Aterrorizada (John Carpenter, 2011)

Carpenter tem o sangue da geração romântica do horror, aquela que viu A Noite dos Mortos-Vivos num drive-in perto da faculdade e que pela primeira vez acreditou ser possível fazer um cinema de massa longe das asas de um grande estúdio. O final dos anos 60 trazia na crescente do horror na Europa e no sucesso absurdo do filme de Romero o grande abrir de comportas para a violência explícita que o cinema, até então uma arte limpa, aguardava desde que Murnau brincou de luz e sombra para assustar o público. Carpenter, Cronenberg, De Palma e Wes Craven, filhos do lado B da old Hollywood, nasceram na hora certa para fundar as bases do terror moderno, como quem pega uma câmera 3 segundos antes de um acidente. Cada filme lançado ali redefiniu algum conceito, cada sequência trazia algo de inédito, por isso pode soar estranho que Aterrorizada se pareça tanto com os terrores genéricos lançados nos últimos 15 anos. Contra a virtuose, contra a assinatura, o público e o próprio cinema (onde se encontra e para onde vai), Carpenter faz de Aterrorizada, um filme nu e ordinário, um straight-to-video (no Brasil, literalmente), o argumento definitivo de quem só quer fazer filmes apesar do que é e do que representa. Aterrorizada é uma peça arcaica, uma obra que nasce datada e inofensiva às audiências de hoje porque Carpenter parece reclamar para si o direito de filmar sem desdobramentos ulteriores. Um pedido de licença, ridículo e impossível, para ser assistido como se assiste a um filme de terror pela primeira vez.

É fundamental lembrar que Carpenter passou uma década longe do cinema, mas não sem filmar. Há de fato uma atmosfera muito similar entre Aterrorizada e seus dois episódios para a série Masters of Horror (Pro-Life e Cigarette Burns, este último entre seus melhores trabalhos): a imperturbável leveza de quem não dá a mínima, sempre muito distinta em um artista e estranhamente agradável a quem o assiste. E é especial testemunhar esta atitude em quem volta cercado de uma expectativa capaz de efeitos tateáveis no cinéfilo, um sujeito que raramente resiste ao impulso de ou condenar o diretor à decadência ou elevar um trabalho comum à condição de obra-prima. Mais interessante, contudo, é a consciência do cineasta a respeito e a influência disto em seu trabalho. Vêm imediatamente à memória dois filmes lançados nos últimos anos, também dois retornos de seus diretores ao gênero que os definiu: Giallo, de Dario Argento, e Arraste-me Para o Inferno, de Sam Raimi.

A posição de Sam Raimi em Arraste-me Para o Inferno é confortabilíssima. Mesmo a despeito de seu sucesso comercial, o horror de Raimi sempre veio edulcorado de certo histrionismo, um passe que lhe concede trânsito intato dentre os que sempre apreciaram seu cinema. The Evil Dead não se leva a sério como um Halloween ou O Exorcista. O retorno de Raimi a seu gênero de origem ocorre em estreito conluio tanto com seus fãs pré-Spider como com as novas audiências adolescentes: produzir um terror fácil e repleto de maquinismos rasteiros com uma veia inaudita para certa autoconsciência do ridículo. Raimi não deseja dizer nada, não deseja contestar ou mesmo validar nada, mas ainda quer para si o sólido retorno desse público misto que o abraçará de uma forma ou de outra. É admirável a trama que Raimi aparafusa em Arraste-me Para o Inferno: cineasta ou entertainer (como fossem coisas diferentes), Raimi não corre risco nenhum.

É por isto que um par mais apropriado a Aterrorizada seria mesmo Giallo. Assim como Carpenter, Argento abriu caminho entre uma geração talentosa e um mercado efervescente de filmes de horror baratos. Angariou fãs, chamou a atenção dos estúdios, foi convidado a fazer um filme todo seu contando com atenção e com dinheiro, e terminou ferido — não pela crítica ou pela indústria, mas por uma incompreensão absoluta advinda mesmo e principalmente de quem até hoje grassa em favor de Prelúdio Para Matar. Terror na Ópera é o Aventureiros do Bairro Proibido de Argento, filmes que deflagraram uma curva criativa riquíssima de seus autores já em conflito com fãs que não entendem a evolução a ser observada quando se olha para a carreira de cineastas com mais de 30 anos de trabalho, quando qualquer mudança é interpretada como um desvio do modelo ideal que o público estipulou para si (em geral correspondente a um filme específico, talvez dois). Giallo, como Aterrorizada, é uma sabotagem nessa expectativa. A diferença talvez fique pelo tour de force de Argento; Giallo é único, diferente de tudo no gênero. Já Aterrorizada é quase só mais um filme B vagabundo.

“The thought of working with a female ensemble cast was fun” (Carpenter para a Collider, jul/2011). A escolha tão precisa dos elementos mais rasteiros do cinema de gênero e da estrutura step-by-step reage com uma certeza inicial em Aterrorizada: o mundo que o olho captura não é confiável. A antecipação que evolui na cabeça do espectador leva à inevitável dissolução do “mistério” que a trama oblitera: o de que nada ali é o que parece ser, seja por resultado de ilusão, loucura, pesadelo, qual seja o gatilho usado no twist. Carpenter, consciente da expectativa do público e do seu olhar treinado (em muito, por ele mesmo) para todos os truques possíveis em um filme de horror, distribui clichês como quem espalha armadilhas pelo chão. Decifrar Aterrorizada nos primeiros 10 minutos é essencial para o choque da confiança do público nas bases mais primitivas do gênero contra essa substancial desconfiança na apreensão do olhar, um belo paradoxo narrativo e uma sofisticada nota metalinguística. Carpenter chama a atenção para a fragilidade das instâncias da ficção e sentencia que a pulsão do horror repousa muito antes na superfície do cristalino do que no lobo frontal, o que fica claro na última cena. O espectador sabe o que está por vir, conhece os truques, antecipa perfeitamente o turn da cena, e nada disso interessa: ele se assusta como se fosse 1976 e Carrie estivesse em todos os cinemas.

Anódino, prosaico, invisível na prateleira do fundo, Aterrorizada exige apenas a mais esguia das motivações para se assistir a um filme; celebração do mais antigo contrato entre o espectador e o artista.

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Dario em dez mortes

Um breve passeio por algumas das belas cenas concebidas por Dario Argento e suas ideias de cinema (isto não é um top 10).

1. O Pássaro das Plumas de Cristal (1970)

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Aos personagens de Argento não é permitido o privilégio de virar o rosto. A chamada trilogia degli animali, apesar de ser claramente um laboratório para ideias levadas a cabo nos anos seguintes, traz já na primeira morte assinada por Argento o gérmen de sua obsessão e vício: uma imagem como ponto fecundante que dará corda ao giro dos personagens e suas ações, uma imagem que precisará ser pensada, relembrada, desconstruída, para que se possa progredir na diegese. Uma chave (a despeito da gasta associação). Na cena, Sam Dalmas vê do outro lado da rua o que parece um homicídio em curso. Ao atravessá-la, ele fica preso entre duas portas de vidro, entre a rua e a galeria onde a mulher sangra, golpeada no peito com uma faca. Ele não pode entrar para ajudá-la, e não pode sair correndo. Os protagonistas de Argento não têm escolha a não ser acomodarem-se no espaço a que pertencem: entre o mundo que deixam para trás, insípida realidade, e o mundo à sua frente inaugurado pela mão do assassino, belo e misterioso como uma tela de cinema. A este olhar é dada a responsabilidade de mover a roda argentiana, um olhar que não pode agir, mas que também não pode se desviar da ação. Um olhar cujo único poder é o de ver, examinar, remontar.  É o que Argento demandará de seus protagonistas e espectadores ao longo de toda a sua obra.

2. Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971)

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A cidade e o caos são corpo e espírito na obra de Argento. Em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a morte de Nina é esse fundir de carne, metais e vidro quebrado quando o carro que ela dirige entra embaixo de um caminhão. É ao mesmo tempo à beleza e à ironia que Argento tributa o slow de uma morte que ocorre em décimos de segundo, mas que dilata-se pela mão do artista e pela trilha elegíaca de Ennio Morricone. À beleza porque a hiper-estilização da morte é o que energiza e revolve a mise-en-scène de Dario, sempre disposta a sabotar a narrativa, a inverter a lógica se conveniente for ao efeito que a imagem invoca. À ironia porque é a falta de um pudor maior (inclusive consigo mesmo) que permite a Argento transitar impune por entre a concepção de algumas das maiores atrocidades que se viu em um filme, como conferir lirismo e poesia a um acidente de trânsito, a mais banal das mortes. É o apetite pelo absurdo que faz do cinema uma arte que não imita, mas que compete com a vida.

3. Prelúdio Para Matar (1975)

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De todas as cenas extraordinárias de Prelúdio Para Matar, do petardo surtante do Goblin e da ópera épica e maldita que Argento dirige, é esse vulto de imagem entre os créditos iniciais que mais merece atenção. Uma fagulha do que está por vir. Das heranças do cinema clássico, de Hitchcock e de Tourneur, é certamente um elemento do western de Anthony Mann a peça mais recorrente do cinema argentiano: o passado, esta assombração. Um fato do passado marca e redefine os personagens, que passam a viver em função da lembrança que os atormenta. A diferença, claro, é que em Mann são os protagonistas homens desgraçados que devem superar seus traumas. Em Argento, são os assassinos. Mesmo assim, há aí uma similaridade elementar: como em O Homem do Oeste, Winchester ’73, O Homem dos Olhos Frios; como em Era uma Vez no Oeste (roteirizado por Argento), o trauma é uma licença para matar, e não pode haver nada mais faroéstico do que isso. Com que estranha benevolência Mann, Leone e Argento tratam a morte: em ambos os gêneros (que a têm como objeto) ela não é nunca arbitrária. Aceita-se que Harmonica mate Frank e seus capangas por reparação; aceita-se que o assassino mate em Prelúdio porque ele não tem motivos escusos para tal. “Ele só tentava me proteger”, diz o psicopata para David Hemmings na última cena. Mesmo nas mais violentas formas de cinema do séc. XX, os três diretores cuidaram para que o primeiro sentimento que aquele que mata inspirasse fosse a piedade.

4. Suspiria (1977)

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A limitação do espaço físico surgiu no horror como solução para as condições modestas de filmagem geralmente atreladas ao gênero, mas logo impôs-se como trunfo na impressão do medo e no espelhamento entre espectador e personagem, que, encurralado pelo que o ameaça, divide com o primeiro a aflição de não ter defesa ou possibilidade de fuga. Suspiria se passa quase que inteiramente dentro da escola de dança, e seus personagens são cercados por uma onipresença maligna aonde quer que vão. Ainda assim, mesmo que não haja para onde correr, a ilusão da escapada permanece, a curva seguinte do corredor sempre mente com a promessa de que logo ali haverá uma saída. Por isso é apropriado que a morte do cego ocorra onde tudo o que há sejam espaços por onde fugir. Ele é captado no centro da praça de Königsplatz, em Munique, como se fosse a última alma viva sobre a Terra, sozinho, preso na vastidão do mundo inteiro com o mal que o ronda, tal qual estivesse preso num armário. Num desses arroubos cínicos de Argento, é morto pelo próprio cão-guia, a 30 centímetros de distância. Toda a ideia por trás da “trilogia das mães” (os assassinatos que ocorrem por intermediação de qualquer pessoa ou coisa influenciada pelas bruxas) é o pretexto para criar mortes não necessariamente vinculadas a um indivíduo, independentes de um ponto de vista que se deva representar como o ponto de vista de um assassino serial, uma pessoa. Isso significa concessão para pôr a subjetiva em um pássaro (Terror na Ópera), um mosquito (Phenomena) e até no próprio vento (como é o caso aqui). É uma noção muito romântica de cinema, a crença antes no correr incontido da imagem do que no que quer que seja que a devesse sustentar. Experimenta-se assim uma exponencial rarefação da câmera, desencarnada de um recipiente rígido (seja o corpo de outrem ou o próprio espaço do campo que ocupa), livre feito um espírito para realizar voos e mergulhos (Terror na Ópera, Tenebre). Como ocorre também na cena seguinte.

5. Mansão do Inferno (1980)

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A cor é signo da estilização do horror italiano, marca dessa noção inconcebível de que pode haver beleza em um assassinato, paradigma inventado por Mario Bava e que serviu de liga para todo o desenvolvimento do gênero. É natural portanto o exagero, a feitura de planos impraticáveis, o grafismo das mortes, o azul, vermelho e violeta; porque o campo de ação de um filme de Bava ou de Argento (ou Fulci, Martino, Barilli, Soavi) não pode jamais ser confundido com qualquer coisa exterior à tela que ocupa. O farsesco serve de licença à criatividade do artista e à consciência do espectador. Apesar de a cor no horror italiano ter aparecido no distante A Gota d’Água (segmento de As Três Máscaras do Terror, de 1963), Argento só veio a utilizá-la em Suspiria, e como simples marcação do fantástico, já que se tratava de sua primeira incursão no horror sobrenatural. O uso em Suspiria é primitivo, quase infantil. Somente a partir de Mansão do Inferno que Argento confere às cores a qualidade imaginada por Bava: a de sofisticar um ato por mais grotesco que ele virtualmente seja. Se de O Pássaro das Plumas de Cristal (70) a Suspiria (77) vale a inquietação da câmera no que Argento faz de melhor (guiá-la pelo ambiente), em Mansão do Inferno todas as mortes aproveitam-se antes da força do espaço fílmico e das cores que o inflam a serviço da plasticidade e de nada mais. Todas com exceção de uma (nas imagens acima). No que os demais assassinatos são belos, coreografados, substâncias de um quadro fluxível (e Mansão do Inferno tem as mais belas composições de Argento), a morte de Sacha Pitoëff ocorre num esgoto. Ele deixa para trás a arquitetura irretocável de Roma, deixa os belíssimos enquadramentos que serviram de moldura ao filme até então, e protagoniza uma morte avessa a qualquer apelo estético. Enquanto tentava matar uma porção de gatinhos indefesos, Pitoëff cai na água e começa a ser devorado vivo por ondas e ondas de ratos que vertem dos esgotos. Ele grita por ajuda. De longe, um vendedor de cachorro-quente sai correndo para tentar salvá-lo. Acompanhamos a angústia da espera, o close nervoso de Argento nas centenas de ratos que borbulham uns sobre os outros contra o plano estático do homem que, de longe, apressa-se para chegar a tempo. Quando chega, crava a faca na nuca do desgraçado, rola seu corpo para dentro do esgoto e sai andando tranquilamente. No céu, entre os prédios, a lua é um olho que a tudo assiste; incluindo o leve sorriso do espectador.

6. Phenomena (1985)

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Contra a dureza dos centros urbanos que lhe serviram de universo de O Pássaro das Plumas de Cristal até Tenebre (82), Argento devolve, em Phenomena, o prodígio da morte à sua artífice original: a natureza. A todo o momento os personagens se evadem para longe de uma cidade. Como quem retorna ao útero, o filme repetidamente abandona um cenário urbano em direção a um bucólico, a uma floresta úmida, a uma gorda cachoeira. Assim, como se vê na cena acima, deixando o asfalto de lado para seguir por um pictórico caminho de terra, a câmera não escala telhados de casas e arranha-céus (Tenebre, Suspiria), mas flutua por sobre as copas das árvores mais altas feito folha levada pelo vento. Não há mais o tráfego sujo e confuso de O Pássaro das Plumas de Cristal (correria pelas ruas de Roma), Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (o acidente na cena final), O Gato de Nove Caudas (o atropelamento pelo trem), Prelúdio Para Matar (arrastado pelo caminhão de energia); a perseguição agora transcorre talhando mata e montanha. No final, a rima entre o slow do vidro que se estilhaça com o slow do acidente em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a cabeça que rola por sobre o asfalto e a cabeça que rola pela correnteza do rio; o final de um filme, o prólogo de outro, como duas pontas que se acham após uma longa curva de 14 anos.

7. [The Black Cat] Dois Olhos Satânicos (1990)

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Em 1985, Argento tentou levar aos palcos de Roma a irônica Rigoletto, de Verdi (após desistência de Scorsese). Seria o início do que o diretor esperava se tornar uma bem-sucedida carreira na ópera, mas as “distorções” propostas por Argento no libreto do séc. XIX chocaram o tradicional Sferisterio di Macerata. Dario recebeu pelo correio a carta de dispensa, e foi substituído pelo também diretor de cinema Mauro Bolognini. Foi sua primeira decepção pública com a arte. Não por acaso, dois anos mais tarde, Terror na Ópera era lançado. No filme, quem comanda a produção é um diretor de filmes de terror com ideias ultrajantes, o fetiche do assassino é forçar a protagonista a assistir a suas obras, e, no ápice do espetáculo, corvos voam pelo teatro atacando as pessoas da plateia. O filme mais caro produzido na Itália até então foi um fracasso de público e de crítica, selando a crise de confiança dos estúdios nos diretores de horror do país e decretando o fim do cinema fantástico italiano enquanto objeto de apelo comercial. Sua segunda e talvez definitiva decepção; uma nova fase para o horror e uma nova fase para Argento, desde então o único diretor com algum prestígio para continuar trabalhando no gênero. [com o perdão da longa introdução] É essa fase que The Black Cat (a segunda parte de Dois Olhos Satânicos) inaugura. É natural começar a assistir Argento por Prelúdio Para Matar e Suspiria, dois de seus filmes mais histriônicos, e decepcionar-se com sua fase noventista. É certo que não há mais o mesmo brilho nas lâminas, certo que se gasta a vivacidade das cores. É inevitável a evolução do artista. The Black Cat é esse marco de um Argento mais áspero e não menos genial.  O conto de Poe já fora adaptado setecentas e noventa vezes (a melhor versão é de Lucio Fulci), e embora sempre amargo, nunca com a crueza e o requinte minimalista que Argento imprime. Nas imagens acima isso fica muito evidente. O crime central de The Black Cat é uma cena banal de violência urbana, digna de figurar em páginas policiais: uma briga de casal. Não mais psicopatas megalômanos, bruxas milenares que planejam trazer o inferno à Terra. Aqui, o marido se descontrola e mata a esposa com um cutelo de cozinha. Nada mais. Os planos são escuros, erráticos. Keitel parece não caber dentro do quadro. No detalhe, a lâmina que abre e desliza pela carne vagarosamente, único virtuosismo (ou nem isso) a que Argento se permite. No final, o que sobra é um elemento ignorado por toda sua obra e que a partir daqui passa a tomar perturbadora relevância: o corpo sem vida. Até Terror na Ópera, ele não interessava a Argento. O corpo como objeto de seu cinema é aquele dos momentos que precedem a morte, quando mais agitado e vivo do que nunca. É o corpo que debate-se, que luta contra a própria extinção, que sangra e exaure suas forças para permanecer vivo. Há qualquer coisa de belo nesse prelúdio, uma graça inespecífica que sempre fascinou Argento e que ele buscava reproduzir. Em The Black Cat, do primeiro ao último golpe do cutelo se passam exatos dez segundos. São dez segundos contra toda a metade do filme que se desenvolve a partir daí em torno do cadáver: escondido, assombrado, emparedado e, por fina ironia, origem da morte de seu próprio assassino. Definitivamente algo muda no cinema de Dario Argento.

8. Síndrome de Stendhal (1996)

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Se antes a estilização e vigor absurdos das mortes lhes emprestava qualquer coisa de impossível, de fabuloso, a nudez da violência em Síndrome de Stendhal (a grande obra-prima pós-Opera do diretor) é a nudez da própria máquina fílmica de Argento, mais narrativa do que exatamente gráfica, mais chocante do que propriamente bela. A tortura é o elemento centralizador da ação, não mais o assassinato em si. Se o cinema acostumou o espectador à encenação da morte, certamente não o preparou para o estupro. É a linha que Argento cruza em Stendhal. A cena em que o estuprador tira uma lâmina de barbear da boca e corta os lábios de Anna é simples e arrepiante como sua referência em Um Cão Andaluz. Não há o distanciamento sempre tão bem determinado entre o que é fantástico e o que é próprio do universo do espectador. É da inversão que Argento opera. Se no giallo típico nos vemos naturalmente do lado do assassino (porque a finalidade do giallo é a conclusão do ato que ele enseja. A falta da morte é um coito interrompido), em Stendhal é na posição de Anna que Argento nos coloca, sempre montando o estuprador sobre a câmera como se o montasse sobre o espectador. É esse ângulo inferior, em parte subjetivo, que muda tudo em Stendhal. Quando a câmera volta à sua posição original, desaparece o Argento de Tenebre ou Prelúdio, some o senso estético, o prazer fílmico. Só olhamos porque somos forçados a olhar. Cada movimento do estuprador e cada grito de Anna são de um desconforto que as mais violentas mortes de Argento não tencionaram provocar. Na cena acima essa ilustração: o serial killer força Anna a vê-lo estuprando e matando uma mulher. No detalhe, o olhar através do buraco da bala.

9. Jenifer (2005)

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Não costumam funcionar as tentativas de encaixar Jenifer e Pelts em uma análise de filmografia de Argento. Os médias não parecem ter sido feitos há apenas alguns anos, mas também não poderiam jamais ser filmados nos anos dourados do terror italiano, quando cada milímetro de película era fruto de uma ideia meticulosa de cinema que o diretor defendia. Assistindo a cenas como o passeio pelo casarão em Prelúdio Para Matar, ou a organização das fotografias em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, percebe-se um Argento comprometido até a alma com seu conceito de uma arte sensorial acima de tudo e uma arte que deve remontar-se, refletir-se, para poder contar a si mesma, diletante e espontânea. O cinema de Argento é o do reprojetar a imagem na memória para ressignificá-la. É o único modo de se progredir no filme. Em Suspiria, por exemplo, Suzy sabe que viu algo importante na noite em que chegou à escola de dança, mas não consegue lembrar o que é. Quando estanca em sua investigação diante de uma parede aparentemente sem saída, ela repassa na cabeça a imagem da estudante gritando. Ela disse alguma coisa, algo fundamental. Como não pôde ouvir, devido à tempestade, ela lê os lábios e adiciona o som à imagem (De Palma fez o contrário em Um Tiro na Noite), podendo finalmente seguir em frente na trama. Este é o tronco do cinema de Argento e está presente, em maior ou menor grau, em todos os seus filmes (incluindo Giallo), com exceção exatamente de Jenifer e Pelts. Mas era essa mesma a proposta da série Masters of Horror: dar aos diretores convidados uma válvula de escape para qualquer compromisso que precisassem manter com estúdio, produtor, público ou, talvez acima de tudo, com eles mesmos. E assim acontece: Jenifer é cinema que simplesmente flui com a leveza dos filmes que parecem se fazer sozinhos. Talvez por isso mesmo ambos sejam as obras mais próximas do gore que Argento já dirigiu (a morte na armadilha em Pelts é inacreditável). Mesmo assim, mantem-se uma sofisticação imanente, e é essa classe que lhe confere de verdade, em estado puro, o que se pode chamar de terror. Na cena acima.

10. Giallo (2009)

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Se falamos até aqui do papel do trauma e da remontagem na obra de Argento, pode-se dizer que Giallo é o único filme que desenvolve-se sobre estes elementos. Não com base neles como todos os outros, mas sobre, a respeito deles. Uma reflexão de Argento nem tanto sobre o giallo em si, mas sobre sua contribuição ao gênero. Há duas cenas dispostas nas imagens acima (cinco imagens cada): a primeira se passa na memória do investigador (anos 70/80), a segunda no presente. A morte, na primeira, é a morte dos primeiros anos de Argento: há uma preocupação atmosférica, ângulos fantásticos, o assassinato através da lâmina da velha faca dos gialli setentistas. Tudo, do filtro amarelo às velas, rosas, candelabros (até a fenda do vestido), sugere o óbvio: o passado é belíssimo. A lembrança do protagonista, um elemento que atravessou toda a filmografia de Dario, é a lembrança do próprio diretor. Giallo só permite a Argento respirar a velha fase pré-Opera através desse fio de recordação. Como grande esteta do horror, época das cores bavianas, das falsas subjetivas e das mortes sonorizadas pelo Goblin, resta o que já há muito se passou. A esse Argento jovem e louco para experimentar, Dario reserva o trauma do protagonista, um relicário. Mas Giallo não foi feito ou tampouco se passa nos anos 70. Do lado de fora desse abrigo, Argento não registra nenhuma perseguição furiosa do assassino por sua vítima. “Yellow” (nome do psicopata) não mata: captura as lindas mulheres para trabalhar vagarosamente seus corpos numa gélida mesa de cirurgia. Sua obra consiste justamente em arruinar o que é belo. O instrumento não é mais a lâmina da faca, mas tesouras, seringas e alicates, e o mais importante: Argento priva o espectador da ação. O único momento em que vemos o resultado do que o psicopata opera é quando ele próprio as aprecia: por fotos digitais abertas num monitor. Volta o interesse pela carne apenas, pela imobilidade; o corpo e nada mais que o corpo é o objeto de fetiche do assassino, o trabalho sobre a pele como se fosse uma tela ou uma pedra para o escultor. Extirpando o valor do movimento e trancafiando-o no porão da memória, Argento diz alguma coisa sobre o cinema que fazia e sobre o cinema que faz. Não há sequer o interesse pela morte. Como se vê na última cena, Yellow não mata a personagem, apenas a tranca num porta-malas. A morte dela é consequência das decisões do investigador, encerrando assim um sombrio paralelo com Prelúdio Para Matar (filme-síntese do olhar argentiano): o protagonista transformado em assassino, e os créditos, secos, postos sobre a poça de sangue de sua vítima.

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Sem Amanhã (Max Ophüls, 1940)

Por Luis Henrique Boaventura

Há em A Ronda este momento seminal do cinema de Max Ophüls: o Raconteur canta e gira seu carrossel quando o mecanismo subitamente trava. A valsa, sem a supervisão de seu regente, suspende-se do fluxo lógico dos fatos e deixa escapar para a plateia um pequeno tempo morto, um diálogo banal que não dá nenhuma sequência à história, correndo aparentemente à revelia de seu narrador. Mas o narrador ophülsiano é absoluto, nada lhe escapa. Mais tarde, em outro segmento, um casal está sobre uma cama de hotel, laços e espartilhos sendo retirados, a câmera filmando o espelho no teto do quarto, quando o Raconteur surge não sobre o carrossel de antes, aquele da praça, teatralizado e entranhado nas camadas da ficção, mas sobre o carrossel fílmico da moviola, cortando com as próprias mãos a película e alterando sua narrativa. O Raconteur não se detém em “contar” apenas, ele quer ser contado (nem que seja por si mesmo), e para isso insere-se na história como um de seus objetos. Encenar o próprio lapso é condição para descer a esse plano de personagens falhos e irregulares, para poder caminhar entre eles. Mas não se deixe enganar pelos seus truques; não é este apenas mais um dos amantes tolos embevecidos na ciranda de A Ronda. A presença física é apenas um disfarce, traje que lhe permita circular por seus cenários. O Raconteur é um ser alado dentro de sua ficção, pode atravessar camadas e perpassar tecidos da diegese como bem entender. Ele não é apenas o senhor da história narrada no filme, mas o senhor do próprio filme; ele é Ophüls, claro, encarnado em cada um de seus narradores; um raconteur que parecia olhar para o tempo como quem olha de cima um manso torvelinho d’água, ou o torpor de uma tempestade, ou os braços da Via Láctea: sabendo de cada partícula seu próximo movimento, de cada estrela ou cada anel de vento sua mais insuspeita vontade.

É por sobre o tempo que olham Ophüls e seus protagonistas/narradores, um olhar que vê passado, presente e futuro de uma só vez, como uma só variação da mesma valsa. Do ponto de vista do espectador, são todos raconteurs; do ponto de vista da própria narrativa, são todos fantasmas, uma presença que assombra ângulos e movimentos como se houvesse ali uma subjetiva irrestrita, que nunca começa e que nunca termina: apenas é. Como o próprio tempo.

Em poucos filmes esse debruçar-se sobre o inteiro tempo narrativo é tão pungente quanto em Sem Amanhã. A história da dançarina do La Sirène que reencontra o grande amor do passado é narrada neste interregno mágico entre o que acontece agora (e que é fugaz, incapturável) e o que nunca aconteceu. Remonta-se esta macabra estrutura cíclica da valsa onde o tempo se dobra sobre si mesmo, onde personagens são condenados a reviver suas tragédias com a certeza de que tudo passa e de que nada muda. O tempo presente vivido por Evelyn e George é uma vibração de onda, eco de uma história interrompida bruscamente. Os personagens radiantes de outrora são hoje meras projeções, débeis fachos de luz lutando para recriar um cenário que os engane, que os enleve na ilusão de estar em um lugar impossível, perdido entre o que conservou a memória e o que cultivou o sonho, como na viagem de trem no parque em Carta de uma Desconhecida.

Essa difusa rebentação do tempo está intimamente ligada ao que é mais caro a Max Ophüls: a farsa, o teatro, o picadeiro, o show de mágica. Foi Ophüls o precursor no cinema desta acepção por demais conhecida de que o amor não existe de fato senão na demência rubra dos apaixonados, cristalizado na memória ou na fantasia como uma velha página que se desmancha tão logo o ar lhe toca a superfície, porque o amor nasce morto em todos os filmes de Ophüls, nasce datado, marcado para acabar, e tudo o que resta a seus narradores é exumar este corpo, viver e padecer de uma história conhecendo todos os perigos do labirinto, deixando-se prender em todas as armadilhas. É a melancolia do sacrifício, mas também a dos mais hábeis narradores.

Sem Amanhã é esse conto post mortem, desfilado com a consciência de quem vê o objeto de todos os ângulos, de quem, ao contrário de suas marionetes, não está mais enredado pelo fluxo incontido do tempo, observando agora do fastígio pingente o tenro princípio, o flamante presente e a queda voraz — e todos estes vértices tocam um ao outro em algum momento do filme. Como no apagar das luzes na cena do jantar, no momento em que eles se reencontram, e acima de tudo na cabana, o cenário mais alegre (e terrível) em Sem Amanhã, tão frágil que a câmera reluta em se aproximar, entrando pela janela feito um floco de neve e temendo quem sabe acordá-los de um sonho bom. Está ali o passado do cenário, o infinito aparente do agora e a queda em si diante do amanhã que ela sabe não existir. O tempo não guarda segredos ao raconteur Max Ophüls; pelo contrário, conspira junto a ele.

É interessante observar na obra de Ophüls uma crescente sublimação desse contador. Ele está entre os demais jogadores na primeira fase (nos melodramas americanos principalmente, onde consome a si mesmo nas engrenagens da própria narração), altivo e intocável na segunda (já em A Ronda, apenas intervindo com autoproclamada autoridade), e completamente externo na terceira (em Lola Montès, onde se rarefaz a nível de um quase observador. Ainda é mais notável, contudo, o fato de neste haver uma duplicação, sendo o Mestre de Cerimônias qualquer coisa de extracorpórea que emana da personagem de Lola: ele conduz o espetáculo, ela conduz a história — unidades opostas, sim, mas ainda faces do mesmo rosto). Sem Amanhã está obviamente incluso no primeiro nível, com um narrador que não se satisfaz em narrar, tampouco comandar os demais personagens; Evelyn precisa atirar-se ao fogo de sua tragédia para que contá-la valha a pena.

Como na cena do corte exercido pelo Raconteur em A Ronda, Evelyn decide que uma remontagem é necessária. Ela, lúcida de tudo, incorpora a própria verdade repetida de Ophüls sobre o amor: o fim é inevitável (e por assim dizer, necessário). O amor é habitante sempre de dois tempos indisponíveis: ou da esperança, ou da saudade, vivendo apenas na ilusão de que um dia viveu realmente. Sabendo que não há outro destino que não o de uma nova separação, Evelyn remonta seu velho tango unindo estes dois pontos distantes no tempo. Ela amputa a si mesma da história, permitindo que esta siga para George e para seu filho Pierre, mas não para ela. Os dois amantes continuarão separados um do outro como no passado porque este fato é imutável, é o próprio eixo sobre onde a roda gira. Nesta outra versão, contudo, Evelyn dá a George um presente, um fantasma dessa história que não aconteceu: o filho que ambos nunca tiveram, única prova de que seu amor não foi apenas um vulto imaginário.

Marcando George com o amor irrealizado e com a presença espectral dela própria refletida para sempre na criança, Evelyn se retira. Então sublime, imaterial, transformada em névoa pela máquina da narração, ultrapassa a diegese e se levanta como a raconteur absoluta de seu romance, reencarnação apropriada de Max Ophüls.

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Na Teia do Destino (Max Ophüls, 1949)

Na Teia do Destino é um furtivo jogo de cena entre entes que, como bem notou Ophüls, movem-se com mais desenvoltura dentro do filme americano: mocinhos e bandidos, oposição fácil e largamente ignorada em seus demais filmes. Se nas obras europeias Ophüls forja a lente da câmera pela lente da retina de seu narrador-personagem, em seus filmes americanos essa lente é reposta ao lugar consagrado pelo gênero: não nos, mas sobre os personagens, sujeitos então às intempéries da narrativa e ao olhar deste espectador que tudo julga e que sobre tudo infere. Um olhar, portanto, fácil de enganar.

Os personagens de suas duas fases na Europa são transeuntes de um mundo notadamente ficto. A trucagem da máquina ophülsiana não é escondida, pelo contrário: seus movimentos entorpecentes e sua narrativa em denso espiral convidam o espectador a olhar para a câmera que encarna em seus personagens. Muito por coerções de estúdio e por uma necessidade de adaptação de linguagem, Ophüls, um cineasta radical, teve na América sua fase mais clássica e minimalista. Faz sentido que Na Teia do Destino seja seu último filme na América, elegendo mesmo o noir como esta folha em branco, teatro da mais tênue filigrana da tragédia humana, onde cineastas americanos e estrangeiros (os alemães principalmente) puderem inscrever sua própria mise-en-scène à baila de personagens naturalmente sombrios e suicidas.

Ao brincar com o noir, Ophüls inevitavelmente brinca com o olhar viciado do público para as ferramentas que o gênero herdou da narrativa literária. Apesar dos conflitos bem delimitados, das problemáticas sociais claras, o que resta de substancial em Na Teia do Destino é a mesma questão angular de todo o cinema de Ophüls: o personagem que revolve a narração; outra vez e sempre o contador de histórias.

Se em Sem Amanhã o narrador começa preso nas camadas da diegese para só no final ascender à condição que lhe cabe, em Na Teia do Destino o caminho é inverso. Este narrador noir coloca sua femme fatale como isca e aguarda pacientemente para invadir o filme na pele do chantagista, antagonismo duro e opressivo. A partir do momento em que se coloca na tela, começa a encenar a si mesmo para o espectador, fundando pequenos atalhos para firmar empatia: inventa um romance que sequer chega a se constituir em algum momento, reposiciona-se como o herói clássico do gênero e faz esta rima incontornável entre o cinema de Ophüls e o próprio noir: o sacrifício. Como Evelyn em Sem Amanhã, ou Lisa em Carta de uma Desconhecida, Donnelly apaga-se da história para restaurar o curso da vida de sua amada, retornando então ao plano áureo dos raconteurs onipotentes.

O problema, no que tange a Max Ophüls, é sempre delimitar onde começam e onde terminam as intenções de seus personagens. Teria sido o arroubo trágico de Donnelly realmente um ato de amor? Lucia recebe sua vida de volta, mas recebe também uma terrível maldição: a necessidade de continuar vivendo. Lucia precisa viver para manter de pé a instituição familiar que tanto protege, o que leva a esta obscura conclusão: sua vida não a pertence. Ela só a toma nas mãos em um breve instante: na fração de segundo em que houve amor e possibilidade de futuro. Nada poderia ser mais ophülsiano do que isto: a família como cárcere em oposição a um amor que, por alguma engenharia demoníaca, não é via de liberdade, mas de perdição. Onde fica então o estar livre dessa cela? Onde fica a felicidade? Existe apenas em projeção, apenas em estado de delírio apaixonado.

Viver o resto da vida sob a sombra de uma paixão que jamais foi frustrada (e que portanto jamais irá se curar) e sob a tortura do segredo que deverá carregar para sempre, uma prisão que se sela durante a assustadora cena final (nota: 5ª imagem do slide). Nessa tentativa de fuga, Donnelly deixa Lucia para trás, mas prega sua peça no espectador até o fim. Afora o romantismo épico da encenação, de assumir a culpa de tudo e dar a própria vida por sua amada, o que resta de verdadeiro ao ato de Donnelly é um contorno mundano, quase patético: limpar a consciência na hora da morte.

Filmes citados

Carta de Uma Desconhecida [Letter from an Unknown Woman; EUA, 1948], de Max Ophüls. 86 min.

Na Teia do Destino [The Reckless Moment; EUA, 1949], de Max Ophüls. 82 min.

Sem Amanhã [Sans lendemain; França, 1940], de Max Ophüls. 82 min.

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Super 8 (J. J. Abrams, 2011)

A pulsão lúdica do matinê spielberiano combinada ao paradigma mistério-espetáculo de J. J. Abrams faz de Super 8 um filme com duas esferas referenciais bem distintas: a primeira e mais clara aos hoje romantizados anos 80, a segunda a esta ainda muito presente década de Lost (mas que já não é o presente, que se frise). Imanente nessa liga vêm a alma do filme B americano, paixão de que Abrams e Spielberg partilham, e a própria fascinação pelo misterioso cosmos da infância, que, não importando sob que perspectiva (anos 50, 80 ou 00), parece sempre inflamado pelo mesmo ritmo do pedalar de bicicletas, estranho signo absoluto. É deste elemento angular, essa centelha, que Abrams corre atrás em Super 8.

É muito da matéria inespecífica dos 12 anos que Super 8 se compõe. Abrams não poderia jamais se apoiar em um único ponto de referência como se apenas este pudesse representar a febre própria da idade, do agir inconsequente e do encantamento diante do desconhecido. Tais componentes não são privilégio de uma época/um ciclo exclusivo. Super 8 não é um mero filme-monumento a um tempo passado, uma daquelas obras estéreis que buscam tolamente reanimar o que já está morto. Há sim o componente referencial à aventura oitentista, a Steven Spielberg, ao clima de escapismo barato de uma tarde de sábado, mas não é este o ponto dominante. Super 8 não é um subproduto, mimese vazia que não sobrevive se não inflada pelo sopro da obra à que faz referência. Abrams inscreve em Super 8 (sem soar autoindulgente, o que também é digno de nota) sua própria versão do que um matinê deveria ser, lúcido de seu lugar na cultura pop e de que dificilmente, assim como após Spielberg há 30 anos (guardadas algumas proporções), um filme de verão americano será o mesmo depois tanto dessa nova sede que foi presenteada ao público (da charada, do enlevo coletivo em torno de algo) quanto da manutenção de uma velha sede: a de ser fascinado por alguma coisa, a de desconhecer e saborear dessa ignorância numa época como esta, em um contexto e em um mundo sem surpresas como este.

Se Spielberg devolveu ao cinema comercial um ímpeto que Hollywood perdera junto de Howard Hawks, J. J. Abrams devolveu ao olhar do espectador uma abertura e uma reencontrada sensibilidade ao porvir do tempo narrativo, algo inato e que a incansável repetição da máquina americana vem há tempos dizimando. O fascínio diante do que não se conhece (mas que se tenta e se imagina descobrir), mola não por acaso das mais ingênuas trucagens circenses — de performances de mágica a shows de transformação com espelhos —, é o aspecto mais remoto e provecto do cinema; não bem este cinema de agora, mas aquele da novidade, do inacreditável, aquele que fazia as pessoas fugirem de um trem na tela porque parecia vir em sua direção (entre outras lendas do tipo). Não por acaso, foi Spielberg quem fez um filme inteiro a respeito, falando, em Contatos Imediatos de Terceiro Grau, da irrecuperável capacidade de feitiço e cativação que uma imagem (ou que a sugestão de uma imagem) poderia conter. Como o monstro de Abrams (nada mais que uma recuperação do velho monstro), os ETs e dinossauros de Spielberg são mero veículo da fascinação, o objeto (e objetivo) mais rudimentar do cinema.

Sendo a perda de sensibilidade algo próprio da maturação (tanto da arte quanto do público), parece natural que se trace um caminho de volta. Spielberg “volta” a fontes perdidas do cinema durante toda a sua carreira (inclusive nos mais recentes, como Guerra dos Mundos e Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal). Abrams não faz nada diferente. Em Lost, em Star Trek, em Cloverfield (dirigido por Matt Reeves), há sempre o ponto de contato com o que, em outros tempos, encantou o público. Super 8 é um cinema de resgate desse encantamento, daí o segredo tão bem guardado em torno da produção do filme não ter qualquer razão aparente senão a de evocar este componente inapartável da linguagem de J. J. Abrams: o mistério renovado, o que faz do seu cinema (ainda primitivo, arriscado de se definir) um estranho composto de juventude com arcaísmo.

É bonito que Abrams conceba esse encantamento do público com o que um dia encantou a ele próprio, buscando enquanto cineasta o que lhe fora dado enquanto simples espectador: a excitação por uma aventura, a ilusão do perigo (a cena do trem, em especial, é um desenho desse efeito: a ficção invadida pelo risco da realidade, pela sensação de consequência), e acima de tudo, a curiosidade, a vontade de descobrir, velhos ímpetos de criança e que apenas o cinema é capaz de devolver. Joe Dante é um cineasta símbolo dessa ânsia pelo retorno não apenas a tempos mais simples do cinema, mas do próprio olhar do espectador. Em Meus Vizinhos São um Terror há a encenação definitiva dessa lógica da descoberta, do suspense, do desejo inextinguível do “saber” apenas, como se nada mais importasse no mundo além do que há para ser investigado. É esse prurido que nunca se acalma por saber o que vai acontecer em seguida, saber o que há detrás daquela porta, atrás daqueles muros, do outro lado daquela cerca, que J. J. Abrams restituiu a seu devido lugar.

Essa é a tônica de Super 8, não a nostalgia — Abrams apenas aparenta referenciar um ciclo específico de tempo. Seu ímpeto verdadeiro não é pelos 12 anos-em-1979, mas pelos 12 anos, entidade independente de tempo e de espaço. Mais que isso, são os 12 anos no cinema, idade que todo cineasta carrega (ou deveria) em um nível mais íntimo de sua mise-en-scène, propulsora de uma capacidade rara para encantar-se com o próprio narrar (Spielberg), para deslumbrar-se com a própria história; daí a óbvia energia mimética que se institui entre Abrams e Charles, o garoto que dirige “The Case” (filme que os moleques produzem dentro de Super 8), como se fosse a câmera este olho mágico que desvela (ou confere?) o fabular em cada amorfo pedaço de realidade.

Super 8 parte do matinê oitentista como ponto de ligação somente, e desenha na tela uma espécie de progressão (ou mesmo transição) daquela aventura leve e minimalista de outrora até o espetacular recente, passando aí pela instância do enigma e por essa poeira universal do olhar infante como substância de cada cena. Se Super 8 começa inclinado ao mínimo, ao grão das relações, seu universo se expande gradativamente até que o corre-corre de garotos rua acima e rua abaixo ganha ares de filme-catástrofe, e o monstro, ser impresente que antes servia de guardião desse fascínio e sintetizador de um suspense leve que sobressaltava em Super 8 o que havia no mais trivial dos gestos, agora revela-se para a câmera: passa do monstro de E.T. e de Os Goonies, aquele inofensivo e que só se teme porque é natural temer o desconhecido, para o monstro de Cloverfield, arauto da desordem e da extinção humana. O círculo de ação sofre uma expansão violenta, centrífuga, evoluindo do interior daquela roda de garotos para a dimensão de toda uma cidade que gira em pleno colapso. A leveza do oitentismo de Spielberg se oblitera e a atmosfera densa dos filmes-catástrofe de todo arrouba Super 8 como se o próprio Abrams tomasse o filme para si. Rompe-se o equilíbrio entre a ação delicada e a comédia, velha dinâmica regente dos círculos intimistas de amizade das aventuras dos anos 80, e pela primeira vez se sente a ameaça da consequência que se levanta sobre os personagens.

Mas o final não pressupõe uma seta ascendente, aguda e contínua. Abrams não pretende um olhar panorâmico sobre o processo, pelo contrário: inclui a si mesmo em suas curvas e ciladas. O final é um fechar circunscrito (um começo também, portanto), quando o eco spielberiano é restaurado e o monstro se humaniza: há o espelhamento com o protagonista, o remontar a Frankenstein e King Kong, a despedida e o regresso: enlace eterno do cinema da old Hollywood e do blockbuster 70/80 com o de hoje e o de amanhã. É assim no filme americano, grande demais para conter-se em sua própria época, prevendo sempre essa vibrante compulsão de retorno. De Spielberg a Hawks e a John Ford, então de Abrams a Spielberg, e enfim de Super 8 a E.T.: estamos sempre voltando para casa.

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