectiva de seu próprio fim em Honra de Cavalaria. Parte da galeria de personagens históricos, literários ou míticos presentes no cinema de Serra, como Dom Quixote, Sancho Pança, os reis magos e Casanova, está em franca e lenta trajetória rumo à morte. Figuras tidas por eternas, como o Drácula e Jesus, cruzam alguns de seus caminhos. Em sua última e melhor obra, A Morte de Luís XIV (2016), que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes e recebeu o prêmio Jean Vigo no mesmo ano, é o agonizante fim da figura real o foco de sua atenção.

bloin e os médicos de paris

Em seu célebre ensaio Ontologia da Imagem Fotográfica, André Bazin expõe bases e referências de sua complexa concepção de realismo (tantas vezes citada e revitalizada nos textos sobre slow cinema): a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo; a busca da expressão dramática no instante (não apenas a expressão das formas) e a constatação de que a imagem das coisas é também a de sua duração (o que o cinema torna possível) são algumas delas. Ressalto que o termo “real” será usado neste texto sobre a obra de Serra em referência ao rei e à realidade/verdade que se busca retratar com realismo (na maior parte das vezes, sem a intenção de gerar ambiguidade). No referido ensaio, Bazin escreve que “Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun.” Ao contrário dos faraós, soberanos também identificados com o sol, o rei francês não manifesta o desejo de conservar sua aparência na própria carne. Amante das artes e criador da sua própria imagem de poder, cerca-se em sua corte de renomados artistas, como Charles Lebrun, que, além de retratar o rei em seu apogeu, é responsável, junto ao paisagista André Le Nôtre e os arquitetos Louis Le Vau e Jules Hardouin-Mansart, pela criação de um de seus maiores símbolos de seu poder: o Palácio de Versalhes. O compositor Jean-Baptiste Lully, o dramaturgo Molière e o escritor Louis de Rouvroy — o duque de Saint-Simon — também frequentam a corte. É a partir das extensas Memórias de Saint-Simon, registradas com obstinação no intuito de fixar a realidade de um tempo no papel, que Serra e o produtor Thierry Lounas adaptam o roteiro de A Morte de Luís XIV, debruçando-se na análise dos seus últimos dias, vividos em 1715, quando o rei contava com 77 anos.

com o herdeiro luis XV

Seus anos de juventude, dedicados à construção da própria imagem, são muito bem retratados no cinema em O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), filme de Rossellini, neorrealista preferido de Bazin. Ciente de que aparência e poder estão intimamente ligados, o rei constrói cenários faustosos e os decora com pompa. Com intenção de manter a nobreza controlada, cerca-se, em Versalhes, de cortesãos de quem exige lealdade, etiqueta, maquiagem e bons figurinos. Protagonista absoluto, submete seus atores secundários e figurantes a um roteiro exaustivo e rigorosamente decupado, onde cenas de suas aparições públicas são intercaladas pela exaltação de sua rotina em incansáveis cerimônias palacianas. Mise-en-scène real filmada por Rossellini.

Em A Morte de Luís XIV, o cenário, fotografado com elegância por Jonathan Ricquebourg, já está rigorosamente composto. O quarto real do Palácio de Versalhes é reconstituído e iluminado com velas, o que confere sobriedade ao ambiente recoberto de ouro e sumptuosidade, onde se sobressaem quadros e um busto de um rei jovem (sabe-se que Luís XIV teve um busto esculpido em mármore por Bernini pelo qual nutria grande apreço) e o ruído de um relógio, assinalando a inexorabilidade do tempo. Em seus filmes anteriores, Serra havia trabalhado com atores não-profissionais para dar a ilusão de realidade e também por uma escolha moral, com a intenção de se manter afastado do sistema capitalista de produção fílmica (resolução típica dos realizadores do slow cinema). Aqui, em seu primeiro filme falado em francês, cria um espaço tão cheio de detalhes e realismo que favorece ainda mais a assombrosa interpretação de Jean-Pierre Léaud (admirado por Serra por sua pureza e incorruptibilidade) de um rei em agonia após extenso reinado. O ator, que estreou no cinema como um menino em Os Incompreendidos (1959), filme de Truffaut dedicado à memória de Bazin, impressiona na caracterização da velhice — nos tremores e trejeitos de um rosto enrugado, com grandes bolsas sob os olhos e emoldurado por uma espantosa peruca grisalha, nos típicos ruídos feitos com a boca, na rabugice e teimosia em manter o rigor na etiqueta e no cerimonial (o que é observado até o final) — e, principalmente, na manifestação do sofrimento decorrente da progressão de uma gangrena na sua perna esquerda. A expressão da dor, a gemência, a ofegância, os gritos e súplicas em voz débil e trêmula são gigantescos. Tanto o sublime quanto o grotesco são caros a Serra. O sorriso do rei é visto apenas um vez, ao brincar com seus cães logo após um passeio pelos jardins do palácio na sua única aparição em cenário natural durante todo o filme. Sutis sinais de contentamento também surgem ao escutar os oboés e tambores em comemoração ao dia de São Luís, quando uma imagem da paisagem francesa é mostrada através de uma janela. No mais, não se sai do quarto, da intimidade real. Serra não tem intenção de fazer comentários políticos ou sociais. A moral cortesã apenas transparece sutilmente em momentos em que o rei recebe assessores pretendendo angariar fundos de forma suspeita ao propor edificações ou quando ele pergunta detalhes íntimos das cortesãs ao seu médico, que acaba comentando sobre a nudez e o comportamento de suas pacientes.

bloin e os médicos de paris

.Os médicos são as principais figuras em torno do rei, assim como Blouin (Marc Susini), seu fiel valet de chambre. Luís XIV confia na ciência. O cargo de Primeiro Médico do Rei, ocupado por Fagon (Patrick d’Assumçao) é de grande prestígio na corte. Maréchal (Bernard Belin) é o cirurgião que o acompanha. Valem-se de unguentos, faixas, massagens, considerações sobre a dieta na tentativa de tratar a doença do rei. Frente à inocuidade de tais medidas, Blouin sugere a intervenção dos médicos da Universidade de Paris. Fagon rechaça a ideia, argumentando que, segundo Molière, os médicos são mais perigosos quando em grupo. Molière foi um crítico feroz da classe médica, satirizada em sua célebre peça O Doente Imaginário (1673), dedicada pelo dramaturgo a Luís XIV. Serra não se apropria do escracho ou mesmo da crítica, mas de uma fina ironia e observação, que torna por humanizar os médicos em seu erro. Não há má intenção, Fagon e Marechal permanecem o tempo inteiro junto ao rei e são solidários ao seu sofrimento, mas hesitam no diagnóstico e na tomada da conduta que poderia se mostrar resolutiva: a cirurgia na perna gangrenada do rei. Os médicos de auditório — os da Universidade de Paris na definição de Fagon — examinam, enfim, o rei, assim como um charlatão de Marselha. A sangria proposta pelos primeiros e o elixir preparado pelo segundo também não surtem nenhum efeito. A putrefação, a febre, a dor e a náusea desfiguram o rei.

Presença constante no aposento real é também a da envelhecida Madame de Maintenon (Irène Silvagni), a esposa secreta de Luís XIV, cujo nome ele pronuncia ao final de um plano longo, estático, esteticamente perfeito, onde sua imagem quase inanimada nos comove ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor de Mozart. Ao pressentir a proximidade de sua morte, chama também seu pequeno herdeiro, o futuro Luís XV, para lhe aconselhar a evitar construções, guerras e a se aproximar da religião. Há tempo e espaço para arrependimentos. Le Tellier (Jacques Henric), padre jesuíta, confessor de Luís XIV, é igualmente uma personalidade estimada: é à sua ordem que Luís XIV deseja que seu coração — único órgão a ser mumificado — seja entregue. Após sua morte, o corpo de Luís XIV é cortado e examinado em partes que não correspondem a sua figura. Na necrópsia do rei, a imagem que se sobressai é a do pesar de Fagon.

com fagon e bloin

Apesar de ter uma gênese conceitual apontada no pensamento de Bazin e no cinema europeu moderno surgido no pós-guerra, o slow cinema não é uma simples continuidade do neorrealismo. O uso da tecnologia digital torna o método de fazer filmes distante do purismo. Serra acumula centenas de horas de filmagens, usando várias câmeras digitais. É apenas durante a edição que a forma de seu filme começa a surgir, transformando-se no processo. Particular de Serra é também a inspiração na literatura, de onde capta a essência de um evento vital, de uma narrativa. Registros históricos, memórias e imagens eternizaram a vida e a morte de Luís XIV. O quadro que o imortalizou no campo pictórico foi realizado por Hyacinthe Rigaud e mostra sua imagem envelhecida, porém altiva. O filme de Serra, com seus longos planos contemplativos dos últimos e penosos dias de um rei interpretado de forma tão genuína por Léaud, nos dá a melhor representação da figura real vulnerável, mortal, tomada de humanidade.

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IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA

Por Alan Campos

Tsai Ming-liang conheceu Lee Kang-sheng, seu principal colaborador, em um arcade de jogos eletrônicos (cenário principal de seu primeiro longa-metragem para cinema, Rebeldes do Deus Neon, 1992) no final dos anos 80, quando o último trabalhava na manutenção das máquinas. Nas vésperas do início de uma grande parceria, que iria render mais de 10 longas metragens e alguns curtas ao longo de mais de 20 anos, Lee não era ator e Tsai mal havia começado sua carreira.

A gramática cinematográfica de Tsai Ming-liang é quase compartilhada com muitos cineastas que ascenderam nos anos 90 e início dos anos 2000 e que ficaram conhecidos como integrantes de um slow cinema. Uma tendência contemporânea feita por diretores com afinidades pelo plano longo, por uma montagem que à primeira vista era desprovida de artifícios, por não atores e pela escassez de trilha sonora não diegética. Realizadores que priorizam um novo tempo com a imagem em movimento, tais como Lisandro Alonso, Apichatpong Weerasethakul, Kelly Reichardt, Naomi Kawase, Béla Tarr, Pedro Costa e James Benning, são alguns dos principais personagens desse cenário cinematográfico. No geral, são filmes que se utilizam das ferramentas apresentadas para desenvolver um cinema que diminua um senso de narrativa clássica. O slow cinema* prioriza outro tipo de ritmo com as imagens, um que não chegue às conclusões explícitas e que nos coloque a vagar pelo plano em um contato mais próximo e corporal com aquelas imagens, como se estivéssemos lá, experimentando o tempo ao lado dos personagens.

Tais cineastas compartilham desse interesse, mas de maneira alguma seria possível reduzi-los à dimensão de suas ferramentas cinematográficas. Não nos cabe diluí-los a uma investigação desvinculada dos efeitos que essas escolhas adquirem no projeto individual de cada cineasta. No caso do cinema de Tsai Ming-liang, o esgarçamento do plano longo, o ritmo mais contemplativo e quieto é direcionado ou, até mesmo, construído em função da corporeidade de Lee Kang-sheng. O não-ator fez urgir a necessidade da invenção de uma linguagem.

O próprio Tsai Ming-liang chegou a admitir a importância do ator para a composição de seus filmes, afirmando um desejo em não desviar seu olhar do rosto de Lee**. O impacto de um encontro reverberaria por toda a filmografia. A recorrente falta de expressão no rosto do ator conduz o espectador para um caminho não óbvio pelo cinema de Tsai Ming-liang.

No cinema, já existiram casos de uma parceria diretor/ator com um mesmo personagem ao longo de vários filmes, entretanto, o caso de Tsai com Lee se destaca tanto pelo número de filmes em que o ator/personagem aparece, como pela abordagem de pouquíssimos diálogos por parte do protagonista – em que as situações muitas vezes são apresentadas com ele imóvel em cena ou fazendo gestos corporais, à primeira vista, sem sentido aparente. Filmar o ator se tornou a marca do diretor; Lee é sinônimo para o cinema de Tsai.

O estilo de um cineasta foi adequado ao corpo de um ator. Tal corpo se tornou a marca de uma cinematografia por mais de vinte anos, portanto a experiência de olhar se torna um caso exemplar na história da sétima arte. Do jovem Lee Kang sendo um jovem adulto carregado de fúria juvenil em Rebeldes, passando para o adulto cada vez mais melancólico de Viva o Amor (1994), ao morador de prédio solitário de O Rio (1997) que se torna ator pornô em O Sabor da Melancia (2005) e que termina (?) como pai e morador de rua no angustiante Cães Errantes. Dessa maneira, o cinema de Tsai registra uma verdadeira experiência de vida de um rosto (e corpo) masculino inserido em um contexto urbano.

Em geral, os personagens de Tsai estão fora de ritmo com a paisagem urbana, sempre se colocam em uma espécie de não sintonia com a vida na cidade. Muitas vezes, são marginalizados ou possuem empregos banais que os fazem sentir o peso do isolamento que o capitalismo contemporâneo é capaz de proporcionar. Personagens que sempre parecem à beira de entrarem em colapso. A desestruturação familiar é um tema recorrente, bem como a insatisfação sexual e as condições precárias dos menos abastados. Tsai explora tais temáticas a partir do corpo, em direção aos gestos. Há algo que escapa de um sentido unilateral. Existe sempre uma transbordação do quadro, uma potência que é própria do gesto.

Mas há dois tipos de gestos no cinema do autor. Um que só se revelou inteiramente em Cães Errantes, um gesto de sua imagem enquanto ato. O outro é relativo à Lee, ao seu corpo no cinema, gestos expressos enquanto potências que extrapolam as dimensões do quadro. Tratemos do primeiro, por ora.

Indo de Rebeldes até No No Sleep, Tsai buscou um afrouxamento de sua narrativa em pouco mais de vinte anos, a criação de um ritmo que buscasse dentro de suas cenas sua própria vida, iniciando em si e colocando em si um ponto final ao cortar para uma nova cena. Em meio a elipses temporais ou cortes que interrompem a cena para outro contexto de personagens ou cenários, Tsai buscou criar imagens que se erguem por si, interessando bem mais ao realizador o presente de tais momentos e não sua união em prol de subtextos narrativos.

Em Cães Errantes, é possível ver esse processo em estágio bem avançado e sendo totalmente abarcado em sua duração fílmica. Sua estrutura é simples: Pai (interpretado por Lee), filhos, e ocasionalmente uma figura feminina (a mãe?), fazem diversas atividades pela Taipei moderna. Em situação de extrema miséria, o pai trabalha embaixo da ponte, enquanto os filhos exploram a praia, o supermercado. São cenas de um único plano e que não são difíceis de serem descritas: o pai se alimenta, as crianças e o pai escovam os dentes, o pai trabalha como anunciante de imóveis. Enquanto gesto fílmico, levando em consideração a imagem enquanto ato, Cães é semelhante aos primeiros filmes dos irmãos Lumière. Tenhamos em mente A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Trem a Ciotat (1895) que existem unicamente em um plano, potencializando a experiência da imagem em movimento pela força embutida nele e não por um truque de montagem. O interesse desses filmes é o registro de uma ação com a menor quantidade de artifícios possíveis. Portanto, o acontecimento existe, é capturado, e o filme cessa de existir ao seu término. Existe a excitação pelo dispositivo cinematográfico como mídia capaz de captar diversos gestos em movimento, em reproduzir banalidades como pessoas saindo de uma fábrica, trens chegando em estações, etc. A imagem enquanto gesto em Tsai caminha para uma direção cujo enfoque varia de cena em cena. O gesto de seu cinema desenvolveu-se rumo aos pequenos acontecimentos, às energias próprias dos gestos corporais embutidos, o que leva ao interesse por outro tipo de gesto.

Ao redimensionar seu cinema ao corpo de Lee Kang, Tsai conferiu aos gestos do corpo do ator, bem como os de outros autores, o motivo condutor de seu cinema. Partindo do esgarçamento temporal enquanto ferramenta que potencializa as emoções gestual, Tsai Ming-liang fez com que a quietude de seus filmes fosse experimentada sob a presença corporal de seu protagonista.

Em Rebeldes, Lee Kang não tem mais que algumas linhas de fala ao longo de mais de 100 minutos. Sua presença como adolescente frustrado, minado por não ter o que deseja (algo que nunca assume uma condução explícita), o corpo dos outros, em especial o de Ah Tze (Chao-jung Chen) – ser que se porta à margem do universo de Lee, de suas frustrações sexuais e sociais. Em um gesto conflituoso de fascínio e repulsa/inveja por Ah Tze, Lee destrói sua moto e picha “AIDS” na sua lateral. O que se segue são imagens de um corpo em ebulição (em contrapartida ao seu caráter reservado ao longo da narrativa), queimando em sua própria alegria secreta de apreciar seu rival descobrindo o estrago causado por um sujeito que lhe é oculto.

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Libertar-se por meio dos gestos íntimos e expressivos na imagem. Nesse momento, tais gestos não são exclusivos do personagem; são indícios de um arcabouço mais amplo, de um imaginário relativo a uma sensibilidade própria de adolescentes revoltados e entediados. O gesto cravado no corpo, quase livre de roupas, no intuito de se colocar para além de uma realidade que exige a dominação desse corpo e que só o liberta no momento dessas pequenas “vitórias”, por mais ambíguas que elas sejam, pois o corpo não pode ser inteiramente reduzido à significação clara e exata. Tal gesto não surge no intuito de “cena chave” que joga a narrativa rumo a novas direções. A aparição do gesto se dá mais em um contexto que retira o corpo da dimensão em que ele é frequentemente inserido, nesse caso, uma rotina entediante, e o joga em uma realidade nova: a alegria efêmera. Tal momento inicia e termina em si, com a mesma estrutura estilística, sendo uma espécie de suspiro do próprio filme. O cinema de Tsai Ming-liang é carregado de momentos como esse.

Corta-se para o corpo do mesmo ator em O Rio (1997), dessa vez, se debatendo em desconforto e angústia na forma de uma dor no pescoço que vai chegando a proporções cada vez mais alarmantes. Recorre-se à ajuda espiritual (seria obra de um espírito invasor?), bem como a médicos convencionais em uma tentativa em vão. Mas o filme não é apenas preocupado com Lee, sua história corre em paralelo com as narrativas do pai – personagem que busca conforto em flertes com outros homens em saunas – e da mãe – que se relaciona em seus momentos livres com um diretor de vídeos pornôs. Três histórias que mal se cruzam, que existem como núcleos isolados de uma família instável.

    Em determinado momento, Lee vaga pelo hotel com sua habitual dor de pescoço, com a cabeça em espasmos nervosos, até encontrar uma sauna. Ele caminha pelos corredores escuros com homens saindo e entrando, quase como uma realidade paralela ou um deslocamento desnorteado, até que ele entra em uma das salas e se senta. De olhos fechados, ele é tocado por uma mão. Em um primeiro momento, com dor e receoso do contato, ele hesita. Com os minutos se passando, vai se desenvolvendo uma relação sexual quando a mão começa a acariciar o peito de Lee e a masturbá-lo. Revela-se que é o pai de Lee no final da cena, fato que ambos desconhecem até então. A dor vai se transformando em prazer e, no final, tem-se a imagem de uma Pietà secularizada do pai segurando seu filho. O gesto novamente escapa a Tsai Ming-liang, vai em direção a uma cultura visual mais ampla que o filme. Entretanto, se opera outro gesto nesse momento: a imagem funde duas narrativas distintas do filme, a dor do personagem e o desejo do pai por corpos masculinos. O filme entrelaça tais dimensões de mundo, separadas à princípio, mas que se imbricam em uma nova realidade imagética. O plano longo, que antes estava à serviço específico de um dos três personagens, agora brinca com eles em suas particularidades em prol da criação de um novo sistema sensível entre esses corpos.

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Algo semelhante ocorre em Viva o Amor (1994), onde em meio a encontros e desencontros em um apartamento à venda, três estranhos se esbarram em um triângulo amoroso nunca inteiramente concretizado, apesar de dois deles fazerem sexo constante nesse espaço neutro. Desenvolvem-se momentos ora irônicos, ora íntimos entre eles, que decidem ocupar tal casa como refúgio de suas vidas. Apesar do filme nunca inteiramente definir do que eles fogem. Entre rotinas marcadas por empregos banais (a personagem feminina anuncia imóveis) e fugas para o apartamento vazio, os personagens pouco revelam no contraste do espaço público com o privado. Como imagem, o filme coloca a disparidade dessa duplicidade quando sua protagonista caminha por várias minutos em um parque durante o amanhecer da cidade – onde pessoas começam a sair para as ruas, carros começam a surgir nas avenidas –, em determinado momento a câmera solta-se da personagem e filma a cidade acordando, para segundos depois voltar à protagonista. Ela se senta em um banco e começar a chorar diante de tal paisagem. Durante vários minutos, ela chora, soluça, fuma um cigarro e volta a chorar.

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O gesto da imagem aqui, consiste em unir duas formas de cinema que até então estavam separadas. Ao diluir-se, ao permitir que o íntimo seja despertado pelo espaço público por vários minutos, Tsai Ming-liang desmonta sua realidade e a reconstrói em uma nova forma de vida. Seu gesto liberta-se de um registro simples e desinteressado para uma potência emocional – aquilo posto para fora do eu – que transborda do gesto de chorar.

Um cinema do gesto que chega ao seu ápice na sequência final de seu derradeiro longa metragem, Cães Errantes: observam-se dois personagens por cerca de 14 minutos sem cortes. Cena de pouca movimentação e com gestos escassos. A mulher olha para fora do quadro e Lee se posiciona atrás dela durante todo o tempo de duração do plano. Ele busca tocá-la, desejando um contato físico com o corpo dela, se sentindo visivelmente nervoso em como proceder e vai andando lentamente em direção a ela – que mantém sua visão para fora do quadro. Em mais de dez minutos, a cena não se torna mais do que é: um homem buscando se aproximar de uma mulher.

O leitmotiv de um cinema é redimensionado em sua simplicidade: o desejo pelo toque, o gesto receoso ou atrofiado de um personagem que nunca foi, sempre esteve à margem de seus sentimentos. Um momento entre pintura e cinema, entre estabilidade e movimento. A persistência de uma imagem com pouca movimentação em um único plano tende a suspender o tempo inserido nela, ocasionando uma imagem carregada de estranhamento em seus movimentos. A experiência estética da imagem em movimento infecciona-se pelo ato de estar diante de uma pintura. Curiosamente, a figura da mulher está encarando uma pintura paisagista na parede. A experiência cinematográfica de Tsai é posicionada no gesto da mulher em observar passivamente a paisagem bucólica, em ser afetado por ela a ponto de chorar, em paralelo à busca incessante de seu protagonista pelo toque. Nesse momento, o gesto da imagem se confunde com o gesto simbólico de uma cinematografia-protagonista, reconfigurando um encontro que não poderia resultar em outra coisa que não um fim. O confronto de duas realidades em resultados, sempre, não claros. Ao final, só resta a imagem na tela de concreto, ambígua, persistente, à mercê do tempo. Fim do cinema.

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KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO

Por Gabriel Papaléo

“Meus filmes são sobre pessoas que não tem um porto seguro.”

Kelly Reichardt

Das principais bases narrativas do cinema de gênero, de trabalhar com estruturas consagradas e arquétipos de personagens para criar mundos cujas ideias se renovam justamente no rearranjo de elementos conhecidos, é o controle de ritmo. Estabelecer em montagem o exercício de ritmo na qual um filme transcorre é das características do terror, da ficção-científica, do faroeste, do suspense. A suspensão da tensão até a catarse.

E quando essa velocidade não propõe uma progressão de eventos, e sim acumulados? O que acontece quando o tempo da ação de gênero não é o que interessa, mas as reações psicológicas dos personagens nela inseridos? O cinema de Kelly Reichardt busca algumas dessas questões à medida que controla o tempo com precisão para alterar as dinâmicas de poder e especialmente relações nos personagens que cronica. O movimento, a ação, como matérias-primas e alteradores de mundo dos personagens de Reichardt como em qualquer filme de ação, de terror, ficção-científica – mas a forma, e principalmente o tempo, em que as ações transcorrem se pautam mais pelo acúmulo de situações e pela reflexão através da mediação entre sujeitos e menos pela urgência de objetivos. Se cineastas como John Woo e John Carpenter estruturam seus contos a partir da urgência da informação, da gravidade das situações, Reichardt estrutura através das trocas pessoais, das conversas ao pé de ouvido. A montagem privilegia silêncios, porque o movimento é raro e, por isso, tão importante. Mas como nos pares mais tradicionais do gênero, é o deslocamento espacial que faz o status quo ser alterado.

Ao longo de sua filmografia, Reichardt usa da estrutura do trânsito, do road movie, desde sua estreia em River of Grass (1994) – e de certa forma todos os filmes da norte-americana são filmes de estrada, sediando suas ações em fronteiras e lugares a pertencer e esquecer. Entre Wendy e Lucy (2008) e Certas Mulheres (2016), seu filme mais recente, a diretora enveredou-se pelos seus discursos mais frontais na aproximação com uma tradição de gênero no cinema: o faroeste de travessia em O Atalho (2010) e o thriller político em Movimentos Noturnos (2013).

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O contexto histórico de O Atalho já é dado pela cartela inicial, bordada como as roupas das mulheres do comboio que acompanhamos. O Oregon de 1843 ainda é um ambiente hostil, deserto, e já conhecemos o comboio com eles perdidos ao tomar o atalho de Stephen Meek do título original. O espaço já fala por si nos quadros 1.33 de Reichardt, mas a diretora aposta na bela fusão que mescla a água do rio com o deserto para antecipar a escassez do recurso durante a narrativa – e também para demonstrar a dimensão fantasma que opera o mito do cowboy desbravador, do pioneiro, aqui uma miragem fervendo à distância. O processo de andar, a sobrevivência, retornar ao rumo com promessa de desbravamentos torna-se o objetivo primário.

É como se os filmes de Reichardt fossem localizados nas elipses do gênero, no procedimento até a ação. O ambiente árido tende à repetição cujos labirintos trazem uma lisergia que atravessa o filme e, para desafiar as percepções desses ambientes similares, acompanhamos a câmera registrar as poucas particularidades de cada espaço através da escala, da altura de quando existe uma montanha ao redor. Vemos escalas diferentes, os homens menores no quadro vasto de terra, pequenos diante de seus objetivos que em discurso abrangem tanto essa conquista – a impotência. Não é um libelo de conflito humano vs. natureza, como as descidas ao inferno de Herzog em Aguirre (1972) e Friedkin em Comboio do Medo (1977). Reichardt é atenta às dinâmicas pessoais que desabrocham de uma jornada para o nada que evoca mais um cansaço, um esgotamento do tempo, do corpo, do que necessariamente uma febre.

Portanto a escala de espaço é fundamental para intuir o comando do comboio. Temos os homens que criaram essa grandiosidade pra si através do discurso oral (como Meek) ou através da retórica civilizatória (como Gatlesby). As mulheres sempre estão à distância, ouvindo as conversas decisivas em baixa voz, nunca tendo acesso ao poder de decisão, passando a água de mão em mão enquanto os pioneiros discutem seus rumos. O valor revisionista do faroeste de travessia da diretora e do roteirista Jon Raymond aqui é também na destruição do mito do cowboy pioneiro e especialmente nas mortes utópicas de desbravamento. Emily, a personagem de Michelle Williams, começa como uma das mulheres cujo papel resume-se a costurar e dar apoio aos maridos e demonstra um senso de coletividade mais forte que de qualquer homem ali.

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Isso logo causa a dúvida em Meek, com seus contos de glória, o homem dos mitos, dotado de histórias e alteradores de realidades passadas, mas que não se prova na ação. Com a chegada do elemento mais forte do extracampo misterioso do filme, o indígena vivido por Rod Roundeaux, Emily encontra um semelhante a quem respeita para conduzir. Não por acaso, quando o personagem faz um de seus rituais religiosos, a dúvida é colocada no mito do indígena por Meek, o homem que perpetua os mitos de cowboy. A aproximação que Reichardt faz é do relato como algo religioso, que dá forma à curiosidade, mas que traz respeito e confiança apenas quando aliado à capacidade de agir em coletivo.

O indígena, surgindo como o verdadeiro íntimo da terra, quem sabe das rotas, é quem gera a empatia de Emily não apenas pela disposição para a ação como também pela empatia de ambos serem vítimas da incomunicabilidade com os homens brancos – ele pelo idioma, ela pela distância espacial das conversas de decisão. Como em Wendy e Lucy, a protagonista testa seus limites no trânsito, na impossibilidade utópica – antes pela crise financeira, agora pela inexistência da conquista de assentamento. Emily representa assim esse arquétipo do faroeste, do protagonista cuja disposição à ação lhe traz destaque diante de um grupo, para Reichardt desconcertá-lo ao colocar a mulher no comando. É sobretudo uma mudança no registro do tempo – como Emily vê o mundo, paciente, tomando cuidado, de olho nos arredores e sem desejos de resoluções no cano quente do revólver.

As estruturas de poder são questionadas de forma mais direta quando surge a travessia das diligências, o mais próximo de sequência de confronto e ação que Reichardt concebe, objetivo palpável de superação de um obstáculo. É quando surge a primeira câmera na mão de todo filme, como se a diretora e o fotógrafo Christopher Blauvelt sinalizassem a urgência sentida nessa cena em detrimento da jornada lisérgica do tédio da sobrevivência dos personagens abandonados pelos mitos de Meek à própria sorte e competência diante das adversidades.

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Se a passagem de bastão da condução da diligência é o que importa a Reichardt, não a interessa uma solução concreta e, portanto, a busca não termina com o desfecho prometido, mas com a esperança de sobrevivência. Uma árvore que sinaliza a presença de água, longe do oásis prometido por Meek, suficiente em manter a dúvida do destino por perto. É quando o mito baixa a guarda para quem age, para Emily, que a partir daí dá as ordens para seguir ou não a jornada – um poder adquirido pela sobrevivência, pelas desventuras, não pela conquista, mas pela capacidade de diálogo com a terra, com o outro. Quando percebe que a liderança do comboio está em boas mãos, o indígena parte para sua jornada pessoal, entendendo que a empatia pode ser agradecida apenas com uma troca de olhares, de pessoas cujo laço emocional fora forjado na morte de utopias construídas pela tradição oral dos pioneiros, mais interessada em perpetuar opressões masculinas brancas que em transmitir a cultura adquirida pelos corpos e mentes que por ali passaram antes de nós.

Já em Movimentos Noturnos, a aproximação com o thriller político é mais convencional, mas não por isso menos potente: a estrutura do roteiro foca na apresentação de três personagens com o objetivo claro de explodir uma represa como ato de ecoterrorismo. Os diálogos do roteiro de Reichardt com seu parceiro habitual Jon Raymond focam tanto no cotidiano quanto na exposição, com informações diretas entre os personagens para permitir a câmera enfatizar o conflito não-dito: a paranoia do personagem vivido por Jesse Eisenberg.

A primeira hora se concentra nos detalhes do atentado com foco procedural. Dena é a mais jovem, Josh o líder introspectivo, e Harmon o mais experiente. As dinâmicas de relação entre os personagens são mostradas especialmente por olhares, uma vez que o texto é quase devoto apenas de trocas sobre o planejamento do atentado. Enquanto Josh maquina os planos e não faz questão de interações sociais mais explícitas, Dena lida com a provação da mulher no mundo – e na cena da compra de fertilizantes precisa se provar diante dos homens mais velhos para executar o plano.

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O ambiente americano de espaços vazios, como em Old Joy e Wendy e Lucy, traz a fantasmagoria presente nas cidades registradas pela diretora, mas aqui no registro de suspense – o que era calmo e de certa forma pacífica nesses dois filmes vira uma tensão, instaurando-se como penumbra no escopo solar do filme. O respeito de Josh por Dena medido pela forma que ela se preocupa com detalhes, um sinal de paranoia que ditará a segunda metade.

O tempo da sequência da explosão é o mais próximo de um ideal consagrado de suspense, investindo em conflitos baseados nos erros não-previstos, na capacidade de improvisação dos personagens e em uma atenção aos rostos apreensivos enquanto a situação de risco é instalada. A diretora organiza essa sequência com rigor, privilegiando o ponto de vista do barco dos personagens e insistindo nele para estabelecer uma tensão que deriva justamente da distância espacial entre conflitos. Interessante ver a diretora e o fotógrafo Blauvelt se enveredarem pelo terreno do mais franco suspense e sair bem dele, quando sua carreira experimentava com a observação dos dramas cotidianos.

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É após a explosão, ademais, que Reichardt sinaliza timidamente que está interessada mais nas consequências do ato: o plano fixo dos três personagens andando no carro, durando por mais de um minuto, para focar no alívio de cada um após o objetivo cumprido. A dinâmica de planos mais ágil em relação a Old Joy, Wendy e Lucy e mesmo O Atalho é o que dita as sequências que culminam nesse clímax. É quando Reichardt puxa o tapete do espectador ao encerrar o conflito em uma hora de filme que sua câmera revela as intenções apenas através do tempo: inicia a segunda metade apenas com um travelling lento, por cerca de um minuto e meio, contemplando os objetos da casa de Josh – que não tínhamos visto até então.

A concentração no estudo psicológico de Josh torna difusa aquela concisão da montagem até o atentado, porque a visão de mundo agora é paranoica, misteriosa, como a do personagem que agora acompanhamos. Não existe a visão de mundo compartilhada do início, o registro agora é do cotidiano que sucumbe à paranoia, da ansiedade de não encontrar o outro, de mitos se instalando como propostas narrativas pela pura falta de comunicação.

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A opção pelo díptico revela muito desse tempo dilatado proposto ao gênero por Reichardt. O gênero é responsável pelos mecanismos narrativos na primeira metade e o tempo dilatado da diretora pelas reações da segunda. Se existem dúvidas entre a potência da conciliação do chamado slow cinema, com suas elipses e ritmo cênico difusos e a agilidade do cinema de gênero, Reichardt as encara com a propriedade de quem entende que ambas as vertentes teóricas dependem essencialmente do rigor formal, do controle do tempo narrativo – e quem as domina consegue transitar entre dispositivos narrativos com personalidade e desafios recompensadores.

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DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA

Por Bruna Dantas

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O cinema contemplativo em máxima. Extremismo estético, filosófico e existencial. Béla Tarr bebe da tradição tarkovskiana, uma das grandes precursoras do slow cinema, mas seu trabalho aprofunda essa tradição ao bifurcar novos caminhos para lançar e discutir questionamentos sobre a condição humana e, aproveita esse momento, para polir sua estética cinematográfica. Mais tarde, impulsionou outros cineastas a utilizar várias facetas do cinema enquanto estética da contemplação, a exemplo do cinema de Gus Van Sant e Jim Jarmusch.

O diretor teve uma carreira curta e concisa. Sua obra pode ser “dividida” (entre aspas, porque não se trata de uma cisão profunda) em dois momentos: o começo de sua filmografia (onde há uma preocupação maior com o realismo e a análise sobre as condições sociais e políticas da Hungria, com filmes que se assemelham à proposta da new wave húngara) e, mais tarde, quando seus filmes se entregam completamente ao slow cinema: takes longos, minimalistas, mais alertas em relação ao niilismo e às questões existenciais, individuais. Tarr alcança o ápice de sua carreira. Danação (ou também Condenação, no Brasil) é o filme que desponta essa segunda fase e, por ser o primeiro de um novo momento para o diretor, vem muito potencializado de pessimismo e de uma estética dramaticamente carregada, quase em uma forma mais crua.

Danação não é um filme onde o plot é fundamental. No geral, a narrativa em si dos filmes de Tarr está muitas vezes pautada no cotidiano mais banal. A grandiosidade mora exatamente na poesia visual que o filme pode alcançar. Ele se pauta na construção de imagens, sons e curtos diálogos que buscam remontar e trazer à tona emoções e sentimentos, que parecem residir na camada mais profunda do subterrâneo humano, do desespero em suspensão. O plot está ali apenas como chave inicial para levar o espectador a uma experiência niilista, sensorial, do cinema que potencializa a observação e usa o silêncio como elemento narrativo. Os poucos momentos de diálogo são sempre muito reveladores, no sentido de serem os únicos momentos onde há uma verbalização de tudo aquilo que se acompanha pelo silêncio insistente.

O primeiro plano já mostra suas intenções – cinco minutos a observar um teleférico que diminui a um zoom out e vemos o personagem principal, Karrer, contemplando uma paisagem húngara sórdida, fria e desoladora. Na espera de algo acontecer (estamos sempre à espera de algo acontecer), há a possibilidade do sentir seguido de reflexão.

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A ausência de diálogo engendra-se em cada frame e a música tradicional está quase sempre presente, embalando uma nação de iludidos. No Titanik Bar, reduto de concentração da trama, canta a amante: “Acabou. Está tudo acabado. É o fim e não há mais volta. Não ficará bem. Não mais. Nunca mais. Talvez nunca mais. Tudo tornou-se um pesadelo. Tudo. Talvez, quem ainda virá? De onde virá? Se é que vem. Ou não virá. Ninguém mais? Talvez nunca mais. É pegar ou largar, só com isso se pode contar. O que fazer? Não há mais palavras. Já não se pode mais partir. Já acabou há muito tempo. Seria bom se todos esperassem. Bom saber que logo partirei[…]”

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Os planos são longos, interminavelmente lentos. Essa estagnação, a chuva perene, o vagar sem rumo do personagem entre a “natureza-morta”, são elementos que estão ali para contestar o próprio tempo. Eles evidenciam que nos planos de Tarr não existe a possibilidade do novo e muito menos do progresso individual. A condenação da espécie humana está dada como algo impalpável, mas presente, irreversível e intrínseca.

A câmera na mão é sorrateira, segue os personagens em seu íntimo, aproximando-se do estilo documental. Há um formalismo no uso do preto e branco contrastado, fotografia esta que é recorrente em seus filmes, deixando clara a proposta de uma dureza mórbida do transcorrer da vida.

O movimento dos personagens é fundamental nos filmes de Béla Tarr – a constante perambulação e o ir e vir incessante. Contudo, esses elementos não representam mobilidade. O ato de andar está sujeito ao imóvel, é como andar em círculos num quarto fechado. Esse deslocar não leva a um objetivo, muito menos a algum lugar.

Ainda assim é visível a pretensão dos personagens em avançar, buscar uma realidade material diferente daquela. A migração ou o sonho de uma carreira artística são desejos rapidamente embotados pela forma trágica como Béla Tarr molda esse universo. Há um pessimismo que praticamente beira o apocalíptico e se realiza na forma como ele trata da condição humana e sua progressiva danação, passando assim, para uma análise mais frontal de possível identificação universal.

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A tônica que Tarr demonstra em tela nada mais é que a vontade de desvelar o que está debaixo da ponta do iceberg. É tentar tornar visível, através do slow cinema, o que parece ser invisível e de impossível representação, pois tange uma camada humana muito íntima. Ele faz do espectador um canalizador do sensível, acompanhando por muito tempo, em suspenso, o desdobramento das relações humanas. Porém, nada há em oferecer ou concluir senão o vazio e o irremediável.

É o esforço patético da vida. No ato final, Karrer fica de quatro e late contra um cão, revelando todo o lado primitivo que carrega os homens. Como um covarde, está cercado pela desesperança. Movimento desesperado para tentar se diferenciar da ambiência das pessoas daquele lugar, retomando ao homem anômalo nesse possível escape do poder, da imaginação coletiva, do entendimento social.

Danação é o primeiro passo revelador de como se moldou o slow cinema nos subsequentes trabalhos do diretor, características que se firmam ainda mais em trabalhos posteriores como Sátántangó, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim, entre outros.

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