É Tudo Verdade: Atravessa a Vida

Por João Pedro Faro

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O novo documentário de João Jardim parte de uma ideia mais do que sedimentada no cinema documental das últimas décadas. Atravessa A Vida coloca uma câmera dentro de uma escola pública do interior de Sergipe, a fim de acompanhar os derradeiros dias pré-Enem dos alunos do terceiro ano. Desde High School (1986) de Frederick Wiseman até Últimas Conversas (2015), de Eduardo Coutinho, não faltam exemplos memoráveis (e, também, esquecíveis) de autores documentais que exploraram tanto o ambiente quanto os personagens do ensino médio público. Se há qualquer diferencial no filme de Jardim, ele está firmado em suas passagens mais propriamente intimistas.

A cidade pequena que dá palco à sua encenação é vislumbrada em segundo plano. Há, durante todos os diálogos, uma sombra da distância da capital e dos cursos que os alunos desejam prestar. Há uma sensação de isolamento, que percorre todo o filme, e que aponta para projetos de marginalização impostos à essas figuras adolescentes, mais do que conscientes de todo o processo por trás de sua sonhada incursão no ensino superior. Quando decide dar atenção direcionada a determinados personagens, Atravessa A Vida revela jovens em estado de elucidação e inquietação.

O que o filme não consegue carregar é, justamente, a complexidade dos sentimentos de seus personagens sendo resguardada pelo ambiente em que se encontram. Nada pode ser mais objetivo em demonstrar essa dicotomia do que alunos prestes a se formar, em correrias de estudos integrais impulsionadas por inseguranças e crises. Em seus momentos mais fortes, especialmente na primeira meia hora, integra um processo melancólico imersivo de desesperança e angústia, filmando livremente trechos de aulas, discussões e interações ordinárias carregadas de timidez e volatilidade. Já no terço final, o filme renega seus princípios e busca um encerramento mais comum e palatável, dando um nó de forca em sua integridade.

Atravessa A Vida é um caso curioso. De início, reconhece seu processo fílmico e produz imagens interessantes e ativamente relacionáveis em torno da experiência secundarista. Quando deixa de ser sobre a articulação entre a presença física da câmera e a reação desses adolescentes em crise à lente, busca os espaços mais confortáveis, conhecidos e desinteressantes. A forma como se encerra, em longos créditos que colocam o nome dos personagens ao lado do curso em que passaram ou pretendem passar, é um grande desrespeito à confiante aproximação que, inicialmente, parecia criar entre aquele grupo de pessoas. A partir do momento em que um filme age como um professor agiria, deixa de ter qualquer interesse pelos humanos em tela. Uma pena que ele não permita que esses alunos deixem de ser, por algum momento, algo além de alunos.

 

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É Tudo Verdade: Forman VS Forman

Por João Pedro Faro

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Forman VS Forman parte de uma extensa reunião de arquivos que remontam a vida do diretor tcheco. O centro do longa de Helena Třěštíková e Jakub Hejna é a colagem, que liga diversas entrevistas de Milos Forman às imagens resgatadas. Nesse sentido, funciona mais como um filme-ensaio do que como um documentário em si, tendo em vista que a única voz presente é a do protagonista. Seus relatos entregam ao filme um corpo semântico que garante uma concisa condução das imagens.

A montagem é a grande força aqui. Ao recusarem típicas estéticas ultrapassadas dos documentários narrativos, como fotos em slideshow e abuso de planos de “cabeças falantes”, os diretores extraem uma experiência que nunca deixa de ser, ao mesmo tempo, informativa e cinematográfica. Até pela curta duração de 70 minutos, que resumem quase 90 anos de vida, não há sobras de tempo que não estejam devidamente recortadas e processadas. Třěštíková, veterana do ensaio documental, realiza um trabalho sucinto e direto sem que nada pareça apressado ou resumido.

Em certos aspectos, Forman VS Forman remete aos últimos trabalhos de Agnès Varda, especialmente As Praias de Agnes (2008). Claro que se trata de um trabalho bem menos grandioso (e com um personagem central muito menos carismático), mas há sim uma liberdade incondicional gerada pela revisão de toda uma carreira nas palavras de seu principal autor. Tanto no filme de Varda quanto no de Třěštíková, a aproximação entre espectador e filme só é possibilitada pela forma como concentramos a jornada na voz do centro das criações, acompanhando, na distância da lente, um artista que reconta seus passos.

O mais surpreendente é perceber como Milos Forman reconta sua trajetória como a história viva do sonho americano. De sua saída da Praga comunista pro cenário caótico dos Estados Unidos setentista, culminando em seu vergonhoso discurso em Washingnton em 89, Forman é um personagem único que guarda todos os ideais de uma geração de artistas da Europa oriental que sonharam com a “liberdade de expressão” de uma América perfeita.

O filme de Třěštíková e Hejna é feliz em respeitar a distância que Forman tinha de si mesmo e de suas próprias desilusões, com sua terra natal, sua carreira e seu novo país. Como o cineasta explica, na primeira linha do filme: “não gosto muito de pensar sobre mim”. Está aí todo o espírito do projeto. O que resta, então, para desvendar esse personagem, é revelar todos os seus passos e todas as imagens que lhe marcaram, na esperança de que exprimam alguma existência, em um confronto entre suas palavras e suas realidades. Realmente, é Forman contra Forman.

 

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É Tudo Verdade: Meu Querido Supermercado

Por João Pedro Faro

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O longa de Tali Yankelevich tem jeito de reportagem. Com a duração de um episódio de Globo Repórter, Meu Querido Supermercado é um registro objetivo e costumeiramente simples de um grupo de funcionários durante um dia de trabalho. Contado em pequenas narrativas de seus personagens, o filme não parece confiar o bastante na capacidade individual de cada um de seus núcleos e tenta puxar uma visão unificada de um mosaico desconjuntado.

Não é surpreendente que os funcionários do mercado sejam, em geral, pessoas bastante interessantes. Os momentos de maior criação surgem em gratas presenças, como a supervisora das câmeras de segurança que passa o dia inteiro vigiando sua filha que trabalha no caixa do mercado. Ou, também, no núcleo do romance hawksiano entre dois padeiros, figuras com carisma suficiente pra carregar grande parte das sequências do filme.

O cansaço visual de Meu Querido Supermercado está justamente no contraponto dessas figuras: Tali sempre parece justificar seu projeto com ambições “superiores” ao registro do trabalho, forçando aos seus personagens banalidades cósmicas com perguntas como “Você acredita em vida após a morte?” e “O que é fé para você?”. Essas respostas, limitadas a uma fração do grupo que retrata, surgem acompanhadas de analogias visuais bastante óbvias, como a sequência em que um dos funcionários descreve o “além vida” como um “desaparecimento da forma física”, apoiado por imagens de pães velhos sendo triturados. Não há nada nesses momentos que se integre à rica e inexplorada existência dos personagens que encenam a obra de Tali.

A necessidade que Meu Querido Supermercado parece ter em querer integrar seu microcosmo aos próprios cosmos não alcança suas ambições, em um documentário que parece planejado pela metade. O que prevalece, no contato dessa presença fílmica com os indivíduos que retrata, é um breve e agradável vislumbre de vidas que transbordam os horários de descanso do trabalho.

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A lei dos depravados

frePor João Pedro Faro

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Entre 1966 e 1973, os cineastas japoneses Koji Wakamatsu e Masao Adachi colaboraram em mais de 30 projetos. A parceria da dupla só foi quebrada quando Adachi se uniu ao Exército Vermelho Japonês, no início da década de 70. Ele mudou-se para o oriente médio, lutando no grupo armado comunista junto com a Frente Popular Para a Libertação da Palestina, sendo mais tarde deportado do Líbano e acabou preso no Japão por quase 40 anos. A obra de Wakamatsu e Adachi permanece como uma das violentas expressões cinematográficas de sua geração, composta por filmes de baixíssimo orçamento que compartilham a revolta como um estado de existência e a contravenção como base da relação entre o indivíduo e o coletivo.

O princípio dos dois autores é a várzea. Por mais que seus filmes perpassem a história da Nova Onda Japonesa, Wakamatsu e Adachi sempre recusaram qualquer cânone. Em torno do gênero pinku, filmes japoneses de exploitation preenchidos por nudez e violência, feitos com pouco dinheiro e distribuídos no mercado de cinema adulto, os dois fundaram um ideal de cinema que prezava pelo imediato, pela potencialização direta dos meios fílmicos que só poderia ser encontrada dentro do contexto desse tipo de cinema marginalizado. É preciso entender que seus filmes só puderam existir da forma que existiram, do jeito que existiram, por estarem conscientes de seu espaço enquanto subprodutos industriais, por habitarem as bordas de um sistema operacional de estúdios do Japão e reconhecerem esse fator como uma pulsação estética e formal. Se a base da revolta é a negação, esse cinema nasce a partir da vontade pelo contrário.

A primeira parceria dirigida por Wakamatsu e escrita por Adachi feita de forma completamente independente, The Embryo Hunts in Secret (1966), funciona, de forma mais ampla, como uma declaração de interesses que viriam a ser ainda mais estripados nos próximos anos. No filme, um homem prende uma mulher em seu quarto e a submete a todo tipo de tortura física e sexual. O estado de revolta é absoluto em todos os aspectos: o torturador que expressa a misoginia em catarse de tortura, que não aceita a possibilidade de que o corpo da mulher simplesmente exista de outra forma em que não esteja absolutamente dominado. O reflexo do abuso encontra-se na sobreposição das imagens de revolta, como em um momento de tortura que é precedido por imagens sobrepostas do rosto de Maria Antonieta e, logo depois, da ex-mulher do próprio torturador, que não pode lhe dar um filho. A complexificação das estruturas de poder apresentadas impulsiona a justificativa do torturador em torturar: a desestruturação familiar, a impossibilidade da paternidade, é relacionada ao regicídio, ao fim de um estado absoluto de poder. Isso o coloca, ao mesmo tempo, na posição de vítima e de algoz.

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É um abusador que se sente traído pelo tempo em que vive, se sente destituído do poder que revoga e, agora, tenta reestabelecer algum tipo de sentido à sua vida, às custas da extrema violência – um personagem essencial à filmografia de Wakamatsu e Adachi, por ser a figura exemplar do sujeito que precisa destruir todo um espaço por não conseguir viver sob preceitos que não sejam os próprios. Enclausurado entre quatro paredes, onde estupra e chicoteia sua jovem namorada, ele consegue reger um universo particular que esteja de acordo com os ideais que sua revolta reivindica.

No ano seguinte, Wakamatsu dirige Violated Angels, um filme de menos de 60 minutos que acompanha um grupo de enfermeiras feitas de refém por um jovem armado. Voltamos ao filme de espaço único, onde o rapaz mata todas as enfermeiras, uma de cada vez. A ação concentrada dilata o tempo e valoriza cada gesto como um arco dramático: cada interação, verbal ou silenciosa, entre o atirador e alguma das mulheres, se estende por minutos. Em vários momentos, ações se repetem: vítimas aos gritos pedem misericórdia, a arma é usada como mediação fálica entre o homem e a mulher – tudo enquadrado diante à iminência da morte de todas elas. Assim como em Embryo Hunts in Secret, e como viria a ser em filmes futuros, Wakamatsu abusa de característica comum ao pinku, a repetição de atos de violência física e sexual, para transformá-la em aliteração. A mesma situação se repete por muito tempo em tela, transformando o processo de reiterar as mesmas imagens e as mesmas palavras em uma extensão consciente do cinema que ocupa e uma experimentação do extremo, o filme inteiro sendo uma série de ações repetidas e dilatadas que, em outras obras, ocuparia apenas alguns minutos de narrativa. E ainda subverte essa própria aliteração do grotesco em seus momentos finais, quando o toque maternal de uma das enfermeiras consegue desarmar o jovem, contrariando as expectativas do gesto repetido da morte.

O personagem do atirador em Violated Angels é um revoltado peculiar dentro do cinema de Wakamatsu, pois suas ações são extremamente ambíguas, quase aleatórias. Ele surge em tela como um obcecado em acabar com a vida daquelas mulheres, sem antes e depois. Nos últimos segundos de filme, quando a polícia arromba a casa das enfermeiras para buscar o atirador, Wakamatsu sugere um paralelo fundamental entre a violência daquele grupo de agentes estatais com a violência do atirador contra as mulheres desarmadas (paralelo esse que viria a se tornar mais politicamente declarado em seus projetos seguintes com Adachi), mas a motivação básica do jovem continua misteriosa. A resposta pode estar em um dos primeiros momentos do filme: sozinho em uma praia, o rapaz atira freneticamente contra as ondas do mar. A imagem não poderia ser mais direta, mais literal. Atira-se contra a impossibilidade de vitória, contra algo imortal, em constante mudança de forma e tamanho, para se adequar ao que o impacta. Atirar contra a água talvez seja o gesto mais sugestivo possível de um indivíduo em revolta contra as leis de um universo exterior a si próprio, que pode ser atingido, mas nunca derrotado. Matar um grupo de mulheres indefesas é um escape temporário de alívio contra as ondas de fardados que surgem nos últimos momentos do longa.

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Um jovem armado, que atira contra a impossibilidade de vitória que o cerca, surge também na cena final de Sex Jack (1970), escrito por Adachi e dirigido por Wakamatsu. Após todo o seu grupo de amigos, uma gangue de estudantes comunistas, ser preso, um tímido rapaz mata um grupo de policiais, logo antes de sair andando, solitário. Por mais que exista uma certa recompensa no assassinato da polícia, o tom é de melancolia absoluta, de desesperança em qualquer ato revolucionário. É estabelecida a diferença entre a revolta e a revolução. A revolta implica desordem, já a revolução, além da desordem, implica mudança. Em Wakamatsu e Adachi, nunca atingimos a revolução, só interessa filmar a desordem.

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Sex Jack é estruturado no confinamento do grupo de comunistas em um apartamento decadente. Durante o dia, não fazem muita coisa além de transar e brigar. A claustrofobia, obsessão declarada de Wakamatsu, acaba funcionando como propulsora de ações concentradas em seus planos. O longo escopo da câmera de Wakamatsu, uma recorrência visual necessária na maioria de seus filmes, decupa o espaço confinado na alternância entre o plano todo preenchido pela aproximação com os corpos dos personagens transando ou aberto o suficiente para enquadrar diversos personagens em cena. Interessam as imagens dos embates físicos, sejam eles sexuais ou não: todos recebem um mesmo tratamento pelo longo quadro que os abriga.

Em um caso similar, no longa Sensual Games (1969), que Wakamatsu e Adachi dirigiram juntos, o escopo que enquadra o maior número de pessoas em cena serve tanto para filmar uma cena de orgia quanto para filmar um grupo de ativistas políticos em motim. Aliás, essa aproximação sugere tornar as duas coisas inseparáveis. Em dado momento, a cena de uma jovem sendo estuprada é interrompida na montagem por imagens reais da polícia repreendendo violentamente um dos protestos de esquerda realizado por estudantes japoneses. Wakamatsu e Adachi habitavam o ativismo político de esquerda da época, e o registrava como parte de seu cinema, como motor de qualquer outra recorrência temática. Tornam-se princípios similares de brutalização.

Essa percepção é parte da compreensão geral de que o sexo no cinema dos autores, diferente de outras produções do pinku, ou até de filmes de seus colegas da Nova Onda Japonesa, acaba por não ser interesse individual pelo tema em si. São projeções conscientes se utilizando dos signos do pinku, de outras temáticas que cerceiam e ditam os rumos de seus filmes. Em Sensual Games, por exemplo, mesmo que grande parte do tempo de tela seja tomada por cenas de estupro coletivo ou de sexo grupal, o que está realmente em evidência é como essas imagens são articuladas com seus entornos de efervescência social. Como na cena em que uma ativista é levada para uma zona ocupada pela juventude comunista e estuprada por uma gangue de jovens politicamente neutros, que desprezam a revolta ativista e, por sua vez, são revoltados com seus meios individuais de garantir a dominância sexual (antítese do grupo comunista visto em Sex Jack).

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O sexo existe como fim ou como reflexo de um estado de inconformidade constante com o espaço e o tempo habitado, e não simplesmente como sexo. É a violação do corpo, consensual ou não, que cria as imagens necessárias para eletrizar quem está enquadrado em cena. Em 1971, Adachi viria a explorar de forma ainda mais agressiva esse ideal, quando dirigiu Gushing Prayer. No longa, uma adolescente de 15 anos é obrigada por um grupo de amigos a se prostituir, a fim de encontrar qualquer sensação sexual que, até então, não houvesse encontrado, finalmente “derrotando” o sexo, como ela mesma explica. Adachi complexifica a ferramenta do sexo quando a torna uma passagem definitiva para a vida adulta, e, portanto, uma passagem para a percepção do sistema de classes e da exploração laboral. Se o sexo torna a adolescente adulta, e a vida adulta é baseada em trabalho, o sexo só pode existir para a jovem protagonista como outra forma de exploração regida pelo capital, e, para isso, ela precisa subvertê-lo à sua forma. Para o filme de Adachi, a prostituição é o único sexo possível dentro dessa sociedade, e todo sexo acaba, por consequência, sendo uma espécie de prostituição. O sexo pelo sexo, o ato pelo prazer, não existe dentro de um cinema em busca de brutalizar imageticamente seu processo revoltoso de pensamento.

Além do sexo, outra iminência da revolta, para Wakamatsu e Adachi, é o suicídio. Em 1969, Adachi roteiriza e Wakamatsu dirige GO GO, Second Time Virgin. Por mais que o abuso sexual seja constante durante o longa, que abre com uma cena de estupro coletivo contra a protagonista em um terraço, o centro de sua revolta urge da decisão da adolescente em morrer. Após fazer amizade com o filho do zelador do terraço, um jovem matador em série, ela explica: “Desejo morrer porque desejo matar”.  Por mais que esteja sendo violada por todo o seu entorno, ao invés de revoltar-se e negá-lo, a negação se dá contra si mesma. O suicídio é a total destruição de seu vínculo com o mundo, é a revolta contra a própria existência. Junto com seu amigo, que mata a facadas todos os membros da gangue que a estuprou, a menina decide que se jogar do alto do prédio é o regimento máximo de uma moral própria, seu jeito de atentar contra a ebulição desesperadora de inconformidades que sua vivência gera. O suicídio, longe de ser, em si, a concretização de um estado mental destruído, é apenas uma projeção extrema da não-cumplicidade com qualquer fator externo ao indivíduo. Na última imagem do filme, os corpos dos jovens no asfalto encontram algum tipo de estabilidade com o ato de existir.

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Ainda em 69, Adachi dirige o que talvez seja seu projeto mais formalmente ambicioso. AKA Serial Killer parte dos acontecimentos reais de um homem de 19 anos que matou quatro pessoas com a mesma pistola. Uma narração pontual absolutamente apática conta, em resumo, os passos do jovem, desde a sua infância até o dia dos assassinatos, enquanto acompanhamos planos fixos dos espaços em que ele passou ao longo dos anos. Nunca vemos o rosto do atirador ou qualquer imagem de arquivo. É um documentário que surge da articulação dialética entre uma narração distante, objetiva, e as imagens extremamente vívidas de pessoas e espaços que, de um jeito ou de outro, estão em conformidade com os atentados ocorridos. Adachi busca uma não-investigação dos fatos, das motivações ou das influências; concentra-se em simplesmente formular cinematograficamente uma narrativa que torna intrínseco o indivíduo e o coletivo, que mostre ambos como confluentes de existência, mesmo que o indivíduo em questão nunca apareça em tela.

Se temos a informação de que aqueles espaços se relacionaram à vida de um indivíduo assassino, um homem que quebrou o mais básico código da vida em sociedade, todos esses lugares são enquadrados como sendo imagens negadas pela entidade que percorre o filme, que faz com que o filme exista. O atirador existe como entidade de negação em cada imagem, um protagonista invisível. Seja uma imagem do pôr do sol ou de uma marcha militarista, o atirador está presente como contrário absoluto ao que está sendo filmado. Ele é o indivíduo que nega o código, que decidiu, de seu jeito, estabelecer um julgamento próprio de certo e errado, de vida e morte. Ele é um revoltado, quaisquer que sejam suas reais intenções.

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Wakamatsu havia feito algum dinheiro com uma produção no início dos anos 70 e resolveu, junto com Adachi, usar esse dinheiro para filmar em outro país. Acabaram em Beirute, onde filmaram a peça de propaganda terrorista de esquerda Red Army/PFLP- Declaration of World War (1971). Mesmo que seja um projeto propagandístico, ele está em total conformidade com a filmografia da dupla: Red Army é uma declaração de guerra contra o imperialismo, que incentiva meios diretos e objetivos de ação e violência. Como uma voz explica nos momentos iniciais, “as cicatrizes deixadas no poder por nossas ações são a melhor peça de propaganda”. O filme nega o uso de imagens de arquivo, mesmo quando surgem imagens gravadas de noticiários ou qualquer outro meio, elas são vistas através de telas de TV. A câmera se aproxima dos espaços ocupados por guerrilheiros palestinos, de sua rotina de treinamento e seus hábitos de estudo e vivência. Interessa, para Wakamatsu e Adachi, acima de tudo, como aquelas pessoas se relacionam com sua ideologia através da produção de imagens terroristas (a explosão de um avião, uma bomba jogada em território inimigo) e do seu modo de operação discursivo. As imagens finais são compostas simplesmente por palavras como “guerra”, “anti-imperialismo”, “bala”; uma espécie de articulação visual crua de um discurso que prega o ato e o dever de cada soldado na guerra contra um inimigo gigantesco.

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O último grande projeto que uniu Wakamatsu e Adachi, antes que este se dedicasse totalmente à vida de guerrilha comunista que acarretou em sua prisão, foi o longa Ectasy of the Angels (1972). O filme é quase uma apropriação dos típicos filmes de Yakuza para o contexto de facções terroristas anárquicas, com direito a mulheres fatais, cantores de bares, chefões e capangas malvados. Wakamatsu coloca a premissa em um embate de paradoxos, pois enquanto acompanhamos os subalternos de uma facção terrorista explodindo departamentos policiais e atentando contra o sistema hierárquico social vigente, acompanhamos os conflitos de hierarquia que ocorrem dentro da própria organização política. Se, antes, em filmes como Sex Jack e Sensual Game, os grupos terroristas eram simplesmente uma união estabelecida entre jovens, em Ectasy ele existe como perpetuação de todo o sistema que combatem. São traídos e amaldiçoados pela crença no líder e pela fuga do meio em que estão.

Talvez o grande fator que aproxime toda a revolta que Wakamatsu e Adachi registraram e sentiram seja essa contradição da existência do revoltoso. Esses personagens não negam qualquer sistema, qualquer código, eles simplesmente desejam um código que vai violentamente contra o estado atual. Um reflexo tanto da visão de mundo dos dois, que rejeita o poder pela tentativa de um poder próprio, que rejeita o estúdio, os festivais e a crítica, quanto de sua concretização cinematográfica em filmes tão precisos, quase exatos. Poucos cineastas tiveram tanto controle de cena ao filmar as maiores desordens, os maiores gestos de desestruturação da moralidade e do estado político,  ainda mantendo-se fieis a um processo de produção que reverbere esses mesmos ideais.

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O final de Ectasy of the Angels guarda um dos momentos mais especiais de toda a filmografia dos cineastas, certamente em conformidade com seus princípios de sempre. Após uma série de explosões e pequenos atentados, filmados em momentos de absoluto frenesi formal – a câmera de Wakamatsu talvez nunca tenha antes sido tão volátil e tão apta ao caos –, acompanhamos o protagonista abandonando sua vida atual de ação política dentro do sistema de facção, seguindo solitário. Nos segundos finais, esse protagonista, um terrorista que acabou cego após um atentado falho (outra imagem literal poderosíssima que Wakamatsu e Adachi entregam), caminha para fora do quadro enquanto os créditos sobem. Apático, carregado de bombas, se mistura à multidão até que não consigamos mais diferenciá-lo de qualquer outro. O indivíduo retorna ao coletivo, tudo se torna uma coisa só. A aceitação de seu estado de existência como eterno revoltoso trai a revolta original, mas sem deixar também de tornar-se uma outra.

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À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt

Por João Pedro Faro

“Seria esse o objetivo do armagedom? Terminar com ambiguidades, acabar com qualquer dúvida.”

Ruído Branco, de Don Dellilo (trecho).

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Durante décadas, houve incerteza sobre qual seria a real conclusão da sísmica cena final de A morte num beijo (1955, Robert Aldrich). Uma das versões, a mais circulada, encerra o filme com o casal Ralph Meeker e Maximine Cooper presos na casa de praia onde uma bomba atômica acaba de ser acionada. A casa explode e o letreiro “The End” surge por cima da catástrofe nuclear. Uma segunda versão, redescoberta tardiamente, mostra Meeker e Cooper conseguindo fugir de dentro do local e assistindo à explosão caídos na areia. Os dois se beijam e o “The End” aparece na tela em um desfecho menos abrupto. Porém, a real diferença entre os dois finais não está entre a vida e a morte dos protagonistas. Afinal, a bomba atômica explodiu, o apocalipse é iminente e acontece em ambas as versões. Os amantes vão morrer de qualquer jeito. O que muda no segundo final é que Aldrich permite ao casal um último beijo desesperado antes do fim do mundo.

Miracle Mile (1988, Steve De Jarnatt) funciona como uma expansão do que foi proposto por Aldrich 30 anos antes: a iminência da fatalidade em uma última chance de entrega ao outro. O romance de paranoia nuclear que acompanha Harry (Anthony Edwards) noite adentro, tentando fugir com sua recém-conhecida amada Julie (Mare Winnigham) nos 70 minutos restantes antes da chegada dos mísseis soviéticos que apagarão Los Angeles do mapa, torna um ideal típico de paixão perfeita em um inevitável refúgio por uma morte menos solitária.

Em seu monólogo inicial, Harry esclarece que passou toda sua vida atrás de alguém como Julie. É um discurso de sentimentos fatalistas, da certeza de que encontrou uma companheira ideal. O que funciona, em um primeiro momento, como uma banalidade sentimental que preza pela estabilidade dos desejos, retorna posteriormente como a totalidade das impressões de um indivíduo que vê o fim da própria vida. Harry nunca desiste de tentar achar um meio de sair da cidade com Julie antes da chegada do míssil, mas a cada tentativa tudo parece estar mais próximo de acabar. É desse efeito de exaustão, de sobrevivência falida, que o romance vivido pelo casal vai se concretizando do jeito mais essencial: através da desesperança de que a vida possa continuar e sua intrínseca energia para consumir tudo que resta, no tempo que resta.

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Existe uma sensação totalizadora em Miracle Mile quando Jarnatt apresenta o último momento da vida na terra como um filme que corre em círculos. Harry passa grande parte da projeção perseguindo objetivos mínimos que acredita que possam salvá-los, sendo essa busca incessante por salvação cada vez mais desacreditada. Ele nem parece conseguir sair do mesmo quarteirão durante todo o tempo. Portanto, Miracle Mile acaba sendo a mais enérgica obra sobre melancolia de sua geração – tudo parece tão gritante, tão histérico e, ao mesmo tempo, tão inútil e tão impossível. Essa sensação culmina na sequência mais destrutiva do longa: Harry, descendo pelos esgotos e saindo pelo bueiro, sobe em cima de um carro em uma avenida, podendo ver as consequências totais que o anúncio televisivo do apocalipse trouxe à população. Carros se acumulam em um trânsito inconcebível, não sobra espaço no asfalto, tomado tanto pelos automóveis empilhados quanto por corpos que se esbarram, correm e gritam. Casais fazem sexo em frente às lojas, saqueadas e destruídas por uma multidão sem propósito de existência além do consumo final de tudo aquilo que está em sua frente. O fim do mundo não é triste, é apenas excessivo.

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Essa sequência pode ser também considerada a única resposta no cinema americano ao trânsito de Week-End à Francesa (1967, Jean-Luc Godard). Enquanto o armagedom godardiano é repleto de tédio, do esvaziamento intelectual na existência francesa, o grande apocalipse americano é constituído pela inexistência de limites entre o consumidor e o consumo, tudo em tela se devora, tudo em tela precisa ser associado, tomado para o indivíduo antes que não exista mais o que consumir ou quem consuma. Enquanto os burgueses de Godard definham até serem canibalizados pelos mais jovens, os personagens de Miracle Mile aproveitam o tempo que sobra para se comerem. Não à toa, o trânsito apocalíptico de Week-End acontece em uma sequência de 8 minutos, sem corte, enquanto o de Miracle Mile pertence a um plano de pouco mais de 30 segundos.

Nada tão certeiro quanto o responsável por um longa tão definidor ser Jarnatt, um diretor sem carreira, autor de uma só obra, que atualmente vive em sua casa no interior, ao lado de um bunker que ele mesmo construiu. Miracle Mile parece um expurgo de alguém sem muito mais a dizer, que, assim como seus personagens, apenas pôde aproveitar o pouco que tinha em mãos. Segundo o próprio Jarnatt, toda a ideia surgiu a partir de paranoias próprias sobre o seu estado presente, portanto é mais do que justo que um filme tão fechado em si mesmo possa querer ser tão totalizador sobre o estado de espírito de um humano em completo desespero com o tempo em que vive.

O anseio de Jarnatt por temas e ideias maiores do que o próprio filme (difícil pensar outra coisa de um longa que abre com uma narração de museu sobre o início da vida na terra) funciona pelo afunilamento, narrativo e visual, que Jarnatt atinge ao focar no casal de protagonistas. Enquanto tudo se encaixa para que a câmera só consiga enquadrar o rosto de Harry e Julie se encarando em desespero, recorda-se o aspecto clássico do romance de acaso que inicia a jornada dos dois. Nos minutos finais, que acompanham os amantes prestes a morrer, tão próximos que parecem um só, a carga de um universo gigantesco e caótico, exterior aos dois, mostra-se essencial para que haja a potência nos últimos close-ups do beijo antes da morte; justamente porque faz tudo parecer tão pequeno diante da necessidade daqueles rostos em encontrar-se fisicamente até os limites do próprio corpo. Não há como ficar sozinho, não há como não querer ao outro quando tudo está para sumir.

A única forma que Jarnatt encontra para que qualquer ideal romântico exista naquele espaço e naquele tempo, do consumo banalizado como único motivo de existência, é que ele aconteça pelos meios mais primitivos da necessidade de se ter alguém próximo enquanto aguarda o juízo final. Harry e Julie são apresentados como o último casal da humanidade, unindo-se cada vez mais enquanto chega o fim do mundo. Simplesmente porque não resta fuga, não resta sobrevivência, resta apenas o que está ao seu alcance. No caso, resta a Harry estar com Julie, e resta à Julie estar com Harry. São pessoas com sentimentos, fruto de um desespero, como quaisquer outras, porém contempladas pela troca genuína de necessidades mútuas enquanto afundam para tornarem-se fósseis. O acaso do encontro perfeito só é possível às vésperas do colapso da terra, e só é completo quando tudo acaba.

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O mundo é o culpado: O oficial e o espião (Roman Polanski, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não há mediações possíveis na cena que abre O oficial e o espião (2019, Roman Polanski). Um letreiro avisa que todos os personagens que veremos foram pessoas reais, seguindo para uma sequência de enquadramentos rígidos da condenação e humilhação pública do jovem militar franco-judeu Dreyfus (Louis Garrel). A praça em que ocorre a situação está dominada por fardados em formação perfeita e cercada por um cenário de CGI da Paris de 1895. Direciona-se, portanto, sem qualquer termo inacabado, o conto de desconforto, injustiça, perseguição e  realidade fabricada dirigido pelo criminoso convicto vencedor do César 2020 de melhor direção.

Através da narrativa envolta nos esforços do investigador Picquart (Jean Dujardin) para provar a inocência de Dreyfus em sua injusta condenação por espionagem, Polanski cria um “thriller de rotina” mais interessado nas implicações visuais do ambiente em que se insere e nos personagens que o formam. Grande parte da duração do filme é construída por transições entre cabines, quartos, escritórios e quartéis frequentados por Picquart, com o suspense da investigação surgindo sempre pela exploração desses locais tão marcados por acessos difíceis, gavetas trancadas, arquivos perdidos e dominações hierárquicas militaristas que impedem penetrações mais incisivas por seus segredos. Predomina a agonia do impossível, a distância entre um homem e um sistema estruturado, colossal, que permite apenas brechas do que esconde de mais tenebroso.

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Espaços em que a sordidez é controlada por convenções ou imposições sociais e políticas sempre estiveram presentes no cinema de Polanski. Em O Oficial e o Espião, esse controle é assumido como mote temático e visual de toda a sua ambientação. Polanski filma grandes salas escuras em planos que não passam do enquadramento médio dos personagens, valorizando imagens aproximadas que potencializam o efeito de intransigência do ambiente militar. Assim, não importa quantos segredos sejam descobertos ou quantas polêmicas sejam provocadas entorno do caso Dreyfus, o que permanece é um pessimismo vigente em desacreditar na possibilidade de sucesso no enfrentamento entre o indivíduo e o sistema. Um estado de vigia também é constante, a partir do momento em que a instituição é questionada, todos os arredores parecem ir se fechando ainda mais. Estamos acompanhando uma construção de universo baseada em regras muito próprias de postura e comunicação, desconjuntada em sair de qualquer eixo pré-formulado. A construção da rigidez do espaço serve como fonte de um “medo do autoritário”, instaurado quando a rotina é quebrada pelo incomum questionamento.

Picquart é um personagem em revolta, porém interrompido em seu ultraje pela manutenção da formalidade militar e pelas posturas obrigatórias do cargo que exerce no espaço em que ocupa. Já os algozes, o grupo da alta cúpula do exército que condena um inocente, são caracterizados pela vilania de suas ações frontalmente impostas e inquestionáveis, fortalezas humanas que protegem princípios tortos carregados por noções de patriotismo que Polanski rejeita. São, em sua maioria, figuras caquéticas, decompondo-se por trás de uniformes intocados, fisicamente rejeitáveis, enquadradas pelo contraponto vívido do rosto de Picquart. Nada é tão claro quanto a cena em que o protagonista visita um antigo superior, enfermo e apodrecido em sua cama, que ainda reverbera com dificuldade um discurso contra estrangeiros: “Não reconheço mais a França”, diz.

O poder vigente é tratado como detentor de tradições rejeitáveis, injustas pela própria natureza, propensas a condenar qualquer um que esteja beirando os limites que impõe politicamente. A grande virada rítmica do longa ocorre após Picquart declarar-se totalmente contra as decisões de seus superiores, desfazendo-se da própria honra que existia enquanto aceitava as barreiras de seu cargo. Polanski permite a idealização de um possível herói justo, de um personagem disposto a desacreditar completamente da instituição a qual dedicou sua vida por perceber algo que desmonta suas crenças. O ideal do francês tipicamente moderno, o anti-idealista nato. Porém, ao mesmo tempo, não permite que as forças da tradição sejam facilmente instabilizadas. O artigo que Èmile Zola escreve sobre o caso Dreyfus, “J´accuse!”, entra como o motor subversivo mais explosivo da narrativa. Uma possibilidade de acusação e enfrentamento direto, porém reprimido e insuficiente em níveis mais gerais. O oficial e o Espião abraça o fatalismo da realidade que propõe, enxerga um poder inalcançável com rancor, busca imaginá-lo em sua sordidez institucionalizada e apontar a revolta, mas nunca acredita que seja passível de uma queda total movimentada pela exposição de suas tripas.

Parte dessa exposição contida, que vai formando-se de documento revelado em documento revelado, apoia o tom do filme que varia do escárnio ao temor. Os superiores de Picquart aparecem, em um primeiro momento, como clara ameaça, vestidos em uniformes impenetráveis e posturas estáveis. No decorrer das tribulações que abrem portas nunca antes abertas, nos aproximamos de humanos mais reconhecíveis e inevitavelmente mais passíveis de exporem pontos de fraqueza. Outra cena que explora a fisicalidade dessas figuras: Picquart é desafiado para um duelo de espadas contra um superior que ajudou a condenar Dreyfus. Estão sem uniforme. Depois de poucos minutos, Picquart fere o adversário no braço. Ferido, ele tenta buscar a espada do chão com o braço perfurado, tornando-se despido de qualquer honra, sendo apenas uma figura tosca tentando se apoiar em um poder armado que não consegue mais empunhar. O poder pode não ser derrubado, mas não quer dizer que esteja a salvo da humilhação proporcionada pela verdade, voltada contra todos os mentirosos.

As noções de verdade e mentira estão apoiadas, dentro da obra, em sua noção de uma sociedade em decadência moral. Não há golpe concretizado, mas há a aparição de uma noção de que alguns traços costumeiramente aceitos não passam de absurdos. O fator mais central, o ódio declarado contra os judeus, em um primeiro momento tratado como costume, sofre um tratamento quase anacrônico no miolo do filme. Picquart, antes dotado de um antissemitismo prosaico, deixa de falar qualquer palavra contra os judeus em dado momento de sua imersão no caso Dreyfus. O que é opressor, o que é falso e é dado como verdadeiro pelo interesse de comandantes caquéticos, torna-se cada vez mais um terror esclarecido e as verdades absolutas são a justificativa de qualquer perseguição que possa ocorrer. A insurreição torna-se obrigatória a favor da justiça.

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Polanski fomenta um ideal de culpa generalizada em todos os cercamentos que condenam Dreyfus. Filma uma França antissemita, tradicionalista, de um nacionalismo autoritário, contra qualquer fator externo. Portanto, a partir de um grupo que defende Dreyfus sempre tratado como uma minoria quase milagrosa, fortalece-se a concepção de que a injustiça contra um oprimido não é somente inevitável como também incentivada pelo poder. A instituição militar é retratada quase como comandante de toda a nação, O oficial e o Espião é tão firme em representar o alcance íntimo de órgãos de inteligência do exército e seus mais poderosos membros que surgem como o contorno oficial do universo retratado. Os rumos do mundo pertencem aos fardados, suas armas e bigodes, e Polanski é incansável em retratar todo o terror e todo o ridículo dessa realidade.

 

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Eu ainda acredito em seus olhos: Joias Brutas

Por João Pedro Faro

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(…) que apagaram em imensos cinemas sórdidos, foram

transportados em sonhos, acordaram numa Manhattan

inesperada e se resgataram de ressacas em porões

de Tokays impiedosos e terrores de sonhos cruéis da

Terceira Avenida & cambalearam até

agências de emprego

– Allen Ginsberg, “Uivo” (trecho)

Compreender cinematograficamente a estética de determinado momento histórico é um trabalho ingrato. Ao mesmo tempo que é possível se render a caricaturas reconhecíveis e trejeitos visuais passados, também é possível complexificar os motores, personagens, consequências e atributos da estética histórica, caso bem trabalhada. Não à toa, Joias Brutas (2019, Josh e Benny Safdie) é um grande exemplo de filme histórico: passado em 2012, criando cinema entorno da enervante temporada dos Celtics com Kevin Garnett, o filme compreende cultura, consumo e história como possibilitadores diretos da formação de uma imagem.

Howie Bling (Adam Sandler), uma espécie de “agente do caos de si mesmo”, funciona como centro de capacitação dos fluxos sonoros e estéticos que cercam qualquer enquadramento de Joias Brutas. Em outras palavras, Howie é um protagonista completo, sendo todo o filme moldado entorno de sua presença e de suas necessidades. Em seu percurso por apostas arriscadas que afundam o personagem em um caos incontrolável pela cidade de Nova York, o que fica marcado pelos Safdie é a acumulação de informações que formam o cosmo do personagem.

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Existem dois fatores principais na grandeza do personagem Howie. O primeiro está diretamente ligado ao que Joias Brutas compreende como “cultura”: um balanço entre a tradição e a tendência. Howie e seu mundo de venda de joias, apostas e barganhas é apresentado como parte da comunidade judaica novaiorquina. Nesse contexto, carrega inevitavelmente o histórico milenar do judaísmo e de seu povo, além de seu espaço dentro da própria América, seu passado de imigração e sua conquista de poder financeiro e político dentro desse ambiente junto com a atualização de seus conflitos sociais e econômicos. O protagonista de Joias Brutas se veste com brilhantes e se afunda em seu próprio excesso de possibilidades financeiras, sua má relação com a própria história pelo sincretismo impossível entre a religião do espírito e a do capital (expostos no desconforto da cena do jantar e o desastre de sua jornada com a joia que importa de outros judeus). Portanto, a cultura do consumo está em colisão com as antigas organizações sociais de uma comunidade, e Howie é uma síntese desse conflito que desestabiliza todo o espaço em que pertence. Nada é o bastante, sua nova regência cultural é pela exploração dos limites de seu consumo.

Um segundo fator que potencializa o protagonista parte do seu intérprete. Nada diz mais sobre Adam Sandler do que seu papel “oscar baiting” ser nada mais do que uma repetição de seu típico personagem manchild recontextualizado para uma história que foca nas consequências de seu comportamento. Sandler é o mesmo paizão de Esposa de Mentirinha (2011) ou de Gente Grande (2012), o homem que se entrega aos desejos juvenis voltados ao próprio egocentrismo. E seu tom é o mesmo durante todo o filme: não há grandes explosões emocionais ou momentos que só serviriam para demonstrar uma “capacidade escondida” do ator. Sandler é o que é, é um comediante que compreende um certo tipo de interpretação e só precisa de justificativas para fazer valer o esforço de sua presença. Joias Brutas enquadra Sandler até o limite de sua persona, testa todas as possibilidades que esse tipo de interpretação pode oferecer ao cinema de inquietação que os Safdie buscam. Para isso lhe foi entregue um personagem como Howie, e certamente faz justiça ao ator que pertence.

Sandler constrói, em sua postura de imaturidade, um personagem que acredita no que faz o tempo inteiro. É isso torna sua persona genuína. Ele aposta em negócios arriscados pelo vício e pela grandiloquência, mas nunca deixa de crer que seus caminhos são os melhores possíveis para seu destino. Isso está diretamente ligado com o que resta de sua tradição espiritual, do senso da fé por um futuro melhor para si mesmo. Isso é base de sua vivência e também de sua danação, é um humano feito para colapsar entregue em uma performance que mantém isso no rosto durante toda a projeção.

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O cinema de inquietação dos Safdie é o produto final das imagens que criam. Howie é enquadrado dentre o brilho dos ambientes que transita, de flares das joias até telinhas de celular, e as pessoas que o cercam, de agiotas violentos até ex-esposas. Um acúmulo de figurações visuais, energizando um sentimento de excesso que nunca deixa de cansar e testar suas bordas. Um exemplo é a sequência da boate: após uma briga com sua amante Julia (Julia Fox), decupada em planos fechadíssimos e escuros, Howie abandona a garota, que sai andando sozinha. Em um dos poucos momentos do filme sem o protagonista, Julia caminha pela fila da boate, troca xingamentos com uma outra mulher que permanece no extracampo e segue a rua olhando para o chão, em silêncio. Poderia parecer um breve momento de descanso dentro da narrativa intrincada pela correria, mas é apenas um acúmulo de amargura que acompanha a personagem, mesmo que longe de Howie, o centro dos conflitos.

 Joias Brutas está sempre cercado de problemas a serem resolvidos e pendências amontoadas, ninguém que está sendo filmado está livre desse cercamento asfixiante. Diversas vezes, os Safdie aproveitam o tamanho de seu scope  para colocar o desfoque da imagem no centro da ação de um quadro, gerando a instabilidade necessária para seus interesses de desestabilização. Se não estão à beira do desfoque, os personagens estão enquadrados por trás de vidros, entre lentes de óculos ou por reflexos, gerando sempre a sensação de que cada pessoa em cada plano está a beira de se desfazer por meio da multiplicação, distorção ou má-resolução de suas próprias imagens. Os olhos sempre estão guiados, o eixo entre os cortes está constantemente sendo quebrado, nada parece juntar em uma narrativa impulsionada pela fuga.

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Parte dessa inquietação gerada em Joias Brutas surge também da percepção de seus personagens como frações de algo maior. Howie é apenas uma peça de uma movimentação em cadeia do sistema de consumo, começando do nível mais baixo de exploração com os mineiros etiópes e atingindo o consumidor e astro mundial na figura de Kevin Garnett. Nesse contexto, Howie existe como um rosto esquecido que esbarra com consequências maiores. Ele não é uma celebridade, mas circunda seus meios, ajuda a criar suas imagens de riqueza, revende seus brilhantes. No caso da narrativa de Joias Brutas, Garnett precisa de uma joia cedida por Howie que lhe oferece capacidades especiais místicas que ajudarão no resultado de uma partida aguardada. É a partir desse momento que a realidade do anônimo e a realidade do sujeito histórico se intervém, pois o segundo passa a depender do primeiro. De alguma forma bizarra e enervante, Howie, um anônimo à história, está como parte da resolução final de um contexto maior, portanto suas ações se tornam ainda mais inconsequentes e inquietantes quando sentimos que o resultado final delas pode estar sendo, por exemplo, televisionado ao mundo inteiro em uma partida decisiva da NBA. Howie não é uma estrela, é um anônimo que vive por trás do luxo da história, um personagem secundário dos protagonistas da vida real que, por ironia do destino, pode estar interferindo na realidade exposta oficialmente.

Na obsessão do jogador de basquete pela joia-mcguffin, também ressurge o conflito entre o consumo e sua personalização dentro da modernidade. Garnett, ao observar a joia importada por Howie de mineiradores judeus negros, encontra um universo particular que capacita tanto sua trajetória pessoal enquanto astro negro quanto um estado de exploração escravagista sofrido pelos negros que mineiraram aquela joia. Isso é mostrado através de flashes de imagens que correm por alguns segundos de tela enquanto Garnett está hipnotizado pela joia, e automaticamente após essa percepção de um produto de consumo que comunica diretamente com seu estado de existência no mundo, onde também se percebe como parte de algo ainda maior que seu próprio estrelato. Primeiramente, Howie contesta a decisão de Garnett levar a joia, sendo retrucado pelo jogador: “Por que você me mostraria algo que eu não posso ter?”. O consumo e a existência, portanto, habitam um mesmo estado de essencialidade aos personagens-chave do filme.

É muito característico a um filme como Joias Brutas poder ser intitulado como o primeiro filme de época situado nos anos 2010, afinal é o produto audiovisual de um mundo em aceleração. Atualmente, apenas ter personagens usando um modelo “antigo” de Iphone, usando o Instagram em sua interface passada e falando sobre The Weeknd como um vindouro sucesso já garantem um tom de antiguidade. Escolher criar a ficção a partir de um momento recente de nossa história, ainda mais de um causo tão específico quanto três partidas da NBA, carrega em si todo o peso de um aceleracionismo vigente.

O que existe como histórico em Joias Brutas é o reconhecimento de passagens aparentemente irrelevantes ao processo “oficial” do mundo contemporâneo como carregado de uma série de imagéticas próprias, como um clima de início de década e de correria que perpassa seus momentos de cultura popular (o esporte, as celebridades, a exposição virtual), através de uma série de personagens que habitam os bastidores de uma cultura de consumo imediato cada vez mais veloz, retroalimentada e exacerbada pela acumulação. A história dos anos 2010 já começa a partir dessa velocidade, e nada mais justo que um filme de 2019 retorne à 2012 para reaver o que já é concretizado como intrínseco à década que conhecemos. No caso, flashes de celular, excesso de informações e um sentimento de esgotamento agoniante. Só podemos parar para descansar no anonimato post-mortem, lá o universo nos aguarda. Basta acreditar.

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Entrevista: Affonso Uchôa

Por João Pedro Faro

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Affonso Uchôa

O cineasta mineiro Affonso Uchôa teve seu nome nos créditos de três produções selecionadas na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O média metragem Sete Anos em Maio (2019), em que assina como diretor e roteirista, e os longas Sequizágua (2020, Maurício Rezende) e Mascarados (2020, Henrique e Marcela Borela) como roteirista e montador, respectivamente. A entrevista foi feita após a exibição de Sete Anos em Maio. A breve conversa trouxe à tona perspectivas do atual cenário de um cinema nacional em que os filmes citados anteriormente se encaixam e se modelam, seus limites e suas expansões.

O Sete Anos em Maio, assim como outros filmes que você participa e que estão na Mostra, lidam de alguma forma com o gênero da ficção documental. Quais são os limites que você percebe, em concepção, desse tipo de cinema no Brasil?

Ainda está para a gente entender melhor, no cinema brasileiro, essas nuances entre ficção e documental, existem muitas formas de assimilar isso. Como exemplos, o Sequizágua e o Sete Anos em Maio carregam muita diferença entre as relações e as formas desse trânsito. É importante dar uma certa contextualização também desse gênero como um caminho do cinema contemporâneo. O que mais me interessa nisso, o que me estimula e o que, de certa forma, justificou meu cinema a trabalhar com isso nos meus filmes é uma potência de escrita e de criação cinematográfica.

De ficção, então?

Sim, também. Porque o trabalho com a realidade é uma energização desse fator ficcional, é uma percepção dessa realidade. Não no sentido tradicional de pesquisa e estudo de campo, não há instrumentalidade. O que acontece no cinema contemporâneo, dos anos 2000 pra cá, é que a relação entre quem filma e quem é filmado, a presença física na imagem em si, faz com que a presença da realidade na imagem seja mais ativa. Faz com que a realidade funcione menos um depositório de imagens, mas que seja parte da dialética do processo fílmico e das suas formas. É o trabalho com essa presença que difere o Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Vitalina Varela) do Apichatpong (Tio Boonmee, Mal dos Trópicos), como exemplos. Mas de alguma maneira ainda há algo que une dois cineastas como esses, um “estado do tempo” que perpassa o cinema contemporâneo como um novo estatuto da realidade. O estado que energiza e alimenta o ficcional. Nos meus trabalhos, prefiro pensar que a fatura final é sempre ficcional mesmo que o ponto de partida seja, superficialmente, documental. O que interessa é pensar como o cinema vai operar no contato com a realidade.Sobre os limites disso atualmente, como todo trabalho estético, a gente vive um esgotamento dessas formas. No sentido de que o cinema e a realidade demandam outras coisas que não apenas essa dicotomia conhecida. Nossa resposta, como cineasta e autores, deve ser pensar no que deve existir de novo. A ficção documental, especialmente a brasileira, está partindo de uma espécie de “academicismo do não-academicismo”. Um protótipo. O ato de jogar-se na realidade parte de inseguranças, e quando a insegurança parece muito disfarçada, como é o caso desses protótipos, o meio começa a ficar meio problemático. Há uma gama muito gigantesca de criação de imagens no cinema. Quando isso começa a ficar muito hegemônico, nós começamos a sentir falta de outras formulações.

Até por essa quantidade de imagens que temos hoje, o caminho para esse cinema, que parte de uma realidade mais direta para procurar a ficção, está próximo de uma encenação que poderíamos chamar de mais “clássica”? Como o próprio Pedro Costa, que nega o documental e se espelha em concepções por vezes clássicas de encenação. Existe um ciclo escondido nisso?

Não sei se é tão geral assim. Acho que existem formas muito diferentes de pensar nisso. O cinema do Teddy Williams (O Auge do Humano), por exemplo, já aponta outro tipo de fluxo de imagem e de encadeamento com o tempo. O que está no clássico é a forma do cinema de encontrar-se com o mundo. Não é nada surpreendente ver o Costa tendo esse tipo de posicionamento. O cinema clássico é uma escola, uma antecâmara do imaginário cinematográfico que acaba retornando em qualquer filme. Mas não diria que é algo geral quando se trata desse certo “ciclo”. Existem trabalhos indo nessa direção, mas acho que o cinema hoje é muito espalhado, muito multifacetado. E ainda existe esse cinema clássico, o clássico de ficção, ele sobrevive em poder e força enquanto arte que resiste ao tempo.

Pensando no Sete Anos em Maio, um filme de poucos planos, que conta uma história através de relato direto por boa parte de sua duração, até uma cena final que é totalmente encenada, existe um interesse da narrativa feita pelo mínimo que caminha para uma encenação mais tradicional? Isso tudo feito com o recursos igualmente mínimos?

O que penso, que dá para fazer conexão com um pensamento mais amplo, é que a economia de meios em linguagem e produção tem dois lados, o econômico e o artístico. O balanço disso é inerente ao cinema, que é uma arte industrial feita de muitos instrumentos e de muita equiparação. No caso do Sete Anos em Maio, é um filme pequeno e barato que só foi feito dessa forma porque o que é dito pelo filme pode ser feito de forma precisa, econômica.

Sete Anos em Maio
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Isso também parte de uma noção contemporânea imediatista? No sentido de que é feito a partir do possível, da realidade sendo o que está próximo do que pode ser realizado e que tem uma necessidade de que elas sejam realizadas

No nível do anseio, sim. O anseio de que aquelas imagens existam e sejam vistas. Não sei se imediato, mas urgente. E isso também tem a ver com esquema de produção. É possível fazer um filme como Sete Anos sem um circo de parafernálias cinematográficas. Para que aconteça, para que seja concretizado, você não precisa de um arsenal tão completo, não precisa de toda uma indústria. Acho que são duas recusas que acontecem aí, a recusa ao tradicional do cinema industrial, contra o regime de produção, e a recusa a relação com as próprias necessidades tradicionais do cinema, e a favor de um certo artesanato.

E dá para enxergar esses recursos mais diretos como uma herança dada ao ambiente que você filma? No caso, a uma periferia que está em tela, essa experiência com o artesanato, existe uma possibilidade aí?

Eu não lido com expectativas. Também não lido com a ideia de que a minha produção possa gerar outras coisas. O que fica, para mim, é que existe potencial e desejo para a instrumentalização cinematográfica, enquanto trabalho,das pessoas da periferia para que elas se equipassem para a própria produção fílmica. E saber que essas pessoas iriam para caminhos muito diferentes sem sua produção, como qualquer grupo de pessoas, vai existir a diferença. A realização parte de uma questão material mesmo, de possibilidade. Acho que meus filmes abrem algumas janelas, mostra que é fazer cinema é real, de alguma forma. Mas ainda é pouco. Para abrir como possibilidade real de uma periferia fazer seus filmes, outros filmes, o trabalho deve ser governamental. E o capital não vai trazer isso, não é um mercado que vai atrás dessa produção. São necessidades mais fortes, necessidades de atuação do poder público. O que vejo a partir de quem trabalha nos filmes é um orgulho da própria participação, eles são vistos em um lugar e podem se perceber como atores ou roteiristas, e estão presentes nisso. Eu percebo esse orgulho pelo trabalho feito e um orgulho por trabalhar. Até porque meus filmes são trabalhos em que eles não vão apenas realizar tarefas, vão vivenciar o processo fílmico e criar dentro daquilo. Sem querer tirar qualquer ilusão de que isso torne eles absolutamente ativos, não é assim, existe uma diferença de base entre meu trabalho e o deles porque continuo sendo o diretor dos filmes. Mas é possível uma criação, uma intervenção. E há gosto nesse lugar e nesse trabalho. É a minha percepção.

Não assistir a esse tipo de trabalho de quem é filmado em periferias, dentro do cinema nacional, foi o que, também, impulsionava você a querer assistir algo que ainda não existia?

Acho que os filmes que eu fiz partem de meu próprio anseio em ver uma periferia diferente. Não queria ver aqueles corpos moldados aos modelos de ficção preconcebidos, um molde conforme feito por mãos instrumentais. O trabalho poderia estar sendo tecnicamente competente, mas sem vida, um desperdícios de riquezas. Ver esse tipo de coisa, para mim, era um achatamento de experiências. Não vejo porque alguém iria querer fazer filmes que corroborassem com as opiniões que já existiam sobre determinado lugar, como o ambiente periférico. Faltava jornada por lugares ainda desconhecidos pelo cinema, uma jornada em descobrir outras potencialidades. E meus filmes respondiam, para mim, a essa falta.

E o que ainda falta ver no cinema brasileiro que, hoje, você ainda não assiste? O que você gostaria de ver?

Eu sinto que o cinema brasileiro, atualmente, está num caminho de adequação ao mercado de arte internacional. A nossa tradição era de um experimentalismo radical, e acho que sinto falta de ver esse radicalismo. Nossa história é de cineastas que experimentaram suas linguagens até o final e, hoje, não vejo os filmes que estamos fazendo muito ligados a isso. Acho que dá para romper esse deslumbre com a inserção internacional, um cinema menos hegemônico que não queira estar estreando em Cannes. Cannes já está moldada, eles sabem o que querem e o que representam, sabem o tipo de cinema que querem. Vejo muitos cineastas fazendo uns filmes que mais parecem uma tentativa de receber carimbo para festivais como esse, para a aceitação desses meios. Falta diversidade nisso. Esse cinema, de projeção, tem que ser menos majoritário. Falta o múltiplo, que venha da origem marginal e experimental do nosso cinema, e que é o nosso cinema moderno que nos deu tanta coisa.

Estaria o cinema brasileiro condenado a discutir para sempre “o problema do cinema brasileiro”?

Sim, porque o cinema brasileiro é um problema por si só. Assim como qualquer manifestação cultural no Brasil, queé um país feito para recusar o seu próprio cinema e sua própria arte em geral. A manifestação cultural é tratada como se fosse um desvio de conduta, então continuar fazendo cinema é encarado como um problema. Ainda por cima, o que é feito é colocado de lado, e isso também é um problema. E o cinema brasileiro que é feito é feito apesar disso, mesmo sendo tratado como um problema e gerando seus próprios problemas. É uma não-subserviência. Nossa questão é perceber como a insubmissão ao poder vigente pode ser mais espalhado, algo maior, que alcance mais espaços.

Então ser um problema seria também o nosso mote principal? Nosso ponto de partida?

Acho que sim… Talvez não um ponto de partida, mas uma força. A força do cinema brasileiro é ser um problema para o país, é ser algo que o Brasil não quer. E o poder está aí para dizer que o cinema brasileiro não existe, não aconteceu, não cumpriu um papel. Ou que aconteceu, mas foi uma perda de tempo. Essa subserviência a um Brasil atrasado, extrativista, arcaico, que está na cara de quem comanda o país, é a resistência do país que rejeita seu próprio cinema. Então a força do cinema brasileiro é desagradar qualquer poder, é ser um problema.

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Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)

Por João Pedro Faro

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Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.

Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.

Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.

Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.

Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.

Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.

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Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Mascarados (Henrique e Marcela Borela, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma primeira diferenciação possível entre Mascarados, nova longa de Henrique e Marcela Borela, e outros trabalhos similares do cinema latino-americano contemporâneo, é a desritualização do trabalho. Diferente de filmes como La Libertad (2001, Lisandro Alonso), não há interesse em ritualizar o gesto do trabalhador braçal. A percepção desse fator é essencial a Mascarados: para os autores, a tradição, o rito do trabalho, não exalta o trabalhador, ela apenas valida a exploração.

O tradicional trabalho das pedreiras, típico da cidade de Pirenópolis que serve de cenário ao longa, não gera nada além de exaustão ao trabalhador explorado. Mascarados é um filme curto, mas de muitas imagens, de planos breves e estáticos que ressaltam o sentimento de apatia e marasmo vivido pelos membros da pedreira. Nesse contexto, surge a festa do Divino e seus mascarados. Os trabalhadores que querem participar da festa usando máscara continuam cerceados, sofrem a imposição de um fichamento individual, fica marcado como eles se tornam uma ameaça ao poder vigente a partir do momento em que não estão mais de uniforme. Não há festa, não há cultura que comporte um espaço para quem é condenado ao ambiente subalterno. A máscara esconde o rosto que precisa sempre ser vigiado, encarado.

O som de Mascarados também potencializa o abismo entre os planos. Uma música de Milionário e José Rico começa a tocar na rádio em um enquadramento e continua no próximo, indo do espaço caseiro para o espaço da pedreira. Uma explosão interrompe a canção, com milhares de pedregulhos caindo da montanha, marcando a chegada de mais trabalho para os pedreiros. As marretadas nas pedras são a única sintonia possibilitada. Assim, a mudança de sequências, mesmo entre cortes que fazem o tempo passar, parece contaminada por um sentimento conjunto de dominação.

É do trânsito entre esses espaços, da pedreira à casa, da casa ao festejo, que começa a emergir uma atmosfera de desconstrução das estruturas tão marcadas por uma montagem tão rígida. As máscaras usadas na festa são uma liberdade temporária, falsa, encerrada de um corte para outro que já coloca os trabalhadores novamente no ambiente de exploração. A câmera, dentro da festa, circula livremente pelos pedreiros que finalmente são vistos como algo além da força usada para aumentar as riquezas de quem os explora. E isso se encerra de um plano para o outro. O trabalho é contra a cultura, e a cultura é do domínio de quem impõe o trabalho, portanto não há como perdoar cultura alguma. Ela atrasa a revolta.

A demissão encerra a mudança de espaços, e dela surge um ultimato. Não há mais escape pelo festejo, a máscara é trocada por uma espingarda e ela movimenta todo o plano final. Entre um plano e outro reside uma sensação amplificada pela sequência das imagens, de uma certeza e uma precisão para o encaminhamento final do longa. O homem, não mais o trabalhador, atinge um estado de liberdade com a arma na mão. Atravessa um cercado, em uma imagem final sísmica de fuga. O plano se alonga pela floresta, em uma correria que vai contra todo o marasmo das imagens criadas anteriormente na obra. Não há apatia possível quando se está livre do domínio, sem as máscaras, sem as tradições, sem qualquer rito que seja. Apenas um último momento de intensidade onde o sujeito se reconhece como possibilitador da própria liberdade.

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Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2020)

Por João Pedro Faro

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Em dado momento da cerimônia de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando convocavam ao palco os apoiadores do evento, um representante da Polícia Militar foi chamado para integrar o grupo. Recebido com aplausos, o comandante fardado foi bem recebido pelo evento, sendo a PM Mineira listada como “parceira cultural” da mostra. Nos próximos dias, o que ocupou uma grande parcela das telas foram longas e curtas denunciando a ação policial, especialmente da PM. Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina, é talvez dos exemplos mais claros e diretos que expõe o terrorismo de Estado imposto pela polícia.

Sendo dos mais “tradicionais” documentários vistos na Mostra, com cabeças falantes e legendas que localizam o espectador no tempo-espaço, o longa busca centrar-se em um protagonista. Edson Francisco da Silva, figura de liderança do Movimento de Resistência Popular, é filmado entre 2012 e 2018 em suas ocupações e discursos, passando pelo golpe de 2016 até a eleição do atual presidente. De início, sua forte presença parece ser o guia narrativo do documentário, junto com o caso da remoção do grupo que ocupava o hotel Torre Palace, promovida brutalmente pela PM brasiliense em 2016. Quando o filme progride, Edson perde o lugar que havia construído no longa, com uma condução desfocada que perde-se em imagens que a cercam.

A quantidade de trabalhos documentais recentes sobre os caminhos tortuosos vividos na política dos últimos 4 anos exige que novos lançamentos criem cada vez mais personalidade. Cadê Edson?, ao mesmo tempo, carrega ideias muito próprias (estudo de protagonista, uso de imagens não registradas pela equipe) e rende-se ao “lugar comum” encontrado nesse tipo de longa. Quando se afasta do seu personagem-título, a sensação é a de que estamos vendo as mesmas imagens que vimos em todos os outros filmes que circulam pelo mesmo momento político. A divisão do verde-amarelo e do vermelho, os personagens que encaram o planalto central e as falas absurdas dos trio-elétricos direitistas são alguns exemplos que tomam tempo de tela em um filme que parecia buscar enquadrar momentos e pessoas pouco vistos em outros projetos similares.

O título acaba sofrendo da ironia da direção, pois Edson desaparece dos registros à certa altura do longa. A falta de um foco tão claro acaba com a firmeza inicial da diretora, que parece querer totalizar uma narrativa que era tão forte justamente por estar focada em um ambiente menor e mais concreto. O que há de poderoso nas imagens ao fim do longa, razoavelmente entrecortadas pela presença do protagonista, é o uso dos registros em drone feitos pela polícia em sua ação de violência contra os membros do MPR que ocupavam o Torre Palace.

Dácia parte da reapropriação das imagens policiais: o drone busca tornar heroico o ato da polícia covarde, mas suas intenções iniciais são completamente subvertidas pelo contexto apresentado. Os helicópteros, lotados de policiais armados, sobrevoam um grupo de ocupantes do MPR desarmados, tratados como criminosos de alta periculosidade. É gratificante em ser impiedoso na exposição do antagonismo policial, um maniqueísmo justo e condizente com a premissa da obra de Dácia.

Mesmo bagunçado e desfocado, Cadê Edson? é mais bruto e enervante do que a maioria dos trabalhos que circundam um atual momento político. Não há relativização possível da presença policial, registrada como assombro, como terrorismo declarado pelas próprias imagens feitas por agentes policiais em operações, apropriadas de seu discurso de origem e expostas sem o filtro tenebroso do bom-mocismo. Um trabalho de erros e acertos mas que nunca dá o pé atrás no que acredita, nunca higieniza uma realidade tão sórdida.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019)

Por João Pedro Faro

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Desde o princípio de sua imagem, o disco voador surge como interrupção de um estado de normalidade da sociedade moderna. Mesmo em uma cidade global como São Paulo, primeiro mundo do terceiro mundo, não há arquitetura mal projetada ou viaduto erguido que esteja no mesmo nível de um OVNI. Parte do que torna Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) um diferencial dentro do desgaste atual do filme-rotina ou do filme-caseiro é sua relação com o objeto voador não identificado: sua presença reafirma o ordinário.

Filmado entre 2010 e 2017, de um experimento comum de registro e encenação que se complexifica ao longo da projeção, o primeiro longa de Bruno Risas coloca sua própria família como protagonista. Não há qualquer novidade na premissa de buscar (ou melhor, observar) mise-en-scène na rotina do próprio lar, nem na inserção de elementos fantasiosos em um contexto social, é a execução que cria sua personalidade. Sendo todo o processo de filmagem, seus conflitos, distâncias e erros expostos em veia aberta, com a iminência da fantasia construída no extracampo sonoro, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu sugere renegar os próprios meios. A construção de sua dramaturgia, mostrada em tempo real por Risas, transforma a suspensão de descrença em pura descrença. Ao mostrar a briga com sua mãe por errar um dos planos, a diretora de fotografia repetindo os takes sem corte e a conversa sobre o ato de filmar como parte constante do filme, cria um estranhamento através da desimportância de uma divisão entre o registro do espontâneo e do ensaiado.

Enquanto isso, vem chegando o disco voador. O som do tremor espacial é reconhecível desde a primeira vez que surge, mas parece tão comum ao espaço caseiro paulista, entrelaçado por brigas de família e marasmo do desemprego, que a comunhão entre o elemento de ficção científica e do cinema observacional tornam-se inseparáveis. Risas filma seus parentes como a típica classe média em crise, dentre idas e vindas de dinheiro ao longo dos anos e um senso de inquietação por uma falsa estabilidade, sempre à beira de desmoronar. O espaço da casa é um ambiente alienígena por si só, e aí não se encaixa metáfora qualquer, apenas um senso de alienação por parte de um grupo de pessoas que flutuam sobre a instabilidade do espaço em que habitam, tanto em termos de classe quanto de interpessoalidade.

As conversas corriqueiras são montadas por sequências paralelas e hipnóticas, quando sons intergalácticos parecem interferir no comportamento de pessoas brutalmente comuns. Ou talvez elas estejam agindo normalmente, e talvez a normalidade seja mesmo uma inconstância de gestos que variam entre o comum e o bizarro sem que possamos perceber. A não ser que tenha alguma câmera posicionada em nossa sala de estar, uma presença ao mesmo tempo consentida e invisível, que transparece a quem assiste seus registros nossa incapacidade de permanecer comum o tempo todo. Encenações ou espontaneidades? Provavelmente temos menos controle sobre isso do que imaginamos.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu extrai uma potência quase magnética dessa ambiguidade. Dá até para dizer que o filme atinge um entretenimento muito direto na curiosidade pelo mínimo e pelo máximo, pelo mínimo em situações como uma risada estridente e esquisita no meio de um diálogo ou pelo máximo em aparições iminentes de figuras de outros planetas. Como em outros trabalhos construídos por encenações caseiras e planos, ao mesmo tempo, genuínos e calculados, esses momentos são capazes de tornar uma imagem corriqueira em uma construção até o enervante. Sendo exemplo 11×14 , de James Benning, em que um longo take de cozinha torna-se emocionante pela rápida passagem de um vulto no fundo do quadro, o filme de Risas tem total confiança no poder de ações menores transformadas em ações máximas pelo enquadramento. O contrário também acontece: situações máximas tornam-se mínimas diante de um dia a dia tão cheio de mistérios intrínsecos a sua natureza. Passar o dia inteiro esperando pelo dinheiro na conta ou pela hora do café, sem perceber as entranhezas naturais de uma rotina ensaiada. Resta aguardar por visitas interplanetárias que provem a nossa incapacidade de sair do lugar.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.

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Sequizágua (Maurício Rezende, 2020)

Por João Pedro Faro

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A distância entre a encenação e o registro documental  sempre foi muito pequena. O modelo de ficção documental, provavelmente a maior tendência dos festivais nas últimas duas décadas, nem sempre percebe que a divisão entre esses dois termos é praticamente inexistente. Com algumas imagens poderosas, Sequizágua, de Maurício Rezende, erra justamente na fragmentação típica do gênero que pertence.

Em um plano inicial preciso, um morador de uma cidade no norte de Minas Gerais explica a tragédia vivida pela intrusão do agronegócio em suas terras. O resto do longa acompanha alguns outros personagens da cidade em sua tentativa cotidiana de desviar das consequências desse terror. É possível compreender o filme em duas metades: a primeira, interessada pelo registro de imagens rotineiras, a segunda, construída em cima de encenações mais claras em que os protagonistas interagem. O desenvolvimento acontece sem que elas conversem diretamente, a divisão não mescla o potencial que cada metade apresenta. A construção de imagens fortes fica perdida nessa primeira metade (a caminhada sobre a terra seca, as crianças e os facões, a procissão) e a narrativa mais clássica da segunda metade não alcança mesmos potenciais imagéticos.

Na objetividade da estrutura, Rezende acaba passando por manias desgastadas da ficção documental. Um exemplo, que acontece lá pela metade, é a sequência de “montagem de rostos”: o filme para afim de que alguns locais, que não estão inseridos na narrativa, façam um plano estático e austero encarando a câmera diretamente. É uma mania contemporânea que perde seu potencial por desgaste, quase como se tivesse que estar lá simplesmente para cumprir uma tabela de requisitos que o gênero insiste. Estão em Sequizágua também há o plano das roupas no varal, o plano do pôr do sol e o plano close dos alunos na escola que geram a sensação de que estamos assistindo um compilado do que é mais comum de encontrar em um filme desses.

Ainda que não seja tão próprio, Sequizágua ainda alcança trechos interessantes. A sequência em que duas adolescentes buscam os irmãos caçulas, perdidos em um rio que secou, e a cena do “amigo oculto” na escola conseguem apresentar uma construção visual vista no início do longa trabalhando coletivamente com ideias próprias de relação narrativa moldadas na montagem. Débora Anjos dos Santos, protagonista desses momentos, atinge um potencial de performance que gratifica algumas passagens mais singulares à Sequizágua.

Maurício Rezende é ocasionalmente inventivo e registra um respeito louvável aos residentes do espaço em que seu filme reside. O que distancia Sequizágua de trabalhos similares mais memoráveis acaba sendo esse excesso de segurança em provocar pouquíssima novidade, dotado de uma cartilha de traços reconhecíveis a esse tipo de cinema sem trabalhar muito em cima deles. Um experimento de personagens poderosos e condução distante.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Por João Pedro Faro

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Com grandes momentos pontuais, os limites do atual cinema de afeto brasileiro estão expostos em Até o Fim, último trabalho da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Por mais que estejam lidando com quatro atrizes interessantes, interpretando quatro irmãs que se reúnem na ocasião da morte do pai, a condução não parece estar à altura de quem filma.

Arlete Dias, Jenny Muller, Wal Diaz e Maíra Azevedo carregam todo o peso do longa. Nesse Longa Jornada Noite Adentro baiano, as performances tomam conta de todo o espaço cênico e ditam os rumos narrativos da obra. Existe um vigor muito genuíno em cada uma das personagens, uma credibilidade quase imediata pelo nível de expressividade do grupo. Ainda que expressivas, nem sempre o texto (que acaba sendo incessante, com pouquíssimos momentos de imagens sem intrusão verbal) acompanha o nível dessa vividez. Uma contradição esquisita: ao mesmo tempo, os diretores parecem confiar totalmente em quem estão retratando mas também não deixam que os conflitos entre as personagens sejam expostos de maneiras menos óbvias. Muito do que é verbalizado já estava exposto em olhares, planos/contraplanos e tensões mais sutis. Especialmente a resolução entre duas personagens específicas, desenvolvida a partir do conflito de um abuso, é tratado com uma verborragia excessiva que desvaloriza a potência do tema e das atuações.

Essa desvalorização por verborragia é uma constante no filme. Os autores claramente expõem uma herança do melodrama mais clássico, com diversas tragédias entrelaçadas e simultâneas, mas sem um tratamento fílmico que as justifique. A câmera na mesa de bar repete diversos planos entrecortados, que vão de detalhes das mãos que não apresentam gestos reveladores até planos conjuntos que não conversam com o tom dos diálogos. Se o melodrama é construído, essencialmente, pelo tempo dedicado a rostos, olhares e contatos, Até o Fim acaba apressando demais seus ritmos visuais. Não que os diretores devam qualquer coisa ao clássico, muito pelo contrário, mas suas reinvenções nem sempre alcançam o potencial do drama. O conceito da execução contemporânea não monta com a tradição de seu texto, e esse conflito distancia o efeito de ambos.

Até o Fim, filme-irmão de diversos outros trabalhos da recente filmografia nacional, sofre de um mesmo problema de confundir educação sentimental com didatismo emocional. Um exemplo está em uma das irmãs do longa, uma mulher transexual. Por mais que seja muito gratificante finalmente ver uma personagem trans que não é interpretada por uma mulher cis, a atriz recebe um material que descomplexifica seus potenciais conflitos. Nada do que acontece com a personagem vai além do que esperamos desse tipo de retrato, entrando em uma espiral de repetições e explicações que são mais do que óbvias na atual produção nacional. Típica situação que entende “afeto” como simples representação, e não como aprofundamento, compreensão e imagem. As outras irmãs também passam por momentos similares, onde o que é dito parece ser o único veículo de aproximação entre autor e personagem. Ao cinema de afeto, faltam imagens verdadeiramente afetuosas, que não se apoiem quase unicamente em seus pressupostos.

O desfecho se aproxima de uma catarse coletiva que é genuína e comovente, onde as quatro atrizes finalmente entram em comunhão em tela. O momento musical é gratificante, um respiro de possibilidades entre quatro mulheres que não receberam toda a atenção cinematográfica que mereciam em boa parte da projeção. Mas há uma forte esperança nos momentos finais, uma expectativa por futuros imagéticos e sonoros mais condizentes com a grandeza de seus temas e pessoas.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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