MINHA ESCRAVA BRANCA

por João Pedro Faro

Macumba Sexual é apenas uma das oito produções creditadas ao diretor Jesús Franco em 1981. Trata-se de um filme de sexo e alucinação filmado por espanhóis nas Ilhas Canárias, ou seja, um filme desavergonhadamente colonial que vai se utilizando de suas contingências para aprofundar a superfície de seus interesses plásticos. Na historinha, a branca Lina Romay está de férias na praia com seu marido quando é atormentada por pesadelos sexuais protagonizados pela Ajita Wilson, uma espécie de dominatrix negra que busca enfeitiçar a menina e trazê-la para seu pequeno reinado de fetiches (no sentido original da palavra). Aquela tediosa vivência aristocrática e solitária é interrompida por esse pesadelo negro, levada por cânticos e tambores a um espaço alternativo ao resort fantasma. O centro do filme é a magnetização do encontro inescapável entre essas duas mulheres que é proporcionado pela macumba.

O que interessa, antes de qualquer coisa, é que seu entendimento de macumba não parece estar sendo utilizado como substituição de outro “perigo negro” que o cinema de terror utiliza mais recorrentemente, como os signos do Vodu ou de um tribalismo genérico. Até porque, com exceção do Macumba Love (1960) do Douglas Foley, é raro que o cinema de gênero reclame essa palavra para construir sua ficção. Talvez pelo orçamento apertado ou por um desejo geral do filme em reduzir todas as suas construções cênicas, a cosmovisão presente em Macumba Sexual é de um estranhamento todo próprio, pouco específico em termos etnográficos ou representativos, livre em sua religião particular que é o sexploitation.

A personagem da Ajita Wilson, chamada Princesa Obongo, media suas amarrações sexuais através de uma pequena estatueta enterrada nas areias do deserto, que por vezes pode servir como um consolo dentro de suas orgias (dotadas de uma carga espiritual intrínseca). Além disso, é pontualmente acompanhada pela bizarra figura de um frango (ou seria uma galinha?) empalhado que exibe um grande pênis em sua estrutura morta, uma das poucas figuras de fato aterrorizantes de todo o filme (junto com o recepcionista de hotel voyeur e demente interpretado, não por acaso, pelo próprio Jesús Franco). Esses dois principais fetiches exibem o desprendimento do filme com a realidade da prática espiritual e esclarecem o projeto em suas genuínas intenções fantásticas.

A aproximação cosmológica com uma macumba verdadeira talvez esteja assentada em sua imaginação cinematográfica. No caso, codificada na radiação estilística do sexploitation, que contamina qualquer fita com um espaçamento vagaroso de cenas, um tempo que se dilata sem o mínimo de preocupação, que se contenta com a visão esgarçada pela contração do exterior e pela expansão do interior…. Ou seja, um cinema do transe (entrecortado pela transa). Há algo de especial nas cenas mais banais, quando a garota branca está passeando pelo cenário paradisíaco, observando o movimento dos barcos e das ondas, andando pelo deserto ao encontro da princesa negra, sempre nesse estado de concentração que se mantém no fluxo do escopo da câmera e que movimenta os quadros em um constante direcionamento de aproximação total com os objetos filmados.

Dentro disso, temos as cenas de sexo. A nudez dos personagens é sempre explícita e frontal, o sexo não. Seja nos primeiros momentos em que Obongo toca o corpo da garota em suas visões oníricas, seja quando estão realmente transando no plano da realidade ativa, há um tipo de suspensão da pornografia que pode até ser característica do gênero erótico, mas que encontra pelo contexto uma semântica que é a da incorporação, do sexo como capacitor do transe total vivido pela branca. Submetida às vontades da princesa negra, esse sexo é filmado com uma aproximação incessante dos corpos, um borrão entre os limites das personagens que abstrai o ato carnal em um fluido de sensações internas. Obongo é quem concentra o poder, é claro, mas a integração com a branca e o nível de desejo que demonstra por ela fazem com que a submissão imposta à garota seja também uma entrega de seu corpo dominante dentro da experiência de incorporação espiritual que o sexo entre elas acaba por realizar.

Mesmo quando a princesa coloca seus dois escravos, que ela guia por coleiras, para participar do sexo, suas presenças são incorporadas como essa amálgama delirante e desestabilizadora que acaba incapacitando a jovem branca de poder ter qualquer contato com a sua percepção de mundo anterior ao aparecimento daquela mulher negra. Esses dois personagens escravos, um homem e uma mulher cuja única função fílmica é a de lamber Obongo, recebem o peso de adornarem a Ajita Wilson em um espaço de cena que é sempre reduzido, são duas figuras em um estado avançado de transe que trazem ao filme alguma recompensa imagética de horror quando tudo pende mais ao delírio do que ao medo. A descrição que a Princesa Obongo faz de si mesma para o marido da branca, pouco antes do final do filme, talvez explique bem a construção cênica do longa: “Eu não sou a realidade. Sou tudo que é proibido e tudo que é vergonhoso, uma mulher negra de sexualidade indefinida, desavergonhada e irresistível”.

A última curva de complicação que o filme oferece é reverter, em uma outra volta conceitual, os espaços ocupados por essas duas mulheres em seu relacionamento espiritual. Após ser penetrada pela estatueta do deserto, a menina branca fica sozinha com a princesa em uma cabana. O comportamento entre as duas sugere algum tipo de estabilização entre a dinâmica de poder imposta pela princesa, mas nada é tão simples assim: enquanto a branca faz sexo oral nela, a negra explica que seu reinado está acabando, que está prestes a morrer e que deve passar o seu título à garota que dominou. No encerramento, a branca recebe o título Obongo. A negra diz: “Eu reinei por mais de 300 anos, agora é a sua vez de reinar. Você é a minha filha de macumba”.

A branca observa ela morrer, seu cadáver petrifica (o único momento do filme em que vemos Ajita Wilson interpretando alguma passividade frente à câmera) e, num susto final, ela se transforma naquela bisonha figura do frango taxidermizado. O filme termina num berro da garota branca, mas fica difícil acreditar que seja um grito de medo, tudo leva a crer que seja uma liberação necessária após a intensa jornada espiritual que veio para acabar com as suas férias nas praias Canárias.

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