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Festival de Brasília: Não Devore Meu Coração!

Dosar o estilo

Por Camila Vieira

Há dois pólos claramente definidos e distintos em Não Devore Meu Coração! (2017), de Felipe Bragança: os brasileiros e os indígenas paraguaios. Do lado dos brasileiros, há o predomínio da força patriarcal, marcada pela ocupação de território e pelo exercício da virilidade masculina. Do lado dos paraguaios, um povo que resiste às ameaças e valoriza mulheres como líderes guerreiras. O subtexto histórico é a memória da Guerra do Paraguai que, dentro da trama do filme, encontra reverberações nos conflitos às margens do rio Apa. Ao estabelecer diferenças radicalmente opostas entre os dois universos, a dramaturgia do filme está ancorada em uma alegoria mítica em que há uma disputa permanente entre partes que desde já são inconciliáveis.

Existe uma vontade de que algum laço seja possível entre Joca, o garoto brasileiro de 13 anos, e Basano, a menina indígena paraguaia de 14 anos. A pequena guerreira é quem rouba o coração do menino, que se apaixona e passa a procurá-la. Colocando como base o encontro entre os dois já mediado pelo fantástico, a estrutura dramática de Não Devore Meu Coração! assume uma narrativa em capítulos, onde cada desdobramento se reveste de tratamento poético grandioso. Algo já explorado desde A Fuga da Mulher Gorila (2009), primeiro longa de Bragança, em co-direção com Marina Meliande (que, neste novo filme, assina a produção), mas agora com encadeamentos que seguem uma linha menos fragmentada de narrar, procurando alinhavar os contos de Joca Reiners Terron, nos quais o filme se inspira.

Mesmo que busque uma ancoragem dramatúrgica mais tradicional e clássica, o filme é seduzido por determinados vícios formais que, se por um lado evidenciam a autoria de quem dirige, por outro acabam cristalizando intencionalidades enrijecidas. Ainda permanecem a reapropriação do gênero atravessada pelo acúmulo de referências cinematográficas (o encantatório de Apichatpong, os confrontos de faroeste, o clima de aventura de filmes juvenis dos anos 80, a iconografia dos super-heróis), a necessidade de trazer a fábula para o cotidiano, o predomínio da palavra, as atuações impostadas. Os usos de zoom in e zoom out e as ralentações das cenas são exemplos mais evidentes do esforço grandiloquente de demarcar o estilo da direção.

Não Devore 2

No entanto, há intervalos de respiro em que algo se transborda na cena e que parece ser de difícil controle. Os momentos de maior força de encenação pairam durante as reuniões do grupo de motoqueiros da Gangue do Calendário e o confronto com os adversários da República Guarani. Talvez as melhores cenas são construídas a partir do embate entre a índia Lucia e o brasileiro Fernando (a presença de Cauã Reymond parece sempre crescer nestes pequenos trechos). Em outras situações de confronto, há pouca envergadura emocional: os conselhos brutos de Fernando ao irmão Joca ou mesmo a conversa do agroboy com o pai não passam de frases prontas e ditas no automático, as distâncias e as aproximações de Joca e Basano carecem de vitalidade cinematográfica, ainda que sejam cuidadosamente construídas.

Diferente dos longas anteriores de Felipe Bragança da trilogia Coração no Fogo (A Fuga da Mulher Gorila, Desassossego e A Alegria – todos eles em parceria com Marina Meliande), é perceptível uma tentativa de construção cênica em Não Devore Meu Coração! que possa encontrar escapes às imposições do estilo de um autor. No entanto, a direção está longe de se libertar dos excessos de pretensão, que criam e acumulam estratégias formais engessadas, a ponto de apontar mais para a necessidade de marcar o filme com uma assinatura do que para contribuir na densidade do que está sendo narrado.

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EDIÇÃO ATUAL:

O CINEMA E O ENCONTRO

A Utopia do Encontro, por Arthur Tuoto

(Re)Encontros de Família: Indefinição E Redefinição da Narrativa Familiar em Zemeckis, Romero e Resnais por Bernardo Moraes Chacur

O Direito do Mais Forte por João Pedro Faro

Encontro-Gênero por Felipe Leal

O Encontro do cinema com seu onirismo, traduzido por Felipe Leal

O Encontro pelo Erotismo: Desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo, por Camila Vieira

Cinemas(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider, por Pedro Tavares

“Eu Não Sou Seu Negro”: Encontros e Confrontos pelo cinema, por Kênia Freitas

A Crença na Matéria, por Yuri Deriberalli

 

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A UTOPIA DO ENCONTRO

Por Arthur Tuoto

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“O que está por vir é uma história impossível”
Film Socialisme (Jean-Luc Godard, 2010)

“As palavras pertencem àqueles que as usam apenas até que alguém as roube de volta”
Hakim Bey

O encontro fundamenta a dialética fílmica em praticamente todas as suas operações. Do confronto da câmera com o ator, do espectador com o filme, da intenção com a linguagem. Concretiza-se, nesse caminho, uma engenharia de elos – tecnicistas, intuitivos, burocráticos – onde repousa a essência utópica de uma busca. Procura-se um ideal afim de transmitir a natureza daquilo que se comenta: uma história de amor, uma conversa entre dois tempos, um paralelo entre linguagens.

O que move o encontro não é a sua condição de realização e materialidade, mas um ideal inalcançável que prioriza as particularidades da sua busca; seu fracasso inevitável é a celebração preciosa de uma jornada. O idealismo de uma paixão, a peregrinação iconoclasta, a busca pela iluminação ou, em uma mesma medida, pela destruição. Quando Godard anuncia a anti-instrumentalização da imagem – as duras e várias mortes do cinema e suas convenções – essa mesma imagem, invariavelmente, renasce por suas próprias medidas. Se Clint Eastwood e Meryl Streep passaram apenas quatro dias juntos em As Pontes de Madison (1995), a extensão universal daquele encontro adquire uma potencialidade dramática de entornos eternos.

O cinema não vai morrer e Clint Eastwood e Meryl Streep não vão ficar juntos. A consequência dessas digressões são maiores que o seu fim. O encontro viabiliza o retorno por meio de uma excursão cíclica sobre seus temas. O que interessa, aqui, é uma deambulação obstinada em busca do remoto, de um oceano profundo, de uma galáxia desconhecida que não nos mostre como as coisas terminam (afinal, elas nunca terminam), mas nos aponte a dimensão do inexplorado.

O encontro não é movido pelo pragmatismo, pela assimilação daquilo que é útil, mas pela abertura ao inabitual. A paixão, o oculto, o intransitável. Articula-se não um método, mas uma política do sonho. Imediata e ardente, sua proeza não é a ordem, mas um desejo original. O encontro não é proposto a partir de delineamentos corriqueiros, mas redefine o incidente como uma poética necessária. O acaso não é somente dispositivo primário de uma união, mas o evento de uma tensão destrutiva. O encontro edifica e aniquila em uma mesma medida. A fé que materializa uma vontade, que media um elemento de divinização, é da mesma ordem do incontrolável desejo de extermínio, de extinção pelo outro. O encontro com a vida se dimensiona pelas mesmas forças do encontro com a morte.

Ressiginificar é reencontrar. Tensionar um material já existente é continuar a sua busca, prolongar a sua investigação e, consequentemente, alimentar sua essência utópica. O resultado atinge não uma forma definidora, mas performática, herdeira de uma ideia a ser reiterada ou questionada. O encontro ratifica ou nega, restaura ou enterra. A integração entre a herança e o novo escolhe a preservação ou o abandono. Filia-se, rejeita-se ou simplesmente expõe-se a partir de um novo lugar. Apropriar é performar um outro.

O encontro reposiciona, desequilibra, reconduz a harmonia através de um ânsia pelo oposto. Descontínuo, dualista, contrário, a conciliação não acontece de maneira instrucional, mas é movida pelo fluxo dos fenômenos. Uma órbita particular que, ora inesperada, ora previsível, conduz uma natureza narrativa que é dependente dessa inconciliação. O contar não é um relato, mas um oráculo de possibilidades variadas onde o final é apenas um detalhe, mal necessário que ensaia um prólogo para o eterno.

Se o que vemos na tela é um último beijo, uma trapalhada final, um fracasso irremissível ou a morte, simplesmente, a conclusão não significa um êxito. O sucesso do encontro independe da formalidade do seu meio. O que um filme procura, outros procuraram e mais um tanto procurarão. O propósito, ao mesmo tempo que se vale dele mesmo, é parte de um macrocosmo de intenções realizadas e não realizadas. O encontro promete e descumpre, apresenta e esconde, executa e ilude, sua irrealização é a nossa experiência em si, sua mentira, nossa verdade mais sagrada.

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(Re)encontros de família: indefinição e redefinição da narrativa familiar em Zemeckis, Romero e Resnais.

Por Bernardo Moraes Chacur

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Quatro ideias prontas:

  1. Filmes americanos possuem alta carga ideológica.
  2. Filmes americanos são ingênuos, logo simples.
  3. Um certo cinema europeu rompe com os padrões hollywoodianos.
  4. Romper com o padrão hollywoodiano implica em ausência de padrão, aleatoriedade.

São generalizações bem difundidas, apesar de contraditórias entre si (1 e 2) ou superficiais (3 e 4). Inconsistências pouco aparentes a princípio, mas demonstráveis a partir da análise de três encontros de família, que exemplificam diferentes relações entre o cinema e a narrativa.

I.

Narrar não é observação passiva da ‘realidade’ ou dos ‘fatos’, é uma atividade de reconfiguração. Estabelecer relações entre causas e consequências, definir o que merece recordação, atribuir responsabilidade a indivíduos ou deslocá-la para forças que os transcendem (sejam sociais, naturais, sobrenaturais etc.). É erigir um mundo, mantê-lo de pé ou desestabilizá-lo. A narrativa não se restringe à ficção. Também está presente na historiografia, na psicanálise, no jornalismo diário e no cinema, de forma indissociável.

Nem sempre foi assim. Termos como filmes de mostração ou de atrações costumam ser utilizados para definir as primeiras décadas de produção cinematográfica. De certa maneira, a narração sempre esteve ali: decodificar a saída dos empregados da fábrica Lumière exigia uma compreensão mínima das ações (são funcionários partindo após a jornada de trabalho) e do contexto (trata-se de um local onde se executa jornada remunerada em uma cidade moderna do ocidente etc.) representados naquela película de 1895. Mesmo os loops projetados nos cinetoscópios Edison (como o execrável Electrocuting an Elephant, de 1903) poderiam apresentar início, meio e fim discerníveis, o germe narrativo.

Mas nada disso se compara à sofisticação narrativa conquistada após o advento da montagem e o desenvolvimento de Hollywood como indústria e linguagem, já no final da década de 1910. A transição entre exibir e narrar foi central para a aceitação da nova mídia. A mostração de lutas de boxe ou esquetes de vaudeville era considerada entretenimento vulgar, enquanto a boa ficção seria capaz de educar moralmente as massas (vide as discussões sobre a utilidade da literatura e da arte, no mesmo período). E de que moral estamos falando?

Lembremos algumas convenções desse cinema: contar uma estória, com lógica causal bem definida, focada em indivíduos com motivações compreensíveis e resolução clara dos conflitos apresentados. Qual representação de mundo é inseparável dessa maneira de organizar a informação? De modo geral, é a crença na liberdade do ser humano e na efetividade da ação: o protagonista é o agente de seu próprio destino, capaz de intervir nos rumos de sua vida e, se necessário, nos rumos de sua sociedade. Essa concatenação nem sempre é otimista: nos noirs, como em algumas tragédias clássicas, a vontade dos personagens pode ser insuficiente ou até mesmo engendrar sua derrocada. Ainda assim, na superação ou na queda, prevalece a iniciativa do self-made man e a trama raramente abandona a província do explicável. São convenções fortes, que mantém-se efetivas mesmo em histórias de viagem no tempo e realidades alternativas.

O que nos traz ao primeiro dos nossos três encontros familiares, a trilogia De Volta para o Futuro (Robert Zemeckis, 1985/89/90), em que o personagem principal reescreve a própria biografia, a de seus pais e filhos. Cada desenlace é diretamente associável a uma origem específica (a covardia paterna que se arrasta desde os tempos de colegial; o fracasso do Marty de meia-idade, cuja origem está no acidente automobilístico etc.) e, logo, admite intervenção. O efeito de cada ação é aferível, seja no retorno a 1985 ou através dos objetos que se modificam às vistas do herói (o retrato de família, os jornais, a carta de demissão). O mesmo vale para toda a cidade de Hill Valley, que se converte em distopia quando McFly comporta-se irresponsavelmente (à semelhança da Bedford Falls alternativa em A Felicidade Não se Compra, privada de seu pilar-da-comunidade). Trata-se enfim, do mito hollywoodiano em estado de arte.

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Falando em mitos, é comum apontar o componente edipiano no filme de Zemeckis. Também valeria compará-lo à Odisséia: no princípio das duas histórias, o solar da família encontra-se em desordem (assolado ora por Biff, ora pelos pretendentes de Penélope). Ambos os protagonistas reentram incógnitos em seus lares: Odisseu transfigurado, Marty irreconhecível em 1955. O ‘disfarce’ lhes concede tanto a liberdade de ação quanto a observação indiscreta de seus familiares (como as esposas, mães e descendentes se comportam durante a ausência do filho/marido?). Após um ciclo de peripécias, a ordem é instituída pela ação dos heróis, com alguma ajuda externa (Atena, o Dr. Brown). São (dentre outras leituras possíveis) duas jornadas de salvaguarda da linhagem paterna, belíssimas articulações de ideários regressivos – mas de forma alguma “simples” ou “ingênuos”. Em nível mais geral, testemunham a crença no poder do indivíduo e suas escolhas, ainda um corolário dos manuais de roteiro. Situação diversa da que veremos a seguir.

II.

Nos tempos da Hollywood clássica, o Terror era o gênero mais afeito ao pessimismo e à incerteza. Durante a década de 70, em conformidade com o malaise prevalente, essas duas tendências se disseminaram por boa parte do cinema americano. Nem sempre uma tendência favorecia a outra, afinal o pessimismo pode redundar em explicações bastante restritas, eliminando dessa forma a incerteza. Ocasionalmente, a dinâmica entre essas duas forças era estimulada pela influência do cinema europeu. São questões ilustradas por Martin (George Romero, 1978), nosso segundo encontro de família.

Quando a trama se inicia, o personagem título está a caminho da casa de parentes, onde causará divergências: Para seu velho guardião, o recém-chegado encarna uma maldição sobrenatural que os persegue desde a Lituânia, o vampirismo. Martin, por sua vez, atribui a suposta monstruosidade a causas genéticas, enquanto a prima mais nova crê que o hóspede é apenas um jovem confuso, capaz de transcender as neuroses familiares. O filme não solucionará inequivocamente a questão, embora indique uma resposta mais plausível.

Em qualquer hipótese, Martin é um assassino. As perseguições, que visualiza de acordo com o clichê vampírico, redundam em estupro e assassinato, perpetrados desajeitadamente. Se De Volta para o Futuro é homérico, entramos agora em terreno quixótico: um homem tentando encaixar o mundo no gênero literário/cinematográfico. Coincidência importante: o papel idealizado das donzelas em perigo, tanto nos romances de cavalaria quanto na fantasia vampiresca.

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A estrutura do filme é episódica, assim como em Cervantes. Há frouxo encadeamento entre acontecimentos e os ‘heróis’ realizam muito pouco. Para Quixote, a Dulcinéia jamais se materializa. Martin, por outro lado, se envolve com uma dona-de-casa e o sexo real começa a suprimir os impulsos de sanguessuga. Ao contrário do fidalgo manchego, vislumbra uma vida além do delírio, até ser punido pelo crime que não cometeu. É a inversão dos valores do roteiro clássico: o indivíduo não domina seu destino e não se descobre satisfatoriamente no decurso da trama. Inversões, no entanto, se relacionam ao modelo: o pessimismo à New Hollywood ainda sustenta alguma causalidade (Martin é destruído pela incompreensão do tio e pelo peso moral das transgressões cometidas) e a sua ambiguidade é, no mais das vezes, solucionável (ele quase certamente não é um vampiro).

Nesse filme, Romero utiliza técnicas narrativas popularizadas pelo cinema europeu das duas décadas precedentes, que buscava outras maneiras de representar a realidade, o tempo e a ação (enxergo pontos de contato com Melville, Godard e Antonioni). A meticulosidade com que os ataques de Martin são encenados torna-os o verdadeiro centro do filme, ao invés de elos em uma cadeia de eventos. Seu ‘realismo’ torna indisfarçável a violência e feiura usualmente destinadas a elipses. O confronto com a idealização é temático e, ao mesmo tempo, exprimido cinematograficamente.

III.

Em Muriel, ou o Tempo de um Retorno (Alain Resnais, 1963), nosso terceiro encontro, a linearidade é sistematicamente desconstruída. Desta vez, não estamos diante de uma família tradicional: Alphonse é acolhido por um antigo amor, a viúva Hélène, com quem poderia ter se casado. A viúva mora com um rapaz, Bernard, à primeira vista seu filho, na verdade enteado. Alphonse chega acompanhado da jovem Françoise, que apresenta como sobrinha e de quem é, na realidade, amante. Cada relação de parentesco está irremediavelmente truncada.

Alphonse e Hélène se conheceram e separaram durante a ocupação nazista naquela mesma cidade. Placas e buracos de bala rememoram o conflito, que, no entanto, permanece obscuro para os antigos participantes, incapazes de lembrar o número e a identidade dos mortos (ou diferenciá-los dos vivos, convenientemente esquecidos). Bernard é assombrado pelas memórias da Guerra da Argélia, jamais esclarecidas, reativadas a partir de fragmentos: diários, fotografias, filmes de 8mm. O apartamento da viúva é também um antiquário: móveis aparecem e desaparecem cena a cena, sedimentos instáveis de passado.

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Walter Benjamin observou que os combatentes da 1ª Guerra, “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. Parte das funções da narrativa – explicar, tornar os eventos suportáveis – havia sido “desmoralizada” pela sua inadequação ante os traumas vividos. O mesmo pode ser dito a respeito dos discursos oficiais sobre a República de Vichy e a colonização francesa na África. Os personagens de Muriel vivem sob o peso dessa desagregação e submetê-los à narração tradicional seria outra violência, a justificação do injustificável.

A representação adequada desse ceticismo não é obtida aleatoriamente. Exige, pelo contrário, o questionamento de cada premissa da lógica linear e, consequentemente, da gramática do cinema. As regras de boa edição recomendam motivações diegéticas e invisibilidade nos cortes, ditames assiduamente desrespeitados por Resnais. Não se trata de exibicionismo formal, há consistência notável entre escolhas e temática: imagens de presente e passado justapõe-se, como em nossa memória e à nossa revelia. Pontos chaves da trama ultrapassam a ambiguidade para permanecer indecidíveis. Em Martin, não obstante a incerteza, Romero ainda fornecia suporte para inferências. Em Muriel, Resnais suprime deliberadamente os elementos que elucidariam os mistérios centrais.

Aludimos ao cânone ocidental na discussão dos filmes anteriores. Para Resnais, nesse período, o precedente literário mais direto seria o nouveau roman, igualmente dedicado a questionar os limites e a ética da Forma (vale lembrar que o diretor adaptou ou colaborou com dois de seus luminares: Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet). Tais experimentos – no cinema ou na literatura – são frequentemente mal interpretados. Costumam ser acusados de incompreensibilidade, esteticismo, desvio da ficção ‘natural’. Há um indisfarçável autoritarismo nessa argumentação: desacreditar as narrações alternativas é sustentar que apenas a versão predominante seria admissível, o único modo de organizar a informação e o mundo, apesar da ampla evidência histórica sugerindo o contrário. Abandonar a estrutura tradicional não implica em ausência de estrutura: recusar as identidades e ordenações pré-estabelecidas pode ser um ato de resistência.

***

De acordo com o estereótipo, partimos do cinema simples de nosso primeiro exemplo e avançamos gradualmente até sua contraparte mais sofisticada, embora tenhamos retroagido algumas décadas durante o percurso (dos anos 80 aos 60). Sinal de declínio cultural? Ou poderíamos inverter a tendência a partir da escolha de três outros filmes? Considerando o nível de articulação, observável em cada caso, entre ideias e expressão cinematográfica, seria adequado descrevê-los em termos de maior ou menor complexidade? Ou seria mais produtivo refletir sobre as possibilidades abertas (ou desconsideradas) em qualquer narração?

Em tais discussões, precisamos nos ater à forma/conteúdo do texto? Ou deveríamos reconhecer igualmente o papel desempenhado pela leitura na produção de sentido? Exemplificando: os paralelos apontados aqui entre filmes e literatura emanaram naturalmente de uma recorrência de arquétipos ou são resultado de uma linha argumentativa? Concluo este texto com outra ideia pronta: convém não esquecer que a crítica, os ensaios e teorias também fazem parte da narrativa.

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Guilherme Gaspar e Marcus Martins

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O direito do mais forte

Por João Pedro Faro

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Na abertura de Querelle, enquanto soldados armados num pôr-do-sol teatral observam marinheiros trabalhando, o narrador já impõe um paralelo entre um conceito assassino e o conceito de sexualidade, como se a manifestação de um desses tivesse necessariamente como consequência o outro. Essa colocação, comprovada posteriormente no filme, se reafirma recorrentemente enquanto elemento central da filmografia do Fassbinder.

O encontro é sempre o ponto inicial dessas manifestações, que ocorre muitas vezes por acasos naturalmente pervertidos: uma ida ao bar, a saída secreta com um amante, a decisão de pagar por sexo. O primeiro passo para um caminho condenável se completa na relação que surgirá a partir dele. Um relacionamento criado nessas condições não poderá ter nenhum destino além da tragédia, sendo no momento inicial a prosperidade do sexo e uma euforia juvenil apenas a base para um impacto maior na destruição futura. As relações assumem um agente dominante, que fará o outro (geralmente esse outro sendo o protagonista, o herói vítima, uma das heranças mais diretas do melodrama que Fassbinder manifesta) transformar-se na própria decadência, o último estágio da condenação do relacionamento maldito.

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Sendo fruto de um cinema irreverente, existe uma tendência de que a relação dominante-dominado acabe numa inversão de papéis. O comandante que se torna dependente de seu subordinado por um tesão enrustido (Querelle, que estabelece dominações na própria condição homossexual passiva ou ativa), a criança que domina o adulto por uma malandragem perversa (Roleta Chinesa) e até todos os senhores da casa se renderem ao escravo negro atraente (Whity, quase uma versão western de Teorema). Indo além e assumindo essas dominações destrutivas, surge ainda o desejo por ser o lado submisso (As Lágrimas Amargas de Petra von Kant). Enquanto Petra é lentamente desmantelada pela crescente indiferença da mulher que ama, sua empregada se conforma com seu estado devoto à sua patroa. Um dos lados reafirma sua força na humilhação de seu parceiro, acabando com sua integridade. Em casos como o de Num Ano de 13 Luas, um simples deboche torna-se o começo para o destino condenado de rejeições à Erwin. Ao descobrir-se mulher após tentar ser aceito por seu antigo colega de trabalho hétero, além de entrar na perigosa vida de um transgênero, torna-se dependente dessa reciprocidade de atração sexual. O colega, ao continuar rejeitando-o, mantém a posição de mandante. É um dominador clássico, o loiro alemão rico que habita o alto de uma das grandes torres comerciais de Berlim (melhor não começar com certas metáforas fálicas aqui e deixar isso para outro momento).

Nesses tons, Fassbinder requer algumas segundas páginas, principalmente quando trata da burguesia e sua pretensa posição de eterna dominadora. É de costume que a alta classe, polida e refinada, não se mantenha nessa pose ao cair nas graças de algum marginal bem dotado. Costumeiramente politizadas, relações na Berlim do interminável fantasma da guerra (existe jogo de dominação maior que esse?) são satirizadas no erotismo de Fassbinder e suas trocas de poder malignas. O que varia é se essa sátira se encerra com a decadência de um marginalizado ao fim do relacionamento (se tornando denúncia) ou no simples escárnio com as classes altas. Num ano de 13 Luas e Fox and His Friends são ambos encerrados com a morte do protagonista vítima dessa burguesia, sendo esse último um caso de diversas inversões. Fox é esperto e começa achando muita graça das regras no novo ambiente em que se instala após ganhar na loteria. Vira a paixão de um burguês e logo essas etiquetas se tornam um meio de dominação. É um sujo, um mal-educado que não merece estar com aquelas pessoas (por mais que, enquanto objeto sexual, ainda seja aproveitado). O malandro de rua é trapaceado pelos ricos, humilhado por aquele meio até perder tudo e se encontrar beirando a morte no chão de uma estação de trem.

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Agora, em obras como Roleta Chinesa, exemplo da segunda possibilidade de encerramento das relações destrutivas de Fassbinder, é a própria burguesia que se autodestrói. Num acaso onde um casal vai para uma casa de campo com os respectivos amantes, estabelece-se um encontro em meio pervertido. Com a chegada da filha de um dos casais na casa, cria-se nesse caso um terceiro membro que é o dominador. Este faz com que a honestidade se torne o movimento mais hostil, a jovem filha humilhando todos os outros no jogo de roleta chinesa, que expõe coisas que não deveriam ser expostas. O assassinato a sangue frio surge, por fim, como resposta ao pavor deste grupo de ser dominado.

Engraçado como a obra mais famosa de Fassbinder, O Medo Consome a Alma, seja um dos exemplos mais curiosos dessa relação justamente porque traz um equilíbrio constante de forças numa paixão genuína. A reimaginação de All That Heaven Allows, o relacionamento entre uma idosa alemã e um negro mulçumano, apresenta uma crise nesse romance pelos momentos em que o domínio de um dos lados se faz presente. O do negro Ali é a clara força física e o vigor de sua juventude. Ali pode trair sua esposa com uma outra jovem do bar e ainda se impor com sua altura e seus músculos. Já a sexagenária Emmi, sendo viúva de nazista e tendo todos os traços germânicos acentuados, é a própria figura de uma Alemanha nacionalista, traz a força de uma etnia que sempre se impôs sobre qualquer outra, chegando a se envergonhar do novo marido em dado momento por uma pressão de seus iguais. Mas aqui o encerramento não é trágico, por mais que tenha a iminência de uma tragédia Fassbinder permite que o último momento de seu casal na tela mantenha esse tão custoso equilíbrio.

Então, assumindo a linha crescente (ou seria decrescente?) dos relacionamentos que se inicia no contato sexual e se encerra na tragédia, passando pelo abuso da força, o moralismo inerente a esses estágios parece existir quase contradizendo a irreverência natural do diretor. Mas logo fica claro que esse moralismo só existe para fortalecer o ideal máximo de Fassbinder, que é a provocação. Um elemento que só poderia existir pela já citada herança de Douglas Sirk. São os próprios mandamentos do melodrama que criam o ciclo de danação dessas relações, é dele que vem os domínios, as paixões que não morrem por nada e o charme desmistificado de uma nobreza. Claro que Fassbinder pode provocar sendo mais extremo em suas situações e podendo ser mais gráfico do que Sirk poderia nos anos 50 (enquanto ele tinha que se contentar com a metáfora singela da Dorothy Malone masturbando uma pequena torre de petróleo pensando no Rock Hudson ao final de Written on the Wind, Fassbinder já pode colocar seu protagonista deitado num falo gigante no pôster do filme). Isso é o que está claro, porém o que está entranhado na escaleta consegue ser muito mais forte. Nada é mais provocativo do que um cinema de marginalizados com bases conservadoras, manifestada num arquétipo consistente da jornada desses personagens do submundo essencial ao autor.

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Encontro-Gênero

Por Felipe Leal

“Quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”

Como terminologia inserida no campo orbitacional do Cinema, a palavra “gênero” encontra duplo entroncamento: ora seu sentido mais veloz à mente, o conjunto de certo modo protocolar de traços estético-narrativos que caracterizam um tipo de filme, uma etiqueta classificatória que admitimos como rasa, ainda que já mais que “necessária”; ora o chamativo para a divisão entre os gêneros masculino e feminino, embora esta conotação só provoque uma segunda e fácil associação devido aos atravessamentos políticos a que o cinema se acostumou desde que virou “novo” em diversos países do globo. Porque associar-se ao político parece-nos hoje ter sido feito num estalar de dedos, pensar em gênero como divisória significativa dos estudos das forças masculinas e femininas como representações dentro da grande tela foi uma possibilidade argumentativa também sempre à vista.

Curioso, pois, que ambas as significações sejam impensáveis se dissociadas (quer juntas ou separadamente) de qualquer olhar que se empreste a Howard Hawks. Da ficção científica ao horror, da aventura ao faroeste, do policial ao melodrama, da comédia ao romance, e nas dosagens mais improváveis, mas também, e provavelmente sempre, um choque de motricidade dramática canalizado pelo encontro entre Homem e Mulher – maiúsculos. Não há escândalo jornalístico, torneio nacional, rinoceronte ou missão de guerra que não passe pelo embaralhamento inevitável entre as duas forças – não necessariamente expressas num homem e uma mulher personificados, mas sempre como uma resultante desastrosa. Aliás: diz-se logo desse encontro que ele também será invariavelmente marcado por duas outras questões estruturais: a (aparente) inconciliação entre esses dois quase fenômenos – e a subseqüente trapalhada seriada –, e a subversão espontânea dos papéis tidos como “clássicos” para os gêneros.

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Explico toda a deriva teórica: se houvesse uma cena na extensa filmografia de Hawks que pudesse conter a personificação de todo seu jocoso embate (porque o entrave, aqui, sempre acabará no mais inocente dos risos) ela estaria em Hatari! (1962), num diálogo tão absurdo quanto é o seu entendimento para a personagem que o provoca. Anna (Elsa Martinelli) pergunta a Pockets (Red Burton) por que o personagem carrancudo de John Wayne não gosta de mulheres, só para receber como resposta: “porque ele acha que elas são um problema”. Anna concorda, uma vez que esse estágio de aceitação nunca foi problemático às mulheres de Hawks: diferente dos homens, o caráter explosivo do encontro já lhes é introjetado: elas só não conseguem evitá-lo, e por conseqüência fica inferido que nunca haverá escapatória ao Homem. As inevitabilidades começam a surgir. Anna pede-o, então, que lhe fale sobre Ele – todo protagonismo masculino de Hawks será sempre uma personificação de seu ideário, ao passo que os outros homens que povoam a trama serão exemplos, decerto, mas exemplos menores. Pockets pressuriza a garota um pouco mais, é preciso fazê-la entender: diz a ela que, se ele lhe trata mal, se não é gentil com ela, é bem possível que ele esteja comendo na sua mão. “Pockets, podemos falar um mesmo idioma? Se é bom, é bom, se é ruim, é ruim”.

E antes que ele lhe diga a máxima que tornará a Questão um cristal puro de transparência e absurdo ao mesmo tempo, Hawks torce a convenção e traz outro fato incontestável à mesa: é a mulher que, paradoxalmente, na trapalhada que adiciona, também simplifica tudo. Não lhe custa ser clara e objetiva, agir de acordo com o sentimento que brota, sua práxis corre paralela ao que sente; não: dessa vez, é Ele que a confunde, que não consegue agir com congruência. É que, ainda nas palavras do infantil Pockets, “quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”. E daí em diante, uma vez que o homem aceita, de seu lado também, o sentimento, ou seja, quando os indícios se dão a ver e ele começa a tratar sua paixão com a crueldade hilária que atesta a provocação de uma repulsa tanto interior quanto externalizada, fica instaurado, às maneiras concebidas pelo autor, o paradoxo inescapável que é a fricção entre ambos homem e mulher: ele não consegue aceitar o terreno mnemônico do sentimento, e a falta de tato fará com que aja como uma criança: emburrado diante do objeto que lhe provoca o empecilho, tampouco consegue sair de sua órbita; olha-lhe de esgueira, não dá o braço a torcer, se necessário (ou seja: quase sempre) será áspero, pragueja contra a vida por ter lhe enviado aquilo, e no entanto está lá, diante Dela, sempre.

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E fala-se do sentimento para o homem como um espaço atrelado à memória porque entre eles, os sexos, ainda haverá uma outra diferenciação primordial: ainda que não explícita, haverá sempre uma outra mulher como evento traumático, aquela mesma que lhe servirá como prova cabal de que não pode haver acordo entre os sexos, e a partir da qual ele tomará a atitude resoluta de um touro de não mais se envolver. Novamente, bem como funcionam os sinais para um infante, o homem tomará para si suas resoluções que não conseguem se mascarar: é precisamente ao se interessar por uma mulher que ele demonstrará menos agradabilidade e doçura. E mesmo que não me pareça haver protocolos para o passado das figuras femininas, posso arriscar que, ainda que a explosividade caótica do encontro sugira que aquele pode muito ser o primeiro de suas vidas, divido-me: ou parece que há certo costume inocente em tratar com aquele tipo de força bruta, ou todo homem, por mais que aparente carregar o frescor da paixão impossível e nova, será a Ela uma experiência diante qual nunca poderá haver previsibilidade ou controle. Interessa, enfim, o seguinte: da força do atrito, nascerá uma inversão de papéis já em virtualidade, e que será causa incontornável da confusão, parte porque um dos lados não consegue assumir honestamente o que lhe surge, parte porque a outra agirá exatamente como Ele deveria agir. E os exemplos infestam as imagens de Hawks.

Em A Noiva Era Ele (1949) Ann Sheridan fará Cary Grant se travestir de mulher, peruca improvisada com o rabo de um cavalo vivo, obviamente depois de um sem-número de provações quase mortais, para concretizar seu casamento, encontrando um furo no código de união entre agentes de países diferentes e deixando curiosamente dúbia a certeza sobre os gêneros, ainda que toda a burocracia dali em diante o coloque em mais intempéries; Katharine Hepburn e Cary Grant, muito possivelmente por empurrão ininterrupto dela, perseguirão um leopardo chamado ‘Baby’, floresta adentro no interior americano, nomenclatura funcionando como prenúncio da união e símbolo de qualidade da mesma: mais uma série de encrencas. No mesmo Levada da Breca (1938), segunda comédia mais afiada do realizador em quesitos de timing, ainda outras situações em ritmo screwball envolverão confusões de cárcere e furto não-planejado, tudo provavelmente impulsionado por um osso encomendado e que embalou a narrativa em seus círculos de inconciliação.

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Numa das últimas pérolas de Hawks, O Esporte Favorito dos Homens (1964), uma prova de que através das décadas o autor manteve-se, sim, como um desbravador dos gêneros, mas que a comédia é seu campo de expertise, Paula Prentiss fará – e aqui enfatizo a incapacidade do Homem de escapar das paradoxalmente ardilosas e inocentes mãos Delas – Rock Hudson, que nunca pescou na vida, inscrever-se num torneio de pesca, quase ser atacado por um urso, quase se afogar, imprensado numa bóia salva-vidas maior que seu corpo, acidentalmente precisar consertar o vestido curto e rasgado de uma loura fatal, só para acabar em meio à chuva, num colchão improvisado, boiando num lago de pesca com a mesma figura infernal e apaixonada que o colocou ali.

E esta é bem a sacada de Hawks: sem em nenhum momento trazer qualquer juízo de valor negativo sobre as figuras femininas, sobre elas recairá, contudo, a absoluta certeza de que, uma vez atrapalhadas, serão a ignição de sucessivos obstáculos à vida masculina, e no entanto nem este lado conseguirá resistir às investidas, nem ao outro será possível se conter: uma vez apaixonadas, e sempre de seu jeito atrapalhado, elas, buscando compreensão sobre a sucedânea de mal-entendidos, atiçarão, neles, a dualidade “repulsa por auto-preservação”/”atração por impossibilidade de existir sem Elas”. Uma última observação servirá de panacéia final para a estrutura bola-de-neve: atravessando o código do happy ending, essa espécie de décimo segundo mandamento da ficção até as proximidades da época em que Hawks não mais faria filmes, se à toda conclusão de sua obra romântico-cômica o final com conjunção dos dois enamorados funcionou exemplarmente, ora com uma trapalhada final que vencerá o homem por cansaço, ora por uma objetiva e direta percepção de que não há mais como conceber uma vida sem aquela mulher, apesar de tudo aquilo, quero defender, ainda, que ali não há exatamente um final, pelo menos não enquanto término absoluto. Porque ao mesmo tempo em que a luz se apaga e seu gesto é o de um encerramento, este o é apenas por convenção. Ainda que por um segundo, arrisco que todos os olhos que emprestamos para aceitar a ficção estimularam o nervo imaginativo a um verdadeiramente último ato: pensar que, a partir dali, a história daqueles que viemos acompanhando continua, e que no caso daquelas concebidas por Hawks aquele abraço ou beijo final que aparenta solucionar todo o atrito é na verdade um entre-atos, um intermezzo falsificador: o encontro entre o masculino e o feminino é insolúvel e inevitável, fonte ininterrupta de um conflito sem o qual, entretanto, é impossível estar no mundo.

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O ENCONTRO DO CINEMA COM SEU ONIRISMO

PANDORA, OU A CHAVE DOS SONHOS

Texto traduzido da sexta edição (out-nov) dos Cahiers du Cinéma, 1951.

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Nós não podemos conter o sorriso, ainda que a voluptuosa mulher à esquerda de James Mason diga bem acima, no ecrã, tudo aquilo que já pensamos aqui embaixo: a saber, que tudo isso é de fato um pouco intenso: este piloto que precipita seu carro em direção ao mediterrâneo para provar seu amor a uma mulher, como outros o fariam comprando um buquê de rosas. Um pouco intensa, também, esta mulher que, súbito, de um minuto a outro, se lança ao mar, e logo depois, ainda completamente despida, à descoberta de um navio fantasma e sem tripulação, onde, sozinho, um jovem soturno dedica seu tempo a pintar quadros à maneira de Chirico[1]. E terá você alguma vez visto noites semelhantes, em que a escuridão passeia por todas as cores do arco-íris, com raios luminosos da lua que se arranjam, todos eles, somente para iluminar a figura radiosa de Ava Gardner?

Nós sorrimos e, depois, de assalto, experienciamos um belisco no coração: ele é tomado de vergonha repentina, e desejamos que a pessoa ao lado silencie. Que se cale de uma vez por todas: por que, se nem todos os pilotos sacrificariam seus carros em nome do amor, por que Ava Gardner resistirá ainda um pouco mais ao canto das sereias masculinas? Por que, agora, este matador que carrega a morte no rosto não penetrará na arena deserta, entregue à noite, para oferecer o sacrifício de um touro a uma espectadora única?

Se fizéssemos uma crítica séria de Pandora, seria conveniente lamentar que seu diretor Albert Lewin acreditou ser necessário se vestir da responsabilidade de garantia sobre a veracidade das lendas, na ocorrência de identificar categoricamente na figura do jovem pintor da embarcação fantasma um capitão de navio que havia sido condenado, há não menos que três séculos, a não morrer por ter assassinado sua mulher – e que vagaria eternamente pelos oceanos caso não encontrasse, diante de qualquer ancoramento, uma outra mulher que aceitasse morrer por ele. Albert Lewin nos faz assistir em comprimento, largura e cores o processo do capitão, crente, sem a menor dúvida, de que, uma vez que as coisas são inscritas na película, não há como duvidar de que sejam verdadeiras. Como se, caso contrário, as lendas não tomassem toda sua força de persuasão no equívoco e no possível. E como preferimos que se deixe entender que o pintor pode muito bem ser o famoso holandês voador, não há nada que nos impeça de pensar, além disso, que ele também pode ser – por que não? – um misantropo ocioso.

Mas Pandora não é um filme que se empresta ao desejo de uma crítica austera. Ele vale menos e mais que isto. Ele faz sorrir, e ao mesmo tempo sonhar com um cinema que fosse desembaraçado de seus gângsteres e policiais, mães-solteiras e irmãs caçulas de famílias pobres, com um cinema cujos heróis fossem gloriosos como a morte e as heroínas lindas como a noite.

Cinema involuntário, como dizemos da “poesia involuntária[2]”. As agruras de Pandora são tão comoventes quanto suas qualidades, e em seu próprio excesso, suas falhas de gosto a ligam à grande tradição barroca. É tão frívola quanto à capa de uma revista, mas quando viramos a página de súbito somos imersos em pensamentos sobre as noites de Julien Cracq, todas fartas em perambulações e encontros secretos, no meio de dunas prateadas pela luz da lua. Sim, por que não existiriam elas, estas noites violetas e minerais, violentas e petrificadas, que sempre findam à beira-mar, sobre a areia ensopada pela luz da alvorada recém-iluminada, embaladas pelos últimos ruídos do jazz, debaixo de uma antiga estátua mutilada, ao som dos gritos felizes de uma jovem embriagada cujo vestido de baile se vira repentinamente, porque ela acaba de desejar bom dia ao mar que passa sobre suas mãos?

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Jean-Pierre Vivet

[1] Giorgio di Chirico, pintor italiano precursor do surrealismo.

[2] Terminologia usada pelo poeta francês Paul Éluard para teorizar uma poesia que surgisse do “acaso”, ao contrário de uma escrita que seguisse os desejos voluntários de seu autor.

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O encontro pelo erotismo: desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo

Por Camila Vieira

“Digamos, sem esperar mais, que a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um lado, o horror não afastado, ligado ao apego que a vida inspira; por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-os e provoca, uma perturbação soberana”. (Georges Bataille, O Erotismo)

“A ambiguidade e a bipartição caracterizam, de um modo mais típico, o problema do erotismo quando, mais do que qualquer outro, ele parece resistir às definições, flutuando entre o físico e o espiritual”. (Lou Andreas-Salomé, O Erotismo)

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Em uma sequência de The Addiction (1995), de Abel Ferrara, a estudante de filosofia Kathleen Conklin toma consciência de sua própria transformação, dias após o ataque inesperado de uma mulher desconhecida que sugou seu sangue. Neste súbito de lucidez às sombras do vampirismo, a protagonista esclarece que, não importa o que aconteça, é a violência da sua vontade contra a dos outros. O encontro aqui implica uma violação de fundo, que está na base do jogo erótico. Trata-se do desejo incontrolável e perturbador de aniquilação do outro. Se, de acordo com o pensamento de Bataille, o erotismo é uma aprovação da vida até na morte, como compreender no filme de Ferrara, o encontro dos corpos a partir da intensidade da violência que chega ao limite da morte? Mais ainda: junto com The Addiction, a questão segue uma linha de entrecruzamentos com outros dois filmes contemporâneos – em especial, Trouble Every Day (2001), de Claire Denis; e Dans Ma Peau (2002), de Marina de Van –, que, apesar das singularidades perceptíveis de seus desdobramentos, também cotejam encontros em que o desejo escapa ao controle e a relação com o outro envolve a pulsão de morte.

Nos três longas-metragens, os personagens estão envoltos em situações iniciais e temporárias de aparente equilíbrio e ordem com os códigos sociais. Eles se inserem na dinâmica do trabalho (a rotina de estudos na faculdade por Kathleen, em The Addiction; a dedicação aos prazos no mundo dos negócios por Esther, em Dans Ma Peau) ou se submetem a interdições (o cativeiro de Coré não está distante do aprisionamento instaurado pelo casamento de Shane, em Trouble Every Day). Esta normalidade será perturbada por um ponto de ruptura, catalisado pelo contágio com algo externo – o ataque noturno da mulher na calçada em The Addiction, o acidente com os ferros no canteiro de obras em Dans Ma Peau, a experiência científica com humanos em Trouble Every Day. Tais imprevistos violentos no cotidiano irão provocar mudanças no curso dos acontecimentos e liberar forças inesperadas no âmbito do desejo.

A vertigem e a euforia reposicionam o erotismo dos corpos para algo de sinistro, que irá desencadear perturbações e incômodos dentro da normalidade cotidiana. Na noite em que é atacada, Kathleen se sente mal, é acometida por náuseas e suores frios, enquanto seu pescoço jorra sangue. Depois de ter a perna dilacerada, Esther vê fragmentos desfocados dos lugares em que passa (os planos pontos de vista de Dans Ma Peau provocam a sensação de que tudo está girando ao redor dela). Shane é perturbado por imagens oníricas (ou seriam lembranças?) do corpo da sua esposa banhado de sangue. Tais indícios alucinatórios são prévias de transformações no modo como os personagens irão interagir com o mundo. Kathleen começa a abordar os drogados marginalizados nas ruas, para quem ela não dava atenção. Coré seduz caminhoneiros na beira da estrada para atacá-los em terrenos abandonados, enquanto Shane persegue os passos da camareira de um hotel. Esther passa a ter uma percepção mais intensa do seu próprio corpo e se fascina pela superfície de sua pele como uma estranha alteridade radical.

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Por mais que busquem suprimir o abismo profundo que existe entre eles e o mundo, os personagens dos três filmes são seres descontínuos que vislumbram no contato com o outro a possibilidade de atingir uma continuidade desde já perdida. Na tentativa de dar um salto no abismo, eles se deixam conduzir pelo descontrole de seus desejos que os levam a sensações tortuosas. Kathleen vislumbra que existe um terrível precipício entre as pessoas, mas a alegoria do vício no filme de Ferrara está para além do salto. “Há uma diferença entre saltar e ser empurrado. Chega uma hora em que se deve satisfazer as necessidades e você é pego pelo fato de não poder acabar com aquela situação”, diz Kathleen. É preciso manter Coré presa em casa com grades e portas de ferro para que ninguém esteja sob o risco de sua força erótica, mas ainda assim a interdição será transposta por dois garotos que conseguem invadir o território proibido. Esther escuta constantes e duras repreensões do marido, que jamais são suficientes para impedi-la de continuar cortando sua pele.

Na constante procura por um objeto fora do desejo, há um desequilíbrio que põe o sujeito em lugar de incessante questionamento, posto que ele se perde diante do próprio desejo. O movimento do erotismo excede os limites, a ponto de permitir uma esquiva do entendimento e colocar o outro à frente da violência. Pela necessidade física do contato com o outro em sua materialidade – que não acontece geralmente pela chave do prazer sexual –, algo extravasa nesta relação, pondo a vida em risco. Em The Addiction, o descontrole do desejo explica inclusive os massacres que se repetem na História e acumulam cadáveres (imagens dos corpos dizimados nas guerras pontuam o filme). Não há como controlar o que os humanos fazem, porque eles são escravos de suas próprias forças. Se, em alguma medida, Abel Ferrara aponta sua alegoria do vampirismo para um comentário verborrágico sobre o mal da humanidade por meio do vício e do pecado, Claire Denis subverte a conotação moral em Trouble Every Day e, por meio do silêncio e da proximidade dos corpos, acompanha com leve torpor a força canibal de Coré e Shane.

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Diferente dos filmes de Ferrara e Denis, Dans Ma Peau desloca o problema da relação entre o eu e o outro para a implicação do erotismo no limite de uma desordem violenta com o próprio corpo. Esther não é capaz de sentir o dilaceramento de sua pele. A superfície epidérmica é o estranho que desencadeia a curiosidade de Esther, dentro de um jogo erótico que irá dissolver formas constituídas – a centralidade de si como uma mulher de negócios bem sucedida e que precisa cumprir um papel social regular esperado por todos ao seu redor. É emblemática a sequência do filme de Marina de Van em que, em meio a um jantar com executivos, Esther enxerga seu braço deslocado do resto do corpo, funcionando como um membro mecânico que ganha vida própria. O estranhamento com o corpo desperta em Esther a vontade de perscrutar sua pele com objetos de ferro pontiagudos, a ponto de atingir o ápice quando performa (a diretora é também a atriz do filme) o ato de se retalhar, diante de um espelho e registrar em fotografias. Mas aqui o auge da excitação erótica não condena a vida a desaparecer, ao contrário do banquete final de The Addiction que leva ao massacre dos convidados (parecido com a intensidade do clímax de Ms. 45, filme anterior de Ferrara) ou o encontro de Shane com Coré que implica na morte inevitável dela, em Trouble Every Day.

Seja na realização da morte ou na aproximação dela, a vida é colocada em questão nos três filmes, a partir do excesso que se engendra no encontro pelo erotismo. É uma experiência que se dá no real pelo que há de inesperado nele e, desde já, ela é plena de violência, na medida em que assume um potencial de transbordamento dos limites possíveis. Trata-se de uma perturbação ainda sem nome. “Você não é nada”, insiste o mestre vampiro de The Addiction em uma conversa no galpão sombrio com Kathleen. Existe um mistério que cerca o experimento científico pelo qual Coré e Shane foram cobaias, em Trouble Every Day. Não há explicações que consigam dar conta da vontade de Esther em retalhar sua pele, em Dans Ma Peau. A passagem da normalidade ao desejo erótico pressupõe uma desconstrução das causas e uma abertura aos movimentos violentos que desestabilizam.

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Cinema(s): Dennis Hopper e James Benning em Easy Rider

Por Pedro Tavares

“Você não precisa procurar por novas imagens, imagens jamais vistas, você deve utilizar as já existentes de uma forma que elas se tornem novas.” (Harun Farocki)

Retomar, remontar ou resignificar materiais existentes independente de concessão estão na filmografia de nomes como Esther Schub, Dziga Vertov, Alain Resnais, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Chris Marker e Jonas Mekas que com suas devidas motivações remeteram e provocaram entre ética e a estética.  James Benning fez de seu Easy Rider (2012) a revelação de um sonho perdido sobre seu tradicional arquétipo de observação sem que suas imagens sejam necessariamente novas, ainda que nenhum plano do filme original de 1969 seja projetado. É necessário, portanto, traçar a rota do encontro entre Hopper e Benning através deste imaginário de cinema e política.

Easy Rider (James Benning, 2012)
Easy Rider (James Benning, 2012)

À procura pela América

Pelas estradas americanas, na representação de uma parcela significativa da identidade do país – as highways -, Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) procura a América perdida, o mito e o norte existencial em tempos de Guerra do Vietnã. De maneira geral, Easy Rider rompe com a era de filmes cômicos hollywoodianos e oferece à contracultura seu apogeu cinematográfico fixado pelo pessimismo, pela música, locações e diálogos como o filme definitivo de uma geração.

E nele está um filme basicamente de elipses e insinuações, intencionado a criar um espaço que permite o diálogo com uma época e um estado de espírito em forma de aventura lisérgica em monocórdio, longe da estrutura do cinema clássico americano. O road movie que aspira os westerns – à época tão próximos no tempo de exploração de territórios – parte de uma asfixia generalizada – social, existencial e político como espelho de um mal estar que muitos estavam a lutar. E como pilar de tudo isso está o sonho de recomeço. Coube a Benning, anos mais tarde, identificar caminhos complementares à época da filmagem de Hopper. Em comum, ambos estão em estado de suspensão e cabe as palavras do antropólogo Marc Augé sobre este estado: “(…) O estado de suspensão designa uma forma de esquecimento na medida em que ‘ambiciona recuperar o presente cortando-o provisoriamente do passado e do futuro e, mais exatamente, esquecendo o futuro quando este se identifica com o regresso do passado'”.

Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)
Noites ao léu em Easy Rider (Dennis Hopper, 1969)

O encontro

Como parte da geração marcada por Hopper, James Benning é um cineasta/videomaker que transita entre cinema e museus com propriedade. Seus filmes seguem características únicas de caráter observacional. E o encontro sobrenatural de Benning com Hopper pelas estradas dos EUA se dá pelo mesma convenção: um filme sensorial, de sugestões e que recria Easy Rider a partir dos tradicionais longos e estáticos planos, aqui em paralelo em alguns momentos com diálogos do filme original como forma de guia narrativo, sem que o filme original seja remontado por Benning e sim uma releitura ao seu estilo característico de contemplar, criar atmosferas e narrar histórias.

Benning, que outrora tinha refeito Faces de John Cassavetes com os mesmos espectros, em entrevista ao Lola Journal afirma que seu respeito pelo filme de Hopper diminuiu conforme o tempo. Hoje, o diretor considera o filme “Cristão, capitalista e que afirma o manifesto de Malcolm-X que o uso de drogas é anti-revolucionário”. Sua reencarnação é feita pelas paisagens de Hopper, hoje muitas deterioradas ou completamente modificadas pelo tempo ou pelo homem. E Easy Rider, ambos, se resumem à  busca de um espaço, de um local não definido.

A outra América

Restaurar ou constatar o passado? A questão que permeia a versão de James Benning o isenta de uma resposta concreta quando seu trabalho de aproximação e posse é explícita ao exibir, por exemplo, o cemitério da cena mais lisérgica da versão original em estado deplorável, ao trocar Born to be Wild do Steppenwolf por uma canção pop ou exibir a placa de “Não há vagas”, num simples gesto interpretativo, de criar novas camadas e significados, como a construção de um novo córrego para as cenas escoarem após o corte. A visão de Benning, neste ponto, é dicotômica entre passado e futuro.

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O lamento de Benning.

A América filmada por Benning passou por outras guerras, ataques terroristas, novos tipos de drogas sintéticas e fenômenos pop, mas há de se considerar o lampejo de Hopper simbolizado na última sequência do filme original. O encontro se dará a partir desta cena – o encontro de um pensamento, ainda que rápido, de fuga, um lapso pessimista sobre o país dos sonhos. Está feito o diálogo ostensivo entre Hopper e Benning: alusões sobre um sonho – o início e o fim. A morte nos campos da liberdade, do vento no rosto e felicidade plena é escarrado em cada plano da observação de James Benning. “Não há vagas” é o canto nada subjetivo da cultura pop, um lamento à transgressão que outrora cantava selvageria, lisergia e revolução. Em troca estão os sussurros em forma de diálogos originais em volume mais baixo em pompa decrescente, como se o silêncio fosse o ponto final da geração e o ponto inicial de Benning, que entrega suas intenções ao dispositivo, permitindo que os longos planos falem por si. Uma infeliz coreografia social (e artística).

Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio
Foi-se o tempo: rebeldia trocada pelo silêncio

O modelo de Dennis Hopper que supõe o processo de integração e desenvolvimento por trás da carcaça de um filme de motoqueiros segue a retórica da heroicização de uma geração. Nele, homens (quase anônimos que seguem mais tipos que a ilusão da construção de personagem) ressoam às questões sociais daquele tempo como forma de análise urgente transpassadas em ações e falas duvidosas. O modelo de Benning, longe de uma comparação, apesar da releitura, é de um protoluto, silencioso, de análise partilhada com o espectador; o diagnóstico suspende a economia vista durante todo filme – ainda que não se chegue a respostas como em boa parte de discussões sobre o cinema, é possível dizer que o trabalho de Benning é um complemento com a permissão que o tempo cedeu, com a clara constatação que a América não foi e nunca será àquela almejada e que o homem que derruba motos também derrubará a economia e o ambiente em que vive.

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Eu Não Sou Seu Negro: encontros e confrontos pelo cinema

Por Kênia Freitas

No documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016) o diretor Raoul Peck aponta como motivação inicial para o projeto um livro jamais terminado pelo escritor negro norte-americano James Baldwin. No livro inacabado “Remember This House”, Baldwin pretendia contar as histórias de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr – todos os três expoentes negros das lutas pelos Direitos Civis americanos, todos os três amigos de Baldwin e todos os três assassinados. Se o livro é a justificativa inicial, o filme de Peck reserva a sua construção a montagem de outras narrativas, narrativas que se sobrepõem em camadas de imagens diversas. A operação do filme torna-se a de fazer essas imagens (do cinema, da televisão, das fotografias e do imaginário) deslizarem umas sobre as outras – encontrando-se e, quase sempre, entrando em confronto.

Em um primeiro movimento diante dessas múltiplas camadas de imagens e gestos de encontros promovidos pelo diretor, podemos destacar o encontro da figura de James Baldwin (falecido em 1987) com o espectador atual do filme de Peck. Esse encontro se dá tanto pelas reminiscências de imagens (nos textos do escritor usados para construção do roteiro e pela utilização recorrente ao longo do filme do material de arquivos de entrevistas de Baldwin), quanto pela atualização dessa presença do escritor e a sua  aproximação com o presente histórico (com a narração de Samuel L. Jackson que assume o discurso em primeira pessoa dos textos de Baldwin na voz over do filme; o contraponto constante das imagens do presente, sobretudo a partir de registros do movimento Black Lives Matter inseridos no filme; e na escolha de finalizar o filme com “The Black de Berry”, interpretada por Kendrick Lamar, de trilha sonora).

Operação de presentificação que se declara já desde a abertura do documentário quando em uma entrevista no Dick Cavett Show em 1968, Baldwin aponta a pergunta de “o  que vai acontecer com esse país? ” como a indagação necessária de ser feita pela sociedade dos EUA naquele momento diante do debate racial. A resposta na narrativa do filme de Peck é colar a pergunta fotografias de protestos do Black Lives Matter e da agressiva repressão policial ao movimento. Nesse gesto de montagem fica declarada a intenção do diretor de, por e com Baldwin, pensar o presente da discussão racial nos EUA.

Nesse sentido, Peck serve-se de forma inventiva das prerrogativas do documentário de montagem, de fazer encontrar imagens de origens e sentidos diversos, colocá-las lado a lado, muitas vezes em confronto. Dessas imagens permanecem os resíduos de suas origens, ao que se soma novos significados tanto pelas palavras de Baldwin, quanto pelo ordenamento de Peck. No processo, reconhecemos os gestos do documentário moderno (cinema verdade, cinema vivido, cinema direto) de promover o encontro no cinema (dentro dos filmes, por suas narrativas e pelas relações entre personagens e cineastas). Assim, é o encontro Peck e Baldwin (e das imagens aos quais estes recorrem) que move a construção e tensões do discurso do filme.

Além dessa relação, também percebemos um mergulho da narrativa no que Serge Daney chamou em “A rampa (Bis)” de um terceiro regime da imagem cinematográfica (depois do clássico e do moderno). Um regime das imagens que deslizam umas sobre as outras, em que atrás de uma imagem só é possível ao espectador descobrir a existência de outras imagens. É nesse jogo em que Peck aposta ao fazer encontrar as suas múltiplas imagens de arquivo em torno de Baldwin. Atrás de cada entrevista de Baldwin, de cada imagem histórica do movimento negro dos anos 1960, há sempre outra imagem. O encontro possível com estas imagens que deslizam depende de um espectador que também não cesse de se deslocar entre elas.

Essa montagem torna possível que o filme promova incessantemente também o deslocamento entre temporalidades diversas: da atualidade do Black Lives Matter, a infância e juventude de Baldwin, a sua atuação como intelectual negro e testemunha no movimento dos Direitos Civis nos EUA. É possível assim no mesmo bloco e construindo uma única linha de raciocínio que o filme passe de uma entrevista de Baldwin falando sobre Malcom X para as imagens em Ferguson, Missouri, em 2014, retornando em seguida a Baldwin. Um movimento semelhante ocorre quando Baldwin fala sobre a sua experiência de crescer um menino negro nos EUA e lidar com morte constantes de meninos e meninas negras da sua geração, e Peck lança imagens dos jovens negros assassinados recentemente pela polícia: Tamir Rice, Darius Simmons, Trayvon Martin, Aiyana Stanley-Jones, Christopher McCray, Cameron Tillman, Amir Brooks.

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Esse gesto de encontro e deslizamento por imagens múltiplas não se dá apenas pela navegação livre das temporalidades distintas. Se o que a montagem constitui nessas aproximações de imagens do movimento dos direitos civis e do Black Lives Matter é o fato de que a exclusão e o racismo contra os negros perpetuam-se quase inalterados pelas décadas que se seguem, a montagem de Peck e as palavras de Baldwin apontam também para outro fator: o de que debater esse racismo não é um problema dos negros americanos, mas de toda a sociedade. E toda a sociedade nesse caso refere-se sobretudo a maioria branca. E nesse ponto, o documentário parte para a materialização desse racismo não apenas pelas imagens dos corpos negros, mas também pelos discursos e imagens dos corpos brancos racistas. Iniciando assim um segundo movimento em que podemos perceber as operações de construção da narrativa do filme pela montagem e encontro de imagens múltiplas.

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Se as fotografias e os registros fotográficos de pessoas brancas manifestando o seu preconceito racial são um dos alicerces para a materialização do racismo, outro pilar da narrativa é a relação que Baldwin e Peck estabelecem com o cinema clássico dos EUA e a sua formação de imaginário nacional. Os filmes integram a relação de Baldwin com os EUA e com o racismo desde a sua infância. Falando sobre a sua própria constituição como espectador de cinema, o escritor aponta a sua incapacidade de se identificar ou reconhecer com os personagens negros desse cinema dos grandes estúdios. Personagens negros caricatos, que não se assemelhavam as mulheres e homens negros que o cercavam e personagens que não podiam assumir o lugar do herói. Os negros estavam, em geral, fora de lugar no cinema. E para Baldwin essa ausência e deslocamento de negras e negros nos filmes, era também uma forma de supressão de realidade para negras e negros fora das telas.

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Peck aposta em seu filme cada vez mais no confronto entre essas imagens da experiência branca americana e as da experiência negra. Uma das sínteses do processo é a entrevista de Baldwin no Dick Cavett Show. Se há uma tensão declarada entre o escritor negro e outro convidado do programa, um professor de filosofia branco de Yale, é na postura desconcertada do próprio Dick Cavett durante todos os trechos da entrevista utilizadas pelo filme, que percebemos quão irreconciliáveis são as experiências. A presença de Baldwin é assertiva e intensa, Cavett permanece envergonhado, desconfortável.

Se nessa escolha de entrevista o confronto das experiências é ainda sutil, o final do filme é marcado pela montagem de planos e contra planos em embate declarados entre as imagens das experiências brancas e negras. Assim, imediatamente após as imagens da juventude branca dos anos 1950 cantando e dançando em “Um Pijama para Dois” (G. Abbott, S. Donen, 1957), Peck joga os espectadores para cenas de um policial branco atirando em manifestantes negros nos dias atuais.

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A operação de confronto na montagem prossegue nessa última parte do filme, que coloca em sequência: as imagens amadoras do espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles, em 1991, e as cenas românticas do casal branco dançando em “Amor na Tarde” (B. Wilder, 1957). E também a junção do close no rosto sonhador de Doris Day em “Volta meu amor”, (D. Mann, 1961) seguido da fotografia de uma mulher negra enforcada.

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Baldwin sumariza os dois níveis de experiência ao invocar a inocência grotesca da própria Doris Day e de Gary Cooper em seus filmes em oposição ao tom e ao rosto de Ray Charles em suas performances musicais. Imagens que Peck coloca lado a lado em seu filme, e que, no entanto, ainda não permanecem estranhas umas às outras.

Mas é essa tentativa de encontro, ou ao menos esse confronto, que Peck não cessará de produzir na montagem do seu documentário. Encontro das reivindicações do passado e do presente dos negros norte-americanos. Encontro dos dois níveis de experiência da sociedade dos EUA, a branca e a negra. Encontro no documentário pelas imagens do cinema, da televisão, dos registros históricos. Encontro de imagens que se contrapõem e deslizam umas sobre as outras. E nesse sentido, o que a montagem de Peck parece querer nos dizer é que atrás de cada imagem do cinema clássico branco dos EUA estão as imagens do massacre aos nativos americanos e a repressão e os assassinatos da população negra.

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A CRENÇA NA MATÉRIA

Por Yuri Deliberalli

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A religiosidade como um ponto de encontro da matéria, da presença física e da espiritualidade é um conceito que abarca estas três perspectivas em três longas-metragens que, dentre as diversas questões que abordam, procuram investigar os limites e abrangência da crença do ser humano em algo sobre-humano, intangível e não pertencente à ordem de seus atos. É essa vontade (e a credibilidade) da crença e do próprio ato de crer que levará os personagens a três formas distintas de encontro que, ao fim e ao cabo, validarão a noção de que a religião tem o condão de ensejar a harmonia e a ruptura das relações.

O modus operandi de Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1962) é todo alicerçado na premissa de um Jesus Cristo neorrealista, cujos atos milagrosos se aproximam da materialidade para alcançar a espiritualidade de seus ouvintes. Em suas pregações iniciais, Pasolini isola Cristo no plano frontal num sinal de que a palavra de Deus, desenvolvida enquanto um discurso radical de esquerda, não chega ao público com a força do fascínio e do encanto que deveria. Isto somente ocorre no momento em que os milagres materiais começam a ser operados por Cristo, porque apenas a consecução do bem material faz sentido para um povo acostumado à miséria.

A ideia de Pasolini é clara: Cristo somente conseguiria fazer a palavra de Deus chegar ao povo se usasse de meios identificáveis de assimilação do contexto espiritual, como, no caso, a transformação material dos bens. A atração do público não era exatamente o conteúdo, mas a demonstração empírica da palavra divina, como se Cristo fosse, na realidade, um mago. Religião enquanto matéria que traduz um significado espiritual e, portanto, vertente de manifestação política apta a causar a perseguição dos poderosos, razão pela qual o povo (e a câmera) se distanciam de Cristo em seus derradeiros momentos.

No mesmo filme, Pasolini articula a ideia de que a religião pode ser um elemento de sedução das massas, ao mesmo tempo em que pode causar a ruptura de todo um estado atual das coisas. É algo que Carl Theodor Dreyer também aponta em A Palavra (1955), ainda que em um grau diferenciado de abordagem. Aqui, a palavra de Deus é tida como um instrumento aristocrático, pertencente apenas à autoridade cristã e não aos membros comuns da comunidade como Johannes, que a prega aos quatro cantos da fazenda Borgen e é imediatamente taxado de insano. Caberá então a Johannes comprovar que não é palavra divina em si o meio de encontro da espiritualidade, mas sim a crença em tais escritos, alimentada pela fé mais pura (a fé de uma criança), que tem a capacidade de operar os verdadeiros milagres.

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Não deixa de ser uma ideia de compreensão particular de manifestação da fé, alheia apenas à autoridade religiosa e presente em cada um dos indivíduos que, à sua maneira própria, manifestam a sua visão particular dos mandamentos religiosos. Johannes não é um padre mas é tão (ou mais) crente do que aqueles que possuem o encargo religioso e é a sua persistência na fé que acaba por trazer a união da família em torno de um objetivo comum.

Em uma família desintegrada pela dor da perda de um membro querido, a palavra é utilizada por Dreyer como um instrumento de reaproximação, seja entre tais membros da família, seja entre desafetos, como o alfaiate. Aliás, é no núcleo narrativo do alfaiate que Dreyer demonstrará que a interpretação pessoal dos escritos religiosos pode ser causa de conflitos pessoais e até mesmo sociais (a proibição do casamento), num sinal profético de que as guerras futuras seriam fundamentadas nesse fator.

E é desse sentimento beligerante proporcionado pela interpretação diversa da palavra divina que Martin Scorsese transita em Silêncio (2016), porque duas religiões não habitam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ou seja, a palavra de Deus é um meio de propulsão da violência contra os padres e japoneses que se aproximam de um olhar diverso sobre a religião dominante (o xintoísmo), razão pela qual a opção de Scorsese em tratar a questão religiosa como uma questão física, de penitência do corpo para preservação ou alteração da espiritualidade, se coaduna com a visão de que a crença é um ato de fé extremo, passível de sobreviver às mais duras investidas contra a materialidade do ser humano.

Curiosamente, o aspecto material é o componente-chave da discussão proposta por Scorsese, afinal, cuspir na imagem do Cristo crucificado e pisar no fumie significa trair a sua religiosidade ou é apenas um mero sinal público, naquelas circunstâncias, de sobrevivência, uma vez que o ataque à iconografia não implica dizer que houve renúncia espiritual à concepção religiosa? Ou, melhor dizendo, a ação pública traduz a verdadeira compreensão da sua própria religiosidade?

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Como será comprovado no ato final, ainda que de um modo um tanto expositivo, é de que o sacrifício pessoal do padre Rodrigues não se confunde com o sacrifício espiritual, porque, embora preso fisicamente a um local, sua fé permaneceu intacta ao longo dos anos de cárcere. Sua religião o confinou ao abandono de tudo e de todos, mas também o fez encontrar o verdadeiro significado de sua aspiração espiritual.

Mais do que tratar do tema em si, os três filmes compartilham dessa busca pela verdadeira faceta da fé dentro de suas respectivas particularidades, sempre envolvendo a dicotomia entre o material e o imaterial como um subtexto narrativo. Em Scorsese isto é mais frontal, ao passo que em Pasolini e Dreyer é uma questão que permeia os respectivos filmes como algo mais conceitual do que concreto. Independentemente do método de abordagem, os três filmes estabelecem a desagregação causada pela religiosidade como um fator de incompreensão (a crucificação em Pasolini, Johannes como um louco em Dreyer e a tortura física em Scorsese) e a sua compreensão como um elemento de unificação (operacionalização do milagre em Pasolini e Dreyer e a autodescoberta da fé interior em Scorsese), reforçando o fato de que a crença na palavra divina, dada a sua condição de intangibilidade, está sujeita aos extremos dessa relação, mas sempre em busca de um ponto de conciliação.

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Introdução ao Cinema Vulgar

Por Pedro Tavares

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Miami Vice (Michael Mann, 2006)

No livro A Short History of Cahiers du Cinéma, a crítica, autora e roteirista Emilie Bickerton lembra da rejeição a cineastas que utilizavam gêneros como base para justificar suas histórias. A equipe de críticos e cineastas da revista, na época formada por nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer justificava o trabalho de diretores como Howard Hawks, John Ford, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock pelo manifesto da “Política dos Autores”. Rohmer, por exemplo, elevava Hitchcock a mestre moderno no início dos anos 50 através do texto Of Three Films and a Certain school e defendia o valor de obras de acordo com o tempo em que era analisado. Já Godard e Rivette teorizavam sobre obras de Nicholas Ray e Howard Hawks, respectivamente. Até o fim dos anos 60 esse discurso foi mantido, quando Godard, integrante da escola de Vertov, colocou a palavra ante à imagem e declarando no fim de Weekend (1967) “o fim do cinema” e da autoria.

  1. “Eu era um cineasta burguês, depois um cineasta progressista, e depois não mais um cineasta, mas um trabalhador de cinema (…) e quando falamos de Hollywood, entendemos Hollywood como todo mundo: seja o Newsreel, ou os cubanos, ou os iogoslavos, ou o Festival de Cannes, ou o de Nova Iorque, ou a Cinemateca Francesa ou a Cahiers du Cinéma. Hollywood quer dizer tudo relacionado com o cinema. Assim, cada vez que a gente diz Hollywood está dizendo o imperialismo deste produto ideológico que é o cinema” (Focus on Godard, CARROL, 1970)

O embrião da “Política dos autores” colocou os jovens críticos da Cahiers contra o conservadorismo da velha guarda e questionou a função da crítica. A “Política dos autores” funciona à distinção de cineasta e autor pela grife. O crítico e teórico André Bazin em 1957 esclareceu as dicotomias desta ideia e suas fragilidades através deste texto na edição de número 70 da Cahiers, comparando a recepção da crítica a um filme ruim de “autor” a um borrão de tinta feito por um pintor famoso. Essa ideia também foi invocada por Alexandre Astuc sobre camera-stylo na década de 40.

Já nos anos 00, o cinema ganhou uma nova maneira de produzir e distribuir filmes. A tecnologia facilitou a feitura e permitiu que filmes fossem vistos de variadas formas e assim refletindo o pensamento da função da crítica. Nos tempos de torrents e serviços de streaming, a variação desta “política de autores” foi criada via internet, onde o cinema sobrevive com mais força, longe das salas de exibição pública e das remanescentes locadoras de vídeo. Os novos autores, que segundo Bazin eram amados pela excelência e vitalidade e não pela abordagem, hoje são chamado de “vulgares” pelo diálogo com o irreal e carregam a mesma empolgação por parte da cinefilia – hoje sufocada por infinitos arquivos de torrent e mais agregador no sentido de definição sobre o que é ou não um “autor vulgar”.

Sinais dos tempos

Segundo artigos de revistas online de cinema, o ponto de partida para o termo “Vulgar Auteurism” foi a matéria de Andrew Tracy para a Cinema Scope sobre o cinema de Michael Mann à época do lançamento de Inimigos Públicos (2009). Porém Tracy já ensaiava sobre o termo na crítica de Déja Vu (2007) de Tony Scott. Adiante muitos artigos foram produzidos discutindo os valores estéticos e filosóficos de diretores que trabalham em “modo popular”, esta que seria a suposta base para o termpo Vulgar Auteurism. São diretores com preocupações distintas em relação à imagem, principalmente por seu espaço e função, mas em comum, todos têm momentos estéticos fascinantes em suas filmografias. A partir disso o que se viu nas redes sociais foi um desfile de stills que inerentes à qualidade dos filmes, os definiam. Um caso clássico desta ação é a comparação matemática de frames de Mortal Kombat (1995) de Paul W.S Anderson com Falstaff – O Toque da Meia Noite (1965) de Orson Welles divulgado no Tumblr “Vulgar Auteurism”. Desta relação com a imagem se questiona forma e influências destes “autores vulgares” que esbarram nas artes plásticas, jogos de videogame, HQs e claro, grandes diretores de cinema.

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Mortal Kombat e Falstaff em comparação em uma página do Tumblr.

O caso do diretor Paul W.S Anderson é um bom exemplo: cultuado por boa parte dos cinéfilos que se debruçam sob a crítica em redes sociais como o Letterboxd e MUBI, seus últimos filmes como Pompeia e Resident Evil: Retribuição foram ovacionados como baluartes do “gênero”. Este último com linguagem frenética, preocupada com a proximidade ao jogo de videogame. Pela produção criativa sobre o real, há espaço para observação que o Vulgar Auterism faz contraponto à autoria de um cinema feito nas ruas, em principal à Nouvelle Vague, Neorrealismo Italiano, o No Wave americano e ao Cinema Novo – já que falamos de movimentos cinematográficos; do uso da fantasia ante o real e de certa poesia não dogmática entre enredos que prestigiam os corpos. Pois já que falamos em Cinema Novo, digamos que o Vulgar Auteurism em muitos casos exige uma relação hiperconstrutivista sobre o corpo-espaço, da mesma maneira que Joaquim Pedro de Andrade faz em Os Inconfidentes (1972) e Glauber Rocha em Terra em Transe (1967) no qual o grande mestre desta função dos autores vulgares é Johnnie To.

São desses corpos que vemos um trabalho de coreografia coeso em cenas de ação – vale citar a cena da boate de De Volta ao Jogo (Chad Stahelski, 2014), o balé de Soldado Universal 4 (John Hyams), as famosas sequências de tiroteio presentes em boa parte dos filmes de Johnnie To e as perseguições dos últimos filmes de Tony Scott. Essas cenas servem de suspiro à trama em boa parte dos casos e não servem como um show de alegorias. É importante lembrar que por não possuir bordas, o termo Vulgar Auteurism sempre carregará exceções. E se pensarmos que, aos meandros de definição, poucos movimentos cinematográficos foram batizados por quem fazia os filmes e sim por críticos e pesquisadores os definindo por margens e similaridades – data, abordagens, discurso… O Vulgar Auterism é sim, uma ótima ferramenta de marketing para cinefilia ainda que a questão para onde os olhos miram realmente cabe a cada quadro, inclusive deste Tumblr citado anteriormente.

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De Volta ao Jogo (Chad Stahelski)

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Soldado Universal 4 (John Hyams)

O Vulgar Auteurism permite o retrospecto. Nomes como Paul Verhoeven, Walter Hill e John Woo, para citar alguns, reprovados pelo crivo do público e aclamados pela crítica nos anos 80 e 90, repetiram, em devidas proporções, o caso de Hawks, Ford, Ray e Hitchcock para os críticos da Cahiers du Cinèma. Hoje Verhoeven, Hill e Woo aparecem em dezenas de listas que os definem como autores vulgares. Há a identificação direta do termo com autores que trabalham com gêneros populares como o cinema de ação, terror e suspense como Tony Scott, Jaume Collet-Serra, Johnnie To, Neveldine/Taylor, M. Night Shyamalan e Kathryn Bigelow, porém, por exemplo vemos os irmãos Farrelly e Abel Ferrara no mesmo balaio. Os nomes de John Carpenter, Clint Eastwood, Samuel Fuller e Michael Cimino também figuram em diversas listas que definem o que é o Vulgar Auterism.

A imagem e seus custos

Por ser abrangente em relação a tempo e características, o termo se utiliza de  alicerces que permitem discorrer sobre o contínuo expediente de reflexão em obras classificadas como escapismo. São diversos tipos, meios e leituras de cinema convergidos em um por quem o consome e que prazerosamente reverte seus meandros de produção – dos altos cifrões ao objetivo dos estúdios – em função de uma interpretação baseada na arte e sua pluralidade formal em respeito ao diálogo. Mas se estamos em um momento que a internet cria um caminho independente de distribuição, o Vulgar Auteurism hospeda mais uma contradição.

O “modo popular” hoje encontra plataformas de streaming  para saciar o espectador, já que as salas de cinema hospedam em boa parte comédias e filmes de heróis e enfrenta o interesse público pelas séries de grandes estúdios. Portanto, não é tão popular assim. Com raras exceções, boa parte dos autores aqui citados produzem com auxílio de produtoras de pequeno e médio porte ou partem para produções independentes com ajuda dos fãs – a exemplo de Rob Zombie e seu último filme, “31”. Ainda que se afirme que o Vulgar Auteurism se resume a filmes de ação com suporte de distribuição e divulgação, seu histórico o define como um termo que viveu nas locadoras e hoje está no video on demand. Ainda sobre “31”, o filme foi produzido graças a ajuda dos fãs via Kickstarter, foi exibido em festivais e sem respiros parou nas plataformas digitais – e consequentemente nos sites de torrent. Resumindo: não houve tempo para o filme construir carreira.

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31 (Rob Zombie)

Herói ou vilão?

A respeito da discussão que o Vulgar Auterism devolve à crítica sobre a função da imagem e da própria crítica em tempos de dispositivos que dominam o olhar e que o interesse pela leitura é vertiginosa, é preferível ver com bons olhos o termo. A sensação é de ciclo, se voltarmos à “Política dos Autores”. Ainda que se questione constantemente o peso da grife sobre a palavra e que hoje tudo pode ser resolvido com buscas via YouTube, estamos portanto a falar sobre a vilania dos novos tempos. Ainda que suportada por alegorias com diversas funções e códigos, trata-se sempre do ode à narrativa e dramaturgia. Se há a possibilidade de uma provocação avant garde ao desinteresse e passividade do consumidor, cabe a questão se os autores vulgares são um bom caminho para o interesse do grande público. Principalmente por considerar a imagem ante ao verbo na arte contemporânea, o irreal e acessibilidade.

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Vulgarismo e prestígio – Alguns precedentes e considerações

Por Bernardo Moraes Chacur

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Discussões sobre o vulgar auterism costumam orbitar em torno do segundo elemento da expressão – isto é, sobre a pertinência da comparação entre esse conceito mal definido e o cânone estabelecido em torno da Política dos Autores nos anos 50. Talvez seja mais produtivo refletir sobre o primeiro componente da fórmula: a noção de vulgaridade em arte.

Respeitaremos o clichê e começaremos pela Poética de Aristóteles, que já abordava as relações de superioridade entre diferentes gêneros da mimesis. Segundo leituras mais apressadas desse texto, as formas mais elevadas de arte tratariam de temas e personagens elevados – Deuses, Heróis, Reis. Já a comédia representaria o seu extremo oposto: os piores tipos de comportamento, as classes mais baixas, apelo aos basic instincts do seu público. Variações desse discurso nortearam a hierarquização estética durante alguns séculos, embora algumas dessas máximas não possam ser diretamente atribuídas ao texto original sem alguma controvérsia.

No trecho a seguir (condensado a partir de duas passagens), o filósofo resume os preconceitos de seu tempo nos seguintes termos:

Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se (…) [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores (…) feita para um público de bom gosto (…) a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior”[1]

Em seguida, Aristóteles defende a primazia da tragédia sobre a epopeia, contrariando esse consenso. Logo, seria o filósofo o grande precursor do vulgarismo? Ressalvando-se a malandragem confessa da seleção acima, é possível arriscar duas conexões entre este debate e outros bem mais recentes: 1) um determinado gênero, de alta aceitação popular, é julgado inferior a priori; 2) A refutação dessa suposta inferioridade, propondo modificar a valoração anterior.

Nessas disputas pela posição de diferentes gêneros em uma mesma hierarquia, raramente (ou nunca) a própria noção de hierarquia era atacada. Diferentes concepções foram utilizadas para definir o que constitui um tema elevado em outros períodos históricos: a partir da Renascença, a pintura ocidental prestigiou ora os tópicos religiosos, ora os histórico-mitológicos até chegarmos, às temáticas sociais alguns séculos mais tarde. Durante todo este intervalo, havia demanda pela chamada pintura de gênero e outras modalidades de menor status: cenas domésticas, naturezas-mortas, paisagens etc., com alguns gêneros ganhando ou perdendo ascendência ao longo do tempo. Ainda assim, podemos apontar uma constante cambiável: certos gêneros são considerados frívolos, enquanto outros, dignos de contemplação séria.

As questões envolvidas nunca eram meramente estéticas, gerando impactos socioeconômicos concretos sobre a produção artística: cargos oficiais para artistas, ensino em academias, o acúmulo ou desvalorização de capital cultural para um público consumidor que procurava se afirmar ou diferenciar socialmente. Mas entre tendências conservadoras ou contestadoras, os produtos culturais consumidos pelas classes mais baixas invariavelmente ocupavam a base da pirâmide do prestígio.

O interesse por histórias e formas de expressão populares só foi despontar na Europa quando as mesmas passaram a ser consideradas em vias de desaparecimento, sob as ondas de urbanização dos séculos XVIII e XIX (e o Nacionalismo, com sua ênfase na ‘descoberta’ de culturas próprias, foi de igual importância para essa valorização)[2]. Para nossa pauta, dois precedentes são relevantes nesse movimento folclorista a) os detritos de uma era passaram a ser o tesouro de outra; b) a cultura popular urbana era vista como uma forma decaída da anterior e as cidades como o espaço onde o patrimônio ancestral iria se perder.

Esta última ideia ainda era bem aceita em princípios de século XX, como atestam as reações causadas pelas novas mídias (fotografia, rádio, cinema). Os Guardiões do Bom Gosto puderam, até então, oscilar entre desinteresse e desprezo pelo juízo estético das massas. Agora, eram afrontados pela própria escala massificada dessa cultura. E o cinema, em suas primeiríssimas encarnações, concentrava todos os vícios atribuídos à vulgaridade urbana. Até os primeiros anos da década de 1910, certos locais dedicados à exibição de filmes – os nickelodeons, dentre outros – chegavam a ser considerados física e moralmente insalubres[3].

Transcorrido pouco tempo, consolida-se uma indústria de cinema, ofertando um produto assimilável pela Boa Sociedade. Nesse contexto de necessidade mercadológica e legitimação, o cinema cortejou os padrões pequeno-burgueses de respeitabilidade e distinção cultural, condensando em torno de si alguns milênios de indicadores de prestígio e hierarquias de gêneros (vários dos quais já ultrapassados àquela altura em seus campos de origem).

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Por vezes, apelavam-se às mesmas virtudes já repisadas desde a Antiguidade ou Renascença: os Eventos Históricos, a vida dos Grandes Personagens, a Relevância Social (todas presentes em o Nascimento de uma Nação de Griffith). Outro procedimento recorrente era a adaptação de textos consagrados da Literatura e Teatro, reivindicando de forma quase parasítica as glórias concedidas às outras Artes. Não por acaso, termos oriundos de uma noção ingênua de dramaturgia ainda são usados para enaltecer este “cinema de qualidade’, como a ‘Boa Estória’, ‘os Diálogos Inteligentes’ etc. Cem anos depois, alguns desses valores ainda persistem como critérios de excelência para parte do público e crítica.

A linha de montagem hollywoodiana seguiu produzindo a sua cota anual de Filmes Sérios, mas em número sempre inferior à oferta de títulos de genealogia menos ilustre: roteiros baseados em contos publicados em periódicos, no teatro melodramático e na literatura barata. Essa produção média não foi uniformemente desprezada pelos próximos 30 anos: atingindo milhões de pessoas, o cinema consolidou o seu nicho, justificando o surgimento de uma crítica especializada. Ainda assim, a sua ordenação no totem de prestígio manteve-se, na melhor das hipóteses, intermediária. Até o final da década de 50 e o advento do “autorismo”[4].

Na ocasião, dois fenômenos complementavam-se: 1) a expansão de um cinema internacional, com sua alteridade em relação à Hollywood e seus sobrenomes convertidos em marcas registradas (Kurosawa, Bergman, Fellini etc.); 2) a defesa entusiasmada, por parte de uma nova geração de críticos, de nomes que atuavam há décadas no cinema americano. Tais discussões acabaram gerando um cânone alternativo (e que se tornaria “oficial”) de Grandes Cineastas, composto por realizadores europeus, asiáticos e – em pé de igualdade ou precedência – diretores baseados nos EUA e cuja obra consistia em suspenses, comédias, faroestes etc.

Esse movimento não deve ser interpretado como uma heroica caminhada até a luz. Antes, trata-se de mais uma etapa na trajetória da valoração cultural: defender que a 7ª ARTE possuía Autores (vulgares ou não), também era um recurso de conquista de prestígio, reivindicar o mesmo status das suas seis precedentes e inseri-la em uma narrativa equivalente, com seus Grandes Homens, Gênios e Autores (de Homero a Shakespeare, de Michelangelo a John Ford). Além disso, escrever um livro sobre Hitchcock não é apenas uma defesa do valor do diretor inglês, mas também a defesa do valor de escrever sobre o diretor inglês, ou seja, um exercício de autojustificação para um público de entusiastas e para os próprios críticos e estudiosos.

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II.

Uma variação da seguinte anedota é veiculada periodicamente na imprensa e redes sociais: um balde, esfregão ou qualquer objeto prosaico é esquecido em um museu e o público confunde-o com uma obra em exposição (nas entrelinhas: a suposta falta de legitimidade da arte moderna/contemporânea). As suas origens podem ser traçadas até o momento em que Duchamp expôs um urinol e batizou-o A Fonte. A obra pode ser interpretada de diversas maneiras, uma delas bastante aplicável ao nosso tema: a importância da posição, do quadro de referência para as construções de Sentido. Mais do que uma provocação, a Fonte de Duchamp (e as anedotas sobre baldes esquecidos) sugere algo essencial sobre o funcionamento do sistema.

Alguns exemplos, mencionados ou apenas sugeridos nos parágrafos precedentes: os contos populares do início da Idade Moderna eram apenas a camada inferior da cultura no seu próprio tempo e alguns séculos depois, Folclore. Vertigo foi recebido como um mistério mediano e mal resolvido em 1958 e o maior filme de todos os tempos em 2012[5]. Deslocando o nosso foco da recepção para a produção dos textos: a Poética pôde ter elementos de polêmica quando escrita, mas converteu-se em manual de excelência literária poucos séculos depois. A Política dos Autores, de controvérsia inicial passou a influenciar concretamente a importância dos diretores na Indústria, em pouquíssimos anos.

Especialmente nos dois primeiros exemplos, temos um mesmo texto recebido de formas completamente diferentes em um novo contexto, demonstrando a importância da moldura, da inserção do objeto no Museu, para a construção do sentido a cada leitura. A maneira como os objetos, culturais ou não, são confrontados é de tal forma orientada pela sua função, status e discursos adjacentes que é impossível pensa-los de forma separada de seu quadro de referência, isolar a Obra-em-si. O que não quer dizer que a Obra não exista, que todo o sentido seja arbitrário, uma mera ilusão de ótica convencionada por cada grupo observador.

Quando os folcloristas passaram a debruçar-se sobre a literatura vernácula, identificaram inúmeros pontos de interesse relativos à sua estrutura, a sua capacidade de produzir variações e as suas raízes históricas. Quando a crítica começa a exaltar Hitchcock, depara-se com um domínio estilístico e densidade temática observáveis na construção de cada plano. Em ambas as situações, a recepção não se produziu aleatoriamente, mas a partir de elementos identificáveis nas próprias obras. Paul Ricœur certa vez resumiu que a Leitura (que deve ser entendida de forma ampla) consiste no encontro entre um mundo do texto e um mundo do leitor[6]. Nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em uma discussão sobre o sentido.

Ambas as situações atestam a crescente importância do formalismo no pensamento ocidental sobre a estética. Percebe-se o deslocamento de uma análise e valorização centrados na temática evidente, nos referentes da obra no ‘mundo real’ (valores ‘externos’) para a consideração dos elementos constitutivos do texto e seu aparato de produção (valores ‘internos’)[7]. Evidentemente, tais transições não são totais nem homogêneas, menos ainda o ponto final da História em uma linha de evolução constante. A análise formalista não é a única possível em 2016, tampouco constitui a resposta ‘certa’ ou definitiva.

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III.

No Islã, os xiitas creem que a Revelação se encerrou com o Profeta, enquanto para os sunitas, ela continuou até os seus sucessores diretos. O autorismo também possui seus xiitas e sunitas. Os xiitas acreditam que a inspiração divina se limitava à canonização de Hitchcock, Hawks, Ford etc. e que nunca mais se encontraria algo de valor sob a cobertura do cinema de gênero. Sunitas diversos estenderam o precedente para outros cineastas e décadas em uma fronteira periodicamente deslocada, mas jamais abolida. Dessa forma assistimos a gradual incorporação das comédias de Tashlin até os zumbis de Romero ao quadro de respeitabilidade. Ainda assim, cada nova tentativa de expansão desse limite costuma encontrar resistências.

O ramo xiita costuma protestar que as práticas dos autores originais eram indissociáveis do modo de produção da Hollywood Clássica. Já os sunitas podem objetar que um Isaac Florentine não estaria no mesmo nível de um Paul Verhoeven (um dos mais recentes reabilitados). No entanto, tais protestos só são aplicáveis à indagação menos interessante (existem Autores, em termos comparáveis aos grandes cineastas do passado, em espetáculos de CGI 3D ou em fitas de pancada Direto-para-Streaming?), em prejuízo de questões mais férteis: pode-se encontrar valor estético no Vulgar? É possível confrontar e produzir ideias a partir deste ‘gênero’?

Cortejarei protestos sugerindo um instante de comparação entre dois filmesAdeus à Linguagem 3D dispensa lógica narrativa e personagens, a exemplo das últimas décadas da filmografia de Godard. Para processar com sucesso os seus temas nos termos propostos pelo diretor franco-suíço é necessário, além de certa familiaridade com alusões filosóficas e literárias, atentar para o sentido produzido pelos seus procedimentos formais, pelos elementos constituintes das imagens que se sucedem e como eles ilustram e complicam as ideias sugeridas pelo próprio título da obra e pelas frases que irrompem ora escritas, ora proferidas pelos atores em cena.

Para os dispostos, a experiência permite uma exploração sobre o estado da Linguagem (cinematográfica ou não), sua adequação para confrontar questões políticas, pessoais e seu potencial para o autoritarismo e violência. Outra abordagem possível seria admirar a beleza das imagens e da mise-en-scène, sem fazer questão de decodificar cada passagem. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria buscar no filme uma estória coerente ou personagens que permitam uma identificação com o público (mal-entendidos frequentes).

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Resident Evil: Retribuição (também 3D) não parece preocupado com uma lógica narrativa impecável ou desenvolvimento de personagens. Há um enredo, que trata da manipulação violenta de espaços físicos e temporais simulados e da sobrevivência nesta fronteira permeável entre real/virtual. Aproveitando-se do fato de que praticamente todas as imagens foram produzidas digitalmente, Paul W.S. Anderson libera a sua “câmera” e a faz transitar em velocidade vertiginosa entre visões microscópicas e telescópicas da ação, acelerações e desacelerações do tempo, transições entre mapas de videogame e cenários “reais”.

Para os dispostos, o efeito cumulativo desses procedimentos formais ilustra e complica um subtexto não muito distante do próprio texto. Outra abordagem possível seria simplesmente se divertir com a beleza das imagens, com o absurdo das situações e a inventividade da mise-en-scène. Por outro lado, a experiência mais frustrante seria procurar no filme uma estória, personagens e atuações que atendam aos padrões de dramaturgia-cinematográfica-de-qualidade vigentes em 2016.

A comparação proposta pode soar descabida, uma vez que Godard é considerado um intelectual, enquanto Anderson dirigiu quatro adaptações de videogames. No entanto, penso que os exemplos superficialmente elencados nestas páginas ilustram o caráter historicamente variável de cada leitura. Cientes disso, ao invés de perpetuar as interpretações já autorizadas, podemos explorar as possibilidades de um confronto aberto com cada obra. Ao perseguir esse objetivo, não nos desvencilharemos completamente de nossas preconcepções, mas torna-se possível pensá-las e testar os seus limites. Armadilhas nos aguardam a cada passo. Um erro comum seria acreditar que, uma vez que o vulgar de um período pode se tornar valorizado no próximo, todo produto marginal estaria destinado a uma revalorização futura, em um mero processo de reversões cíclicas.

Para finalizar, vale lembrar que tais movimentos não possuem mão única. Quantos filmes não seriam levados à sério graças ao seu verniz de importância, antes de qualquer análise? E ao longo do tempo, mesmo os cânones podem perder a sua centralidade. David Bordwell ao estudar pormenorizadamente a linguagem clássica de Hollywood, não pôde deixar de notar o quanto os arthouses que lhe faziam contraponto também compartilhavam entre si semelhanças estéticas, estratégias narrativas, e convenções: o original, portanto, tinha (e continua a ter) um forte componente genérico, que certamente não o torna pior, mas coloca em cheque a sua hipotética superioridade. E se as filmografias de Jerry Lewis e Ingmar Bergman podem se ver igualadas em diferentes climas, outras obras, outrora incensadas, podem sofrer pior destino, como atesta a legião de títulos premiados a quem restou o proverbial Olvido da História – deslocamento que, por sua vez, também não será necessariamente irreversível.

 

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Agradecimentos a Arthur Tuoto, Bruno Amato, Marcus Martins e a toda comunidade CV. Agradecimento especial para Guilherme Gaspar, que tornou este texto legível.

[1] Seguem as passagens originais: “XXVI. 2.: Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta [a epopeia] a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria, por conseguinte a mais vulgar. (…) 5. Esta [a epopeia], segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior.” A poética clássica /Aristóteles, Horácio, Longino.  Introdução Roberto de Oliveira Brandão; tradução Jaime Bruna. 7.  ed.  São Paulo:  Cultrix, 1997.

[2] Os fenômenos mencionados não esgotam os fatores envolvidos nessa transição. Sugiro BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa 1500-1800 / trad. Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. para um panorama abrangente da mesma. Também penso haver grande interesse em pensar a questão sob o prisma das mudanças epistemológicas – vide As palavras e as coisas (FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.).

[3] Para este e os próximos parágrafos: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: Espetáculo, narração, domesticação. São Paulo. Scritta, 1995 e Bordwell, David; Staiger, Janet; Thompson, Kristin. The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press: 1985.

[4] O autorismo da década de 50 não representa a primeiríssima vez em que se atribuiu aos diretores aspirações e méritos estéticos. Não nos interessa aqui o ineditismo da abordagem, mas o papel desempenhado pela mesma na mudança de status experimentada pelo cinema a partir daquele período. Tampouco deve-se acreditar em uma equivalência automática entre autorismo e análise “esclarecida”, uma vez que diversas refutações e corretivos já foram propostos aos seus axiomas (que vão desde os mais ingênuas –  propor outra classe profissional, como os roteiristas, como principais autores de um filme – aos mais pertinentes – como apontar as tendências autoristas em ancorar suas leituras nas discutíveis “intenções do autor” ou ignorar contextos históricos em prol de um discurso excepcionalista).

[5] De acordo com a enquete realizada a cada dez anos pela Sight and Sound.

[6] RICŒUR, Paul. Temps et Récit . Volume 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, 1991. (Coll. Points – Essais).

[7] Tentei aludir aqui aos conceitos de episteme e formações discursivas, conforme descritos por Foucault em As Palavras e as Coisas, já citada anteriormente. Restringindo muito a abrangência dessas ideias, arrisco resumir que o discurso (em nosso caso, a hierarquização) é inseparável de suas condições de possibilidade (as premissas que definem o que constitui a excelência). Vide nota 2 acima.

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Paranoia & Solidariedade: O Cinema de Jaume Collet-Serra

Por Bruno Amato Reame

O que significa hoje em dia no cinema americano ser um cineasta de gênero, mas de projetos originais, sem filiações às infames franquias? Significa abrir seu próprio espaço de forma difícil e gradual, sendo ignorado pelos olhos desatentos de quem nada enxerga de expressão pessoal vindo da indústria. É o caso de Jaume Collet-Serra.

Nascido na Catalunha, mudou-se para os EUA (segundo suas palavras, com um inglês apenas básico) aos 18, para formar-se em cinema. Aparentemente essa experiência de deslocamento o marcou: um elemento recorrente em vários de seus filmes é o contato entre americanos e estrangeiros. Um contato marcado inicialmente por medo, rejeição ou alheamento dos primeiros aos segundos. Daí os crimes bárbaros da psicopata mirim (e russa) de A Órfã (2009), por exemplo, poderem ser entendidos inicialmente como uma reação a uma cultura homogênea que a rejeita por ser diferente, ao menos até uma revelação complicar – ou simplificar, dependendo do ponto de vista – essa visão.

Formado na Columbia College, seu trabalho como diretor de clipes e comerciais de TV chamou a atenção do produtor Joel Silver, que o contrataria para dirigir o remake de A Casa de Cera (2005). Parte de uma nova leva de teen slashers, o longa se destacou pela composição visual mais requintada que a média no gênero. O clímax, em que a literal casa de cera do título derrete aos poucos, soterrando consigo de forma concreta e metafórica todas as mentiras criadas por seus arquitetos, é memorável nesse sentido. O filme também se esforça em estabelecer subtextos inesperados, como o paralelo entre os crimes dos assassinos que matam gente jovem e bonita preservando seus corpos como estátuas de cera e o próprio gênero slasher, que faz o mesmo com seus jovens astros. Não surpreende que A Casa de Cera teve seus defensores entusiasmados. Não foi meu caso na época e nem mesmo hoje em dia. O filme perde muito de seu potencial com os adolescentes desinteressantes – na verdade, nem mesmo os vilões causam alguma impressão, pecado mortal no gênero. É possível que o próprio Jaume concorde comigo: é significativo que os seus longas posteriores contem com protagonistas de uma faixa etária significativamente maior, ao menos até o recente Águas Rasas (2016).

O importante é que a partir dali iniciava-se uma carreira. Seus filmes passam a ter um material dramático com mais oportunidades para o elenco trabalhar e brilhar. Tal interesse não se limita aos personagens principais: pensemos no encontro entre Frank Langella e Bruno Ganz em Desconhecido (2011). Há um cuidado ali para fazer valer cada instante daquela interação, e até adicionar uma camada inesperada ao que seria apenas mais um malvado genérico.

Depois de A Casa de Cera, um olhar desatento sobre o restante de sua filmografia pode sugerir inicialmente uma obra por demais heterogênea e impessoal, quando na verdade é de uma coerência exímia. Esta análise equivocada é compreensível pois, afinal, o que pode haver em comum entre adolescentes presos numa cidade falsa, uma mãe às voltas com uma filha adotiva homicida, um botânico cuja identidade é roubada numa Berlim sem memória (como é memoravelmente descrita no filme por um coadjuvante), um segurança aéreo tentando identificar um assassino anônimo entre centenas de passageiros durante um voo, pai e filho correndo a noite toda da Polícia e da Máfia numa Nova York labiríntica, e uma surfista presa num recife tentando escapar das mandíbulas de um tubarão?

São premissas que soam como blefes picaretas, sem dúvida. No entanto há algo de interessante na maneira com que esses filmes nos remetem a uma lógica de jogo – aliás, se algo aproxima Jaume de demais cineastas dito vulgares é a afinidade com os videogames. É aprazível ver a engenhosidade de seus personagens resolvendo seus problemas e, por analogia, ver este diretor resolver seus filmes. Porém, acredito que vê-lo como um diretor de premissas absurdas seja um ponto de partida possível, mas limitado. Jaume tem interesse real naquelas situações, em como expressá-las cinematograficamente (seu uso de cor é sempre notável), e os efeitos dramáticos delas naquelas pessoas (não tenho dúvidas de que ele deve concordar com a máxima de Tag Gallagher de que em cinema personagem é mais importante do que narrativa).

A identidade, ou melhor, sua reconstrução após a fratura, é a grande questão de sua filmografia. Seus personagens estão presos em situações-limite improváveis, ratoeiras físicas, mas também mentais: trauma, remorso, luto, alcoolismo etc. Para escapar destes ardis, seus heróis têm que decidir quem são, ou melhor, quem querem ser. Só quando resolverem seus dilemas internos conseguirão sair do buraco em que estavam para abrirem seu próprio espaço.

Num mundo de ameaças reais, mas ocultas, a solidariedade (no sentido de reciprocidade) é o único valor autêntico. Essa solidariedade, entretanto, tem seu preço: pessoas inocentes morrem com frequência no cinema de Collet-Serra, em geral por tentarem ajudar o herói do filme e/ou por estarem perto demais dele. O cineasta sempre lamenta estas mortes, elas nunca são diversão ligeira no cinema dele: câmera sempre se demora no corpo e no rosto de cada vítima inocente uns segundos a mais do que estamos acostumados no mainstream.

Já era possível ver sinais destes temas, de forma simplória, em seu primeiro longa: os protagonistas de A Casa de Cera são irmãos gêmeos, mas de relação tensa, disfuncional. Só depois de verem seus amigos serem mortos pelos psicopatas (gêmeos também) é que se unem para detê-los. Já em A Órfã, o cineasta faria um trabalho mais elaborado nesse sentido. Aqui uma mãe (Vera Farmiga) alcoólatra, e em luto, assiste impotente a vilã se ocultar atrás da máscara da inocência infantil. Nenhuma autoridade – familiar, institucional – pode ajuda-la, pois ninguém a escuta, exceto por um médico estrangeiro via ligação internacional num momento crítico da trama. No fim a menina assassina em série menos destrói uma família e mais estilhaça as rachaduras pré-existentes dela (estilhaços de espelhos, claraboias e lagos congelados são parte fundamental do clímax, por sinal). Se A Órfã é o mais sombrio de seus filmes (mas também um dos mais engraçados) é porque a fratura exposta parece grande demais para uma recuperação completa.

Por outro lado, a solidariedade ficaria ainda mais evidente nos dois filmes seguintes, os Liam Neeson thrillers Desconhecido e Sem Escalas (2014). No primeiro, após um grave acidente automobilístico, o herói acorda do coma em Berlim para descobrir que sua vida foi roubada por um impostor com perfeição assustadora. Quem irá acreditar em sua história maluca? Bem, apenas imigrantes ilegais e outros desajustados, a maioria dos quais infelizmente não viverá até os créditos finais. Uma dessas imigrantes (Diane Kruger) aconselha o personagem principal que ele não pode mudar o que ocorreu, mas pode agir aqui e agora, palavras que soam como o credo de Jaume no restante de sua filmografia. Já em Sem Escalas, o segurança de voo de Neeson é outro herói alcoólatra e em luto desse diretor. E para este policial resolver o mistério será preciso que ele arranje os aliados certos entre os passageiros (e vítimas potenciais) do avião, além de abusar de sua autoridade legal em ecos de pós 11 de setembro.

Por outro lado, o Liam Neeson thriller seguinte parece marcar uma ruptura com o que veio antes. Não há muito espaço para solidariedade em Noite Sem Fim (2015), nem para inocentes. Ao contrário, aqui Neeson (assassino profissional, alcoólatra e pai relapso) mata muitos amigos e colegas do submundo – mas tais mortes também são lamentadas assim mesmo. É o filme que mais ressalta o catolicismo deste diretor catalão. Comparações com Lang e Hitchcock se revelam apropriadas não porque Jaume trabalha no gênero thriller, mas por esta moral católica: seus heróis também são atormentados pelo pecado original (e os inocentes que os ajudam poderiam ser os primeiros católicos perseguidos pelos romanos). Noite Sem Fim termina sugerindo que nem sempre há espaço ou tempo para reconstruir fraturas. É o contraponto pessimista ao restante de sua carreira.

De certa forma, o contraponto prossegue em seu trabalho mais recente, Águas Rasas. Trata-se do mais básico e eficiente de seus filmes: uma surfista (Blake Lively), uma praia, um tubarão, uma pedra e uma gaivota, elementos empregados pelo cineasta com cuidado e paciência. A heroína da vez também está de luto e suas férias no México fazem parte do processo. Grande parte do suspense do filme parte de que uma vez com a perna machucada e isolada pelo tubarão num recife, não há nada que ela possa fazer – aparentemente – exceto pedir ajuda (mas ela não fala espanhol…). Diferente de Desconhecido e Sem Escalas, por exemplo, não há espaço para aliados possíveis – cada vez que ela pede ajuda uma nova fatalidade ocorre. Será preciso que ela aceite, em vários sentidos, que a morte é o risco da vida, para superar suas barreiras.

Em suma, apesar do humor de seus argumentos inusitados, Jaume leva seus personagens muito a sério, sem permitir, contudo, que seus filmes inflem em autoimportância. Há sempre um equilíbrio fino entre um humilde pragmatismo com expressividade visual. Não estamos falando de Christopher Nolan, portanto, mas também não estamos falando de outros tantos diretores em Hollywood, bons ou ruins, vulgares ou não, cuja autoria pode muitas vezes ser facilmente detectada por um trabalho mais evidente de exacerbação das formas (Shyamalan, Paul W. S. Anderson etc.) ou filiação acintosa a um modelo de melodrama clássico (os últimos James Gray). Ou seja, embora o catalão seja um indiscutível autor, o mais surpreendente talvez seja perceber que ele é um autor em sua ideia mais anacrônica (e discutível) possível, aquela do talento dentro do sistema que discretamente estabelece sua personalidade (seu lugar na indústria enquanto autor é anacrônico, não exatamente os filmes em si). Jaume Collet-Serra abriu seu próprio espaço; cabe a nós enxergar seu rastro.

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Destruir, Reconstruir – Resident Evil: Retribution (2012)

Por Arthur Tuoto

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Shopping (1994) de Paul W.S Anderson

O espaço da cena, no cinema de Paul W.S. Anderson, é um espaço de controle. Desde filmes como “Shopping” (1994) e “Event Horizon” (1997) é possível reconhecer o estúdio como uma espécie de zona mística de regras próprias. A Londres distópica submissa a uma ordem urbana de propriedade e consumismo no primeiro, a nave espacial stalkeriana de uma vocação diretamente gore no segundo. Alegorias científicas e aproximações pós-apocalípticas à parte, essa veneração pela hiperconstrução de um espaço, acaba, invariavelmente, estabelecendo uma dinâmica formal bastante dominadora. Mas o controle, aqui, está longe de engessar ou inflexibilizar as possibilidades narrativas da obra. Pelo contrário, os filmes de Paul W.S. Anderson são como playgrounds engenhosos onde todo tipo de imaginário fantasioso – de uma adaptação steampunk de “Os Três Mosqueteiros” ao barroquismo abstrato da queda de Pompeia – parece possível. O gosto pelo simulacro não significa um desejo pela fiscalização de certos modos, pelo controle como uma dimensão daquilo que é essencialmente estável, mas sim por uma possibilidade de invenção, por um laboratório arquetipal independente. Cada filme é um ecossistema próprio, munido de simbologias e mandamentos plásticos autônomos. Uma realidade à parte que, assim como uma fauna e flora particular, demanda os seus próprios modos de sobrevivência. “Resident Evil: Retribution” não representa apenas o ápice desse modelo processual; é o filme que, devidamente, melhor escancara o seu método.

E se estamos diante de um filme de método, estamos diante de um filme conceitual. O quinto trabalho de uma franquia de pleno sucesso comercial lança mão tanto de um apelo industrial evidente em seu arsenal de violência explosiva, como de elementos claramente subversivos em sua estrutura autoreferencial. Ao mesmo tempo que assistimos a um filme que tem no fluxo de uma ação hiper-real constante o seu mote prático, essa mesma hiperconstrução, esse mesmo espaço do estúdio passivo de intervenções gráficas desmedidas, vai se desfazendo e se renovando, vai passando por temáticas e abordagens distintas a medida que o filme vai evoluindo.

Ora, não estaríamos, finalmente, diante de um adaptação de video game que de fato intui o seu objeto? Mais do que se focar na dinâmica cinematográfica natural da jornada de um jogo, “Resident Evil: Retribution” é um filme sobre o gameplay em si. A centralização em uma personagem motivo vai além de uma demanda dramática, o filme existe para conceber novos obstáculos, novas fases, novas realidades a partir um elemento temático chave: a sobrevivência. Afinal, quantas vidas possui nossa personagem?

Já no começo do filme o diretor propõe uma imagem de ressurreição. Após sair derrotada do combate final do filme anterior  – “Resident Evil: Afterlife” (2010) -, Alice afunda de braços abertos no oceano para, logo depois, acordar em uma cama, com uma família, com um cabelo diferente. Aonde estamos? Em uma realidade doméstica alternativa onde não apenas personagens do passado voltam em relações familiares distintas, mas a exata mesma ameaça continua: zumbis. Essa mudança de perspectiva funciona como uma espécie de falso reset onde somos transportados para um universo que remete a “Fim dos Tempos”, de Shyamalan: o filme como uma alegoria luminosa dos próprios elementos. Nessa falsa história familiar que abre o filme, a ameaça dos zumbis contrasta com um ambiente artificial, asséptico, cosmético. Tudo é muito iluminado, é frontal. Estamos em um filme de terror às avessas?  Não, apenas  em um simulacro. Dessa vez, dentro da própria obra. Ou seja, já de início fica muito claro que o controle não será apenas a forma do filme, mas também o seu objeto.

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Personagem derrotada: A ressurreição simbólica como um mote do gameplay

Neste filme de simulacros sobre simulacros, o espaço do estúdio, tão caro ao diretor em todos os seus filmes, acaba ganhando uma dinâmica muito mais plural. A hiperconstrução, agora, não precisa mais passar pela dramatização assombrosa de “Event Horizon” (1997), pela reconstituição história de “Pompeia” (2014), ela pode, simplesmente, se dar ao prazer de invocar os elementos que deseja. Não é preciso uma justificativa ou uma demanda narrativa, tudo é permitido. O filme ganha uma maleabilidade icônica que, consequentemente, gera uma atemporalidade implícita em toda a sua caracterização. De cenários futuristas a perseguições old school, de zumbis orientais a motoqueiros russos sem cabeça. Um laboratório de práticas que tem prazer em percorrer por uma vasta diversidade de dinâmicas do cinema de ação. Mais do que isso, que faz dessa diversidade, dessa relação elementar livre de amarras dramáticas, tanto o seu instrumento de comentário icônico como de pragmatismo recreativo.

Dentro desse esquema de representações, os componentes básicos da dramaturgia podem até ganhar uma qualidade essencialmente ambígua, tanto em relação ao espaço físico (cada cenário é uma simulação assumida), como ao drama em si (o vínculo dramático mais forte do filme é entre Alice e uma criança que não é sua filha, mas apenas um clone de uma das simulações), mas ao mesmo tempo que o diretor estabelece essa relação dúbia com o seu meio, a todo momento ele venera uma qualidade muito palpável da cena. A simulação inventa uma realidade, mas suas consequências são materialmente efetivas. Frente a isso, Anderson concebe uma dinâmica de destruição e renovação bastante particular.

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“It’s just like a camera. Point and shoot.” É o que Alice diz ao ensinar uma personagem a usar uma arma. “É como uma câmera”: o extermínio é compreendido como um exercício elementar de cinema. Existe uma relação muito clara entre essa hiper-realidade ambígua do espaço do estúdio e a validação da violência como um artifício de aniquilamento, mas, também, de renovação. A violência não é uma via de catarse. Não estamos em um filme de Quentin Tarantino. O sangue, no cinema de Paul W. S. Anderson, não é um elemento de purificação, é muito mais um meio, um artifício que compactua com suas alegorias humanistas. “Os Três Mosqueteiros” mal derruba uma gota.  A violência é efetiva, mas ela está ali, principalmente, como uma manifestação renovadora.

É justamente nesse dinâmica renovadora que repousa a matéria anti-cínica do filme, o seu mote essencialmente shyamaliano, por assim dizer. O mundo, mesmo chegando a um fim, ainda merece uma chance. Os personagens estão, a todo momento, disposto a morrer um pelo outro. Alice arrisca a própria vida para salvar uma criança que não passa de um clone, de uma invenção de um computador. É como se, não tendo aonde se agarrar, todos criassem elos com o que ou com quem está mais próximo. Em um planeta em plena destruição, em um filme onde tudo é simulação, parece que a única coisa que de fato interessa é o fator humano. Mesmo que, novamente, esse fator também não passe de uma miragem, de uma ilusão aparente que retome um desejo materno. Nada mais natural do que, em um projeto cinematográfico sobre a sobrevivência, o elemento catalisador da ação seja a esperança, a possibilidade de reconstrução como um mote dramático agregador.

Nesse sentido existe mesmo uma ingenuidade possibilitadora dentro das relações dramáticas da obra. Uma frontalidade que, conciliada ao seu tom de filme de ação experimental, de método pelo método, promove o filme de Anderson a esse exemplo mor do vulgar auteurism. E, de fato, se por um lado o filme possui uma relação muito concreta com a sua iconografia, uma recusa por metáforas e uma relação alegórica direta com o seu universo – um zumbi é um zumbi, uma ameaça à vida, nada mais e nada menos – por outro concebe-se a inevitável conceitualização dessa jornada. Ou seja, existe uma relação vulgar, comum, um mote recreativo assumidamente comercial, como também toda uma dinâmica processual que se debruça sobre elementos de identidade e representação.

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Mesmo a relação do filme com a caracterização do seu espaço urbano subverte elementos de uma certa representação cinematográfica em voga, em especial no seu mote destrutivo de filme catástrofe. A obra assume essa impessoalidade da metrópole como um objeto estrutural. O estúdio cinematográfico funciona como um estúdio ficcional mas também, sempre, artificial. Uma cidade surge e é destruída em poucos minutos. Não existe a dramatização do espaço. Não existem figurantes morrendo. Não existe dano colateral, já que cada vida é preciosa. Até mesmo a caracterização da ex-União Soviética como o único cenário real dentro da ficção parte de uma dinâmica artificial. Alice e seus comparsas destroem todas as simulações do filme para embarcar em uma luta final na superfície, perante a realidade, perante o que restou de submarinos e instalações soviéticas em um cenário que, ainda assim, soa tão elaborado como os cenários simulados no subsolo. Os artefatos, o símbolo do foice e do martelo, a neve. Tudo remete a uma distopia distante, a uma fábula política perdida no tempo.

Muito oportunamente essa realidade que ainda soa como simulação, essa neve com cara de estúdio, parece mais do que apropriada como cenário desse embate final. Longe da grandiosidade das fases já percorridos, das explosões cromáticas e dos longos corredores de profundidade de campo infinita, só resta uma relação muito elementar com o corpo e com a luta, com uma dinâmica que assegura a ação não só dentro da sua prática de gênero, de filme de ação, mas como a potência elementar do cinema, como o gesto isolado dentro desse cenário branco, sintético. Um cenário que, outra vez, reitera a ideia do estúdio como um lugar ilhado, de atenção a dinâmicas muito essenciais da imagem e do movimento, do corpo que briga, que cai e se levanta, que insiste em continuar lutando.   A ação, no cinema de Paul W. S. Anderson, parece ser tão elementar quanto é possível. Mesmo com toda a sua orquestração de flerte maneirista, seus slow-motions e seu ballet de corpos e gestos, toda intenção é assertiva, é direta, é executada com um destino certo. O aniquilamento não é a esmo, ele tem um propósito, ele derruba para reerguer, ele destrói para reconstruir. Lutar, afinal, é um ato de resistência.

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