A RESSACA DO MILÊNIO

Por João Pedro Faro

ressaca do milenio

Havia algo de paranoico em toda tendência cinematográfica no fim dos anos 90. Isso tanto em manifestações formais (o amaldiçoado Dogma 95, toda a eterna carga de revoltas laterais contra a narrativa clássica que impulsionava maneirismos cada vez mais intensos e experimentais) quanto em recorrências puramente temáticas (a virada do século que traz consigo diversos apocalipses, todas as Matrix, um fim lento do anti-establishment altamente oitentista que dá lugar à descrença revolucionária e ao ambiente já totalmente controlado por robôs e engravatados). É nesse clima quase pós-traumático, de futurismo desacreditado aliado à imagética radical, que Abel Ferrara faz de Enigma do Poder (1998) um monumento ao fim do mundo enquanto coito interrompido.

É curioso ter em mente que o antigo projeto de adaptação do conto de William Gibson seria com o Schwarzenegger, provavelmente gerando uma obra totalmente oposta às intenções do filme de 98. Por mais que a anedota sci-fi do Gibson seja passível ao grande cinema literal (e talvez possamos dizer que esse filme existiu com Vingador do Futuro (1990)), sua decadência e melancolia pertencem a um realizador maldito como Ferrara. Entregar toda a identidade visual do mundo do romancista (o famoso “céu das cores de uma televisão em estática” do Neuromancer, presente aqui em todas as externas) e encontrá-la no tempo atual que à época de Gibson ainda era um futuro distópico. O Japão de Enigma do Poder já é o cyberpunk, desde a abertura que corta da guitarra melódica para a trilha surtada do Schooly D, com todos os exageros de neon asiático explodindo nos créditos. A própria locação em si já é um espaço alienígena para o diretor, não está filmando a Manhattan já mentalmente mapeada pela câmera de todos os seus trabalhos anteriores.

A finalidade de Ferrara em sua tragédia de imagens falsas só é possibilitada por todo o contexto da obra original: É no ultra corporativismo da ficção científica, em seus digitais e hologramas, que reside a matriz do filme. Ferrara se apropria do mundo onde tudo é constantemente registrado em imagens (seja em fitas de espiões, câmeras de segurança ou pornôs caseiros) para, em um intuito puramente experimental, torna-las abstrações dessa realidade. Esse ideal vinha sendo construído desde que o diretor começou a abandonar a sobriedade de projetos como O Rei de Nova York (1990) e retomar, aos poucos, uma energética radical do início de sua carreira Do romantismo agressivo de O Vício (1995) até Oculto na Memória (1997), a tendência de sua imagética é um novo encontro de brutalidade na disposição e no arranjo dos planos. Ao passar da década e na proximidade com o fim do século, esses novos arranjos se tornam cada vez mais essenciais e formadores. Em Oculto na Memória principalmente, prequel espiritual de Enigma do Poder, a demonstração do palácio de vídeo digital do personagem de Dennis Hopper já abre o caminho para o futurismo que Ferrara afirma como um caos semântico na obra seguinte. As tantas telas que cercam qualquer lugar não deixam com que nenhum momento seja observado com total discernimento. Uma verdadeira morte do registro. Afinal, no universo do excesso de informações, qual seria outro fim para as imagens além da perda de um sentido claro?

Nesse processo primordial, não se perde somente as formas claras da imagem, mas também o espaço em que elas se projetam. Não pertencem aos quatro cantos do plano de uma câmera, mas se configuram em paredes, celulares e televisões que não estão inseridas diegeticamente no formato. Elas residem em todos os meios físicos, como se tivessem noção de que são as reais definidoras de qualquer fator dramático da obra.

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Quando Rita Hayworth atirava espelhos em Dama de Shangai (1947), como fêmea fatal máxima, destruía imageticamente os dois homens que viviam em função de seu amor. Sandii (Asia Argento) em Enigma do Poder não precisou de uma arma para fazer a mesma coisa. Aí está a finalidade experimental de Ferrara, onde encontra sua potência: o grande twist da sedutora que trai homens burros é tão essencial quanto o próprio cinema, mas em Enigma essa figura feminina, desde sua primeira aparição, não se restringe apenas ao papel de personagem. Ela é a dona de todas as imagens, sua concretização, sua fisicalidade total. A presença que impulsiona todas as quebras, radicalismos e subversões. Reside em outro plano, intransponível a qualquer um. A prostituta estrangeira misteriosa contratada por dois golpistas para interpretar um papel, fazer um homem se apaixonar e derrubar uma grande empresa, se torna a força maior do universo onde se insere. É a estampa do pecado original do futuro corporativista, a paixão genuína, o tesão apaixonado, e também a única que não é vítima desse mesmo pecado.

O grande conflito de X (Willem Dafoe) é perceber isso, enquanto antes acreditava junto com Fox (Christopher Walken) e Hiroshi (Yoshitaka Amano) estar em controle de Sandii. Impossível. Ela, o próprio corpo da obra, reside em espaço algum. Não é à toa que no conto de Gibson ela é descrita como O Fantasma do Novo Século, feita de ectoplasma. Aqui, ela é feita de digital. Por isso mesmo pode simplesmente desaparecer quando lhe convém, como em seu encerramento que se dá numa breve constatação (“a garota sumiu”).  Sandii é como o fruto final dos meios fílmicos de seu momento na história: uma personagem que está acima de todos esses meios, portanto pode manipulá-los do jeito que preferir. Traz em sua natureza um caráter clássico mas, ao incorporar novas formas de traduzir-se em cinema, surge maior do que ele próprio.

abel loves asia

Enigma do Poder torna o corte o fim de um fragmento da memória. Como estamos sempre acompanhando X pensando em todos os seus momentos em torno de Sandii, cada encerramento de imagem se dá como uma pequena tragédia por si só. Isso não apenas nos 15 minutos finais, onde a recapitulação do romance é inserida narrativamente, mas sim no filme inteiro. Na necessidade de X pela mulher que o traiu e que ele nunca mais verá, cada frame é uma oportunidade de deixar-se dominar novamente por Sandii. A diferença nesses 15 minutos de encerramento é justamente o espaço que X encontra na cápsula/dormitório New Rose Hotel: no cubículo isolado, acha a oportunidade de fugir da overdose de acontecimentos, boatos e conflitos de espionagem de outrora. Naquele cubículo, as únicas imagens que restam são as que buscam rever Sandii e um resumo daquele universo passando em uma televisão (vemos olhos de modelos asiáticas e propagandas, nada mais essencial do que isso). Vai do excesso para o mínimo. Consequentemente, surge o mais doloroso sentimento de ressaca. Mais próximo de seu psicológico, X reassiste o filme mentalmente. Ao fim da ilusão, percebendo que o amor de Sandii nunca existiu, as experimentações de Ferrara atingem a crueldade e tangem o desejo de morrer em X. Encontrar-se na realidade é a quebra mais dolorosa que o cinema pode fazer. Mais dolorosa ainda se essa quebra acontece em sua própria forma, e não apenas no desenrolar do storytelling básico.

Fora de New Rose Hotel, o mundo acaba em vírus, perseguições internacionais e dominações industriais. Porém, a verdadeira dor nisso tudo é X, tão abruptamente, ter que ver sua paixão não com a fantasia de antes e nem como ela é de fato (a figura verdadeira de Sandii ninguém nunca poderá entender), mas sim como uma lembrança interrompida. A melhor lembrança da sua vida. Nesse aspecto tão específico, é válido ressaltar um equívoco muitas vezes atrelado ao Ferrara. Se tanto é reafirmado sobre sua suposta explicitude (e nisso encontra-se alguns dos motivos da vergonhosa recepção crítica da época ao filme), muito se esquece sobre sua ternura e sensibilidade. É, sim, o cineasta do intenso, mas é também de refinamentos únicos. Existe algo mais delicado, mais cuidadoso, do que construir toda a dor do fim de um relacionamento apenas em ressignificação de planos? Basear toda a tragédia de uma paixão falecida em jogos simples de montagem? Se existe, ninguém faz com tanto afinco quanto ele.

Após todo o trauma que configura Enigma do Poder, cabem algumas questões totais dentro um projeto tão introspectivo. Cabe a todos o isolamento pessoal em um cubículo, uma assimilação final de tudo que representa. Encarando o abismo do novo milênio, entende-se melhor tudo que se passou no último. Por isso mesmo a sensação de Enigma do Poder é de um produto final de tudo que foi assimilado imageticamente pelo avanço de empresas multinacionais, implantações digitais e tecnologias de vídeo ao longo do século. Claro, em um igual senso de exaustão desses fatores, culminando na morte de todos.

Se pararmos para pensar que no final do século 19 ainda criava-se o cinema e agora, 100 anos depois, ele já sabe se autodestruir, dá pra perceber como o século subsequente não foi dos mais fáceis para a humanidade. Nada mais compreensível do que pelo menos parte do cinema morrer simplesmente por ter sido traído pela Asia Argento. Se não faleceu por completo, pelo menos contemplou o suicídio.

sozinho em new rose hotel 2

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