CINEBH: Dias 1 e 2

Por João Pedro Faro

Prata Palomar

Anotações dos filmes vistos em 26 e 27 de setembro.

Zé (2023) de Rafael Conde é um trabalho consistente, apesar de ingênuo. Encontra-se algumas qualidades em sua aparência. A grande maioria dos planos acontece da mesma forma, com a imagem estática encenando diálogos no quadro, um número reduzido de personagens se conhecendo ou se reencontrando, enquanto o extracampo tenta sugerir um contexto histórico maior para densificar esses encontros.

O clima geral é de uma biografia santificadora. Nesse sentido, a realidade parece custosa ao filme, já que seu posicionamento é o da celebração da memória, de algum tipo de verdade possível, mesmo que afundada no sentimentalismo. A história da vida clandestina de um militante durante a ditadura (interpretado pelo Caio Horowicz) é o tipo de premissa propícia a essas operações, quando se estabelece que a própria conjugação dessa memória já ocupa o espaço das expectativas sentimentais que circundam o desejo de fazer “história”. Ou seja, sua jornada fílmica é circular, começa e termina em um mesmo lugar de percepções onde a realização do cinema cumpre um papel mediador, não criador. Isso é especialmente esclarecido pelo texto, que carrega o efeito de todas as cenas do filme.

Mesmo quando bem localizados no quadro, os atores expressam esse tom de ingenuidade que perpassa todo o projeto: Suas palavras são projeções, espectros, de suas personas, reafirmações cacofônicas do que espera-se de cada personagem. Se o filme parece desejar que sua grande afetação esteja na profundidade dramática, há de se perceber uma distância entre as palavras que são ditas e a teatralidade de suas performances. Enquanto o texto carregado, que não permite tempos de silêncio, didatiza e reitera suas temáticas a ponto de nos questionarmos sobre a confiança do realizador no poder de assimilação do público, o trabalho dos atores é de uma pontuação detalhada, transparece cada sinal de direção em reverberações emotivas. O resultado é uma espécie de anulação dos esforços.

Interessa em Zé perceber um trabalho de rigidez estrutural, superficialmente lustrado por um nível de controle. Caso fosse um drama mais comum, menos inflado de auto importância, esse interesse poderia ser bem maior. Porém, o que sobressai é o seu miolo, sua falência política, uma insistência permanente pelo caminho dos pensamentos curtos, contra a complexidade, pela indiferença às possibilidades radicais de um discurso.

El reino de Dios (2022), de Claudia Sainte-Luce, é um filme simples, daqueles que apostam sua subjetividade no carisma infantil. Acompanhamos a rotina do pequeno mexicano Neimar (Diego Lara Lagunes) e sua vida no campo, cuidando de porcos e cavalos, passando tempo com a avó e aguardando sua primeira comunhão.

A câmera é daquelas que acompanham as andanças e gestos dos personagens em cena, pontuada por breves momentos de estabilidade. Há algumas paisagens de interesse, em especial a carcaça de um avião abandonado, onde Neimar brinca com uma coleguinha. A casa onde mora com a avó e a mãe também é notável, bem iluminada, onde acontecem as cenas mais engajadoras do filme, circundada por momentos de maior desprendimento. Dá para dizer que algumas temáticas tangenciam o filme sem que realmente abarquem sua realização. Pelo título, fica sugestionado que um tipo de crise metafísica ou existencial vá atravessar o jovem Neimar. Isso até acontece nos momentos finais, com alguma rapidez, mas não parece que o filme realmente deseja integrar grandes questões ao seu procedimento. É um trabalho de rotina, daqueles carregados pelo humor e pela “fofurice”, a ponto de que o conflito final (duas mortes sucedidas) parece alienígena ou simplesmente insuficiente para deslocar o sentimento para um espaço de contraste, sendo mais marcante na simplicidade típica desses projetos. Um trabalho familiar, em diversos sentidos, que não tira tanto proveito de variações emocionais quanto de seus procedimentos mais comuns.

El Reino de Dios

Prata Palomar (1972), de André Faria, filme psicodélico e sangrento, deixado às margens da filmografia nacional, integra parte da homenagem a Zé Celso (que co-roteirizou o longa). Descobrir esse tipo de produção em uma grade de festival contemporâneo gera algum tipo de saudosismo diabólico, nostalgia das imaginações latino-americanas mais grosseiras, sempre infladas de ambição, cheias de ideias absurdas.

Mesmo que carregado por algumas imagens comuns da obsoleta “vanguarda” cinematográfica (quem no mundo ainda pensa nesses termos?), como guerrilheiros barbudos, santas violadas (e violentas!), líderes engravatados protegidos por fardados, entre outras passagens reconhecíveis, o longa parece inclassificável. Entre a enxaqueca do cinemanovismo e as fricções dos cinema-de-invenção que surgiam violentamente, entre momentos mais psicodélicos de Nelson Pereira dos Santos e personagens de Elyseu Visconti, Prata Palomar sobrevive de berros e destruições. Proveitosamente apropriando-se das geografias alucinógenas oferecidas pelo século das utopias, o filme atravessa espaços de conflito, da mata fechada à igreja, do terreiro de macumba ao palácio governamental. O ritmo é especial nessas andanças, sendo a primeira parte particularmente veloz e assustadora, cada cena apresentando uma ideia nova, alternando entre imagens alegóricas mais ou menos decifráveis (atenção especial ao espaço secreto que eles adentram no porão da igreja, com as paredes cheias de recortes de revista e pichações apocalípticas). Tudo encaixado na janela quadrada, sempre atenta à composição mesmo em seus momentos mais sísmicos.

Surpreende a constância agressiva do filme (alguns trechos parecem saídos do cinema de terror feito naquela mesma década em alguns extremos da Europa). Os protagonistas passam a projeção inteira brigando, lambuzados de tinta vermelha, de um sangue vívido, muito bonito, enquanto tudo ao redor sugere um mesmo nível de fatalidade. Descamba num terceiro ato realmente carnívoro, preenchido por todo tipo de operação cabulosa e cheio de prazeres no processo. Tudo corre pela tela com voracidade, demonstrando todo o esforço de sujeitos famintos por realizações fantásticas.

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QUATRO FILMES CURTOS

Por João Pedro Faro

Trata-se de um problema crônico, em geral. Surge da insistência por determinados experimentos e encontra, nos entraves da realização, um aprofundamento pela problemática crônica, pelo que resiste na persistência por determinada imaginação fílmica e pela posterior determinação de sua duração em tela. Nos pedaços de película revelados por uma câmera digital, ou em camadas de imagens pixelizadas sobrepostas por outras dezenas de camadas, inscreve-se a busca pela formação de uma imagem que seja inédita aos próprios registros que a produziram, a revelação de um organismo interior que consiga ser capturado através do rearranjo de suas formas originais. Podemos falar em termos de uma pequena expedição arqueológica de achados crípticos, típicos das profundezas e catacumbas, onde exista similar valor entre cavar e enterrar. 

Em sua cadeia de produção individual, Vinícius Romero estabiliza uma rede variada e particular de cinema, protagonizada por composições materiais de diversos processos cinéticos. Comenta-se, a seguir, quatro filmes inéditos.

Neste ar, de onde chega um fabuloso marinheiro para ocupar o seu lugar entre as esferas (2023) é um filme gerado por trabalhos de remontagem ao longo dos últimos dois anos. Nesse caso, as imagens acontecem por modulações de caráter superficial, são sobreposições entre registros digitais e filmagens em VHS que ressaltam as camadas superiores da tela. Flores, paisagens e atores de cinema, em balanço de potências, escorrem pelas suas cores saturadas, são liquidificados pela fricção dos meios de registro, a filmagem que filma a filmagem de outros filmes, despejos de pixels sobre grãos que formam correntezas de movimentos sobre as imagens. Mas o efeito não é apenas gráfico, torna-se fílmico na montagem, por composições fragmentadas de tempo onde as imagens escapam com rapidez. Algumas retornam em aliterações, outras se diluem por entre as variações temporais que montam uma sequência concisa (ainda que imprevisível) de formas. A montagem de Neste ar também deve ser notada, dado o uso do VHS, pela atribuição dos glitches em seu arranjo, que alterna planos como alternativa ao corte seco, uma colagem integrada aos efeitos, dividindo as cores, derretendo formas. Os glitches aparecem como uma atribuição orgânica da ferramenta de registro, dentro de um projeto soterrado pelas possibilidades múltiplas da artificialidade, o analógico convulsionado. 

Neste ar é um curta silencioso, com uma breve trilha musical protagonizando os momentos finais. Esse artifício é uma recorrência dentro dos filmes do Vinícius, quando um trecho sonoro aparece rapidamente após vários minutos imagéticos. É um efeito de razões esclarecidas, comum a quase todo tipo de cinema, o abandono e a presença do som, mas o que vale ressaltar são as variações específicas do método em suas diferentes reescritas internas. 

Nesses filmes, de caráter rítmico muito denso, comumente relacionado ao musical, a presença da música acaba por comentar-se de maneira inevitável. Em Los dias. Sálvame. Las noches. Hueco (2023), a estrutura é arranjada através dessas variações sonoras. Dividido em “movimentos”, propriamente determinados pela pontuação dos diversos títulos que existem dentro do título, trechos fílmicos são apresentados com recortada trilha sonora. As partes do filme são separadas por algumas telas-preta silenciosas (longas “pontuações”, reticências), que adensam o nível do efeito proposto por cada trecho de imagem e som. Los dias… consiste em seu trabalho por cima do fotograma digital aliado à dimensão de uma lente analógica, seus registros espaciais e luminosos que surgem de atravessamentos cotidianos, o problema crônico aparecendo através das crônicas. Os saltos entre os fotogramas unidos truncam a fluidez, não são imagens onde a abstração escorre pelo registro, ela é moldada por movimentos retilíneos.

O grande momento está na parte final, quando diversos cruzamentos entre luas passam pela tela preta. A lua faz diagonais aceleradas pelo quadro, muda de tamanho, se multiplica e desaparece. Um trecho de programações mais simples, estabelecidas em um efeito objetivo na reorganização astral, que demonstra não apenas sua qualidade temática como também trabalha por possibilidades mais raras da sobreposição, buscando por imagens que, amontoadas, se dissipam ao invés de aglutinar.

Ruler of the great heavens, are you so slow to hear crimes? And so… / Hieronymo está louco de novo (2023) é um caso contrário ao anterior. O curta, dividido por duas cartelas de texto que apresentam outro título fragmentado, é de fixações por textura e suas ocorrências abissais. São rearranjos multidimensionais de natureza obscura, ondas intensas de texturização que apontam para choques entre diferentes movimentações internas. Alguns rasgos luminosos atingem a superfície do quadro, outros giram tridimensionalmente. As imagens sem som variam através do corte por seus modelos de estrutura material, mesmo quando desprovidas de uma forma fixa. Podem ser vistas como ferrugens ou infecções, são imagens que se alastram pelos cantos e para dentro de si mesmas, constituições caóticas de luz. E a conclusão é novamente sonora: em um último plano nítido, um pôr do sol visto do mar é sobreposto por um trecho de canto, um deslocamento final que dialoga com todos os outros.

O Quarteto de Dante (2023) é outro tipo de variação sistêmica. O título e a estrutura do filme comentam Brakhage, mas seu processo caracteriza sua particularidade esportiva de apropriação (que pode ser tanto lúdica quanto cínica, dependendo do espectador). Ele usa a revelação de película através da câmera digital como uma unidade de movimento vertical, o atravessamento dos frames pintados em uma coluna contínua que se movimenta no quadro, de baixo para cima (o que já  o diferencia de Brakhage, cuja colagem entre pinturas se dá por cortes de variação molecular frame-a-frame). A tela é divida em quatro, aproximada, afastada, mas todas as mudanças se dão em níveis de enquadramento, enquanto a película segue a trilha da coluna vertical. As texturizações da tinta na película variam pelo relevo, se espalham em dimensões rasas, ramificam-se por envergaduras coloridas ou reluzem como superfícies plásticas endurecidas. A luz, processo mais custoso às revelações materiais que possibilitam qualquer filme, é outra protagonista do processo que rearranja suas capacidades. Quarteto de Dante protagoniza a luz mais constante de todos os filmes comentados anteriormente, no fundo branco que reluz o frame para possibilitar a revelação da película e que, constantemente, escapa pelas frestas das pinturas como um segundo plano.

Essas projeções comentadas revelam permanências experimentais aliadas a um esforço de atribuições. Nesse terreno fertilizado com sal, interessa ser percebida certa constância obsessiva por ideias a serem testadas por seus próprios limites, em uma corrente afirmativa de problemas. Uma série de realizações cuja maior preocupação sugere ser o efeito da dissociação através de diversas associações, composições onde o registro se torna a forma, esculpe a si mesmo até perceber o que permanece e o que se desfaz.

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MINHA ESCRAVA BRANCA

por João Pedro Faro

Macumba Sexual é apenas uma das oito produções creditadas ao diretor Jesús Franco em 1981. Trata-se de um filme de sexo e alucinação filmado por espanhóis nas Ilhas Canárias, ou seja, um filme desavergonhadamente colonial que vai se utilizando de suas contingências para aprofundar a superfície de seus interesses plásticos. Na historinha, a branca Lina Romay está de férias na praia com seu marido quando é atormentada por pesadelos sexuais protagonizados pela Ajita Wilson, uma espécie de dominatrix negra que busca enfeitiçar a menina e trazê-la para seu pequeno reinado de fetiches (no sentido original da palavra). Aquela tediosa vivência aristocrática e solitária é interrompida por esse pesadelo negro, levada por cânticos e tambores a um espaço alternativo ao resort fantasma. O centro do filme é a magnetização do encontro inescapável entre essas duas mulheres que é proporcionado pela macumba.

O que interessa, antes de qualquer coisa, é que seu entendimento de macumba não parece estar sendo utilizado como substituição de outro “perigo negro” que o cinema de terror utiliza mais recorrentemente, como os signos do Vodu ou de um tribalismo genérico. Até porque, com exceção do Macumba Love (1960) do Douglas Foley, é raro que o cinema de gênero reclame essa palavra para construir sua ficção. Talvez pelo orçamento apertado ou por um desejo geral do filme em reduzir todas as suas construções cênicas, a cosmovisão presente em Macumba Sexual é de um estranhamento todo próprio, pouco específico em termos etnográficos ou representativos, livre em sua religião particular que é o sexploitation.

A personagem da Ajita Wilson, chamada Princesa Obongo, media suas amarrações sexuais através de uma pequena estatueta enterrada nas areias do deserto, que por vezes pode servir como um consolo dentro de suas orgias (dotadas de uma carga espiritual intrínseca). Além disso, é pontualmente acompanhada pela bizarra figura de um frango (ou seria uma galinha?) empalhado que exibe um grande pênis em sua estrutura morta, uma das poucas figuras de fato aterrorizantes de todo o filme (junto com o recepcionista de hotel voyeur e demente interpretado, não por acaso, pelo próprio Jesús Franco). Esses dois principais fetiches exibem o desprendimento do filme com a realidade da prática espiritual e esclarecem o projeto em suas genuínas intenções fantásticas.

A aproximação cosmológica com uma macumba verdadeira talvez esteja assentada em sua imaginação cinematográfica. No caso, codificada na radiação estilística do sexploitation, que contamina qualquer fita com um espaçamento vagaroso de cenas, um tempo que se dilata sem o mínimo de preocupação, que se contenta com a visão esgarçada pela contração do exterior e pela expansão do interior…. Ou seja, um cinema do transe (entrecortado pela transa). Há algo de especial nas cenas mais banais, quando a garota branca está passeando pelo cenário paradisíaco, observando o movimento dos barcos e das ondas, andando pelo deserto ao encontro da princesa negra, sempre nesse estado de concentração que se mantém no fluxo do escopo da câmera e que movimenta os quadros em um constante direcionamento de aproximação total com os objetos filmados.

Dentro disso, temos as cenas de sexo. A nudez dos personagens é sempre explícita e frontal, o sexo não. Seja nos primeiros momentos em que Obongo toca o corpo da garota em suas visões oníricas, seja quando estão realmente transando no plano da realidade ativa, há um tipo de suspensão da pornografia que pode até ser característica do gênero erótico, mas que encontra pelo contexto uma semântica que é a da incorporação, do sexo como capacitor do transe total vivido pela branca. Submetida às vontades da princesa negra, esse sexo é filmado com uma aproximação incessante dos corpos, um borrão entre os limites das personagens que abstrai o ato carnal em um fluido de sensações internas. Obongo é quem concentra o poder, é claro, mas a integração com a branca e o nível de desejo que demonstra por ela fazem com que a submissão imposta à garota seja também uma entrega de seu corpo dominante dentro da experiência de incorporação espiritual que o sexo entre elas acaba por realizar.

Mesmo quando a princesa coloca seus dois escravos, que ela guia por coleiras, para participar do sexo, suas presenças são incorporadas como essa amálgama delirante e desestabilizadora que acaba incapacitando a jovem branca de poder ter qualquer contato com a sua percepção de mundo anterior ao aparecimento daquela mulher negra. Esses dois personagens escravos, um homem e uma mulher cuja única função fílmica é a de lamber Obongo, recebem o peso de adornarem a Ajita Wilson em um espaço de cena que é sempre reduzido, são duas figuras em um estado avançado de transe que trazem ao filme alguma recompensa imagética de horror quando tudo pende mais ao delírio do que ao medo. A descrição que a Princesa Obongo faz de si mesma para o marido da branca, pouco antes do final do filme, talvez explique bem a construção cênica do longa: “Eu não sou a realidade. Sou tudo que é proibido e tudo que é vergonhoso, uma mulher negra de sexualidade indefinida, desavergonhada e irresistível”.

A última curva de complicação que o filme oferece é reverter, em uma outra volta conceitual, os espaços ocupados por essas duas mulheres em seu relacionamento espiritual. Após ser penetrada pela estatueta do deserto, a menina branca fica sozinha com a princesa em uma cabana. O comportamento entre as duas sugere algum tipo de estabilização entre a dinâmica de poder imposta pela princesa, mas nada é tão simples assim: enquanto a branca faz sexo oral nela, a negra explica que seu reinado está acabando, que está prestes a morrer e que deve passar o seu título à garota que dominou. No encerramento, a branca recebe o título Obongo. A negra diz: “Eu reinei por mais de 300 anos, agora é a sua vez de reinar. Você é a minha filha de macumba”.

A branca observa ela morrer, seu cadáver petrifica (o único momento do filme em que vemos Ajita Wilson interpretando alguma passividade frente à câmera) e, num susto final, ela se transforma naquela bisonha figura do frango taxidermizado. O filme termina num berro da garota branca, mas fica difícil acreditar que seja um grito de medo, tudo leva a crer que seja uma liberação necessária após a intensa jornada espiritual que veio para acabar com as suas férias nas praias Canárias.

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Um filme desfeito

Por João Pedro Faro

J.C Rousseau nunca está sozinho, seus termos de cinema não permitem. Em um regimento particular de criação, invariavelmente composto pelo realizador, um tripé, sua câmera e um gravador, forma-se a aliança de enfrentamento do acaso que perpassa quatro décadas de imposição fílmica. Enquanto sua linha sonora segue a lógica da exploração do tempo ulterior à gravação das imagens, seus enquadramentos se apegam ao presente do registro, o tempo impossível onde o agora é perpétuo caso produza encontros, formas e direções que satisfaçam o desejo por signos concretizados e brechas narrativas estipulantes. Ou seja, ao decorrer do tempo da bobina de filme que se concentra em imprimir um único plano do mundo (que só será cortado pelo fim da linha da película), dentro das preciosas limitações do espaço e dado o ponto de exploração irremediável do tripé, deve acontecer algo de cinético que, picotado ou não pela póstuma montagem do registro, esteja perfeitamente encenado.

Seria injusto e até desanimador pensar esse cinema como sendo um trabalho de empirismo, até porque não se trata de botar nada à prova de um mesmo método, mas também não podemos deixar de notar que em seus filmes há uma série de experimentos em andamento que caminham para resultados que, mesmo misteriosos, soam conclusivos. O que está acontecendo em filmes como Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre (1983) e o que acontece durante os 10 anos de filmagem de seu projeto mais extenso e complexo, La vallée close (1995) é uma conjuração de limites que, postos ao enfrentamento do registro (a bobina de filme que corre dentro da câmera), em um libertador processo autoritário de gravação, ordenam os elementos diante da lente para que suas particularidades se expressem como um cinema pronto, esteja a câmera enfrentando objetos tácteis (janelas, mapas, cadernos, lâmpadas, portas e espelhos) ou aleatórios (passantes, ruas, mares, árvores, nuvens). 

Diferente de outros cineastas que colecionam registros, como Mekas ou Sonbert, ele não está interessado em uma certa espontaneidade presente nas gravações que perduram pela passagem de tempo. Pelo contrário, seu tempo é controlado pela sua encenação, e deles não se espera nada de espontâneo, e sim um cumprimento do que os seus limites impostos na imagem prometem. Em seu primeiro curta, Venise n’existe pas (1984), de 11 minutos, gravado com uma Super8 em um quartinho de hotel em Veneza, é possível desmontar um pouco de sua lógica misteriosa de expressão através de uma atenta revisão de suas poucas sequências.

É enfadonha a tarefa de transcrever um filme num texto, mas nesse caso não há escapatória. Venise n’existe pas pode ser visto como organizado em três partes. O primeiro enquadramento apresenta a janela do quarto, uma fixação recorrente do realizador devido às suas funções múltiplas: é tanto um objeto táctil que serve às encenações (ela abre, fecha, reluz e reflete), quanto um meio de controle da encenação do aleatório (o controle da luz do sol, como se fosse um enorme diafragma, além dos claros limites das bordas da janela que enquadram dentro do enquadramento, que fecham o aleatório da paisagem exposta dentro de uma especificidade irremediável, o que não poderia estar mais próximo das intenções do cineasta). Dessa janela, que reflete um pouco de luz em alguns móveis mas não o bastante para que foquemos no quarto, vemos um enorme barco que vai cruzando águas venezianas. Um barquinho menor cruza rapidamente a paisagem atrás desse barco maior. O som de seu motor vai dando lugar a uma canção em italiano que ressoa pelo espaço (ela vem do barco?) e que vai indo embora à medida que o barco vai sumindo pelo canto direito da janela. A tela fica preta por um instante, é o primeiro corte. Sem a música, ouvimos um trecho de áudio que parece gravado no meio de uma praça, onde som de carros e burburinhos de conversa se confundem. Ouvimos uma buzina. Ainda vemos o mesmo mar, do mesmo plano, e a música anterior retorna. De repente, um barco vem entrando pelo canto direito (seria o mesmo barco?), como se chamado pela canção repetida, e depois, pelo canto esquerdo, um barco menor também vem chegando. No momento em que parece que vão se chocar, a bobina de filme acaba, com a tela bege anunciando seu fim. A imagem retorna, e ainda estamos na mesma janela, com o mesmo enquadramento, só que com menos iluminação. As bordas do quadro, antes percebidas pelos poucos reflexos de luz, agora estão em um breu completo. Portanto, as bordas do quadro se tornam exclusivas da janela, tornando o enquadramento necessariamente vertical. 

O que segue é a visão da água por esse quadro vertical que vai escurecendo aos poucos, picotando progressivamente a visão rumo ao entardecer. Vários barcos surgem na estreita paisagem, aparecem sem adentrar os lados, simplesmente se materializam na água, deixando claro que não estamos vendo o tempo escorrido, e sim retalhado. Esses barcos somem e aparecem da tela com certa rapidez, sempre aparecem no meio do caminho e desparecem antes que possam sair por um dos cantos da janela. O tempo não é mais o mesmo, mas o som se repete. Ouvimos a mesma canção (como se o barco do primeiro plano ainda ressoasse, ou deixando claro que o som não vinha mesmo daquele barco) e depois os mesmos burburinhos e os mesmos carros. Parece um loop de suspensão do tempo, onde todo o tempo é o agora, o passado não ecoa, ele se faz inteiramente presente no tempo como se nada realmente deixasse aquela permanência da câmera. A paisagem vai escurecendo até que os barcos se tornam apenas pontos de luz em uma escuridão imensurável. Quem está saindo do lugar primeiro: os barcos ou a janela?

Um filme acaba, entramos na tela bege e depois chegamos a um novo enquadramento. Agora vemos a janela fechada (é a mesma janela do primeiro enquadramento, mas a vista está parcialmente coberta por uma cortina). Com a luz clara vinda da janela e o distanciamento promovido pelo quadro, podemos ver um espelho, um armário, além da cortina, todos refletindo uma iluminação azul que dá uma continuidade torta e inventiva para a água do mar. O cineasta adentra o quadro pelo canto direito, de costas para a câmera, e caminha até o espelho. Seu rosto está distante e turvo, sua expressão não nos diz nada, ele é mais um objeto táctil (talvez seu corpo em tela seja o elemento mais controlado de todos, mais do que suas janelas ou seus móveis, seu corpo é um objeto de cena que o cineasta pode controlar totalmente a presença e as inflexões). Ele deixa de olhar para o espelho, adentra brevemente o quadro da janela deixando sua silhueta em contraluz, e sai pelo mesmo lado que entrou. O som é o mesmo que percorreu os diversos tempos do enquadramento anterior, a canção italiana do barco fantasma seguida pelos sons urbanos. Agora, acontecerá algo realmente chocante, um contraplano!

O contraplano mostra o resto do quarto: uma porta fechada ao lado de uma cama arrumada, modulados pelo domínio da luz azulada que vem da conhecida janela. O cineasta adentra o plano, novamente, pelo canto direito, e senta na cama. Ouvimos mais uma vez o mesmo som de carros e burburinhos. Toca a buzina. Nesse momento, ele interage com o som pela primeira vez, virando o rosto no momento em que a buzina toca. Agora está olhando para a janela, com o rosto iluminado, culpa dessa buzina perene que prova que o único tempo existente é o tempo do registro e, desde que esse registro soe, o tempo presente em que ocorreu nunca deixa de materializar-se. Ele deixa de olhar para a janela e deita na cama por alguns segundos. A canção italiana do barco volta a tocar. Ele levanta e retornamos ao enquadramento anterior. Ele caminha até a janela e abre a cortina com rapidez, mas assim que ela deixa de encobrir parte da janela, a bobina de filme acaba. Não ouvimos o som dessa cortina abrindo. Vamos para a tela bege e depois para a tela preta.

Em seu último pedaço, o filme se concentra em um único plano que abre desfocado. É uma imagem indecifrável e estática, uma paisagem borrada de cores e formas. Agora quem produz o som é o próprio cineasta. Ouvimos ele discar um telefone e desligá-lo antes que alguém atenda, seguido por um cântico que parece fazer com a boca fechada, uma série de assobios e a repetição da mesma negativa. “Non, non, non…”. Surge o som da cortina abrindo junto com o ato de focar a imagem, como se a janela da lente finalmente permitisse que a visão borrada se revelasse. 

Agora vemos perfeitamente uma pintura de Veneza, dessas típicas de quarto de hotel, que retrata a paisagem mais turística possível (a ponte de Rialto) com uma estranha profundidade de campo e de texturas quase fotográficas. Pintada no topo, está algo que pode ser tanto a lua quanto o sol. A sombra do cineasta passa pela imagem, que volta a desfocar-se, contraindo todas as consequências da iluminação em que está submetida. Seu reflexo passa mais uma vez pela pintura, mudando mais uma vez a iluminação sobre ela e voltando a deixar a imagem focada. Ouvimos um som ambíguo, algo como uma avenida ou uma estrada, um som que não parece pertencer a nenhum dos elementos anteriores e que não pertence a nenhum dos outros sons que haviam estado em loop nos momentos anteriores do curta. Uma sombra se projeta sobre a imagem, umas luzes se formam sobre sua superfície, mas a pintura está permanentemente focada. Esse local de passagem que é o quarto de hotel, tão comum aos filmes do cineasta, é propulsor de criação por ser essa permanência breve e limitada, nada pessoal, que por si só já prepara toda uma série de limitações que são custosas ao seu modo de registro. Do táctil ao aleatório, o movimento se conecta pela imposição da câmera contra o tempo, pela força do breve e do limitado em se tornar perpétuo, como se o momentâneo fosse a única forma possível de presenciar o firmamento cinematográfico. Depois de encararmos a pintura de Veneza por mais uns segundos, a bobina se encerra, voltamos pra tela bege e então pra tela preta. Silêncio. Aparece escrito: “Venise n’existe pas”. Não é um título, é uma conclusão. O filme acaba.

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Exorcismo Permanente

Por João Pedro Faro

Do cemitério só voltam os vivos. Eles são as sombras que cruzam o primeiro plano de Vitalina Varela, arrastando os pés pelo chão de rocha, para logo irem assombrar a casa da viúva. Ela, que veio de longe, fazendo o caminho inverso do colono e retornando de Cabo Verde para Portugal, chegou atrasada para o funeral do marido. Sua casa não é sua, os camaradas do marido morto não param de tocar à porta. Ficam no limite das portas, como vultos; sussurram entre si, pelos cômodos, histórias dessa vida passada que ali já não mora mais. São espectros de uma inabitação, verdadeiros assombros que à nova moradora recordam a origem das manchas nas paredes e das rachaduras no telhado. Não há fantasma de morto algum, o que existe é a presença, marcada por todo o barraco, de um prévio habitante que não permite uma mudança tão simples, que incita, por todos os rastros que deixou em vida, a expulsão de um intruso . Vitalina decide permanecer.

Seu nome surge duas vezes escrito na tela, primeiro como título e depois, ao final, como atriz. Vitalina Varela é uma personagem em excesso, do tipo que parece circundada por tantos caminhos de criação, que fica difícil aproximar-se com uma leitura sem a sensação de estarmos deixando de lado muitas outras possibilidades. Falemos do que se vê: seu rosto nos incita, num primeiro momento, a concentrarmo-nos em seus olhos. É justo, são olhos difíceis de evitar, enchem a interpretação de perigo nos momentos mais instáveis (sempre que o barraco parece estar à beira de cair, ou quando mais um sujeito se infiltra em sua residência sem pedir para entrar) e nivelam a altura da câmera quando a personagem precisa estabelecer sua presença (a perceber como eles se fixam no escuro durante os monólogos com o marido que não está lá).  A compreensão sobre esses olhos pode ser resumida ao notarmos que, em vez de Vanda Duarte como um tipo Miriam Hopkins, Vitalina está bem mais próxima de Joan Crawford. 

Por outro caminho, parece ainda mais impressionante sua capacidade de permanecer rígida em cena. Não se trata da mesma rigidez dos que firmam seus pés nas marcações dos quadros, como os vizinhos da favela ou as visitas indesejadas. Vitalina se estabelece ante a lente, por toda a extensão de sua figura, com a placidez de um concreto. Como no quadro iluminado pela luz do sol em um dos seus primeiros dias no barraco, em que se contorce à beira da cama a ponto de encaixar nos quatro cantos da tela, ou nas imagens que a centralizam violentamente (no banheiro, na cama, na sala), quando ela se torna o tronco de todas as ramificações de sombras e luzes que justificam o enquadramento. Que um filme que leva no título o nome de sua principal intérprete ocupe a maior parte de seu tempo procurando diferentes maneiras de encaixá-la no quadro, não se trata de nenhum espanto; mas sua execução certamente precede um conjunto de composições difíceis de equivalerem a outra atriz tão concêntrica quanto Vitalina.

Em conjunto, sua voz tonaliza toda a criação da personagem. Ela é suficiente para, com apenas um mando de livramento, expulsar o conglomerado do barraco; e para convencer, com determinadas pausas e determinadas entonações, um padre sem fé a rezar uma missa. A língua crioula, tão essencial ao som do filme quanto as misturas do extracampo da favela, fornece duas importantes cimentações: a da distância, da vinda de um outro lugar que recusa a osmose completa ao plano presente, e a da insistência, de uma decisão de imutabilidade que torna Vitalina a transformadora de todo o resto, e não o contrário. 

A contraparte de sua interpretação vem de Ventura, o tal padre em desespero com o plano terreno — culpa de um céu escurecido. Ventura, um ator mais do que calejado, é o oposto da rigidez e da firmação de Vitalina, é um personagem trêmulo, indisposto, desistente, quebrado. Diferente de quando interpretava uma mitificação mais particular de sua imagem, em Vitalina Varela sua desolação não é pela vida que ainda precisa viver, e sim pelas vidas que se foram. Igualmente, sua crise não é política ou habitacional, é precisamente espiritual. Nessa nova jornada de desespero, enquadrá-lo parece um ato comum ao realizador, e mesmo que lhe sejam entregues alguns dos mais definidores planos do filme (pensemos naquela única panorâmica que conecta dois becos estreitos, ou naquela grade desgastada que lhe serve de auréola), é fácil perceber que o seu papel é o de moldar, ao lado de todos os outros intérpretes, o ambiente a ser conquistado por Vitalina.

É justamente na pouca sutileza (ou quase grosseria) de um personagem como o de Ventura que o filme demonstra o alcance da sua encenação, plástica e método. Para além de trabalhos anteriores, as Odisseias de Ventura inclusas, Vitalina Varela configura uma transparência aterradora de criações com os sujeitos (passos, movimentos, respirações, olhares) e os cenários (as luzes quadradas, as imagens nas paredes, as curvas dos becos), que demonstram vivacidade pela via do falsário, da construção, dentro de uma trilha inevitavelmente dramática. Não só isso, como ainda não teme banalidades e explicitações (antes mesmo do título aparecer, já temos sangue e lágrimas em tela), apresentando seus personagens como disposições dessas idiossincrasias. Ou seja, trata-se de uma dramaturgia altamente cenográfica. Chamá-lo de melodrama seria uma canalhice, mas é difícil dizer que o filme não invoca sentimentos desestabilizantes bastante objetivos pela formação de um mundo calculado pelas sensações.

O que é preciso ser lembrado sobre as formulações das ruínas e habitações da favela, além da igreja, do cemitério e do bosque que dão palco ao filme, é que nunca se trata de um cinema feito por locações. O propósito é transformar esses lugares em verdadeiros estúdios cinematográficos, erguimentos feitos especialmente para serem resguardados pelo quadro. É assim que o fundo das imagens pode, por vezes, se abster por completo de iluminação, mergulhando os intérpretes no escuro total e apagando os limites da janela reduzida, experimentando com a forma quadrada que acaba por transformar-se em janelas circulares (o túnel, a grade) ou até verticais (com a câmera escondida por trás das paredes das vielas). Também pode redesenhar toda a paisagem, até que ela não se pareça com nada real, como acontece, em mais de uma ocasião, com o céu (a sequência da tempestade no telhado não estaria fora do lugar, se presente em qualquer uma daquelas produções de outrora, que faziam suas paisagens com tinta na parede ).

Mas esse ambiente de criações não está a serviço apenas do campo estético. O que está em jogo é a possibilidade narrativa de cada plano de Vitalina Varela, onde nunca se abriga um corte sem que nele se encerre um gesto ulterior. A narrativa dos planos geralmente é a da travessia, personagens que cruzam a tela de um canto a outro ou percorrem seu centro, se esgueiram pelas beiradas, se arrastam do escuro para a luz, etc. Quando filma diálogos, a narrativa do plano se atém a movimentações macroscopicamente dramáticas. O melhor exemplo deve ser o da personagem que, após acender um cigarro com uma vela ao falecido, aparece no plano seguinte iluminada por um círculo de luz na porta. Ao abandonar a tentativa de conversa com o seu noivo, que logo invade o canto do plano, ela transita para o escuro, deixando a luz pendurada na porta solitária. E o plano só vai cortar quando Vitalina fecha a porta de casa, deixando os problemas conjugais dos outros para fora do barraco (ou seja, para fora do enquadramento). 

A estrutura que permite com que cada plano tenha sua narrativa é também uma estrutura de tensão. Depois de um tempo começa a ficar claro que a imagem não vai cortar antes que o personagem encerre um gesto, parte do que torna a experiência constantemente engajada com cada ação em cena. Sendo Vitalina Varela circundado pela necessidade de expurgo de sua intérprete, é condizente que o estado das coisas seja o da apreensão. Como explica o Padre, em um de seus breves momentos de ciência, “o medo também leva ao céu

Vitalina, apesar de não estar em busca de salvação, utiliza-se do medo como uma forma de exorcismo do barraco do marido morto.  Que outra forma de enfrentar um espaço que se decidiu assaltar, senão pela exposição de todos os sentimentos que a perpassam dentro daqueles assombrosos limites? Ela esclarece às paredes que não perdoa o morto, ao mesmo tempo em que resguarda suas memórias e compreende suas mentiras. Também teme a queda do telhado enquanto deixa que os tijolos lhe caiam na cabeça, não aceita falar o português enquanto lê as tiras de jornal coladas pela cozinha. Por estar a par de suas contradições e feiuras, por insistir ser parte de sua insalubridade e reconhecer esse lugar que não lhe pertence como terreno de conquistas, Vitalina vence o barraco para si. Uma colonização individual que carrega toda a violência da palavra.

É um processo que não se encerra por completo e deve continuar dependendo de sua insistência e de suas aberturas ao concreto falho, por sua rigidez contra a instabilidade de uma habitação inabitável e inabitada. As memórias de sua antiga casa em Cabo Verde, que construiu com o morto, penetram o presente como mais uma firmação indesejada no barraco, mais um exorcismo. O domínio de um espaço nunca é permanente, isso filmes anteriores já estabeleceram; o que Vitalina consegue é tornar aquelas ruínas como sendo suas, pela intimidade que assalta dos mofos, das infiltrações e das rachaduras. Não é que a casa esteja livre de espíritos, ela só está abarcando novas assombrações. 

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A conquista do barulho

Por João Pedro Faro

Como as cartelas de texto no cinema silencioso, a trilha de som em À lombre de la canaille bleue (1985) existe paralelamente às narrativas estritamente visuais. Da mesma forma, quando lhe interessa, irrompe a desconjunção em que se insere para colar com as imagens. Diálogos ora são ignorados por ela e preenchidos pela música incessante, ora acabam por serem dublados (estando sempre descolados dos lábios dos personagens). São falas que se explicitam narrativamente, mas permanecem em um outro tempo, em uma outra linha de construção (onde o som direto não existe). Isso não significa que som e imagem estejam em guerra, está mais para um convulsivo desencontro onde tanto o que se vê quanto o que se ouve percorre uma trilha paralela de imprevisibilidades que acabam por formar, no processo do tempo de tela, um filme sísmico e barulhento.

Pierre Clementi, realizador, ator, cinegrafista, saxofonista e incendiário, estabelece sua câmera Beaulieu como que em uma autoritária livre-associação de registros por Paris (aqui rebatizada de Necrocity), o que quer dizer que tudo pode ser filmado ao mesmo tempo em que se fixa sobre personagens teatrais e tramas futurísticas mirabolantes com a precisão de um furor narrativo. Não à toa, o personagem que interpreta em cena é o próprio canalha a quem o título se refere, uma espécie de autoridade máxima que trabalha para manter a cidade de Necrocity a mais caótica possível. Nessa trama, ininteligível em termos típicos, mas concentrada e linear para padrões vanguardistas, um grupo de personagens destrutivos (que vão de líderes de organizações criminosas até viciados proféticos) transita e persegue-se por entre espaços urbanos altamente ficcionalizados. São como as figuras que Lang aprisiona em Spione (1928), revestidas por couro e habituadas à correria, mas na estetização junkie de uma sociedade não mais estruturada pelos poderes, mas pelos desejos. 

O que os persegue é essa trilha de som incessante, pertinentemente ruidosa, que combina improvisações musicais pós-punk com a linha de narração declamada por Clementi, e alguns restos de diálogos dublados fora do tempo. Essa amálgama sonora derrete as imagens ao longo da projeção, desafia constantemente qualquer concepção diegética para evidenciar processos alternativos de realização decididos a não se conformarem, a irem por caminhos difusos que rumam para as combinações mais violentas. São instrumentos metálicos que se associam a guitarras em reverberação e sons indecifráveis, sobrepostos pelo ritmo das palavras de Clementi. 

As palavras, de um texto críptico que oferece grande parte do extracampo à encenação ficcionalizada, apontam para diversos signos policialescos e futurísticos que expandem o que discorre pela estrutura entorpecente do filme, sem nunca interromper o fluxo do indecifrável. Ou seja, a pronúncia de frases que determinam personagens por títulos – Seringue para uma viciada em heroína, ou Inspetor Bastão para um dos algozes – os posiciona nesse cosmo teatral de definições popularescas, ao mesmo tempo em que os mantém em uma abordagem de indefinições e incompreensões: um furor lírico fortificado por palavras declamadas em voz firme e imagens que as oferecem mutações caracterizadas. Enquanto narra as confusas ocorrências de um mundo inventado, a voz de Clementi é soturna e controlada, dedicando a cada frase o tempo de um verso transmutado para uma tirinha dominical aventuresca.

O que ocorre, portanto, é uma construção sonora decididamente narrativa, que se comporta esteticamente pela fruição de suas raízes ulteriores à imagem. Ao passo em que lhe permite remembrar os registros através de uma narração que lhes dê escopo, também o inconforma com caminhos para além do que se vê, ou então, que define as imagens mais do que elas próprias, por conferir todo o sentimento à encenação. Não por acaso, a rítmica musical do longa quase nunca se encaixa com a duração dos planos, elas não convergem temporalmente, pois o tempo da música está interessado em aglutinar-se com o ritmo das texturas e dos ruídos imagéticos que perpassam as imagens. Especialmente nas sequências internas e, mais ainda, nas internas dos apartamentos arruinados dos junkies distópicos, as texturas sonoras e imagéticas encontram um compasso raro nas andanças da obra. Nos caminhos noturnos pela cidade, é tarefa das luzes de bares e faróis aglutinar-se à melodia dos metais, gerando essa sensorialização espacial e ambiental que é, acima de tudo, narrativa.

A máquina de Pinball, uma das imagens recorrentes de À l’ombre de la canaille bleue, acaba por ser um signo para certa elucidação da experiência: um composto vulgar de pequenas caracterizações que funcionam para que um centro de interesse (a bola, ou no caso, a câmera) passeie por luzes cintilantes e barulhos agudos (por vezes, até enfadonhos) por esse gesto quase lúdico de momento. Os cantos atingidos por esse meio de captação colecionam ideias de ficção científica, política, erotismo e aventura pelo gosto da acumulação, onde está toda essa carga de berros, palavras, ruídos e deformações sonoras construídos pelas deixas dos registros imagéticos que encenam (e também sobrepõe) personagens, cenários e situações sem começo ou fim, apenas acumuladas nessa perseguição por reverberações fílmicas que se amontoam para inventar um mundo próprio onde tudo que restou são as sensações. 

Se o cinema sonoro inventou o silêncio, dá para dizer que o produto cinematográfico de Clementi é uma conquista de invenção do barulho, onde ele é o definidor estético e dramatúrgico. Quanto mais alto, maior é a euforia, quanto mais distante, maior a devassidão. O barulho, aqui, é todo um rumor de combinações entre o concreto e o nebuloso, tendendo sempre à incompreensão, em que os sentidos do ouvinte são avidamente sequestrados por suas modulações, e onde as tramas das imagens encontram não apenas o sentimento (que não está delimitado pelas performances dos atores), mas também as dimensões dos cenários, o eco das cores e o alcance das luzes.

Termina sendo lógico que a última palavra que Clementi declama, antes de ler os créditos da produção, seja justamente “ficção”. Enquanto a única trilha, que reina por 80 minutos como composição fílmica sem interrupções, monta e remonta as encenações presentes na imagem, o que há de constante, em um filme onde a instabilidade de seus processos é o pilar da estrutura, é a capacidade de fabulação do disforme, do arranhado e do ensurdecedor. 

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Amores do meu exílio

Por João Pedro Faro

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Guará está à solta. Ele veio de uma terra além-mar, vive em um caixão com banheiro e cozinha, usando uma sunga vermelho-sangue. As ruas de Londres estão silenciosas, como em Drácula (de 31), só que inebriadas pela cor e pela luz, ao invés da névoa e da sombra. O monstro circula livre, sem ameaça ao seu império de terror, sem concorrentes à altura, sem conflitos a serem ultrapassados. Sua rotina é suficiente, pois já se revela proveitosamente inumana. Da mesma forma que Zé Bonitinho foi, ao mesmo, Chacrinha e Vincent Price, Guará também é simultâneo: invoca Peter Lorre e Pedro de Lara.

Guará é um monstro em férias nesse exterior pouco táctil, pouco convidativo à permanência. Na falta de um espaço em que possa fixar-se, é preciso se agarrar ao primeiro pescoço que vê pela frente. Para sua sorte, o que não falta são loiras para estrangular. E não se trata de qualquer distúrbio ou psicose, está mais próximo de uma inaptidão social irreverente, uma intentona comunicativa de métodos pouco convencionais. O que poderíamos esperar de um vilão tão completo além da monstruosidade perfeitamente carismática? É um compêndio de talentos sem reconhecimento popular, apenas tentando se adaptar a um ambiente novo trazendo, em sua bagagem de convivência, a linguagem do estrangulamento.

Sua barba formula o rosto, epicentro vulcânico de toda a fita. Por vezes, confrontamos seus olhinhos nervosos que, ao contrário da câmera, não conseguem manter a concentração em um ponto fixo. As mãos são irmãs dos olhos, não conseguem parar quietas, giram a correntinha que prenuncia o libertador assassinato ou ajeitam as extremidades do bigode para mantê-los desenhados. Então, sendo possível trocar os olhos pelas mãos, é a lente que lhe estrangula: fecha o plano com sua face, na proximidade desejada, e os extremos do rosto sangram pelos lados da tela. Não nos cansamos de retornar ao rosto de Guará, porque ele possibilita todo o resto, torna-se necessário sufocá-lo com a câmera. Em outras palavras, é Bressane quem estrangula o estrangulador.

Bressane está à solta. Sabemos que o exílio não passa de um avacalho, então não há tempo a perder lamentando a terra natal abandonada. Aqui o problema do espaço é a falta de montanhas, de morrinhos, de subidas… Ao invés dos pedregulhos gigantescos que expandiam o teto do quadro para as nuvens, nessa terra estrangeira, Bressane precisa se contentar com o limite dos complexos de apartamentos londrinos. O Brasil são as memórias: Helena babando o sangue preto, Hugo e Milton na sarjeta, as ruazinhas medíocres do Leblon… Fica na tela, por momentos fílmicos em forma de sinapses, a saudade dos amigos que matei.

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Bressane é fixado por gramáticas através de caligrafias tortas. Seu primeiro passo mais parece um recuo: por adorar prólogos, abre o filme com a costumaz entrega das imagens que se sucederão, isoladas da lógica sequencial, atreladas a imprevisibilidade do movimento pendular de sua narrativa. Dizer que não há narrativa em um filme como esse é jogar no lixo um dos operadores mais minuciosos da condução cinematográfica, tão preciso em dispor suas imagens em uma linha de nós emaranhada.

A questão é que, ao invés de colocar a linha que costura os planos através da configuração de uma linearidade, ou de uma não-linearidade, Bressane empuxa o filme para um globo de superfícies possíveis, em diversos ciclos constantes que seguem ordens claras, mas que estão sempre incapazes de começar ou terminar na frente da lente. Não à toa, ele se aproxima do fim de sua duração com um livro de palavras finais ilegíveis, que poderiam surgir como sucintez da obra, mas preferem ser sua inconclusão, sua incompletude elementar. Portanto, o prólogo serve como demonstração do futuro, e o epílogo como apontamento da foz.

A fluência imagética só é completa pela contramão do repertório sonoro. Os gritos animais, que se repetem junto com os sons ambientes dissonantes, puxados para o agudo, se complementam em uma trilha formada por anomalias auditivas. Mas o grande filão, como de costume, é o silêncio: poucas coisas são melhores do que quando não se escuta mais nada e é possível isolar-se totalmente nos estrangulamentos que se amontoam.

O que é engendrado, na costura da montagem, são os lapsos de tempo que operam pela via do prazer. Não tem tempo ruim no exílio: é uma fartura de pescoços para serem esmagados.

As loiras são uma epidemia. Elas ocupam todo canto, surgem de toda beirada, estão embaixo das escadas, ocupando praças públicas, se infiltrando nas casas… É o que torna os olhos tão irritadiços, tão magnetizados por um entorno tão infestado de cabelos amarelos. O magnetismo, elemento bressaniano de praxe, faz com que suas figuras em tela tenham aproximações inevitáveis, eletrizantes. Aqui, são as mãos do Conde Guará que não aguentam a pulsão magnética, precisam dos pescoços, precisam fechar os dedos na nuca loira nem que seja só por um instante. Mas isso está longe de ser um problema para elas.

As loiras buscam ser estranguladas. Apresentadas em sua face materna, ao nanarem um nada inocente neném no começo da fita, dispõem não apenas de uma compreensão maternal de nosso amado assassino, que aproximaria o filme de um páthos indesejável, mas também estão dispostas ao prazer da asfixia, verdadeiramente definidor. São vítimas consensuais, que morrem e revivem apenas para sentir a morte novamente, que não param de circundar o monstro, de tentá-lo aos seus instintos, atraídas pela repulsão. Cumprimentam o estrangeiro exilado com o generoso desfile de pescoços. Exilado num paraíso de amores, o estrangulador não poderia pedir mais. Até ele, em dado momento, chega a se cansar de tamanha oferta de vítimas. Monstruosas essas loiras, que perseguem incessantemente nosso humilde herói, ansiosas pela falta de ar que ele amorosamente as proporciona.

O que há de sobra no assassinato é a vitalidade. Uma espécie de vida eterna conquista pela insaciedade, atingida pelo monstro perfeito, vencedor em suas peripécias românticas. Seu modo de demonstrar a paixão, abandonando os cadáveres pelas praças e calçadas, sempre ocasionam ao retorno. Para matar as mesmas mulheres, para caminhar pelos mesmos lugares, sendo o forasteiro macabro de uma terra de oportunidades riquíssimas… Como aproveitar melhor um exílio europeu do que com uma coleção de paixões assassinadas?

As memórias dessa jornada permanecem perdidas. Mesmo que expostas, elas nunca desejaram serem encontradas, não pertencem à história. São os restos de um passado possível, em um cenário explorado às custas do prazer, que não está disposto à lembrança, apenas à repetição, ao replay (ou refrão), o que é muito diferente. Não se recordam as loiras estranguladas, se repete diariamente o mesmo gesto do estrangulamento, se estrangula de novo, cada vez como se fosse a primeira. Elas continuam a morrer, e ele continua a matar. Se vive o presente através da memória, já que é a única coisa que se resta quando não há mais nada. O estrangulador vive. Na imagem final, já grisalho e caquético, ele não perece, apenas sai de quadro. Escapa do olho. Sua imortalidade está aí, para ser subjugada como memória.

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Dois filmes necrófilos

Por João Pedro Faro

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Como olhar para os nossos mortos? Não parece existir possibilidade de registro do cadáver que não perpasse por uma profunda relação entre o objeto morto e o objeto vivo que o registra. A integridade existencial de ambos está em xeque, em estados opostos do espectro consciente. Na ambiguidade dessa relação intrínseca a esse registro é costume que predomine uma certa fixação do olho vivo pelo corpo morto, e há de se perceber que essa fixação corresponde a uma percepção do tempo, uma forma de se relacionar com a presente inevitabilidade da putrefação futura. Os limites dessa incisão visual se tornam questões de caráter transcendental e, não raramente, parafílico.

Ao astronauta apaixonado de Força Sinistra (1985), nada lhe soa mais perfeito que o corpo humanoide preso à cripta de cristal que ele e os tripulantes de sua nave resgataram no espaço. A alienígena assume formas femininas moldadas diretamente de seu subconsciente, vinda de uma espécie vampírica capaz de transmutar seu corpo monstruoso em qualquer que seja o desejo de sua presa. Mesmo morbidamente petrificado, seu corpo perfeito emana energias vívidas. O cadáver é capaz de deixar o astronauta em uma magnética hipnose, assumindo totalmente seus pensamentos, fazendo-o acreditar que o deseja da mesma forma. Tobe Hooper enquadra os momentos iniciais entre os dois como um amor absolutamente etéreo, como se o olhar do astronauta que repousa sobre a morta fosse uma espécie de convite à eternidade. O encontro definitivo dos dois, onde o astronauta finalmente se entrega à sua insuportável obsessão pelo ato necrófilo, desencadeará no embate entre os mortos-vivos cósmicos e toda a humanidade, que não será nada além de uma destrutiva histeria sexual epidêmica.

Os mortos-vivos alienígenas se alimentam do gesto vampírico de sucção da força vital do outro. Em campos energéticos próprios, esses corpos viventes transformam a sua presa em uma carne estragada, cadáveres secos, desesperados por qualquer energia que possa lhes restabelecer uma fisicalidade digna. Mais do que isso, estão instigados pelo prazer inerente às descargas elétricas pulsantes, que poderão lhes trazer energia e relegar o outro a uma múmia. Uma vítima descreve a sensação de ter sua força vital sugada como “a experiência mais esmagadoramente sexual e horrível” de sua vida.

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Enquanto a descida da alienígena, em sua mutação física para uma fantasia sexual viva, traz à terra uma epidemia de vampirismo, onde cada vítima tomada pela falta de força vital corre atrás das pulsões sexuais enérgicas que restituirão seu corpo de prazer, o astronauta continua a sonhar com ela. O desejo não se esvai, nem em meio ao apocalipse. Pelo contrário, quanto mais a humanidade é dominada pelos alienígenas vampíricos, maior é a necessidade do astronauta em reencontrar o cadáver que ama. Escondida na cripta de uma catedral, ela o aguarda, em um canal direto com sua nave-mãe, responsável por resguardar parte da energia vital sugada dos humanos. É o palco para o sexo perfeito.

Nus, em cima de um túmulo, o astronauta e a vampira estão juntos novamente. Em uma rara brecha de seu transe, ele enfia uma estaca no coração dela, destruindo a existência morta-viva. Nesse gesto, ocorre a tão sonhada penetração. Juntos ascendem ao espaço pelo canal da nave-mãe, com a estaca penetrada em sua carne e os olhares encontrados. A humanidade está salva, e o astronauta conseguiu transar com sua morta. Um dos personagens explica anteriormente: “a força vital se mantém em todas as coisas, mesmo no pós-vida”. Portanto, fica claro que, para Hooper, não há nenhum prazer espiritual no pós-vida que nos é oferecido, pois ele é gerado e mantido por tudo que é carnal. Estejam os corpos apodrecidos ou cheios de vitalidade e volúpia, ambos caminham para um além movido pelo desejo devorador de um lascivo centro de energia primordial. Não há espírito, apenas a carne, o sexo e a energia gerada entre esses dois.

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É possível que o oferecimento de um pós-vida esteja entre os motores da lente de Stan Brakhage, em O ato de ver com os próprios olhos (1971). Ao levar uma câmera para um necrotério, o cineasta exibe planos de precisão caótica: os cadáveres anônimos, estendidos em macas, têm sua carne manipulada de todas as formas pelos patologistas. A carne rígida é aberta, revirada, seus órgãos expostos e fatiados, sua pele removida, dobrada. O processo é assistido em uma aproximação de teores tanto enervantes (o corpo morto é levado aos limites de suas capacidades físicas) quanto meditativos. Está aí a precisão do caótico, quando Brakhage consegue repousar diante do grotesco, compreendê-lo através do lúdico. Lúdico porque há, em todo o cinema de Brakhage, a curiosidade pelo possível, uma busca constante em ver e perceber como as coisas que são de uma forma podem vir a se tornar de outra, formas deformadas, amorfas, mas ainda formas. Novas ao olho.

Então, quando fixa o olhar sobre o corpo em autópsia, quando se propõe a ver a mudança das formas rígidas da pele cadavérica serem abertas, dando lugar às maleáveis e rubras formações internas, os órgãos reluzentes e carnudos, o que prevalece é o desejo por ver o que está formado transformando-se em outra formação. Quando se abre um crânio, a pele da parte de trás da cabeça dobra para cima do rosto, que abre espaço para a remoção de um cérebro. O cérebro, suas rugas profundas, reluz, banhado em sangue, movendo-se nas mãos ativas de um médico. Quando é retirado por completo, Brakhage foca no interior do crânio vazio, suas concavidades à mostra, o branco de seu osso marcado pelas profundidades desenhadas. As formas se modificam, e há um interesse muitíssimo objetivo em focar em seus desdobramentos.

Não há qualquer som no filme. O silêncio é uma forte trilha sonora, é parte do que faz Brakhage ter uma imersão tão intensa e metódica na procura pelas formas. Quando sua lente enquadra as profundezas das tripas de algum cadáver, ou quando percorre as extensões dos corpos embalsamados, é tarefa da luz incidente sobre esses objetos de foco preencher o ritmo das imagens. Nas escuras redondezas de um plano, o que define o tempo de permanência em determinada imagem é justamente a iluminação que a permite ser vista. Seja na luz amarelada que revela uma mão petrificada, ou na luz vermelha que guarda os corpos já explorados, o jogo está nas linhas que se formam pelas superfícies (ou, nesse caso, pelos interiores) e que permitem que aquelas imagens sejam vistas.

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A fixação do olhar no cadáver garante os registros das transformações de suas formas, e estas, impostas pelo vivo (os médicos e suas mãos que tocam e recortam os corpos), são o cerne do desejo do olho. Ao vermos um torso sendo aberto, a caixa torácica raspada por uma espátula, os órgãos manuseados e expelidos pelo outro, existe uma incapacidade por parte da câmera de desviar o quadro. Em sua intensa aproximação dos cadáveres, não resta pulsão além da vontade de continuar a olhar, de ver mais possibilidades do interno, da faca cirúrgica, das tripas, pois não há nada que se aproxime tanto da transcendência quanto perceber, pelo outro, intimidades físicas de nossas entranhas.

O vivo interessa apenas como contraste, nunca como existência particular. Quando, nos planos finais, Brakhage filma um médico idoso, de gravata borboleta e caneta no jaleco, não conseguimos associá-lo aos sensoriais eventos e efeitos que foram expostos nas vívidas capacidades do corpo morto. Não pensamos o vivo como dominante, apenas como complemento necessário para que todo o resto seja visto.

Invejamos os mortos. Sua rigidez, a pose eterna imutável – só lhe resta ser manipulada pelos cortes e aberturas. Seus corpos são capazes de assumir formas sem que nada os impeça, sem que algo tão primário quanto a dor interrompa o processo. A irreversibilidade de cada gesto que lhes é imposto, quando seus intestinos são recortados ou quando suas cabeças são partidas ao meio, não é nada para eles. A falta de consciência os engrandece, não há limites para a exploração da sua carne, estão prontos para revelar os interiores que conviveram a vida inteira sem expor.

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Diferente dos cadáveres do filme de Hooper, que emanam sexo a todo momento com sua energia vital, os corpos em autópsia no filme de Brakhage são instrumentos do erotismo enquanto desejo por possibilidades antes impossíveis. A maior capacidade da carne morta, na mais áurea das luzes que fazem com que o registro na película aconteça, é estar disposta a qualquer imposição. É essa sua liberdade, sua nova forma de vida, e é o ato de ver, com os próprios olhos, a tão desejada disposição do corpo em ser qualquer outra coisa além do que já foi.

Ambos os cineastas dispõem a câmera diante das possibilidades de formulação do grotesco. Enquanto a carne, em Hooper, está sempre disposta à violação, tanto imagética quanto dramaturgicamente, Brakhage aguarda que a violação aconteça, que seja capturada pelo registro. O desejo dos autores pela expansão das capacidades do físico encontra lugar cativo no cadáver: é nele que as possibilidades das formas grotescas são fomentadas e cultivadas.

Nas tripas expostas, nada deixará de se mover ou de reluzir. Penetramos, rumo ao registro do que vemos, por incursões intensas pelos putrefatos. O que o cadáver diz sobre nosso estado futuro, nossa existência final, é tão provocante ao tempo do agora, que sua mera petrificação, exposta diante do olhar, já é o bastante para que o magnetismo consequente de sua presença leve à fixação por tudo que ainda somos capazes de ver. Então, a questão já não é mais sobre como olhamos para os mortos, e sim como fazemos para parar de encará-los o tempo inteiro.

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Rio do cão

Por João Pedro Faro

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O patrão anuncia: “Lá em cima, o corcovado, com o Cristo de braços abertos. A empregada matou minha mulher a facadas”. Seu braço morto está caído, pisoteado pela empregada assassina, num samba sobre o corpo. Em Cuidado, Madame (1970), primeiro filme da Belair, o Rio de Janeiro é assim, visto do chão. Sucede, após essa apresentação, o desfile mórbido e celebratório das domésticas livres pelas ruas da cidade, arranjando folga pelas vias do homicídio avacalhador.

Estamos em Copacabana, coração de um ideal (já antigo) de Brasil filmado. A mesma Copacabana que recebeu Pato Donald em sua viagem para o Rio, a mesma Copacabana que foi palco de todo um sonho estadonovista por uma indústria de cinema para chamar de sua. A Copacabana das chanchadas, o material arqueológico escavado e regurgitado no cinema da produtora Belair.  E o que seria a Belair, se não a concretização de um sonho de pequena indústria? Uma continuação da Atlântida Cinematográfica feita de dinheiro retroalimentado, injetado em filmes excruciantemente cariocas.

Nisso, Cuidado Madame serve como atestado de princípios do uso do espaço público. Habita um cartão postal, percorrendo a Vieira Souto para chegar na praia, mas paga o preço necessário para isso. E qual seria o preço? Sem dúvidas, a vida dos patrões. Maria Gladys esfaqueia as patroas para fazer Carnaval em dia de serviço. Os limites que lhe são impostos, a barreira entre a cozinha e a sala, naqueles enormes apartamentos de beira-mar que poluem e embarreiram a praia de toda a cidade do Rio, são destruídos por uma nova gestão de trabalho. Esta gestão – a das tripas para fora – permite que o cadáver das patroas sirva de ponte para a livre circulação entre os espaços que habita.

Se Copacabana Mon Amour (1970) viria a convulsionar o limite físico entre o morro e a calçada, o que ocorre em Cuidado Madame é um processo anterior de articulação entre a possibilidade de ocupar as ruas e a necessidade de ocupar os apartamentos. Maria Gladys, após suas matanças, leva Helena Ignez para as casas das patroas, a fim de puxar um baseado no sofá caro, roubar peças de roupas que lhe interessam e gozar dos corpos das madames que deixou ensanguentados à beira das piscinas. Logo depois, descem de volta para a rua.

A câmera, guiada por Bressane, balança ao andar de seus passos, atrás de Gladys e Ignez. Bressane não filma apenas na rua, como também filma a rua, uma adição que existe por tratar o maquinário fílmico como instrumento de registro visível. Ou seja, a câmera nunca desaparece, nunca finge não existir. Ao filmar suas personagens em contato direto com os fluxos vivos de uma Copacabana movimentada, esbarrando em pedestres, sendo observada por curiosos que chegam a olhar diretamente para a lente da câmera, ele aceita a rejeição daquele espaço em ser encenado e faz disso o processo da encenação.

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A rua da cidade, imparável, não deseja ter nenhum de seus processos diários interrompidos pela simples vontade de um cineasta em filmar na locação. Portanto, a cidade rejeita naturalmente a presença de um maquinário fílmico que tente fingir ser invisível, que peça para os pedestres não passarem em frente à câmera, que feche uma rua para evitar barulho dos carros. Se o cineasta ocupa a rua para filmá-la, que pelo menos permita que ela reaja de volta à sua presença. É exatamente isso que acontece nas grandes sequências de Cuidado Madame, em que não só os passantes interagem com a presença de Bressane, Ignez e Gladys, como também deixam com que as atrizes sejam formalmente integradas ao espaço urbano que ocupam. Praticamente nenhuma linha dos diálogos entre as duas na rua é minimamente audível, sendo esmagados pela barulheira de carros, pessoas e comércios. Copacabana deixa de ser um palco idílico, um estúdio sonhado que reúne uma alma carioca, para se tornar um espaço de encenações do erro, do tropeço, das milhões de possibilidades oferecidas pela filmagem sísmica declaradamente suspensa de grandes intromissões.

A jornada da câmera, a passos, percorre do terreno baldio ao terraço do apartamento de luxo. Os extremos existem em semelhança, pois as transições entre eles estão possibilitadas, já que os donos das terras estão mortos. Certamente, podemos dizer que Cuidado Madame estabiliza os intensos fluxos de um bairro-turismo planificando suas construções (e suas especulações) em um mesmo horizonte de uma ocupação iconoclasta. Já que as domésticas homicidas têm acesso a toda a extensão de um território de limitações fortificadas, elas podem caminhar sobre esse chão em tom de despreocupação e de avacalho, sendo os limites anteriores uma risível tentativa atual de impedir sua passagem pelo espaço. Como símbolo maior de uma fortificação ridícula, está o Copacabana Palace. Esse castelo imperial que ocupa todo um quarteirão, essa força de retomada do Brasil Colônia em um forte branco que reluz o sol de meio-dia, não é nem vislumbrado pela dupla de protagonistas, que deixam apenas um rastro de sangue ao lado de suas extensões.

Em outra recorrência que aponta para uma livre ocupação urbana, estão as vazias viaturas policiais, enquadradas mais de uma vez por Bressane. Acumuladas e ocas, como carcaças de animais em bando, as viaturas surgem nas imagens de Cuidado Madame como uma representação de uma ameaça inexistente às forças caminhantes das domésticas assassinas. Não há qualquer momento em que seu triunfo de circulação despreocupada seja regulado por uma força advinda da manutenção das propriedades privadas, pois não há qualquer interesse de Bressane em interromper sua encenação que institui o enquadramento como uma liberta entidade de circulação, que processa os planos no andar ora aproximado, ora distanciado das duas atrizes.

E onde está, então, o resto da cidade do Rio? Não existe. Copacabana está em Cuidado Madame para concentrar todo o ícone de uma cidade. Está refletida nas janelas dos prédios de metro quadrado mais caro, enquadrada pelos limites das bordas desses vidros que refletem replicações de si mesmos. Copacabana existe como centro de representação do Rio de Janeiro da mesma forma que Gladys existe como a personagem de chanchada que deve representar toda uma classe, todo um núcleo de existência popular; choque de ícones totalizantes em um processo de carnificina libertadora.

Uma empregada esfaqueia a patroa e vai à praia, rompendo com qualquer impossibilidade de ação. Seria esse, enfim, o emprego perfeito? A matança é um trabalho duro, que requer suor e força braçal, mas que possibilita um Carnaval permanente pelas ruas de uma cidade maravilhosa.

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É Tudo Verdade: Segredos de Putumayo

Por João Pedro Faro

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Em seu novo documentário, o cineasta Aurélio Michiles percorre os caminhos da histórica expedição do irlandês Roger Casement pela floresta amazônica no início do século 20. Marcada pelo testemunho da escravidão e do genocídio indígena, cometidos por empresas extrativistas inglesas que invadiram a Amazônia, o diário de Casement é a base estrutural do longa, que remonta a história através de entrevistas, arquivos e reconstituições em locação.

Surge, desde os primeiros minutos de projeção, uma tentativa de trazer um escopo épico ao projeto. É embalado por uma trilha incessante e fortemente dramática, acompanhada por imagens que firmam o preto e branco como potencializador de sua intensidade sombria. Assim, entram os recorrentes trechos de reconstituição, feitos por um ator vestido de Casement, que não vão muito além de filmar pessoas de costas e criar ilustrações imediatas e desinteressantes para acompanhar a narração do diário. Nesse quesito, o filme remete muito às produções históricas feitas por alguns canais de TV por assinatura, e essa sensação televisiva e desconjuntada não casa com as intenções mais sóbrias do projeto. Um outro exemplo de como a reconstituição desmonta algumas cenas, em um momento mais pontual, é quando Michielis decide ilustrar um trecho de entrevista que detalha algumas atrocidades cometidas contra o povo indígena na região e cria, com próteses falsas, uma sequência de imagens de esqueletos e pedaços de corpos humanos na mata. Trabalhada de forma pobre e carente de algo que a justifique, a reconstituição não serve bem ao longa, tornando momentos de temáticas fortes em apelos dignos de televisão barata.

Em contrapartida, a reunião dos arquivos é vasta e enriquecedora. A seleção de imagens, parte delas fotografadas pelo próprio Casement em sua viagem, trazem à luz uma realidade histórica severa. São intrínsecas a esses frames uma carga de revolta e inconformismo, pois expõem de forma objetiva e estática os horrores concretizados do imperialismo em estado bruto. Nem sempre o filme consegue se debruçar sobre esses arquivos sem trata-los com certa mediocridade, sendo pontualmente rebaixados à uma exibição de slides, sem que essas incríveis e tortuosas memórias gráficas sejam exploradas em toda a sua complexidade. Muito se deve a forma como o filme enxerga suas imagens como meras ilustrações do que está sendo ouvido, sem que elas integrem um mesmo plano mais bem trabalhado. Como nas entrevistas, especialmente as dos peruanos descendentes das gerações escravizadas, que são realmente bem realizadas e trazem diversas falas relevantes, mas que nem sempre são acompanhadas por imagens que buscam um diálogo maior com o processo fílmico. A quantidade de vezes que ouvimos algo e, logo em seguida, somos expostos à uma imagem diretamente correspondente às palavras que foram ditas, não é pouca. Parece que o filme não deseja construir uma operação que seja plural em sua linguagem, e tratando-se de um tema tão rico e poderoso, esses fatores pesam na experiência.

Segredos do Putumayo é um projeto de alcance informativo e que movimenta alguns dos trechos mais absurdos e revoltantes da história da América Latina. Infelizmente, não há grande interesse em complexificar seu processo de composição fílmica, renegando o documentário a uma estética empobrecedora e pouco condizente com seus escopos épicos. Suas informações tem valor inestimável, mas não deseja apresenta-las em um arranjo que esteja à sua altura.

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É Tudo Verdade: Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil

Por João Pedro Faro

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A cineasta Carol Benjamin narra e organiza imageticamente a trajetória da prisão de seu pai, nos anos 70, cometida ilegalmente pelo regime militar brasileiro. Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil agrupa uma investigação feita por Carol pelo passado do seu pai e a participação de sua avó na campanha pela anistia política.

Seguindo uma tendência contemporânea pelo documentário que coloca o histórico na perspectiva do íntimo, o longa funciona quase como um filme-ensaio intimista. Carol apresenta um material de arquivo amplo e bem integrado à uma narrativa documental concisa. O texto escrito é incluso no plano das imagens, as leituras de cartas funcionam como seguimentos articulados e pulsantes que criam ritmo às imagens estáticas e valorizam todo o arquivo reunido como uma possibilidade de criação cinematográfica. O documento existe como espaço de memória viva, especialmente na primeira metade do filme, mais focada nos desdobramentos dos primeiros anos da prisão de seu pai. Carol atinge uma louvável comunhão entre os impulsos investigativos, informativos e fílmicos, formulando o processamento de descoberta de fotos, textos e vídeos como o próprio princípio de composição imagética e sonora em seu documentário.

Enquanto resguarda um apreço e uma força ao se debruçar sobre as difíceis memórias de sua família, o filme se movimenta de forma interessante e oferece uma firme cisão entre formas de perpetuação do passado. Porém, há uma constante e desagradável intromissão verborrágica, por parte da narração do próprio filme, que diminui as energias dos arroubos iniciais. O reconhecimento de um valor íntimo à documentação histórica já se mostra presente no longa quando é criado um contexto em torno da revelação dos arquivos pessoais da família, atingida pela ação criminosa de um governo terrorista. Mas o documentário não permite que isso fale por si só, intrometendo verborragias intimistas que parecem querer explicar o que já estava claro, repetir o que já havia sido feito, tudo de forma muito verbalizada e dissonante. A sensação é de que a atenção dada ao material é renegada por um fio textual que deseja esmiuçar e tornar ainda mais tocante um grupo de documentos que, da forma como haviam sido apresentados, já falavam o que é dito, já tocavam o subjetivo pelas vias históricas. Cria-se um ciclo de repetição que, aos poucos, aproxima o filme de uma dinâmica redundante. A fala narrada em primeira pessoa surge como a única possibilidade de formulação do subjetivo, tornando o projeto menos memorável e se aproximando mais de documentários contemporâneos que tratam de questões similares (não há como ignorar a semelhança do texto de Carol com o do último longa de Petra Costa).

A partir de um conjunto de personagens brilhantes, enriquecidos pela preservação de suas memórias, Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil consegue realizar passagens marcantes e bem compostas que geram movimento a partir da abertura de cofres do passado. Carol tem uma boa inclinação sobre o uso de arquivos e sabe remonta-los dentro de uma estética condizente com seu projeto e com suas intenções históricas mais personalistas. O que não cabe ao longa é a desvalorização de seu próprio processo e sua determinação em dizer as mesmas coisas duas vezes, não deixando com que o método engrandeça a experiência da autodescoberta pelas vias da lembrança.

 

 

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É Tudo Verdade: Pão Amargo

Por João Pedro Faro

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O novo filme de Abbas Fahdel, Pão Amargo, realiza blocos de encenações cotidianas dentro de um campo de refugiados sírios no Líbano. Fahdel adentra o terreno ocupado pelo grupo imigrante, localizado entre um conjunto de vales e uma movimentada estrada, a partir dessa premissa de intromissão fílmica, causando ao espaço uma movimentação em torno da câmera que acaba por forjar diálogos e situações propícias aos seus interesses mais propriamente documentais.

Existe uma apresentação de conflitos íntimos de determinados personagens que discorrem através de situações claramente encenadas, possibilitando uma espécie de panorama interrogativo. Ele cria perguntas invisíveis que serão respondidas de forma indireta pela encenação dos refugiados, em diálogos expositivos que apontam situações como exploração de sua mão de obra, dificuldades em se alojar nas limitadas tendas, tédio e desesperança. Ou seja, o processo de Fahdel redireciona a conflituosa relação entre câmera e entrevistado, oferecendo uma possibilidade de criação de cena um pouco mais complexa, onde questões são respondidas sem que haja uma clara interrogação jornalística por trás das câmeras. Seu mote operacional permite ao grupo que acompanha uma ativa participação em um processo fílmico expansivo, que cria enquadramentos bem compostos e os isola no quadro, ao mesmo tempo que não deixa de investiga-los, não deixa de contribuir para a propagação de suas falas e de seus conflitos. Ao coloca-los nessa posição, onde são atores de si mesmos, Fahdel cria as imagens necessárias para que se construa um projeto documental rico na exibição do pacto entre quem filma e quem está sendo filmado. É assim que vemos momentos como um grupo de mulheres do campo trabalhando em uma plantação e reclamando de seus salários, um pai e um filho que discutem a demora para a preparação de um casamento, o dono de uma venda de produtos que reclama dos fiados com um supervisor, entre outros blocos de cena que arranjam situações ordinárias e seus protagonistas colocando a entrevista integrada à ação.

É justamente a relação entre o coletivo e o espaço que está no centro de todas as questões que compõe Pão Amargo. Entre um grupo de pessoas que tiveram suas casas destruídas pela guerra e que tentam, diariamente, construir alguma estabilidade dentro das limitações do lugar que ocupam, Fahdel registra imagens que colocam em um mesmo plano os moradores do campo, o campo e o sítio que ele se insere. Há essa constância de planos gerais que marcam desde as montanhas no fundo da paisagem, descendo para as tendas na beira de estrada e acabando nos moradores em suas tarefas diárias. O escopo sempre tenta englobar uma grande quantidade de fluxos imagéticos que se comunicam diretamente em um espaço onde a vida é construída em tamanho reduzido. Onde os elementos, sejam eles pessoas, casas, decorações ou animais, convivem em um intenso agrupamento, impossibilitado de se expandir. A câmera abre e tenta conseguir encaixar tudo isso enquanto ainda continua a captar suas falas e gestos, em conformidade com toda a gambiarra necessária para a sobrevivência de um grupo à margem.

No único momento em que permite que um personagem fale para a câmera, um refugiado que empilha repolhos em um caminhão esbraveja para a lente: “Que Deus amaldiçoe aqueles que destruíram nosso país”. Cedendo à potência de uma espontaneidade, mesmo dentro de um processo fílmico tão próprio e tão fechado, Fahdel só reafirma os esqueletos de Pão Amargo. Realizar, dentro de um grupo de pessoas em estado de desesperança, isolamento e incerteza, um encontro com um aparelho cinematográfico que não busque extrair dele uma experiência, pelo contrário, decide adicioná-los uma. Uma encenação criada e desenvolvida pelo pacto.

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É Tudo Verdade: Libelu: Abaixo a Ditadura

Por João Pedro Faro

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Libelu: Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz, é um documentário que extrai força de estruturas bastante tradicionais. Contando a história da tendência Liberdade e Luta, núcleo de militância de esquerda feita por estudantes paulistas em meados dos anos 70, o filme varia entre uma grande reunião de imagens de arquivo e entrevistas inéditas com os personagens da Libelu, oferecendo uma revisão dos impactos históricos do grupo pelos próprios protagonistas de sua existência.

É possível dizer que há uma qualidade quase televisiva ao longa. Sendo dinâmico e conciso na construção linear dos relatos e expansivamente informativo, Libelu se concentra em condensar os casos e ideias que pretende registrar em um modelo estético bem próximo do que se entende por “documentário jornalístico”. Há uma apresentação direta de seus personagens, seguida por incursões temáticas bem claras e divididas, resultando em um projeto de quase exatos 90 minutos preenchidos por um ininterrupto interesse em apresentar momentos-chave do movimento e os ocasionais comentários abertos do grupo de entrevistados acerca de suas implicações midiáticas, memórias de juventude e contos de suas participações dentro do movimento trotskista estudantil. Surge como sendo bastante determinado em apresentar perspectivas, tanto subjetivas quanto historicamente panorâmicas, a respeito de seu tema central, nunca se desligando de sua principal fonte de trabalho.

Parte dessa concentração é aliviada por uma transparência em seus processos de diálogo, típica ao cinema documental mais popular. As entrevistas de Diógenes são constantemente quebradas por perguntas que não querem ser respondidas, informalidades claras do ambiente em que se insere, memórias que tomam rumos cada vez mais pessoais e intervenções diretas através da entrega de fotos e revistas da época a serem comentadas pelo grupo de personagens. Consegue ser explicitamente formulaico sem que soe dissimulado, justamente porque alcança uma proximidade com o grupo que registra que é suficiente para deixá-los em primeiro plano. Especialmente em seu terço final, quando trata dos destinos dos militantes de Libelu posteriores a saída de cada um da vida militante, o documentário consegue traçar fortes relatos e, em alguns casos, fortes imagens que traduzem severamente questões como a desilusão política e a abismal diferença entre os primeiros anos da vida adulta e seus dias tardios. O depoimento do ex-ministro da fazenda (e ex-Libelu) Antônio Pallocci, gravado em sua prisão domiciliar, é particularmente melancólico e honesto, expondo um tema paralelo, mas crucial, ao documentário, que é a perda de um sentido enérgico e vigoroso impulsionado pelo engajamento político em difíceis tempos passados.

A conclusão, em um projeto bem acabado e que serve muito bem às próprias intenções, é uma informativa coleção de presenças que constroem uma unidade documental de memórias. Libelu pode acabar não sendo um documentário muito inventivo em forma ou apresentação, mas suas pulsões mais básicas acabam por realizar uma experiência muito funcional de recontos e resgates históricos dentro de um procedimento fechado e, abertamente, careta. Poucas coisas poderiam funcionar mais para acompanhar um grupo de pessoas desligadas de seu próprio passado.

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É Tudo Verdade: Não Nasci Para Deixar Meus Olhos Perderem Tempo

Por João Pedro Faro

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O documentário de Claudio Moraes sobre as memórias do fotojornalista Orlando Brito é moldado em torno de uma extensa e inédita entrevista. Enquanto percorre, de forma não-cronológica, contos de sua carreira e das personalidades que fotografou, o filme varia entre expor fotografias de Brito (algumas em melhor resolução do que outras) e filmar sua cabeça-falante que relata diversas passagens marcantes da história do Brasil a partir do golpe militar.

É objetivo como o filme se apoia inteiramente na potência intrínseca nas falas de Brito. Isso gera, portanto, uma constante de erros e acertos no longa: enquanto as memórias do fotógrafo perpassam momentos fortíssimos, não há nada que, cinematograficamente, acompanhe essas passagens. As fotografias de Brito acabam exploradas de um jeito muito óbvio, pouco interessado em investigá-las ou até mesmo exibi-las de formas mais fílmicas. Passam como slides, em transições animadas pouco inventivas, à procura de algo que faça jus às narrações que lhes acompanham. Parece sempre apressado em passar de um relato para outro, deixando vários momentos quase que feitos pela metade. Há uma grande sensação de um trabalho inacabado, tanto pela inconstância da qualidade das imagens e do áudio quanto pela unidade mal formulada do projeto.

Ainda que a realização seja insuficiente, há ocasionais trechos de algo mais finalizado. A passagem de Brito por um templo religioso cósmico, em Brasília, é um momento que não parece apressado em acabar. É assim, também, em sua recordação sobre a foto que tirou do General Geisel de sunga, ou em seu último e emocionante encontro com Zé Keti. São momentos que, apesar de perdidos em uma narrativa fílmica mal construída, mesclam de forma funcional a exibição de imagens estáticas junto com a narração de Brito. São operações simples de imagem e som que fazem falta durante o resto do longa, confuso no jeito que arranja seu protagonista e seu material de arquivo. O resultado, em grande parte, são momentos interessantes e espaçados, preenchidos por outros que não se resolvem, não se concretizam, acabam por onde começam.

Não Nasci Para Deixar Meus Olhos Perderem Tempo pode ser descrito como uma coleção de memórias brilhantes desperdiçadas por uma execução pouco interessada em um aprofundamento cinematográfico. Resta, ao produto documental, sobreviver do que não lhe pertence,  do que não consegue puxar para si, que são grandes histórias sem qualquer tipo de condução fílmica que engrandeça o projeto. Acaba diminuído pelo próprio desinteresse com o cinema.

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É Tudo Verdade: 1982

Por João Pedro Faro

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O filme de arquivo do cineasta Lucas Gallo remonta 3 meses de imagens televisivas de um programa local, acerca dos eventos bélicos de retomada das Ilhas Malvinas em 1982. Gallo assume as imagens como pura propaganda do regime militar e, através de precisas sobreposições imagéticas e paralelos imediatos entre diversos registros, cria uma contranarrativa fílmica aos absurdos promovidos e televisionados à época pelo governo argentino.

Tendo como centro formal a intromissão da montagem a partir de imagens que, por si só, já falam bastante, 1982 não dispersa de seu método em nenhum momento. Enquanto assistimos uma narrativa ser montada e vendida ao povo argentino, criando uma enorme comoção popular pelas tropas nas Malvinas, acompanhamos, paralelamente, os eventos tenebrosos que discorrem nas ilhas. A primeira metade do filme funciona como filme de guerra, com jovens soldados no aguardo da chegada das tropas britânicas inimigas, enquanto toda uma mobilização nacional desmedida e insana é direcionada a jovens rapazes que esperam pela morte. Por mais propagandístico que o material do programa 60 minutos, fonte de todos os arquivos que Gallo retoma, a iminência do desastre nunca deixa de rondar os cantos dos registros. Quanto mais absurda e mais esquizofrênica se torna a expectativa criada por um movimento armado condenado ao fracasso, mais nos afastamos das imagens das Malvinas e nos fechamos aos auditórios argentinos onde, de alguma forma, a guerra ainda parece caminhar para a vitória.

Se torna, portanto, um exercício de contrastes imagéticos diretos, que expõe o terror da propaganda deixando com que a realidade fale por si só. Não temos alternativas às imagens propagandísticas, porém, elas mesmas passam a se contradizer e, aos poucos, a ruir, declaradamente omitindo o que não lhe interessa e tentando segurar um regime em clara decadência. Criam-se programas de doação com moças bem vestidas ao lado de soldados armados, televisionando um show de arrecadações financeiras para um governo responsável pelos próprios gastos em uma guerra imprestável. Nesse sentido, a figura do General Galtieri e da primeira ministra Margaret Tatcher funcionam como a oposição entre dois carrascos que aparecem de formas opostas nas imagens de propaganda.Tatcher é um fantasma o filme inteiro, representante física do colonialismo europeu, uma entidade maligna que só dá as caras quando já derrotou o país latino-americano. Mas, sem nenhuma surpresa, parece estar ideologicamente ao lado de Galtieri, que sonha com um colonialismo próprio.  Galtieri, exaltado, surge como uma força de salvação que apoia ações completamente fantasiosas, mentindo constantemente, mas sem deixar com que seu rosto pare de olhar para a câmera. A propaganda de guerra, caso esteja do lado do vencedor, serve para marcar o responsável pela vitória, o líder supremo. Caso acabe em derrota, marca eternamente o mentor dos crimes contra a humanidade. E o rosto de Galtieri, sobreposto por Gallo às imagens da destruição, representa uma fraqueza existencial digna do pior dos líderes.

O material reunido por Gallo, todo gravado em vídeo, apresenta ocasionais interferências  na imagem que deformam ainda mais os registros já naturalmente deformes. Juntando isso à sua montagem, marcada por transições entre imagens que surgem por cima de outras, temos um processo certeiro que faz as imagens quase ininterruptas, desesperadas em formular uma realidade alternativa, triunfante. Podemos dizer, então, que 1982 compreende cinematograficamente as origens e as implicações de um discurso patriótico dissimulado, criminoso e desmoralizante, pois seu objetivo é expor toda a sujeira comercial de uma nação comandada pelo militarismo em acordo com o capitalismo. O resultado, em um dos trechos mais marcantes do filme, é o que diz uma voz ao pendurar um pôster do Maradona em uma das paredes de um bar nas Malvinas: vemos, aqui, o perfeito exemplo de um rapaz argentino, patriótico, um símbolo do futuro. Só dá pra tentar se agarrar às imagens que restam, nos sonhos latinos por um imperialismo que possa chamar de seu.

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